Identidade política, desigualdade e partidos brasileiros
DEMOCRACIA E IDENTIDADES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS
Em artigo publicado em 2008, Alessandro Pizzorno discute problemas relacionados
à representação política, retomando temas a que se dedica há muito1.
Ressaltando o fato de que, nas condições atuais de operação da democracia, os
eleitores são cada vez mais destituídos de influência real sobre as políticas
públicas, restrita amplamente a grupos de pressão, Pizzorno examina o papel de
lideranças, movimentos ou partidos em termos do contraste entre os bens de
curto prazo e os de longo prazo que os cidadãos podem esperar do processo
político. Esse papel é descrito em termos de "oferta de esperança": em vez de
um governo representativo capaz de colocar seus eleitores em condições de
avaliar as vantagens ou as desvantagens de uma ou outra política pública,
teríamos sistemas de partidos e unidades coletivas de tipo variado (étnicas,
religiosas) em que a autoridade da classe política staria fundada na combinação
da esperança que oferece quanto a fins de longo prazo em larga medida,
segundo Pizzorno, imaginários: fins nacionais, de classe, da humanidade, dos
povos do mundo com a capacidade de transformar essa esperança em consenso
para as políticas de curto prazo. É a relação entre a classe política e a
população, afirma Pizzorno, que o Estado deve empenhar-se em tornar virtuosa; e
somente a presença de doutrinas em que se expressem fins de longo prazo
divergentes (o aspecto de divergência é salientado) pode dar sentido a uma
participação na vida política que não seja meramente "profissional" ou
clientelística, características estas associadas à busca de objetivos privados
pela classe política e à idéia de uma sociedade de "caroneiros" ou
aproveitadores.
Essa perspectiva se associa, no exame de problemas da democracia e da política
em geral, com a ênfase na identidade. Avesso a recentes concepções da
democracia de economistas que tendem a equiparar a dinâmica democrática à do
mercado, Pizzorno salienta as questões de identidade como as que seriam
distintivas da política. Mas as sociedades que Pizzorno tem mais diretamente
diante dos olhos são sobretudo sociedades de características social-
democráticas, fruto da afirmação de identidades referidas em ampla medida a
interesses materiais e à "questão social", e os fins "imaginários" de longo
prazo a que Pizzorno se refere incluem com destaque os relativos a classes
sociais.
A abordagem de Pizzorno coloca em foco alguns dos temas que têm sido
recorrentemente tomados a propósito dos partidos e de seu desenvolvimento. De
um lado, temos o tradicional recurso à idéia de ideologia e à característica
menos ou mais ideológica dos partidos, elaborada classicamente na distinção de
Maurice Duverger entre "partidos de quadros" e "partidos de massas", estes
últimos correspondendo em particular aos partidos socialistas de origem
extraparlamentar baseados na militância contínua de membros filiados. Vistos
por Duverger como os partidos do futuro, os partidos de massas ideológicos
fornecem a referência latente de um modelo geral de "política ideológica" que
segue prevalecendo amplamente, no Brasil como em outros países, e no qual se
supõe que partidos e eleitores se distribuam com clareza ao longo de um eixo
esquerda-direita. Em contraposição, revisões já não tão recentes têm apontado a
tendência, que resultaria fatalmente do mero envolvimento no jogo eleitoral e
do imperativo de diluir a mensagem para conquistar maiorias, de que os partidos
se transformem em "partidos pega-tudo" (catch-all parties), modificando de
maneira mais ou menos acelerada suas relações tanto com as "bases" quanto com o
próprio Estado (eventualmente dando origem ao que alguns chamaram "partidos-
cartel", em que o acesso às benesses do Estado acaba compartilhado em algum
grau entre os diversos partidos). De todo modo, tal evolução acabaria por
ensejar a prevalência de um pragmatismo afim aos partidos de quadros, que se
faria acompanhar, em termos de psicologia política, de um clima de "cultura
cívica" em que a adesão generalizada aos valores comuns da coletividade
abrangente (nacional) e a identificação com ela permitiriam que arrefecessem os
antagonismos políticos e, em conseqüência, o estímulo ao envolvimento com a
política.
A esse respeito, o interesse da perspectiva trazida por Pizzorno consiste em
que, em vez de identificações divergentes ou antagônicas se contraporem a
composições pragmáticas, recupera-se a complexidade sempre presente no jogo
político de interesses que se agregam e hostilizam. Por "imaginários" que sejam
os fins de longo prazo propostos, eles são efetivos em produzir identificação e
identidades político-partidárias. E mesmo se estas se mostram instrumentais
para a produção de consensos pragmáticos quanto ao curto prazo, respaldando
composições protagonizadas pelos partidos, o componente de antagonismo contido
na identificação partidária e na mobilização em torno de fins ambiciosos é
também condição para que a relação entre a classe política e a população possa
adquirir o caráter virtuoso mencionado, em vez de acabar substituída por um
aguado "civismo" negativamente marcado por "profissionalismo" e clientelismo
políticos.
Por outro lado, a ênfase em questões de identidade, tomada do ponto de vista da
experiência das sociedades social-democráticas e de problemas de estratificação
social, permite destacar algo especial. Genericamente, identidade tem a ver com
relações de igualdade e diferença, que dizem respeito à diversidade de etnias,
culturas e nacionalidades, em sentido amplo, assim como tem a ver com o caso
específico de relações hierárquicas entre classes sociais ou categorias sociais
estratificadas de qualquer tipo que correspondem antes a relações de
igualdade e desigualdade. Em outras palavras, a relação igual-desigual é um
caso particular da relação igual-diferente. Contudo, são as relações de
igualdade e desigualdade, ou de poder social desigual, que se revelam
crucialmente relevantes do ponto de vista do tema geral da democracia, e as
diferenças étnicas ou culturais só interessam, deste ponto de vista, na medida
em que tendem a associar-se com domínio e subordinação.
DIFERENÇAS, DESIGUALDADES E INSTITUCIONALIZAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL
A implantação e o desenvolvimento do Estado nacional moderno envolveu com
freqüência problemas de "assimilação", em que se tratava justamente de dar
solução ao problema da "identidade nacional", com a neutralização da
importância de eventuais diferenças étnicas ou culturais, criando-se assim o
substrato sociopsicológico apropriado à afirmação da aparelhagem burocrática do
Estado sobre as coletividades "nacionais" envolvidas. Na verdade, na Europa (e
não só lá) tais problemas seguem bem vivos até hoje: com a derrocada do
comunismo, a fragmentação ocorrida na Europa oriental reeditou e intensificou,
às vezes de forma trágica, o processo de "balcanização", enquanto os próprios
avanços integradores da União Européia (e da globalização, mais amplamente)
favoreceram, em vários países da Europa ocidental, movimentos de autonomia
regional que envolviam ou envolvem diferenças étnico-lingüísticas e
especificidades culturais, ou "nacionalidades" menos ou mais reais.
Mas é a questão social, assentada na diferença como desigualdade, que marca a
dinâmica da implantação e do desenvolvimento da democracia. Essa proposição é
verdadeira mesmo se recuamos do mundo moderno para a Antiguidade clássica. A
experiência da democracia ateniense teve seu traço distintivo, e o duradouro
foco de conflito que terminou por comprometê-la, na figura do cidadão-camponês,
na qual Ellen Meiksins Wood (nos ensaios de Democracy against capitalism2)
sintetiza a idéia de que os "produtores" ou trabalhadores manuais (camponeses,
sapateiros, ferreiros) podiam ser governantes, podiam ser cidadãos e como
cidadãos participar do governo da comunidade idéia esta que, como elabora
Wood, veio a ser o grande cavalo de batalha nas discussões sobre a democracia
ateniense nas obras dos pensadores clássicos da própria Atenas, que em geral se
opunham fortemente a ela.
É no mundo capitalista do pós-Renascimento, contudo, que a questão social
adquire relevância definitiva. A afirmação liberal da igualdade perante a lei e
dos direitos civis radicaliza-se na reivindicação dos direitos político-
eleitorais, que se desdobra na busca da igualdade de maior alcance, da
redistribuição e dos direitos sociais. Em vários países, essa busca, apesar de
trazer a questão social para o cerne das disputas eleitorais, conformou as
experiências social-democráticas em que arrefeceu o radicalismo socialista dos
casos mais exemplares de partidos ideológicos de massas.
Mas as vicissitudes das lutas sociais têm também um resultado de feições
distintas, que vem a ser de grande importância para a dinâmica política e
partidária no Brasil: a confrontação em nível planetário entre capitalismo e
socialismo na Guerra Fria, que marcou longamente a segunda metade do século XX.
Um aspecto saliente do quadro assim criado é o de que os enfrentamentos
domésticos que ocorrem em cada país, especialmente na periferia do sistema
mundial, se aguçam ao se transformarem em episódios do enfrentamento
internacional entre os dois campos. No Brasil, isso tem o efeito de
intensificar algo que vinha de longe: o protagonismo político dos militares (o
"pretorianismo", na expressão de alguns) como parte crucial da debilidade do
enquadramento institucional do jogo político. A implantação, em 1964, da
ditadura militar que viria a durar 21 anos é o coroamento desse processo. Ela
acontece num momento em que a grande desigualdade herdada de nossa longa
experiência escravista se combina tumultuadamente com a transformação
econômico-social, o crescimento das cidades e das massas populares urbanas e a
enorme expansão do eleitorado.
Os elementos de transformação e novidade nesse quadro têm, naturalmente, grande
importância na explicação das turbulências que culminam em 1964. Mas o
entendimento mais adequado da complexa atualidade política brasileira e das
deficiências institucionais que permanecem, mesmo superada a ditadura, exige
que se ressalte o papel cumprido pelo que há de viscoso e resiliente no legado
de nossa história mais remota.
O ponto crucial são os efeitos da multissecular experiência escravista recém
mencionada, da qual, naturalmente, todos temos conhecimento, mas de cujo
impacto profundo freqüentemente não tomamos consciência adequada. Ela
singulariza o Brasil de modo especial: não só nos incluímos entre os poucos
casos, em toda a história, de sociedades propriamente "escravagistas" (que
Finley3 caracteriza pelo recurso em grande escala ao trabalho escravo tanto no
campo como nas cidades e que, na listagem de Ellen M. Wood, são a Atenas
clássica, a Itália romana, as ilhas das Índias Ocidentais, o sul dos Estados
Unidos e o Brasil), mas somos também o único país moderno de dimensões
significativas a contar com um legado escravista maciço nos Estados Unidos,
afinal, a escravidão perdeu a guerra.
A conseqüência, que se pode resumir na singular e persistente desigualdade
brasileira, é que as carências materiais em que a longa escravidão se traduz
para grande parcela dos estratos populares do país têm contrapartida decisiva
no plano da psicologia coletiva e de suas projeções políticas. Um aspecto
merece destaque: na sociedade de castas que a escravidão construiu (demarcadas,
ademais, por traços físicos de alta visibilidade), a população de origem
africana não chegava sequer, durante muito tempo, a ser percebida como fazendo
realmente parte do povo brasileiro4, o que é certamente a explicação última de
nossos investimentos insuficientes em educação e da precariedade do sistema
educacional brasileiro até hoje (educar "essa gente"?). Essa deficiência é um
correlato importante do quadro psicológico produzido, em que o longo jogo
político oligárquico e seus mecanismos clientelísticos combinavam a perspectiva
aristocratizante da elite com a passividade e o conformismo próprios, na
sociedade de castas, das camadas menos favorecidas. Aos olhos destas, a
desigualdade tende a aparecer como parte da ordem natural das coisas e a não
ser vivida como problema efetivo: não se manifesta subjetivamente de forma a
dar lugar ao sentimento de injustiça e à conseqüente disposição afirmativa e
reivindicante.
Naturalmente, as transformações estrutural-ecológicas e comunicacionais das
décadas recentes não poderiam deixar de impactar também o plano da psicologia
coletiva, gerando mecanismos de comparação e frustração há muito estudados pela
sociologia como fonte do sentimento de injustiça e fator de instabilidade e
dando razão, em termos psicológicos e não apenas "objetivos", à observação de
Fernando Henrique Cardoso, quando presidente da República, de que o Brasil não
seria mais um país subdesenvolvido, e sim um país injusto. Mas, apesar da
incorporação eleitoral que acaba por mostrar-se inelutável nas condições do
difuso apoio convencional à democracia na atualidade mundial, as deficiências
de todo tipo perpetuadas pelo resistente fosso social brasileiro condicionam de
modo relevante os efeitos do processo geral na esfera política e partidária.
Assim, parte importante da insatisfação popular, em vez de encontrar
canalização político-institucional apropriada, pode servir simplesmente de
combustível na intensificação acentuada da violência e da criminalidade comum.
Mesmo nas suas manifestações político-partidárias, contudo, é evidente que o
idealizado modelo de "política ideológica" dificilmente poderia ser visto como
ajustando-se, em particular, aos mecanismos populistas que há muito operam no
processo político do país.
PMDB, PSDB E PT
De todo modo, as deficiências de nosso substrato social desigual se traduzem
também em claras deficiências no processo de construção partidária, quando
apreciado do ponto de vista do modelo de política ideológica. É certo, não
deixamos de encontrar a percepção, por parte do establishment, de ameaças
próprias da política ideológica a surgirem no plano da dinâmica partidária,
como ocorreu, num quadro de radicalização que se intensificava, com o
crescimento gradual do apoio eleitoral ao PTB de Getúlio Vargas durante o
período de 1945 a 1964. A ditadura militar de 1964 tratou de agir contra as
ameaças percebidas, especialmente com a dissolução dos partidos daquele período
e sua substituição pelo bipartidarismo imposto de Arena e MDB. A iniciativa,
contudo, revelou-se um erro de cálculo. Sua conseqüência foi que a
simplificação das opções eleitorais se ajustasse bem aos simplismos da visão
política das parcelas populares majoritárias do eleitorado característica do
populismo e, ao contrário do esperado pelos mentores do regime militar,
favorecesse o partido de oposição, o MDB, a partir do momento em que as
vicissitudes do regime lhe permitiram transmitir, em 1974, uma mensagem
afirmativa de feição popular.
As manobras seguintes do regime, como se sabe, ensejaram novas mudanças do
quadro partidário, em que se esfacelou o singular recurso eleitoral que o MDB
chegou a representar. Tais mudanças atingiram seu ápice já bem mais tarde, em
1988, quando se dividiu o PMDB, herdeiro direto do MDB, com a criação do PSDB.
Mas o quadro geral alterado permitiu o que foi, sem dúvida, a grande novidade
na história partidária brasileira, o aparecimento do PT. A novidade consistiu
na combinação inédita que o partido conseguiu realizar de dois traços: de um
lado, como conseqüência da gradual afirmação da forte liderança sindical de
Lula e do poder catalisador que veio a ter junto a outros setores comprometidos
com idéias progressistas, nos movimentos sociais e na Igreja, o partido veio a
representar singular promessa de atuação orientada por princípios éticos e
ideológicos (em particular certo compromisso redistributivo), capaz de conjugar
militância aguerrida com disciplina partidária; de outro lado, o simbolismo
popular difuso ligado à figura de Lula trazia um elemento propício à inserção
bem-sucedida no jogo eleitoral, com seu inevitável componente populista nas
condições gerais do Brasil.
As modificações dramáticas no cenário internacional acarretadas pela derrocada
mundial do socialismo tornaram possível que a atração pessoal exercida por Lula
e a militância aguerrida do PT viessem a ensejar um experimento impensável no
quadro anterior de Guerra Fria: a chegada à presidência da República, em 2002,
do líder operário de um partido de esquerda, de programa socializante e
retórica radical.
Não obstante os temores inicialmente suscitados no establishment, que cercaram
a eleição daquele ano da ameaça de crise catastrófica, esse evento acabou por
representar uma oportunidade singular de aprendizado geral e um teste decisivo
para a democracia brasileira, permitindo seu acesso a um novo patamar
institucional. Parte importante do aprendizado realizado foi o de moderação e
equilíbrio por parte de Lula e do PT, substituindo as propostas socialistas
originais por políticas sociais de orientação social-democrática conjugadas com
a continuidade de políticas econômico-financeiras austeras. As origens
ideológicas do PT levaram, à esquerda, não só a cobranças baseadas na visão
equivocada de que, com a moderação ocorrida, não teríamos tido um teste
autêntico de nossa democracia (que dependeria, nessa ótica, da aposta
obviamente precária de que a democracia viesse a ser o enquadramento
institucional de um governo propriamente revolucionário e sobrevivesse a
ele...); tais origens estão também claramente subjacentes à arrogância
ideológica que se transvestiu no tosco "realismo" da compra de apoio
parlamentar desvendado na grande crise de 2005, na qual a própria imagem de
apego a princípios e compromisso ético do partido se viu comprometida.
As dificuldades daí resultantes colocaram em xeque o processo inédito de
construção institucional na faixa partidária que a mescla petista parecia
envolver. Seguiu-se o afastamento, em grau importante, entre o partido como
tal, submetido a cisões e defecções, e a liderança pessoal de Lula, que, tendo
tido certamente seu pior momento na crise de 2005, terminou por reeleger-se com
grande votação para um segundo mandato e por alcançar altíssimos níveis de
popularidade na esteira dos êxitos da política social e econômica. Tais êxitos
culminam mesmo na súbita elevação do status do país na cena mundial,
impulsionada pela dinâmica econômica propícia já de há algum tempo, mas sem
dúvida incorporando a imagem de Lula como fator coadjuvante.
DEMOCRACIA E REDISTRIBUIÇÃO: BRASIL E AMÉRICA LATINA
Dois aspectos podem ser destacados como especialmente significativos nessa
situação. O primeiro é o mencionado fortalecimento institucional da democracia
brasileira. Dificilmente se poderia exagerar, mesmo pondo de lado os êxitos
indicados, a importância de uma presidência PT/Lula que chega ao fim do segundo
mandato num quadro de normalidade institucional. Naturalmente, dado o nosso
longo pretorianismo e o protagonismo há muito exercido pelas forças armadas, a
questão decisiva é aqui a da "domesticação" institucional dos militares e de
até que ponto ela se terá cumprido cabalmente. Acabamos de ter, com a retomada
da discussão em torno da Lei de Anistia de 1979 a propósito do III Programa
Nacional de Direitos Humanos e o empenho do governo em aplacar a insatisfação
exibida por chefes militares, clara indicação de que o assunto não se encontra
inteiramente resolvido. Contudo, mesmo se o trato com os militares persiste
como algo delicado para o governo em circunstâncias em que a memória dos
pesados custos da longa ditadura de 1964 ainda está bem viva, nada parece
justificar a idéia de que tenhamos uma "crise militar" efetiva, ou temores
análogos aos que marcavam com freqüência o período pretoriano de nossa história
recente: não há como cogitar a sério de golpe militar, e a definitiva inserção
democrática das forças armadas no quadro político-institucional brasileiro, com
a superação do "complexo de sublevação" que elas compartilhavam com outros
setores de nossas elites, parece não ser senão questão de tempo.
Seja como for, temos aqui algo que subsiste como relevante nos embates da atual
cena política brasileira, dizendo respeito a como lidar com a memória da
ditadura e, em particular, com o tema da anistia e dos esforços de certos
setores para obter a revisão judicial da lei correspondente e, assim,
possibilitar a punição dos envolvidos nos crimes da repressão, especialmente a
tortura. A questão principal que o problema encerra é o equilíbrio a ser
alcançado entre o apego a um realismo necessário à superação dos conflitos que
produziram a ditadura e se aguçaram com ela, de um lado, e, de outro, o empenho
normativo de fazer justiça. Como elaborado por alguns, especialmente Paulo
Brossard em artigo de jornal que circulou no início de 2010 na internet
("Anistia é irreversível"), o objetivo da anistia, em vez de fazer justiça, foi
o de pacificar o país, criando condições propícias à implantação e à eventual
consolidação da democracia. Essa perspectiva é convergente com análises de
cientistas sociais sobre o processo de transição à democracia na América Latina
e em outras partes, que recomendavam o reconhecimento realista das assimetrias
de poder e destacavam, em especial, a necessidade de acomodar os interesses da
corporação militar como forma de tornar a transição efetivamente possível.
No debate corrente sobre a Lei de Anistia, porém, esse ânimo realista tem sido
substituído, nos setores de opinião de esquerda, pelo problemático apelo à
contraposição entre "crime político" e "crime comum", em que a idéia de crime
político acaba por legitimar as ações daqueles que, por terem na cabeça certa
idéia que presumem permitir organizar melhor o Estado e a sociedade, se sentem
autorizados a recorrer à violência. Apesar da tendência da imprensa a tratar às
vezes as vítimas da ditadura como "opositores do regime que pegaram em armas",
é claro que a ditadura, com seus crimes inequívocos e hediondos, se confrontou
também com uma cultura de violência que havia tempos vinha se difundindo,
marcada pela romântica aceitação da violência em nome de objetivos políticos
supostamente nobres (uma última violência para por fim à violência
sistêmica...), sob a influência de idéias marxistas ou por motivos de
inspiração até diretamente religiosa. Mas pode-se ver também o realismo a
operar em surdina, por assim dizer, mesmo na posição ansiosa por fazer justiça.
Pois a disposição de caça aos torturadores que subsiste faz vista grossa para o
fato de que eles eram, afinal, "pau mandado" dos chefes maiores do regime
ditatorial, que não se procurou levar ao banco dos réus. O que acaba
convergindo com a hipocrisia contida na famosa manifestação em que Pedro
Aleixo, opondo-se ao Ato Institucional nº 5 mas evitando enfrentar-se com os
chefes militares, declarava que o motivo de preocupação eram as arbitrariedades
que viriam não do presidente da República, mas do guarda da esquina.
Como quer que seja, não obstante as reservas que talvez se justifiquem quanto à
timidez da justiça brasileira sob a ditadura, cabe ver com bons olhos, em
perspectiva mais ampla sobre a dinâmica política do país, as decisões do
Judiciário que têm preservado a simetria pacificadora da Lei de Anistia ainda
que cumpra reconhecer, sem dúvida, que os fatos do sombrio período ditatorial
de nossa história recente devem ser desvendados e trazidos ao conhecimento de
todos.
Quanto ao segundo aspecto significativo acima anunciado com respeito ao
panorama político atual, ele se refere à nova forma adquirida pela presença da
"questão social" no processo político-eleitoral do Brasil. Naturalmente, a
questão social se faz presente há tempos, desde que o fosso social herdado da
escravidão começou a combinar-se com a mudança social, a concentração da
população nas cidades e o grande crescimento do eleitorado. Durante muito
tempo, porém, o resultado dessas mudanças em termos político-eleitorais foi a
forma "clássica" de populismo, caracterizada, como nas análises de Torcuato di
Tella, pelo apelo ao "povão" por parte de lideranças de elite e contendo claro
componente fraudulento, que se integrava como contraponto no quadro geral de
instituições frágeis e pretorianismo.
Agora, é talvez possível continuar a falar de "populismo", ou ver o caso de
Lula como parte de uma nova onda populista na América Latina, que alguns
identificam em casos como o dos Kirchner, na Argentina, e os de Hugo Chávez
(Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). Mas é
problemático separar aquilo que justifique a carga negativa da idéia de
populismo, de um lado, e, de outro, a simples operação da democracia num
contexto de desigualdade e de massas material e educacionalmente carentes. O
que temos visto, no Brasil e em países como Bolívia, Venezuela e Equador,
marcados estes últimos por turbulências recentes, tende a corroborar algo que a
sociologia política vem salientando de novo com força: se a democracia chega a
operar de modo a incorporar as maiorias populacionais, ela se torna fatalmente
redistributiva. Os dados mostram redistribuição efetiva nos países em questão,
o Brasil incluído (e surpreendentemente, como têm revelado as pesquisas do
Latinobarômetro, com apoio crescente à democracia nos três países vizinhos, não
obstante as turbulências). Em nosso caso, de todo modo, o lulismo, combinando
simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou em algo inédito nas
disputas presidenciais, tendendo a caracterizar o processo eleitoral de maneira
mais geral: a intensa correlação, que transpareceu com nitidez especial na
eleição de 2006, entre o apoio eleitoral a um candidato ou outro e a posição
socioeconômica dos eleitores com as projeções regionais dessa correlação. Não
é casual, naturalmente, que o tema da política social se tenha imposto de forma
saliente na campanha daquele ano, e prometa continuar a ser um tema de decisiva
relevância nas disputas futuras.
UM ÚNICO CENTRO SOCIAL-DEMOCRATA?
As coisas são incertas, porém, quanto ao aspecto da eventual
institucionalização partidária. A alternativa realisticamente concebível ao
modelo idealizado de "política ideológica" que tem predominado entre nós é a de
um sistema partidário em que a percepção desinformada e difusa dos interesses
em jogo permita, mesmo se influenciada por fatores personalistas e "espúrios"
do ponto de vista daquele modelo, a identificação estável com alguns partidos,
podendo assim servir de suporte a políticas orientadas por perspectiva de longo
prazo. Pesquisas sobre identificação partidária no Brasil têm mostrado que ela
não ocorre senão numa minoria do eleitorado (cerca de 35% dele em 2002),
incluindo proporção apreciável da minoria sofisticada e politicamente atenta.
Isso pode ser comparado, por exemplo, com números relativos aos Estados Unidos:
informações do portal Rasmussen Reports de meados de 2009 mostravam que 36,8%
dos adultos estadunidenses se consideravam democratas e 33,3% se diziam
republicanos; sem embargo das oscilações nas proporções de identificados com um
partido ou outro ou de "independentes", o total de identificados gira há anos,
naquele país, em torno dos 70%.
Por outra parte, pesquisas sistemáticas revelam com abundância os matizes
envolvidos nas relações entre as identificações partidárias, de um lado, e os
debates programáticos ou as posições a serem adotadas em circunstâncias
diversas, de outro. Já o caso clássico dos partidos socialistas originalmente
revolucionários é instrutivo, pois a solução representada pelo partido para o
problema da identidade pessoal de seus membros acaba por preponderar sobre os
objetivos "instrumentais" da ideologia revolucionária e por dar a esta última
uma feição ritualística que permite a convivência pragmática com o capitalismo.
Mas pesquisas experimentais recentes nos Estados Unidos mostram, na verdade, o
componente propriamente "irracional" das identificações partidárias. Elas
revelam, por exemplo, que as pessoas identificadas com um dos dois grandes
partidos tenderão a perceber suas próprias posições sobre um assunto como sendo
expressas pelo candidato de seu partido mesmo quando ele se opõe a ela sem
ambigüidades e o candidato do outro partido tem posições inequivocamente mais
próximas; ou que as simpatias ou antipatias ditadas pela identificação
partidária fazem que os efeitos de informação deliberadamente falsa sobre
figuras ligadas a um partido ou outro persistam, na avaliação das pessoas,
mesmo depois de desvendada com toda a clareza sua falsidade.
Mas velhos dados de pesquisas brasileiras referidos ao confronto entre MDB e
Arena durante o regime autoritário de 1964 são também de interesse, mostrando
com nitidez, na simplicidade artificial do bipartidarismo imposto, os limites
de considerações programáticas relativas a questões diversas, e dando até a
aparência de banalidade às constatações permitidas. Assim, nos casos em que as
pessoas, de maior ou menor informação, declaravam identificar-se com um partido
ou outro, a congruência ou a incongruência percebida por elas entre as suas
posições pessoais e as dos partidos sobre os temas supostamente "quentes" do
momento era quase inteiramente irrelevante no condicionamento de sua decisão de
voto. Quer atribuíssem à Arena, por exemplo, posição contrária ou a favor de
eleições populares diretas para os cargos políticos, quer tal posição
correspondesse ou não à que declaravam ser a sua própria, quer simplesmente
desconhecessem a posição do partido a respeito, os eleitores estudados
concentravam maciçamente seus votos no partido de sua preferência, fosse MDB ou
Arena e só entre os que não declaravam identificação com algum dos partidos é
que temas diversos produziam dispersão no voto.
Tudo isso deixa ver a força da identificação partidária, que conforma
vigorosamente ao ponto da irracionalidade as disposições políticas em
contextos diferenciados. Mas o que sugerem os dados brasileiros citados é
talvez especial. Se nos outros casos se pode falar de longa efervescência
ideológica em torno de partidos socialistas ou da atual "guerra cultural" nos
Estados Unidos, de que os partidos têm sido atores destacados, no caso de Arena
e MDB trata-se de mero artifício "institucional" recém-inventado por uma
ditadura. E a sugestão é de que é fácil, de certo modo, produzir a
identificação partidária e seus efeitos: basta que o sistema partidário se
superponha "adequadamente" (como providenciaram inadvertidamente os ditadores)
ao fosso social do país e à simplicidade com que surge na consciência popular.
A grande pergunta a respeito da eventual consolidação de nosso sistema
partidário é a de se e quando virá a produzir-se a identificação partidária
estável na massa dos eleitores menos envolvidos politicamente (os cerca de 65%
não identificados que indicavam as pesquisas de 2002), independentemente do
caráter menos ou mais sofisticado ou "ideológico" dessa identificação. Condição
crucial para isso seria a estabilidade da "oferta" partidária, que tem sido
impedida nas tropelias de nossa história política.
Em termos da perspectiva proposta por Pizzorno, esboçada no início deste
artigo, o caso brasileiro envolve especificidades significativas. Questões de
igual-diferente relativas ao enfrentamento de etnias e culturas jamais tiveram
presença relevante na vida política do país. Não obstante a importância das
características raciais como fator de estratificação social, diferenças raciais
como tal, à parte os equívocos de certo movimento negro brasileiro, não são
necessariamente o fundamento de diferenças culturais e étnicas. De toda forma,
as identidades politicamente relevantes são claramente, em nosso caso, as
relativas a questões de igual-desigual. E, no jogo entre os fatores
mobilizadores e desmobilizadores do legado escravista e de sua superação na
dinâmica socioeconômica, a indagação é se viremos a ter o jogo político
democrático marcado pela convivência sadia que Pizzorno aponta entre, de um
lado, a divergência, como estímulo necessário à participação e à política
virtuosa que vá além do "profissionalismo" político negativo, do clientelismo e
da mera busca do ganho privado, e, de outro lado, a possibilidade de construção
pragmática de consenso nas sucessivas esquinas da conjuntura em que sempre
vivemos.
É de se esperar que a estabilidade institucional básica que aparentemente
alcançamos, com a superação da feição mais abertamente pretoriana do processo
político (mesmo se a superação real do fosso social continua a exigir larga
perspectiva de tempo), venha a permitir o avanço quanto à institucionalização
partidária nos termos modestos sugeridos quanto à natureza das identificações
partidárias. O último par de décadas pareceu corroborar a expectativa: o que a
experiência do PT teve de singular se conjugou com o repetido enfrentamento
eleitoral com o PSDB, de forma a sugerir que se viessem a criar em torno dos
dois partidos as identificações estáveis que eventualmente redundassem num
sistema partidário simplificado e consolidado, com, entre outras coisas, a
neutralização do êxito até aqui obtido pela postura excessivamente clientelista
e pragmática que orienta o fragmentário enraizamento regional do PMDB. Mas, se
a crise petista ensejou que o PT acabasse, em ampla medida, cedendo o passo ao
lulismo, ela resultou também, ironicamente, em crise do PSDB: sucessivas
derrotas em eleições para a presidência, certo vezo oligárquico da dinâmica
interna que transforma a escolha de candidatos presidenciais em ameaça à coesão
partidária, falha em encontrar o discurso alternativo a um lulismo inflado por
avassalador apoio popular, o que impele o candidato pessedebista a presidente
na eleição de 2010, José Serra, a pouco menos do que se declarar ele próprio
lulista... E o êxito no enquadramento partidário de nossa democracia parece
requerer que venhamos a ter novidades significativas em relação ao cenário
atual.
Há nesse cenário, contudo, aspectos que podem talvez ser apreciados de maneira
mais positiva. Um deles, que tem sido salientado na imprensa, é o de que o
PSDB, apesar da dificuldade de opor-se com eficácia ao lulismo, mantém a
perspectiva de continuar a controlar governos estaduais importantes, e mesmo a
hipótese de derrota do partido na disputa presidencial de 2010 não tem por que
ser lida como redundando em desastre irremediável para ele. Por outro lado, não
obstante os sérios percalços da experiência do PT como partido peculiar entre
nós e as reservas que o personalismo da liderança de Lula possa justificar, a
força mesma adquirida pelo lulismo, em sua conexão com a penetração do processo
político-eleitoral pela questão social, pode ser avaliada como ajudando a
trazer uma feição social-democrática à arena em que deverão desdobrar-se os
principais enfrentamentos político-partidários no país. A ampla união de forças
progressistas no MDB durante a ditadura e a força eleitoral daí resultante para
o partido sugerem a possibilidade teórica de uma espécie de grande MDB social-
democrático. Se esse caminho se mostrou pouco viável, e se surge mesmo como
indesejável na perspectiva de uma dose saudável de divergência, é com certeza
positivo que, sucedendo-se à instabilidade associada com extremismos e com a
confrontação de posições radicalizadas, venha talvez a ser possível encontrar
as condições da estabilidade institucional, como nas experiências especialmente
européias do pós-Segunda Guerra Mundial, num espaço de disputas definido em
termos social-democráticos. Ele se ajusta não só à proposta que deu o próprio
nome ao Partido da Social-Democracia Brasileira, mas também à posição para a
qual o duro aprendizado do PT eleitoralmente vitorioso e no exercício do
governo o fez refluir.
REFORMA POLÍTICA
A questão geral das perspectivas de estabilidade político-institucional leva ao
tema da reforma política, que se associa, em seu caráter recorrente, ao da
corrupção em suas faces variadas. Sucintamente, cabe destacar duas proposições
a respeito.
A primeira refere-se ao papel das normas e a sua dupla feição, quer como
componentes culturais de um contexto viscoso e resiliente (o que tenho chamado
"o institucional como contexto"), quer como objetos passíveis de manipulação
deliberada no nível da aparelhagem institucional-legal ("o institucional como
objeto"). Em vez da postura edificante que conta com uma espécie de apropriada
"conversão" coletiva, não podemos esperar ser eficazes em prazos relevantes
senão na ação dirigida ao institucional como objeto ou seja, na elaboração e
na implementação rigorosa de leis que alterem as expectativasdos atores e lhes
afetem o cálculo. A aposta é a de que assim possamos eventualmente ver cumprir-
se o preceito sociológico segundo o qual expectativas que se reiteram e
corroboram acabam por transformar-se em prescrições ou normas, com a eventual
mudança em direção propícia da cultura mesma e do contexto que representa.
Naturalmente, as chances de que os fatos corroborem as expectativas propícias
aumentam com a divergência de que fala Pizzorno e com a convivência vigilante
de identidades partidárias em confronto. Do ponto de vista específico da
reforma política, de todo modo, penso que, contra o convite à passividade que
encontramos em certos analistas, cabe extrair do realismo da aposta no
condicionamento do cálculo dos agentes e de suas expectativas o ânimo de
experimentar com dispositivos legais como os relativos a fidelidade partidária,
cláusulas de barreira, regras sobre coligações, adequada combinação de
princípios majoritários e proporcionais, listas partidárias fechadas ou
"flexíveis"...
A segunda proposição vincula a perspectiva empenhada na reforma a certo
diagnóstico da natureza da "crise ética" que estaríamos vivendo no momento, com
a intensa corrupção política. Esse diagnóstico vê a intensificação da corrupção
como conseqüência da democratização do país: cento e trinta milhões de
eleitores num Brasil desigual significam peso político decisivo para os "menos
iguais" e, supõe-se, correspondente deterioração intelectual e ética na
qualidade da representação política. Mas, à parte as muitas fantasias sobre a
qualidade intelectual e ética de nossa velha representação oligárquica, é clara
a distorção envolvida em omitir, a propósito dos nossos problemas ético-
políticos de hoje, a longa tradição de estado cartorial, clientelismo e
quejandos que vicejava como parte da política oligárquica (e cujos mecanismos
subsistem e moldam de muitas formas o presente) e destacar, ao revés, a
democratização que solapa essa política justamente ao criar potenciais focos
divergentes de identificação e mobilização que gradualmente se atualizam. O
elitismo do diagnóstico é desatento aos pesados traços estruturais negativos do
nosso ponto de partida e aos difíceis constrangimentos que este segue impondo
ao jogo político como conduto inevitável de possíveis avanços.
Um último ponto. Avaliações recentes da conjuntura política brasileira têm
salientado a feição de "Estado-amálgama" que caracterizaria o governo Lula, no
qual um Estado ativo trata de envolver as forças variadas da "sociedade civil"
e supostamente lhes compromete a autonomia. Mas, nas condições do nosso fosso
social e de precárias tradições institucionais, é patente o risco de que o jogo
que se decidisse no nível da sociedade civil como tal redundasse, como sempre,
em transpor sem mais para o plano das políticas do Estado as assimetrias
profundas que a caracterizam. Em outras palavras, não há como escapar de dose
importante de paternalismo como traço distintivo do Estado democrático, que não
será aquele forçado a limitar-se a responder à capacidade diferencial de
pressão de interesses de poder desigual. Ora, como os êxitos da social-
democracia "neocorporativa" demonstraram apesar das vacilações produzidas
pela onda recente de fundamentalismo de mercado, já agora em retirada diante de
crises cada vez maiores , esse traço se liga com a necessária acomodação dos
interesses diversos pela ação do Estado, ou mesmo, em alguma medida, no âmbito
do próprio Estado. Note-se que, no caso brasileiro, a desigualdade se reflete,
à parte a tese da "perda de qualidade" da representação, na extração social dos
membros do próprio Legislativo, não obstante sua escolha por meio de eleições
assim como se reflete, em surdina mas de modo bem claro, no funcionamento de um
Judiciário composto por membros doutos, que supostamente decidirão imparcial e
isentamente com base na lei. Cumpre talvez procurar assegurar que nosso
processo eleitoral traga mais nitidamente a característica de "amálgama"
socialmente integrador ao Legislativo, que possa assim agir com eficiência de
forma a neutralizar certo ativismo frequentemente torto do Judiciário a que nos
vimos habituando.
FÁBIO WANDERLEY REIS, cientista político e professor emérito da Universidade
Federal de Minas Gerais.
[1] Pizzorno, A. "Su democrazia e sfera pubblica immaginaria". Sociologica,
2008, nº 3, pp. 1-22.
[2] Cambridge/Nova York, Cambridge University Press, 1995.
[3] Finley, M. I. Ancient slavery and modern ideology. Nova York: Viking Press,
1980.
[4] Tenho evocado a respeito um editorial d'O Estado de São Paulo de 1º de
janeiro de 1901, republicado pelo jornal em 31 de dezembro de 1999, a propósito
da virada do século XX para o XXI, e cujo interesse consiste na candura com que
transparecem o eurocentrismo e o racismo da elite brasileira do imediato pós-
escravismo. A imagem do Brasil que o editorial deixa entrever é a de um país
europeu que acontecia ter recorrido às conveniências da mão-de-obra escrava
africana e agora a via transformada num problema.