O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza étnicos
La beauté est atroce parce qu'elle n'est pas qu'une fantôme.
Eugène Ionesco (present, passé-passé, present)
T
êm havido nas últimas décadas uma grande preocupação por parte dos estudiosos
em demonstrar de que modo o negro é representado no imaginário ocidental. Tanto
nos trabalhos que se debruçam sobre as imagens produzidas no passado de
colonização do continente africano quanto naqueles que situam seu interesse em
um período mais recente, procura-se mostrar a construção desse imaginário,
desenvolvido nas sociedades européias ou na norte-americana através de imagens
e discursos estereotipados e eivados de maior ou menor grau de exotismo e/ou
racismo. Essas reflexões são importantes para entendermos o processo que levou
à criação das ideologias que priorizam imagens hierarquizadas de culturas
diferenciadas2 e compreender de que modo os negros constroem ou reelaboram
imagens de si, contrapostas às da representação dominante nas sociedades
ocidentais.
Essas imagens podem ser cruzadas e compreendidas através da análise do discurso
de uma iconografia negra, produzida nos salões de beleza étnicos3, espaços que
podem ao mesmo tempo ser considerados públicos, uma vez que são um
empreendimento mercantil, constituem uma empresa e praticam algum tipo de
publicidade, e locais alternativos para a construção de um outro padrão de
beleza, já que os discursos e imagens ali contidos são reproduzidos na direção
de uma reafirmação substancialmente étnica. Os salões de beleza, portanto,
permitem a produção de imagens adscritícias, por produzirem signos voltados à
criação de uma estética "alternativa" e por expressarem
intertextualidade em relação às imagens dominantes na estética ocidental.
As imagens de uma beleza negra produzidas nos salões se inscrevem em um
caleidoscópio no qual se articulam elementos diversos. Aparentam ser
homogêneas, visto que são reproduções de um ideal de beleza que se contrapõe ao
ocidental, mas, observadas em detalhes, tornam-se fragmentos da política, da
estética, da moda e do mercado.4 Por essa razão, examino o surgimento dos
salões de beleza étnicos e seu crescimento5 no âmbito de um sistema de
representação de espelhos fragmentados em que as imagens refletidas englobam
discursos sobre cabelo, cosméticos, maquiagem, roupas e até bonecas.
Inicialmente, utilizo matérias de jornal, com o intuito de perceber o discurso
dos sujeitos presente na publicização dessas imagens, visto que a imprensa é um
termômetro significativo da expansão do fenômeno; posteriormente, realizo uma
pequena incursão etnográfica em dois salões de beleza paulistanos.6
Das bonecas, das modelos e da maquiagem: a naturalidade em questão
Se os anos 1970 apontavam para o surgimento de movimentos políticos e culturais
que proporcionaram o reconhecimento positivo de ser negro, com ênfase na
existência do conceito de negritude7, os anos 1980 representaram a
solidificação de uma auto-estima associada ao discurso de uma beleza negra
específica. Nesse contexto de reafirmação da existência do belo inerente à
qualquer raça, as bonecas africanas, denominadas Abayomis, servem de parâmetro
educativo e modelo referencial para as crianças negras, sendo, portanto, o
contraponto àquelas feitas à imagem e semelhança das Barbies: "Precisamos
dispor de bonecas negras para que nossos filhos e netos não se espelhem
unicamente nas bonecas industriais, que copiam os padrões anglo-saxônicos.
[...] Em uma boneca a criança estuda sua origem racial, brinca de mãe e filha,
se reconhece" (Lydia Garcia, proprietária do bazar BazzAfro, em
Brasília).8
A produção de bonecas negras é pensada como uma necessidade de investimento
industrial e mercadológico para vencer a resistência às bonecas feitas de pano,
vistas como um "brinquedo pobre" e associadas à espiga de milho de
Emília, personagem do escritor Monteiro Lobato, ou mesmo como objetos de
rituais afro-brasileiros: "Minhas filhas não gostavam de bonecas de pano,
pois havia contra elas um grande preconceito. Eram tidas como peças de rituais
umbandistas. Além do mais, havia a limitação financeira para comprar bonecas
industrializadas, sempre muito caras. Minhas filhas não tiveram coleções de
bonecas (Benedita da Silva, ex-senadora e vice-governadora do Rio de Janeiro).9
O depoimento de Benedita da Silva é esclarecedor, pois informa sobre a AfroDay,
sua pequena empresa voltada para a produção de bonecas: "A AfroDay já
confecciona belas bonecas para crianças. Nelas, valoriza as formas negras, de
um jeito que a criança possa se reconhecer no brinquedo, se identificar sem
rejeitar seus traços e características".10
Outra observação que merece atenção é o fato de que as bonecas de pano não são
práticas para o lazer das crianças, sendo difíceis de manusear, apertar,
abraçar e até lavar. Daí a necessidade de produção mercadológica de bonecas
negras: "Bonecas produzidas em louça e plástico, representando as diversas
etnias, em especial a afro-brasileiras, contribuirão ' e muito ' para
desenvolver na criança negra sua auto-estima".11
Produzir bonecas representando os afro-brasileiros revela, além do aspecto
positivo de ser negro, um conceito que perpassa tudo que seja relacionado à
beleza negra: o da naturalidade. Explicitamente, diz-se que as bonecas devem
ser "naturais", e não produzidas à imagem e semelhança das arianas
Xuxa e Angélica. A naturalidade buscada nas bonecas negras, que não sei por que
não foram classificadas pela mídia como "étnicas", pode ser deslocada
para as percepções e diferenciações da imagem da modelo negra.
O discurso da naturalidade deve ser visto tanto pelas modelos negras quanto
pelos fotógrafos e donos de agências de moda. A distinção entre os dois
discursos é a compreensão de que o natural, para as modelos, implica em dizer
não ao exótico em que elas são enquadradas. Nesse sentido, as modelos afirmam
almejar a naturalidade e a espontaneidade: "É preciso que a presença do
modelo negro seja natural como a de qualquer outro profissional"
(Terezinha Malaquias, modelo e manequim).12
A imagética de uma beleza negra natural por parte das modelos, além de refletir
um aspecto muito mais atávico ' o negro já nasce lindo, sua beleza natural vem
do berço ', revela a busca de um espaço a ser conquistado em condições
desiguais às das modelos brancas, e uma aparente rejeição ao puramente exótico,
sensual e voluptuoso ' e, por que não dizer, "selvagem" ', criado em
nosso imaginário, assim como uma reapropriação desses estereótipos criados nas
sociedades ocidentais.
Na ótica dos fotógrafos e donos de agências de moda, a naturalidade retoma o
padrão do exotismo. Reconhecendo a existência de preconceitos por parte dos
clientes, que na hora de escolher as modelos preferem as loiras e as morenas, o
diretor de fotografia da Editora Abril Pedro Martinelli afirma que as negras
são mais exóticas e que, dependendo do trabalho, "não cabe outro tipo de
pessoa".13 A especificidade do trabalho referida é o que enaltece formas
físicas mais marcantes e passíveis de serem qualificadas como exóticas,
principalmente aquelas voltadas para fora do país. Não é à toa que os
proprietários da agência de moda paulista Jet Set afirmavam encaminhar para o
mercado internacional todas as suas modelos negras. Justificando a existência
de uma discriminação no mercado brasileiro '"se o produtor pede vinte
manequins, geralmente só colocam uma negra" ' umas das sócias afirma:
"na Europa fazem questão de presença delas, porque conseguem apreciar o
charme e a ginga especial que elas têm".14 O charme e a ginga, signos
típicos da construção do exótico nacional, podem ser percebidos na produção
fotográfica das modelos. Elas têm de ser fotografadas da forma "o mais
natural possível", como observa o fotógrafo da agência de modelos Elite
Carlos Bessa: "não fica bem colocar muito corretivo ou um batom que deixe
a boca branca".15
Imagens da naturalidade negra implicam a percepção de que o ambiente no qual
estarão sendo produzidas deve ser condizente com uma idealização da
espontaneidade: "O ideal, no que se refere à presença de um modelo nego
num comercial, é a espontaneidade. Não do ator, mas do comercial em si"
(Ana C. Longobardi, vice-presidente de criação do grupo Talant ' agências
Talent e Detroit).16
O protótipo desse tipo de comercial é o da C&A, criado por sua house-
agency, em que vários homens e mulheres brancos e negros aparecem em cenas
rápidas, tendo um rapcomo fundo musical. Esse comercial revela o ideal de sua
concepção: visto como moderno, ele mostraria a igualdade entre modelos brancos
e negros: "Trata-se de um filme muito bom e moderno, no qual a presença de
negros tem tanta importância quanto a dos brancos, isto é, sem papéis
secundários e sem paternalismo" (idem).
A imagem de naturalidade que marca as modelos negras quando fotografadas pode
ser observada no uso e na qualidade da cosmética que toda mulher negra deve
usar. Uma matéria publicada no Jornal de Brasília em 13 de maio de 1989 revela
as relações simbólicas que marcam a idéia e a criação de uma estética negra.
Apesar de implícito, o tema recorrente é o da diferenciação da tez branca e
negra amparada no aspecto simbólico da naturalidade. O próprio título ' Negra,
naturalmente! 'evoca essa diferenciação. Além da preocupação com o aspecto
natural ' "a pele negra deve parecer o mais natural possível depois de
maquiada e conservar toda a beleza que lhe caracteriza" ', transparece o
fato de que as singularidades da beleza negra estariam circunscritas a um
estilo afro "autêntico" e estilizado com o objetivo de valorizar o
"tipo físico".
Sendo um texto voltado para a beleza e a maquiagem negras, o que está
subjacente nele é uma caracterização das diferenças entre os traços físicos de
mulheres brancas e negras, e é justamente por isso que a matéria se torna
extremamente interessante. A tez branca é o sujeito que se revela pelo modo
como se definem as características daquela que se lhe opõe ' a tez negra:
"Os traços pouco finos ou delicados [da pele negra] podem ser suavizados,
mas nunca mudados, pois isso poderia provocar uma desfiguração grosseira. [...]
Nariz largo e lábios proeminentes não requerem maiores disfarces, mas apenas
uma base apropriada que possa corrigir alguma irregularidade, como olheiras,
rugas de expressão, mancha ou cicatriz".
As sutilezas que definem os traços físicos do branco e do negro e a utilização
da maquiagem apropriada são melhor compreendidas se observamos a forma como o
matiz das cores é realçado em relação à pele negra. São as cores fortes que
estão carregadas de um valor diferenciada da cútis e que fornecem o tom ao
discurso da "naturalidade", tornando-o mais eficaz no sentido de ser
o elo principal da rede de significados que define a "beleza negra".
Justificando a ausência no Brasil de uma linha de produtos exclusiva para
negros, como as que há nos Estados Unidos, a matéria ressalta que o
ideal é adequar as cores de moda em combinações bonitas e harmoniosas
sem comprometer o aspecto natural da pele. A base escura é
complementada pelo pó no mesmo tom, dando um toque iluminado ao
rosto. O dourado e o bege são duas tendências fortes do outono.
Lilás, uva e vinho são nuanças que compõem um trio mais-que-perfeito
para a maquiagem suave do dia. À noite, ousar é permitido e as cores
fortes realçam a pele escura. Depois da base e do pó, os mesmos
usados durante o dia, o blush coral faz o jogo com o batom vermelho,
com pinceladas cintilantes. Os olhos delineados com lápis preto se
destacam com a sombra rosa-coral, e ainda com cores contrastantes,
que puxam para o azul-marinho e azul royal. Outros matizes podem ser
explorados, como o rosa porcelana, dourado e laranja.
Observe-se que a caracterização da cor da pele oscila entre a pele negra e uma
escura. As relações entre a maquiagem e suas combinações "bonitas e
harmoniosas" demonstram contrastes de categorias sociais que estão em
jogo. O belo na maquiagem para a pele negra passaria necessariamente pelo
realce da suposta naturalidade: "os olhos e a boca devem ficar em
evidência, como mandam as novas tendências da estação. É essencial que a
maquiagem não fuja do tom da pele negra, parecendo mais clara no rosto que no
pescoço e colo. As cores são um aliado importante para a composição da beleza
estética e da arte de maquiar".17
As cores realçadas adquirem uma dimensão de "relações perceptivas"
(Sahlins 1976) e envolvem uma tonalidade específica ou uma estrutura de um dado
tipo. Observar os discursos das cores na maquiagem é notar os contrastes,
complementariedades e a compatibilidade subjacente no contexto das relações
raciais no Brasil. Reafirmar uma ordem natural a ser realçada na beleza negra
significa dizer que uma ordem conceitual das cores traz percepções e sensações
restritas às relações culturais entre indivíduos de diferentes
"cores". As concepções sobre a cor escura da pele e as
especificidades da sua maquiagem, portanto, associam-se a uma classificação que
remete o negro a ser um exemplo das cores "quentes" e
"selvagens", em sua intensidade e "naturalidade".
As diferenças estéticas de tonalidades apropriadas às especificidades étno-
raciais em nossa sociedade são verificadas pelas representações que delas fazem
tanto os que maquiam quanto os que são maquiados. Em uma matéria publicada no
jornal baiano A Tarde em 03 de janeiro de 1988 e intitulada "Reflexo da
consciência", o maquiador Cari reafirma que é mero engano [de quem não se
sabe] pensar que a negra não deveria usar tons fortes na pele, e que "a
diferença básica na maquiagem negra está na cor da base a ser usada, devendo
ser exatamente da cor da pele". E acrescenta: "sombras, batons e
rímel devem ter cores fortes e alegres e o contraste torna-se sempre
necessário". Mas quais são as cores fortes presentes na cosmética negra?
Sulferino, ciclâmen (uva), bordeaux(vinho), roxo, rosa choque, azul e verde
oliva em tons degradéeque, no uso do rímel ou na pintura das sobrancelhas,
obedeceriam às seguintes recomendações: "o rímel pode ser preto, azul-
marinho ou violeta, e para as sobrancelhas [...] os tons cinza, marrons escuros
e raramente o preto".
Pode-se observar uma estreita relação entre a auto-estima e a suposta cosmética
própria para negros nas opiniões das modelos, dos artistas ou mesmo dos
microempresários negros que investem nessa área específica do mercado. O
argumento é que os produtos de beleza industrializados são criados para a cútis
branca: "Nós, de cútis negra, não podemos usar um pó (de arroz ou
compacto) de cor rosa clarinho. Em contraste com a cor da nossa pele, formar-
se-á uma combinação estranha [...]. Muitos produtos da indústria tradicional
são nocivos à nossa pele, que é oleosa. Alguns chegam a queimar" (Ialê
Garcia B. de Mello, modelo).
"No Brasil não se tem bons produtos para brancos, quanto mais para negros.
O Guilherme Pereira e o Erik, maquiadores da TV Globo, criaram alguns produtos,
mas eles não satisfazem inteiramente as necessidades porque a linha não tem
variedade em comparação com a que existe nos mercados americano e europeu"
(Glória Maria, repórter e apresentadora da TV Globo).
O investimento em empresas voltadas aparentemente para o público negro é algo
recente na história no país, e são interessantes os argumentos técnicos
utilizados para a produção de linhas específicas desses produtos: "a
maquiagem para a pela negra é diferente da fórmula para a pele branca, vermelha
ou amarela; a pele negra tem segmentos subcutâneos que dificultam a definição
de produto" (Maria do Carmo Nicolau, proprietária do Espaço Cor da Pele
Ltda.).18
Isso nos permite verificar um valor empresarial, uma preocupação em definir uma
fatia do mercado, questionando a idéia de que as mulheres negras não têm poder
aquisitivo suficiente para consumir cosméticos. Tomando como parâmetro os
Estados Unidos, onde o mercado de cosméticos surgiu por volta dos anos 1970, a
diretora-executiva da Espaço Cor da Pele Ltda. diz que "a mulher negra é
muito vaidosa e só não consome mais cosméticos porque os produtos existentes no
mercado nacional não lhe são apropriados". E conclui, "nos Estados
Unidos, as mulheres negras, embora com menor poder aquisitivo, compram, por
exemplo, de três a cinco vezes mais cosméticos para os cabelos que as
brancas". Por isso, "não podemos ficar de fora".19
No Brasil, a existência de um empreendimento econômico com forte caracterização
étnico-racial está associada à construção de uma identidade étnica, o que pode
ser visto implicitamente na declaração de Benedita da Silva, então deputada
federal pelo Rio de Janeiro, ao se associar a uma empresa paulista fabricante
de cosméticos exclusivos para a pele negra: "esse trabalho tem uma carga
cultural muito grande e exige uma nova concepção econômica. É preciso entender
por que, para quem e qual a importância do que fazemos"20, ou mesmo no
depoimento de Januário Garcia, fotógrafo e presidente do Instituto de Pesquisas
Culturais Negras (IPCN):
A iniciativa da Bené
[Benedita da Silva]
atende à modernidade da nossa luta contra o racismo. Eu, como
fotógrafo, sempre tive dificuldade de fotografar modelos negros
porque não temos uma maquiagem compatível com a textura e o tom da
pele. Isso é uma abertura para o aprimoramento do trabalho dos
profissionais de comunicação visual. Tenho absoluta certeza de que
existe mercado não só para cosméticos mas também para comidas, roupas
etc. Nós, como afro-brasileiros, estamos aos poucos quebrando uma
dominação histórica, buscando a nossa auto-estima e a reconstrução
com dignidade da nossa cidadania. Vale constatar que 80% de nosso
povo é mestiço e não tem produtos que correspondam à sua identidade
étnica. O modelo da nossa sociedade é branco, anglo-saxônico.
21
A criação de uma linha de cosméticos com o objetivo de enaltecer a auto-estima
e como projeto de reafirmação da identidade étnica por parte de segmentos
negros e mestiços é uma reação ao que aconteceu no mundo da moda dos anos 1980:
a apropriação de uma simbologia calcada em uma certa idéia de etnicidade e
direcionada para o consumo. O discurso de uma beleza negra demonstrado pela
cosmética implica dizer que foi criado um pólo irradiador de novas
"habilidades culturais" (Sansone 1991: 131) em que a tonalidade, cor
e diferenças de pele problematizam, mesmo que implicitamente, o lugar do negro
na sociedade brasileira. Essas "habilidades culturais" são observadas
através da sintonia com o que acontece na moda ou no noticiário da mídia
nacional e internacional.
Um exemplo é a declaração do cabeleireiro e maquiador Marcelo Beauty, não-
negro, que no fim dos anos 1980 afirmava haver uma tendência mundial de
valorização da beleza negra, e que por essa razão lançou uma linha de produtos
específicos destinado às mulheres negras ' uma base, pó facial, pó compacto e
batons com cores mais fortes. O uso dos produtos indicava um cuidado para que
não parecessem artificiais: "a base pode parecer um pouco clara, mas
somente para dar suavidade. O pó facial dá a correção".22 Nesse mesmo
período, o Studio Afonjá, localizado no Rio de Janeiro, lançou uma linha de
cosméticos com cremes e xampus para uso interno e o Espaço Cor da Pele Ltda.,
em São Paulo, colocou no mercado a linha de produtos Muene (traduzido como
"meu Senhor / minha senhora em dialeto angolano"), que incluía
batons, bases, pós compactos, xampus, creme de pepino e um creme à base de
argila.23
Dos cabelos e dos salões: o fazer a cabeça
A maquiagem negra circunscrita à reprodução de um estilo afro "autêntico
ou estilizado" remete para a importância do rosto na valorização de traços
e do tipo físico, tornando o cabelo um elemento fundamental na constituição do
que seja a beleza negra. Afinal, como afirmava o Jornal de Brasília, "os
cabelos emolduram o rosto".24
Os discursos sobre a importância do cabelo na composição da estética negra são
tema de imagens aproximativas, contrastivas e de conteúdo político. A
aproximação é a suposta harmonia estética do rosto das sociedades ocidentais,
em que os cabelos considerados bonitos são lisos e compridos. Em razão dessa
colonização cultural, os negros usavam ferro quente (que os baianos
apropriadamente denominam cabelo frito), pastas, alisantes e outras alquimias,
construindo-se um ideal negro associado ao uso desse instrumental. Uma imagem
de contraste revela um discurso político, a partir dos anos 1970, relacionado
aos reflexos do "black is beautiful", movimento cultural e
comportamental norte-americano dos anos 1960. Foi nas cidades de São Paulo e do
Rio de Janeiro, os dois centros irradiadores da influência norte-americana, que
apareceu o corte black-power ' cabelo redondo e cheio, in natura. Por
conseguinte, com a crescente valorização da busca da "consciência
racial", procurou-se uma "naturalização" dos cortes, trançados e
penteados afro, com repúdio do alisamento ' "além de decadente [o
alisamento], é prejudicial porque impede o crescimento do cabelo" (Orilê,
cabeleireira paulista).25
A imagem do cabelo natural passou a ser reverenciada como aquela que se
contrapõe ao cabelo liso e que estaria em consonância com uma nova mentalidade
do "ser negro". Como observa Cunha (1991: 146), "a naturalidade,
por sua vez, não significa a ausência total de interferência. Mas ela é de
outra natureza. Nela, a produção estética visa auxiliar e fortalecer os
cabelos; o sentido é anterior à naturalidade, pois não vem como interferência
externa, ao contrário, a precede". Angela Figueiredo (1994: 36-ss), em um
trabalho de pesquisa com negros soteropolitanos, mostra que o discurso da
naturalidade do cabelo está associado ao da aparência. Entretanto, argumenta
que a "naturalidade" dos cabelos está vinculada ao "uso de
interferências externas", como por exemplo nos dread locks(cabelo
berlotado ou enrolado típico dos rastafari), nos quais se usa a "baba do
chuchu" ou cera de abelha, entre outros mecanismo artificiais, ou no uso
do implante, dito "mais natural" que o implante com canecalom.
Em última instância, falar de uma naturalidade do cabelo significa, retomando a
pertinente observação de Figueiredo (1994), remetê-la a usos em um nível mais
sociológico, ou, como observa Leach (1983) ao analisar o simbolismo do cabelo,
ao uso mais público, já que se trata de um meio de comunicação. Ter um cabelo
mais "natural", portanto, se torna relevante na reprodução de uma
linguagem simbólica de diferença em relação ao cabelo liso ocidental, assim
como serve para deixá-lo em condições "iguais", se pensamos na
hierarquização de cabelos "bons" ou "ruins". Creio que a
questão é saber de que modo as diferenças naturais entre os tipos de cabelo e
suas especificidades são utilizadas para pensar as diferenças na sociedade
brasileira, mesmo quando só se fala do cabelo negro. Deixar o cabelo crescer
"naturalmente" implica reconhecer a origem africana: "o cabelo
africano é seco" e o conseqüente tratamento específico, que o diferencia
dos demais:
lavagem duas vezes por semana com xampu à base de ervas naturais e
creme rinse. Ao enxaguar, não retire todo o creme rinse, e ainda com
ele na cabeça, passe um óleo (pode ser de amêndoa, côco, babosa ou
nujol). Esses óleos também podem ser usados na pele. A melhor maneira
para deixar os cabelos brilhantes e soltos[...] é fazer uma boa
massagem com óleo de amêndoa e mel misturados, quinzenalmente"
(idem).
A busca de cabelos brilhantes permite notar a busca da imagem dos cabelos
ocidentais propagada pela mídia. Estamos diante da apropriação de um signo
veiculado como inerente aos cabelos bem-tratados: cabelos saudáveis e bem-
cuidados devem estar brilhantes. Ironicamente, a ênfase na inovação do cabelo
do negro está justamente em um sentido de continuidade com essas imagens, e não
na completa ausência ou rejeição delas. Estamos perante um paradoxo em que as
distinções entre os cabelos "do negro e do branco", com seus
discursos específicos, são no fundo ditas como uma semelhança absoluta. A
ironia é que essa semelhança revela um projeto que em muito se aproxima dos
movimentos políticos. Chamo a atenção para o interessante uso simbólico do
cabelo realizado pelos movimentos negros com o objetivo de elevar a auto-estima
e a "consciência racial". Observe-se um trecho de uma matéria
publicada no Jornal de Brasília em 24 de maio de 1992:
Marli Garcia de Melo não sabe quantas vezes ouviu a expressão
"negra do cabelo duro" ou "nega do cabelo ruim".
Com a consciência de uma militante de movimentos negros, anuncia,
convicta: "Nosso cabelo não é ruim, é diferente". Por isso,
ela atende no BazzAfro os negros e as negras interessados em
tratamentos capilares e cortes que valorizem essa diferença.
"Nossos clientes encontram aqui" ' garante ' "não só
uma cabeleireira, mas também uma conselheira disposta a estimular sua
auto-estima". Além de trançar cabelos no melhor estilo, Marli
mostra aos clientes os pentes mais adequados ' os garfos e os
grossos, com hastes longas e maleáveis. A matéria-prima é a ideal. No
Bazz Afro, há pentes importados do Senegal e dos EUA (a pátria
doblack-power, que deu liberdade aos cabelos negros, livrando-os dos
constrangedores alisamentos).
Um outro exemplo da imbricação entre o assumir a consciência racial e usar o
cabelo naturalmente é observado em Brasília. Marilene F. Nascimento realizava
um trabalho com o intuito de levar os negros a "assumirem sua
estética" toda terça-feira, na sede do Movimento Negro Unificado:
"Não assumi o compromisso de uma militância constante, mas deixo lá uma
percentagem do meu trabalho para ajudar o movimento".26
O discurso político da naturalidade do cabelo é mais circunscrito aos
movimentos negros. Há visões que não absorvem o discurso da negritude. É o que
demonstra Figueiredo (1994: 40), em pesquisa realizada em Salvador. Para as
não-militantes negras do bairro da Pompéia, deixar o cabelo natural implicava
tanto "gosto" quanto menor custo. Um exemplo foi o de uma
entrevistada que, durante a realização da pesquisa, utilizou alternadamente os
diversos métodos: alisou o cabelo "a ferro", usou o cabelo trançado
sem nenhum tipo de alisante e chegou a fazer um "permanente afro".
Se o cabelo é uma espécie de mediador entre uma estética afro natural e um
discurso da negritude, como são percebidos e representados os salões de beleza
nesse imaginário das últimas décadas? Pelos salões passam discursos múltiplos
que vão da reiteração de uma "consciência racial" à criação de uma
nova estética sem vinculação aparente com a definida pela militância negro-
mestiça.
O uso político-estético do salão de beleza pode ser visto tanto em Brasília,
como se percebe na matéria do Correio Brasiliense citada, quanto no Rio de
Janeiro. Segundo a cabeleireira Day, do salão de beleza AfroDay, em Copacabana,
"mais que o cabelo, nós queremos fazer a cabeça". Afirmando trabalhar
desde 1982 com técnicas para pessoas negras, disse:
Nunca mais quero ouvir falar em alisar cabelos.
[...] Eu comecei em 1975, na Bahia, ainda sem um local fixo de
trabalho. Em 1979, abri meu primeiro salão, no qual fazia de tudo,
cortava e alisava e depois, em 1982, abri o AfroDay, sentindo a
necessidade de colocar nossa cultura em prática.[Segundo o periódico]
[...]
com muito papo e jeito, Day conseguiu convencer suas primeiras
clientes a esquecer as manias de branco e deixar o cabelo crescer
naturalmente. Botaram na nossa cabeça que somos feias, mas nós somos
bonitas e fazemos moda".
27
O salão de beleza, portanto, é como um espaço mediador na tomada de uma
"consciência racial". Ele é simbolicamente um nicho irradiador da
negritude fashion e tem o papel de contribuir para uma nova realidade social.
Ir ao salão para fazer o cabelo significa ver aquele espaço como um espaço de
socialidade e de marcação de status, e também através de uma função simbólica
bastante determinada ' "o fazer a cabeça". Desse modo, o salão é
"construído" com sentidos aproximativos do universo propriamente
político e pela estratégia do que deve ser legitimado.
Foi por essa razão que a imprensa não só noticiou o surgimento dos salões de
beleza exclusivos para negros como reagiu de forma preconceituosa, como se
verifica em uma matéria publicada em abril de 1989 no jornal O Popular, da
cidade de Goiânia, quando da inauguração do salão paulista Colonial Black.
Informando que São Paulo teria seu primeiro salão de beleza
"exclusivamente destinado a negros", o articulista (Arthur Rezende)
disse que: "ao longo da casa, localizada no shopping Iguatemi, haverá uma
minipraça na qual irão se apresentar grupos de música, todos negros, aqueles
garotos que dançam reggaenas ruas e tal. Profissionais, como manicures,
cabeleireiros, maquiadores e até mesmo dois profissionais de beleza que virão
dos Estados Unidos também serão de epiderme escura". É possível que os
grupos de música referidos tenham sido os grupos de rapou música hip-hop que,
nos anos 1980, estavam em evidência nas grandes cidades. A classificação racial
é deveras homogeneizadora, todos os negros "serão de epiderme
escura", e o que sobressai na matéria é seu fim: "no mínimo vão
afixar à entrada um cartaz com os seguintes dizeres: Branco não entra' (grifo
do jornal). Claro?".28
O surgimento de salões de beleza afro na cidade de São Paulo não é um fenômeno
que ocorreu somente a partir dos anos 1980. Como informa Rudsney Corrêa,
proprietário do salão Inter Yank's Cabeleireiros, desde os anos 1960 há salões
especializados em cortes de cabelo para negros. Era a época da importância da
moda black power. Mas por que a imprensa deu destaque à inauguração do Colonial
Black? Penso que por duas razões. Primeiro, pela visibilidade da questão racial
no país, visto que em 1988 houvera uma profusão de comemorações do centenário
da abolição da escravatura.29 Segunda, e mais relevante, o fato do salão de
beleza pretender um espaço nobre, o Shopping Center Iguatemi, "exatamente
em frente a conhecida butique de moda da Eugênia Fleury a ao lado do
McDonald's", como afirmava um outro periódico, o Diário de Pernambuco, ao
se referir ao mesmo fato.30 Aos olhos da imprensa, esse salão não se
diferenciava de outros, já que "os tratamentos de beleza (cabelo, pele,
maquiagem) especiais para realçar o tipo físico" são comuns a todos eles.
A diferença concebida para o Colonial Black era a necessidade de sofisticação:
"os negros se ressentem de um espaço nobre onde as características da raça
sejam consideradas e valorizadas".31 Outra característica é que a própria
maquiagem seria importada dos Estados Unidos. A base produzida no Brasil
encobriria o brilho da pele negra, sendo que a base americana deixava "a
pele natural" e realça "a maquiagem". A decoração do Colonial
era concebida como "um tanto exótica. [...] pensamos em um ambiente no
qual o estilo dos objetos usados na decoração seja o mesmo da bandeja levada
pelo garçom, por exemplo. [...] nossa idéia é inovar no atendimento, já que
existem bons salões de beleza para negros na cidade" (Vilma F. Santilli,
sócia do Colonial Black).32
A preocupação dos sócios do Colonial Black revela estratégias de um mercado em
expansão.33 Nota-se também uma apropriação da imagem do exótico e sua
vinculação direta ao negro. As especificidades de um salão de beleza afro em
uma região de classe média paulistana indicam uma imagem apropriada para o
consumo, e são significativas para entender a estética de outros salões de
beleza situados em áreas não nobres, como os da periferia ou do centro da
cidade de São Paulo. Neles, a produção de uma imagem exótica não se torna
aparente. Há outras singularidades. Os salões exibem, em locais bem visíveis,
diplomas de cursos realizados na Dudley University, universidade norte-
americana localizada na Carolina do Norte, que se tornam um capital simbólico,
pois conferem ao cabeleireiro legitimação no universo dos cortes, penteados ou
tratamento de cabelos afro.34
Os diplomas são vistos à entrada dos salões em uma moldura de vidro, garantindo
aos clientes ou mesmo aos concorrentes uma representação legítima e
inquestionável. Em alguns salões são exibidos vários diplomas, ao lado de fotos
das turmas de formatura, indicando a realização de cursos em diferentes
períodos na mesma universidade. A idéia é que o número de diplomas indica uma
atualização das tendências da estética negra. Por conseqüência, haverá um
acréscimo no capital simbólico do cabeleireiro.35 Os diplomas são uma espécie
de encarnação dos laços de pertencimento a uma universidade norte-americana
"da estética". Por isso, cumprem menos uma função decorativa que uma
publicização de padrões estéticos fornecidos pelos cursos da Dudley's
University. Os diplomas trazem a certeza de que todo o ambiente está carregado
de modernidade. Na exposição de diplomas há um certo apelo para a inserção do
ambiente dos salões no que há de mais atualizado nos grandes centros dos EUA e
da Europa.
A relação da modernidade encontra-se na exposição dos produtos utilizados no
tratamento dos cabelos. Eles geralmente estão distribuídos no ambiente interno
juntamente com fotos de modelos negros, na sua maioria norte-americanos. A
disposição espacial desses "objetos icônicos" nos leva a uma
cenografia: as fotos e os produtos expostos são uma espécie de suporte da
imagem que ali se fabrica, a imagem do negro sofisticado, moderno, atual. Não
importa que as fotos sejam de norte-americanos e não de negros brasileiros.
Talvez por isso mesmo sejam representativas e adquiram importância no contexto
do salão de beleza. É como se estivéssemos naquela linguagem visual, sendo
persuadidos por representações de um negro que, através de um arsenal de
produtos industrializados, busca uma projeção de uma outra imagem que não a
"dos tempos do fundo de quintal", ou aquela restrita à "tradição
como é a da Bahia", como disse dona Neuza referindo-se ao início de seu
processo de trabalho no quintal da sua casa ' "a juventude quer o cabelo
natural, nem liso, nem crespo".
Toda a produção visual interna aos salões pode ser considerada como discursiva,
pois uma mera disposição espacial de objetos "fala" sobre algo e
adquire maior plasticidade quando viram verdadeiras vitrinas. Elas revelam um
novo sentido, pois a intenção é uma exibição pública em direção aos clientes e
transeuntes ou um "diálogo" com outros espaços, quando se tratas dos
salões localizados em shopping centers ou galerias como as da Rua 24 de maio.
Os salões tornam-se espaços mediadores de outros acontecimentos, como por
exemplo o de um localizado na Rua 24 de maio que exibia na vitrina, além de
cosméticos e fotos de modelos negros norte-americanos, um cartaz anunciando um
grupo de pagode paulista.
A exposição das vitrinas pode parecer um deslocamento da estética das lojas dos
shopping centers. Muito ao contrário: obedecem uma continuidade com outro salão
assim como com o padrão de uma loja qualquer, ou seja, as vitrinas vêm a ser um
"teatro do merchandising", como bem observa Yamaguchi (1991: 57) ao
analisar as exibições em lojas ocidentais. O fascínio que ela nos provoca está
justamente na capacidade de estimular nossa imaginação. O intuito é usar a
vitrina como uma espécie de mostruário, em que os objetos exibidos procurem nos
seduzir.
As vitrinas devem ser vistas como um espaço técnico que revela vários aspectos.
Os objetos expostos acentuam aspectos da vida cotidiana: a maquiagem levemente
usada, o perfeito penteado ressaltado na foto de uma modelo ou o riso
"natural", sempre ressaltado na composição e na arrumação do espaço.
A exposição reitera o uso cotidiano dos produtos. A exibição faz pensar que
estamos diante de um contexto artístico. É sempre um ideal de beleza a ser
buscado. O cenário é o de uma beleza que alcança aspectos próximos à
sacralização. As imagens apresentadas e representadas possuem formas ideais de
beleza que precisam ser descobertas, e principalmente, adotadas.
Os salões, portanto, são lugares de discursos múltiplos. Não é de estranhar que
nos salões paulistas pesquisados se reforçe a idéia de um espaço que intermedia
a circulação de sujeitos de diversas classes, algo que já havia sido observado
por Cunha (1988: 4) no Rio de Janeiro: "o Studio Afonjá, situado na zona
sul da cidade, atende a mulheres e homens, clientela diversificada que, na
representação dos profissionais que lá trabalham, perfazem um espectro que vai
desde a empregada doméstica até a atriz de televisão". Isso não quer
dizer, entretanto, que os salões sejam vistos de forma homogênea. Faz-se
questão de distinguir o "meu" salão dos demais. Isso é claro nas
diferenças entre os salões situados em espaços de maior circulação de setores
médios dos localizados no centro da cidade, precisamente os da Galeria 24 de
Maio. Quando perguntado sobre as especificidades desses salões, o proprietário
do Inter Yank's Cabelereiros dizia que ali o público era mais "humilde,
jovem", enquanto que a sua clientela, assim como a de outros espaços, era
"mais madura".
No início deste trabalho, chamei a atenção para o fato de que as imagens no
ambiente dos salões de beleza afro podem ser captadas através da visualização
de um amplo caleidoscópio, ao observar nesses espaços correlações entre
discursos diferenciadores e apreciativos de uma beleza "branca"
padrão. Discursos que, ao reforçar a existência de uma estética negra, procuram
ressaltar seu aspecto natural. É curioso como o sentido não é exclusivamente
uma inversão da idéia de naturalidade atribuída aos negros, mas sim a
apropriação política: a reinterpretação visando uma diferenciação de padrões
estéticos.
Ao fim, lembro-me do texto autobiográfico de Malcolm X quando relata sua
primeira experiência de alisar o cabelo. Ao se olhar no espelho e perceber que
seu cabelo estava igual ao cabelo de um branco, a sensação foi de conforto e
admiração. Tomar esse exemplo como uma poderosa introjeção da beleza branca
pode parecer lugar comum, pois, como já havia concluído Baudrillard (1993: 28),
"o espelho, como objeto de ordem simbólica, não-somente reflete os traços
do indivíduo como acompanha em seu desenvolvimento o desenvolvimento histórico
da consciência individual"; mas o fato adquire maior relevo se observarmos
que a imagem refletida de Malcolm X em muito se assemelha àquelas do espelho de
tinta da prosa narrativa de Jorge Luís Borges (1985: 78-ss). A princípio
momentâneas ou imóveis, quando é a imagem que se deseja ver, elas se tornam
complexas quando no espelho se vêem outras visões de mundo.
Notas
1.Este artigo foi elaborado a partir de um trabalho de pesquisa desenvolvido
para o curso de Antropologia Visual do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da FFLCH-USP, no período de maio a julho de 1996. Agradeço
a Antonio S. Guimarães, Paula C. da Silva e Cloves Oliveira por sua colaboração
quando da apresentação deste trabalho no programa A cor da Bahia, e a Roberto
Albergaria, pelos comentários e sugestões.
2.
Sobre imagens da África e de negros na cultura ocidental em um contexto
histórico desde 1780, ver Pieterse (1992); sobre os discursos sobre o negro nos
espaços urbanos de Bruxelas, Vincke (1993: 89-99); sobre o negro no imaginário
francês, Dewitte (s/d); sobre a construção européia da imagem do negro
brasileiro nas fotografias e estampas litográficas dos viajantes oitocentistas,
Kossoy & Carneiro (1994).
3.
Chamo a atenção para a denominação salão de beleza "étnico", e não
salão de beleza "black", pois foi essa a designação utilizada tanto
pelos donos de salões na cidade de São Paulo quanto por seus clientes, com o
objetivo de retirar desses espaços o caráter de exclusivamente voltados a uma
clientela negra. Sua preocupação é afirmar que esses espaços se direcionam para
práticas estéticas de origem afro-descendente, mas que há clientes não negros
que freqüentam os salões. Parece-me que esse é um discurso com sentido
mercadológico, afinal os salões se inserem em um mercado cada vez mais
competitivo. Isso pode ser verificado na própria denominação de um salão
localizado na Galeria São Luís, em São Paulo: "Salão Shalom, onde o cabelo
não tem cor".
4.
Como por exemplo o trabalho de Silva (1994) sobre a beleza negra percebida
comparativamente através de um programa da TV Itapoan (Beleza black) e dos
discursos do MNU e do Ilê Aiyê.
5.
Segundo Rudsney Correia, proprietário do Inter Yank's Cabeleireiros (Galeria
Metrópole, São Paulo), que participou de uma pesquisa para a Dudley Products
sobre o número de salões de beleza étnicos na cidade de São Paulo e em sua
região metropolitana, nos anos 1970 eles não passavam de dez, enquanto que em
1996 haveria mais de quatrocentos. Rudsney Correia começou a trabalhar no
primeiro salão black (assim era denominado) aos 16 anos, em 1978, e em 1985
montou seu atual salão.
6.
Não utilizo como material de análise a revista Raçaporque seu primeiro número
é de setembro de 1996.
7.
Para a historização e o significado do surgimento desses movimentos, ver
Risério (1981); Bernd (1988); Munanga (1988); Silva (1988); Bacelar (1989: 88-
98); Morales (1991) e Godi (1991).
8.
Entrevista concedida ao Jornal de Brasília de 24 de maio de 1992, citada por
Vieira (1989).
9.
"O estilo afro-vaidoso de Bené", entrevista concedida ao Jornal de
Brasília em 24 de maio de 1992.
10.
Idem.
11.
Ibid.
12.
"A hora e a vez dos negros", Jornal da Tarde, 26 de outubro de 1989.
13.
"Preconceito racial desfila no mundo da moda", Folha da Tarde, 01 de
novembro de 1990 .
14.
Idem.
15.
Ibid.
16.
"A hora e a vez dos negros", Jornal da Tarde, 26 de outubro de 1989.
17.
"Negra, naturalmente!", Jornal do Brasil, 13 de maio de 1989.
18.
Jornal de Brasília, 24 de maio de 1992.
19.
"Empresa lança cosméticos para as peles negras", Folha de São Paulo,
07 de maio de 1991.
20.
"Deputada investe em cosméticos para pele negra", Jornal do Brasil,
23 de junho de 1991.
21.
Idem.
22.
"A hora e a vez dos negros", Jornal da Tarde, 26 de outubro de 1989.
23.
"Empresa lança cosméticos para as peles negras", Folha de São Paulo,
07 de maio de 1991. Sobre o Studio Afonjá, ver Cunha (1988).
24.
"Negra, naturalmente", Jornal de Brasília, 13 de maio de 1989.
25.
"Na cabeça, a força negra", Folha de São Paulo, 30 de setembro de
1984.
26.
"O penteado para quem assume a cor da raça", Correio Brasiliense, 16
de novembro de 1991.
27.
"Deputada investe em cosméticos para pele negra", Jornal do Brasil,
23 de junho de 1991.
28.
"Só para negros", O Popular, 23 de abril de 1989.
29.
Sobre as comemorações, ver Schwarcz (1990).
30.
"Negros", Diário de Pernambuco, 04 de maio de 1989.
31.
"Black" (nota de Amaury Júnior), Diário Popular, 07 de maio de 1989.
32.
"Colonial Black, para fazer a cabeça dos negros", Folha da Tarde, 20
de abril de 1989 .
33.
Esse fato pode compreendido em minha própria incursão etnográfica, quando me
foi solicitada, por um dos sócios dos salões pesquisados, uma identificação da
FFLCH-USP para a realização de entrevistas. Foi argumentado que a identificação
seria necessária porque eles trabalhavam com produtos internacionais e, devido
à concorrência, não poderiam dizer qualquer coisa na entrevista. Minha
explicação de que se tratava de um trabalho sobre o crescimento dos salões de
beleza afro, as diferenças entre eles e as imagens negras nesses salões de nada
adiantou. Um rapaz, bem mais simpático que o sócio, disse-me que poderia me
mostrar algumas fitas de um desfile dos salões realizado pelo SENAC e que
haviam sido gravadas por emissoras de televisão, assim como me indicar outros
salões para serem entrevistados, desde que eu trouxesse uma identificação da
USP.
34.
Segundo dona Neuza, uma das cabeleireiras afro mais antigas da cidade de São
Paulo e que hoje possui um salão na Vila Nagib (o Neuza Cabeleireiros), o curso
é de curta duração e gira em torno de US$ 3.000, incluindo as passagens aéreas.
35.
Em relação as tendências nos salões por mim investigados (Inter Yank's e o
Neuza Cabelelireiro), fez-se questão de demonstrar as diferentes tendências das
últimas décadas ' do black power, passando pela "moda do cabelo
enrolado" a la Michael Jackson, à moda dos anos 1990, que foi o permanente
afro.