Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil
Introdução
É
possível reconhecer três paradigmas principais no estudo das relações raciais
no Brasil, relacionados, respectivamente, aos trabalhos de Gilberto Freyre,
Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg. Esses paradigmas também foram usados
por outros estudiosos, em razão de possuírem prolongamentos fora do Brasil,
influenciando e sendo influenciados por intérpretes estrangeiros,
principalmente americanos. Assim, como veremos, autores de tanto destaque
quanto Marvin Harris e Carl Degler são, cada um à sua maneira e apesar de tudo
que possam dizer em contrário, seguidores do modelo de Gilberto Freyre. Na
verdade, grande parte da disputa sobre o tema deriva menos da constatação dos
fatos (isto é, do teste ou da "falseação" de hipóteses) que de
pressupostos sobre as condições necessárias para que, do ponto de vista da
filosofia da história, o desenvolvimento dos países possa ser aceito como
válido.1
Freyre, Harris e os morenos
O pensamento de Gilberto Freyre sobre raça e cultura no Brasil pode ser
resumido na seguinte citação, retirada de Casa-grande & senzala:
Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e
sentimentos.[...] Confraternização que dificilmente se teria
realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação
social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais
ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião
doce, doméstica, quase de família entre os santos e os homens que,
das capelas patriarcais, das casas-grandes, das igrejas sempre em
festas ' batizados, casamentos, festas de bandeira dos santos,
crismas, novenas ' presidiu o desenvolvimento social brasileiro. Foi
esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres,
de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos
meninos, que criou nos negros as primeiras ligações espirituais,
morais e estéticas com a família e a cultura brasileira [...] A
religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização entre as
duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível e
dura barreira. [...] A liberdade do escravo de conservar e até de
ostentar em festas públicas [...] formas e acessórios de sua mítica,
de sua cultura fetichista e totêmica, dá bem idéia do processo de
aproximação das duas culturas no Brasil (Freyre 1980: 355-6).
Segundo Gilberto Freyre, em função do tipo de cristianismo2 prevalecente entre
os portugueses3, as raças no Brasil tenderam a se fundir em uma só comunidade
emocional e religiosa. Essa opinião suscitou tanto aplausos entusiásticos
quanto ferrenha oposição. Alguns dos adversários mais implacáveis de Gilberto,
entretanto, não obstante rejeitem sua concepção do desenvolvimento histórico,
estão de acordo com ele quando se trata de descrever o sistema brasileiro de
relações raciais. Esse é o caso de Marvin Harris, para o qual
É incorreto dizer-se que a identidade racial, no Brasil, depende da
aparência e do comportamento das pessoas, pois já a percepção da
aparência e do comportamento parece estar influenciada por fatores
obscuros e mesmo invisíveis. Tem sido amplamente observado que a
identificação racial é consideravelmente influenciada pelo nível
educacional e econômico quer do informante, quer do indivíduo que
está sendo classificado. Pessoas de fenótipo caucásico vêem-se
identificadas em termos teoricamente apropriados para a parte mais
negróide do espectro das cores (Harris & Kottak 1963: 204).
Desprovida de distinções de castas fundamentadas em identidades
raciais, as estruturas sociais do Brasil, na prática, não implicam em
uma grande competência intersubjetiva no que se refere a taxinomias
raciais (Harris 1970: 12).
Passagens substancialmente idênticas poderiam ser retiradas da obra de Harris4
desde a publicação de Town and country in Brazil (1956), seu primeiro trabalho
sobre o tema, resultante, como tantos outros, da famosa pesquisa sobre relações
raciais no Brasil patrocinada pela UNESCO. O fato é que, para Harris, "no
Brasil, a pessoa, por mais escura que possa ser, pode mudar de categoria racial
sem sequer mudar de residência. Basta ter sucesso econômico e atingir um alto
nível de educação" (Harris 1964a: 59). Para ele, sendo a raça
funcionalmente irrelevante (ao menos relativamente irrelevante) na fixação do
status econômico, educacional ou social dos indivíduos, segue-se que os termos
que a designam não só podem como precisamser ambíguos e imprecisos, expressando
uma vivência igualmente ambígua e imprecisa.
Gilberto Freyre, em outras e às vezes com as mesmas palavras de Marvin Harris,
pensa o mesmo. Tomemos o caso de
moreno
5, de que Gilberto tratou na introdução a New world in the tropics(Freyre
1959), livro muitas vezes citado e criticado por Marvin Harris:
Existe elevado número de homens de cor nas repartições públicas,
embora a proverbial cortesia brasileira prefira designá-los não como
"negros" (como são chamados nos Estados Unidos indivíduos
praticamente nórdicos com apenas uma gota de sangue africano nas
veias), mas sim como "morenos", ou seja, pessoas de pele
mais ou menos escura. Mesmo durante o Império, grande número de
notáveis estadistas, membros do Gabinete Imperial e do Senado do
Império, diplomatas, juizes e deputados, eram "morenos"
(Freyre 1971: 67-8; tradução de Freyre 1959: 10).
Resumindo o tratamento do tema com o qual lidou ao longo de praticamente toda a
sua obra, Gilberto dedicou uma de suas publicações em língua inglesa exatamente
ao emprego da palavra moreno, cuja ambigüidade mostraria a reduzida importância
das classificações raciais na sociedade brasileira. Trata-se do opúsculo The
racial factor in contemporary politics, de 1966, no qual, entre outras coisas,
disse que
Não é difícil entender por que, no Brasil, o emprego, atualmente
muito flexível ou elástico, da palavra moreno veio a ser um dos
eventos semântico-sociológicos que mais caracterizaram o
desenvolvimento da América Portuguesa como de uma sociedade cuja
composição multirracial cada vez mais vem a ser aquilo que um
inventor de neologismos talvez se atrevesse a descrever como meta-
racial. Isto é, uma sociedade na qual em vez da preocupação
sociológica com a caracterização minuciosa de tipos intermediários ou
de matizes entre branco e preto, branco e vermelho, branco e amarelo,
a tendência é, ou começa a ser, para aqueles que, sendo membros da
sociedade ou comunidade brasileira, não são completamente brancos, ou
completamente pretos, ou completamente vermelhos, ou completamente
amarelos, de serem descritos, ou de considerarem-se a si mesmos quase
sem discriminação, como "morenos".[...] A mesma palavra vem
tendo um emprego sociológico flexível e biologicamente elástico ' tão
elástico que mesmo negros retintos ["black negroes"] são
atualmente descritos, no Brasil, como morenos (Freyre 1966: 14).
E arrematou declarando que "O uso atual da palavra moreno mostra como só
um número reduzido de pernósticos, no Brasil, toma a atitude de se considerar,
a si próprios ou a seus compatriotas, do ponto de vista biológico ou
sociológico, brancos puros, representantes no Brasil, de cultura puramente
européia" (Freyre 1966: 27).
O acordo implícito entre Freyre e Harrris se confirma no artigo que este
publicou (com associados) em 1993, sob o título de "Who are the
whites?"
.
Tal como o opúsculo de Freyre, esse artigo se encontra essencialmente voltado
para o uso brasileiro da palavra "moreno".O parágrafo inicial já
demonstra a convergência de opiniões:
Quando, no recenseamento, moreno é usado em vez de pardo, a proporção
de respondentes que se identifica como sendo de raça-cor misturada
[isto é, como morenos] aumenta, ao mesmo tempo que ocorre uma
diminuição substancial dos que se identificam como brancos ou pardos.
Tais resultados demonstram o erro de querer-se impor ao resto do
Hemisfério categorias rigidamente dicotômicas (brancos/não brancos)
ou tricotômicas (brancos/mestiços/negros) tidas como adequadas para
representar a identidade racial nos Estados Unidos (Harris et al.
1993: 451).
É um texto que, com certas modificações estilísticas e menos uso de cálculos
estatísticos por vezes complicados, poderia ser assinado por Gilberto Freyre,
do qual Harris, em quase tudo mas sem jamais o declarar, revela-se fiel
discípulo6. Muito gilbertiana ' vêm-me logo à mente artigos de Gilberto
publicados em jornais na década de 1970, alertando para as tentativas de certas
fundações estrangeiras de introduzir no Brasil padrões e políticas raciais
copiados da América do Norte ', a conclusão do artigo declara que:
Os cientistas sociais devem pesar cuidadosamente o efeito de tentar
medir a discriminação no Brasil pela imposição de categorias de raça-
cor emicamente inválidas provenientes do sistema de castas raciais
dos Estados Unidos. Concebe-se geralmente que a discriminação fere os
direitos civis. Mas é também matéria de direitos civis que os
indivíduos possam classificar-se a si mesmos e a seus filhos de
acordo com seu próprio sentimento de identidade. Pode ser que o
Brasil não esteja mais próximo da democracia racial que outros
países, mas seu sistema de estabelecer identidades raciais tem muitas
características das quais o resto do mundo tem muito o que aprender
(Harris et al. 1993: 459).
Para usar as palavras de Claude Lévi-Strauss (1985: 115), entre Gilberto Freyre
e Marvin Harris "não são as semelhanças, mas as diferenças que se
parecem". O primeiro diz que existe, no Brasil, uma "democracia
étnica":
O segredo do sucesso do Brasil em construir uma civilização humana,
predominantemente cristã e crescentemente moderna, na América
tropical, vem da capacidade brasileira em transigir. Enquanto os
ingleses, mais que qualquer outro povo, possuem tal capacidade na
esfera política[...] os brasileiros vêm conseguindo ainda maiores
triunfos, aplicando essa capacidade à esfera cultural e social, na
maior amplitude. Daí sua relativa democracia étnica: a ampla, embora
não perfeita, oportunidade dada no Brasil a todos os homens,
independente de raça e cor, para se afirmarem brasileiros plenos
(Freyre 1971: 4-5; tradução de Freyre 1959: 7-8)7.
Essa invejável situação de harmonia racial encontra-se porém sujeita a certas
restrições:
Não que inexista preconceito de cor ou de raça juntamente com
preconceitos contra a mistura de classes no Brasil. Existe. Mas
ninguém pensaria em ter igrejas somente para brancos, assim como não
pensaria em leis contra os casamentos inter-raciais; ou em banir os
negros dos teatros ou bairros residenciais de uma cidade. O espírito
generalizado de fraternidade humana é mais forte entre os brasileiros
do que os preconceitos de raça ou de cor, de classe ou de religião. É
verdade que a igualdade racial nem é perfeita no Brasil nem se tornou
absoluta com a abolição da escravidão, em 1888.[...] Evidentemente
não existe paraíso na terra. Mas, quanto às relações raciais, a
situação brasileira provavelmente é a que mais se aproxima daquilo
que se imagine como um paraíso nesse setor. A felicidade brasileira,
contudo, é relativa, pois para a maior parte da população brasileira
persistem, senão a miséria, a pobreza, e uma série de doenças (Freyre
1971: 5; tradução de Freyre 1959: 8).
Já para Marvin Harris não existe democracia racial ou étnica no Brasil.
Contudo, sua não-democracia, de modo simetricamente inverso à democracia de
Gilberto, está sujeita a muitas restrições:
De maneira geral há uma gradação idealizada na qual os brancos ocupam
o extremo favorável, os negros o extremo desfavorável e os mulatos as
posições intermediárias. Mas esses fenômenos ideológicos não afetam
seriamente o comportamento real. O que as pessoas dizem que vão fazer
ou que não vão fazer não repercute no comportamento real. De fato, já
se tem observado que brasileiros extremamente preconceituosos
comportam-se com pronunciada deferência com relação a representantes
dos grupos que dizem ser os mais baixos. Ou, em outras palavras, o
preconceito racial no Brasil não resulta em segregação racial e
discriminação sistemáticas. O motivo deste paradoxo é claro. Apesar
dos estereótipos idealizados, não há um papel ou umstatus [status-
role] para o negro enquanto negro, ou para o branco enquanto branco,
ou para o mulato enquanto mulato. Não há grupos raciais. [...] É a
classe da pessoa e não a raça que determina a adoção de atitudes de
subordinação e sobreposição entre determinadas pessoas no
relacionamento direto. É a classe que determina quem será admitido em
hotéis, restaurantes e clubes; quem receberá tratamento preferencial
em lojas, igrejas, boates e veículos; e quem terá maiores
oportunidades em um grupo de pretendentes ao casamento. Não há grupos
raciais contra os quais se exerce discriminação. Há, sim, grupos de
classe. [...] A discriminação de raça é em si suave e imprecisa; a
discriminação de classe produz desvantagens e desigualdades de
caráter agudo, persistente e onipresente (Harris 1964a: 60-1).
Harris também usa a metáfora do paraíso para, em palavras aparentemente
diferentes (e politicamente mais corretas), destacar que o problema no Brasil é
mais de classe que de raça:
Que aqueles que consideram o Brasil como um "paraíso
racial" lembrem-se de que esse paraíso está ocupado apenas por
criaturas ficcionais. Os homens e mulheres da realidade na Bahia não
são membros de raça exceto enquanto de qualquer conjunto de seres
humanos pode-se dizer que tem uma identidade racial objetiva. No que
diz respeito ao comportamento real, não existem "raças"
para os brasileiros. Mas existem classes tanto para o observador como
para os brasileiros (Harris 1964a: 64).
Assim se torna patente que, em substância, Harris concorda com Freyre até mesmo
no emprego "semântico-sociológico" da palavra moreno. Em questões de
estilo, ele se conserva a uma distância prudente e politicamente correta do
autor brasileiro, o que não o impede de, juntamente com o próprio Freyre, ser
um dos campeões do paradigma da morenidade.
Relações raciais e correção histórica
Penso que dificilmente se pode chamar de exagerada a grande influência de
Harris sobre outros estudiosos, tanto brasileiros quanto norte-americanos.
Entre eles, destaca-se Carl Degler ' seu livro Nem preto nem branco: escravidão
e relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos (1976) goza da reputação de
ser um clássico dentro dessa temática. Ora, eu mesmo me espanto da facilidade
com que descubro em Degler um dos mais acirrados closet Freyreans de minha
lista, embora ele não o admita nem por todo o ouro do mundo. É o vocabulário de
Degler o que, muitas vezes, o aproxima de Gilberto. Sua expressão mulatto
escape hatch, que podemos traduzir como saída de emergência do mulato (saída
sem dúvida suficientemente espaçosa para que por ela escape a maior parte do
povo brasileiro), tem todo o jeito de ter sido expressamente inventada como uma
saída de emergência para gilbertianos não se sabe por que envergonhados.
Efetivamente, penso que Degler é, juntamente com Marvin Harris, um dos
gilbertianos mais ortodoxos que se pode encontrar em toda a vasta literatura
sobre relações raciais no Brasil e nas Américas. Senão, vejamos. Tudo bem
pensado, "nem preto, nem branco" vem a ser equivalente primeiro do
título de um dos artigos de Harris, "ambigüidade referencial no cálculo da
identidade racial" (Harris 1970) e, de fato, do próprio termo moreno,
entendido por Gilberto Freyre exatamente como nem preto nem branco e adotado em
seguida por Marvin Harris.
Na realidade, Freyre, Harris e Degler, apesar de diferirem no vocabulário,
concordam em atribuir caráter meta-racial à sociedade brasileira. De acordo com
o pensamento dos três, as identidades raciais teriam importância limitada na
atribuição de papéis e de status, e tenderiam a ser englobadas e confundidas em
termos como morenoou nem preto,nem branco. Ora, é precisamente a confusão de
identidades raciais que constitui a essência do primeiro paradigma reconhecido
neste trabalho, e que pode ser denominado paradigma da morenidade.
Entretanto, apesar de seu acordo quanto à meta-raça, os autores divergem de
modo às vezes agudo a respeito das explicações propostas para o que supõem
representar uma realidade incontestável. Existe forte oposição sobretudo entre,
de um lado, Gilberto Freyre e, do outro, Marvin Harris e Carl Degler, cujos
trabalhos desde o princípio tiveram a intenção de refutar a interpretação do
Brasil proposta por Gilberto. O que se pretende destacar neste artigo é que, na
raiz dessa divergência, encontra-se toda uma filosofia da história e da
cultura. Nas concepções de Harris e Degler podemos reconhecer dois grandes
componentes. Em primeiro lugar, uma concepção materialista da história,
privilegiando fatores de caráter ecológico, tecnológico, econômico e
demográfico. Assim é que, de acordo com Marvin Harris:
Embora a grande plantação escravocrata[em todas as partes das
Américas] tenha tido efeitos marcadamente os mesmos,
independentemente dos antecedentes culturais de escravos ou senhores,
o ambiente natural, demográfico e institucional com que a escravidão
se articulou esteve muito longe de ser o mesmo. É dever de todos que
desejam explicar a diversidade no relacionamento das raças, no Brasil
e nos Estados Unidos, voltarem-se em primeiro lugar para explicações
materiais (Harris 1964a: 81).
Conseqüentemente, Harris está convencido de que se tratou essencialmente de um
problema de mão-de-obra: o número de portugueses capazes de vir para o Brasil
era tão pequeno que os conquistadores "viram-se forçados a criar um grupo
livre, composto de mestiços, para servir de intermediário entre eles e os
escravos, pois havia certas funções essenciais, de caráter econômico e militar,
para as quais o trabalho escravo não se prestava e não havia número suficiente
de brancos" (Harris 1964a: 86-7).
Encontramos na obra de Carl Degler, entre outros ingredientes, uma versão
substancialmente idêntica da primazia atribuída a fatores ecológicos,
econômicos e demográficos:
Nem a Igreja nem o Estado no Brasil revelaram qualquer preocupação
profunda no que diz respeito à condição humana do escravo e, de
qualquer forma, nenhum dos dois usou sua autoridade para influir de
maneira significativa na vida do escravo[...]. Mesmo quando a Coroa
portuguesa procurou dar alguma proteção ao negro, como ser humano,
nem sempre era obedecida pelos senhores brancos. As explicações mais
convincentes para essas diferenças [entre os padrões da escravidão e
das relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos]talvez sejam as
de desenvolvimento demográfico e econômico e as circunstâncias
geográficas nos dois países (Degler 1976: 101).
Contudo, para empregar aqui a sentença de Oscar Wilde, "a verdade
raramente é pura, e nunca simples". Mesmo quando destacam fatores
ecológicos e econômicos, mesmo quando rejeitam o "mito do bom
senhor"8, Harris e Degler não necessariamente contradizem Freyre, já que o
autor brasileiro não recusou explicações de caráter "material".
Embora não os pretendesse únicos, Gilberto Freyre não rejeitou a consideração
de fatores econômicos e demográficos, e assim declarou que:
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico[...] temos
de admitir a influência considerável, embora nem sempre
preponderante, da técnica de produção econômica sobre a estrutura das
sociedades: na caracterização da sua fisionomia moral[...]. No
Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a
primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema
de produção econômica ' a monocultura latifundiária; do outro pela
escassez de mulheres brancas entre os conquistadores (Freyre 1980:
LVIII-LIX).
O segundo e principal componente da oposição teórica a Gilberto Freyre está no
que se pode chamar de concepção ortogenética do progresso. Trata-se do
postulado do desenvolvimento unlinear do processo histórico, compartilhado,
apesar das diferenças existentes entre eles, pelo idealismo de Hegel, o
materialismo de Marx e a sociologia histórica de Weber. Simplificando os
termos, o problema é o seguinte: como é possível a um país subdesenvolvido como
o Brasil apresentar maior sucesso adaptativo na coexistência (desde que se
aceite essa coexistência como sucesso adaptativo), na interpenetração racial e
cultural, que outros países, supostamente situados na vanguarda do
desenvolvimento econômico e social?9 Carl Degler oferece um exemplo arquetípico
dessa concepção ortogenética:
Como em Portugal, a mãe-pátria, faltava ao Brasil a concepção do
valor moral do trabalho que vem sob o rótulo de "ética
protestante". Não é que os brasileiros não trabalhassem, pois na
verdade as circunstâncias impeliam a maioria deles ao trabalho.
10 As diferenças no relacionamento racial do Brasil e dos Estados
Unidos surgiram das muitas diferenças entre uma sociedade dinâmica,
competitiva, protestante e socialmente móvel e uma que era estável,
tradicional, hierárquica e católica (Degler 1976: 255-6).
Quero destacar a aparente inconsistência da passagem que acabei de citar,
derivada da importância que Degler pretendeu atribuir aos fatores materiais e a
ênfase que agora coloca em causas éticas e religiosas. Sua mensagem essencial,
formulada em termos de Hegel, Marx, Weber e Parsons, consiste em reivindicar
para um determinado modelo de sociedade e cultura a primazia sobre outros
modelos e, portanto, achar que um determinado paradigma11 de interpretação
histórica é melhor que outros. Existiria uma história normativa (ou orto-
história) à qual as outras histórias deveriam se conformar ' o que não se
encontra distante da atitude racista, que só reconhece atrofias e deformações
do humano nos povos e sociedades considerados subdesenvolvidos, atrasados ou
primitivos.12 É igualmente incoerente apresentar o Brasil como "estável,
tradicional, hierárquico e católico" e, ao mesmo tempo, tão propenso a
usar a "saída de emergência do mulato".
Entretanto, apesar de suas suposições teóricas tão diferentes ' ou, talvez
melhor, apesar do que supõem estarem supondo ', Gilberto Freyre, Marvin Harris
e Carl Degler chegam às mesmas conclusões. Convergem para o paradigma da
morenidade, de acordo com o qual as classificações raciais, ou a percepção das
diferenças raciais, tende a ser irrelevante na formação social brasileira,
devido a fatores de caráter religioso, demográfico ou ambos. Como já se
destacou, vê-se que, atentamente consideradas, a palavra moreno, de acordo com
Freyre e com certos textos recentes de Harris; a locução ambigüidade
referencial no cálculo da identidade racial, de acordo com um artigo mais
antigo de Harris; e a saída de emergência do mulato, de Degler, levando ao
surgimento de uma população morena ou, em termos mais estritamente deglerianos,
nem preta nem branca, significam muito aproximadamente a mesma coisa.
Florestan Fernandes e a democracia racial
A primeira homenagem que rendo a Florestan Fernandes é ao seu espírito de
sistema; seu como que cartesianismo, buscando operar através de conceitos o
mais possível claros e distintos. Mais claros e mais distintos, diga-se de
passagem, que os de Roger Bastide, que foi seu mentor e que, talvez melhor que
ninguém na história das ciências sociais da França e do Brasil, parece ter
compreendido as vantagens das penumbras cognitivas e conceptuais.
Florestan Fernandes é muito diferente de Gilberto Freyre, em que domina uma
intuição mais de artista que de cientista. Para Gilberto, a linha reta não é a
menor distância entre dois pontos, ou pelo menos ele jamais parece seguir essa
hipotética linha reta, escrevendo com linhas muito sinuosas. De Florestan eu
diria justamente o contrário: mesmo quando porventura escreve errado, usa
linhas retas.
Para ir diretamente ao essencial, pode-se dizer, de uma maneira, temo, um tanto
simplificada demais, que para Florestan não existem relações propriamente de
raça, mas de classe, as quais, em determinadas circunstâncias, assumem a forma
de relações de raça. Racismo, racialismo ou como quer que o chamemos
corresponderiam, em termos paretianos que Florestan não adota, a simples
derivações. O resíduo, o núcleo, a essência são os conflitos de classe baseados
em determinado sistema econômico, que Florestan raramente ou nunca denomina
explicitamente modo de produção.13 Tentarei, como fiz com o Pernambucano,
resumir o pensamento do Paulista em uma citação:
São Paulo constituía
[...] uma das cidades brasileiras menos propícias à absorção imediata
do elemento recém-egresso da escravidão. [...] São Paulo aparecia
como primeiro centro urbano especificamente burguês. Não só
prevalecia entre os homens uma mentalidade marcadamente mercantil,
com seus corolários característicos ' o afã do lucro e a ambição do
poder pela riqueza; pensava-se que o "trabalho livre", a
"iniciativa individual" e o "liberalismo
econômico" eram os ingredientes do "Progresso", a
chave que iria permitir superar o "atraso do País" e
propiciar a conquista dos foros de "Nação civilizada" pelo
Brasil. Os móveis das ações, os comportamentos e a própria
personalidade dos agentes econômicos conformavam-se, de modo cada vez
mais profundo, pelos padrões típicos do empresário e do trabalhador
livre da civilização capitalista. Nesse clima o negro encontrava boa
acolhida: enquanto "escravo insubmisso", que fugia da
senzala e se rebelava contra a escravidão (no período final de
desagregação do regime servil); enquanto se abrigava como
"protegido", "dependente" ou "cria da
família", sob o manto das relações paternalistas. [...]
Fora e acima disso, surgia como uma pessoa deslocada e aberrante no
cenário tumultuoso que se forjava graças à "febre do café".
Mesmo quando conseguia inserir-se no sistema citadino de ocupações,
ele não se polarizava na direção do futuro e, assim, não
"engrenava". Faltava-lhe coragem para enfrentar ocupações
degradantes, como os italianos que engraxavam sapatos, vendiam peixes
e jornais etc.;
14 não era suficientemente "industrioso" para fomentar a
poupança, montando-a sobre uma miríade de privações aparentemente
indecorosas, e para fazer dela um trampolim para o enriquecimento e o
"sucesso"; carecia de meios para lançar-se às pequenas ou
às grandes especulações, que movimentavam os negócios comerciais,
bancários, imobiliários e industriais; e, principalmente, não sentia
o ferrete da ânsia de poder voltado para a acumulação da riqueza.
[...] Doutro lado, as deformações introduzidas em suas pessoas pela
escravidão limitavam sua capacidade de ajustamento à vida urbana, sob
regime capitalista, impedindo-os de tirar algum proveito relevante e
duradouro, em escala grupal, das oportunidades novas
(Fernandes 1978: 19-20).
Pode-se dizer que, para Florestan, o preconceito de raça é ilusório, uma vez
que, bem examinado, reduz-se a um simples preconceito de classe, ou melhor, à
sobrevivência de ideologias ou atitudes que, no passado, decorreram de relações
de classe e subsistem no presente por força de certa inércia cultural ' apesar
de Florestan não ter feito (que eu me lembre) apelo explícito nem a esse nem a
outros conceitos de William Ogburn, como o de hiato, atraso ou defasagem
cultural (cultural lag).
Não existe, e dentro da sociologia racionalista e progressista de Florestan
Fernandes nem poderia existir, lugar para relações de raça propriamente ditas.
Note-se que o homem que, de maneira mais ou menos implícita, apresenta-se como
um dos maiores adversários do conceito de "democracia racial" tal
como certa ou erradamente é atribuído a Gilberto Freyre é, de certo modo, um
defensor ainda mais radical desse conceito por, paradoxalmente, negar-lhe
qualquer existência autônoma.
Desse ponto de vista, o contraste mais marcado talvez não seja o que se pode
estabelecer entre Gilberto e Florestan, mas entre Florestan e Louis Dumont, um
autor que se ocupou muito pouco do Brasil e que, em Homo hierarchicus(1967),
derivou o conceito de casta de um contraste a priori ' isto é, anterior a
determinações sociais ou econômicas ' entre o puroe o impuro, ou, na famosa
formulação de Mary Douglas (1991), entre purezae perigo. Florestan, entenda-se
bem, fala em castas e até mesmo em sociedade de castas, mas em sentido
completamente diferente do de Dumont. Para o Paulista, a sociedade de castas é
uma sociedade de classes mais rígida, fundamentada em certas relações de
produção, na qual há pouco ou nenhum espaço para mudança ou mobilidade; é a
sociedade pré-capitalista, com sua própria base econômica e, mesmo em versão
brasileira, apresentando muitas semelhanças com o regime feudal da Europa
medieval. Gilberto, por reconhecer a existência autônoma do que por ora
chamaremos preconceito de raça' embora o considere fraco ou inexistente no
colonizador português, em função de sua "singular predisposição para a
colonização híbrida e escravocrata dos trópicos", explicada, "em
grande parte", por "seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo
indefinido entre a Europa e a África" (Freyre 1980: 5) ', encontra-se de
certo modo mais distante do projeto talvez utópico de uma democracia racial que
Florestan, que parece repelir esse conceito com horror.
Retomemos o ponto de partida, o fio de Ariadne através desse labirinto de
autores e teorias, voltando à idéia de orto-história. Essencialmente, essa
idéia nãoexiste na perspectiva de Gilberto. Enquanto Florestan vê a igualdade
racial como uma grande conquista do futuro, para Gilberto ela ou já existe ou
nunca existirá. A idéia de Tropicologia, com esse ou outros nomes, perpassa a
obra de Gilberto Freyre desde o princípio, uma vez que ele desde o começo lida
com algumas poucas intuições em torno das quais passou toda a vida refletindo,
sem jamais querer, ou conseguir, reduzi-las a conceitos claros e distintos como
os do cartesiano Florestan.
Em outras palavras, o Pernambucano está muito longe de admitir a superioridade
da civilização capitalista, isto é, "do preto, do pardo, do cinzento, do
azul escuro da civilização carbonífera" (Freyre 1961: 311) sobre a
"vida, a forma, a cor"15 da civilização tropical. Nesse ponto não se
enganaram os que perceberam a desconfiança de Gilberto com relação à idéia de
progresso, que eu não sei se lhe chegou através de contatos diretos ou
indiretos com Charles Maurras, Régis de Beaulieu ou outros membros da Action
Française(seria preciso um ensaio monográfico para dirimir a dúvida) ou se se
trata de simples convergência, da mesma atitude de defesa de membros de
culturas ameaçadas, a luso-tropical ou a franco-católica, diante de
imperialismos associados a germânicos ou anglo-saxãos, isto é, à cultura da
modernidade. Quanta, mas quanta coisa, ainda precisa ser escrita sobre Gilberto
Freyre!
Da desigualdade à discriminação
O terceiro paradigma aqui identificado encontra-se associado a Carlos
Hasenbalg. Considero Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979) um
trabalho pioneiro. Sua tese básica está expressa em muitos trechos (: 20, 24,
61, 76, 85, 211, 221 etc). Na impossibilidade de citá-los todos, escolho a
conclusão do capítulo VII, o mais importante de todo o livro, intitulado
"Mobilidade social, desigualdade de oportunidades e raça" (: 197-
221): "Devido aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de
mecanismos racistas mais gerais, os não-brancos têm oportunidades educacionais
mais limitadas que os brancos da mesma origem social. Por sua vez, as
realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos
ocupacionais e de renda proporcionalmente menores que os dos brancos" (:
221).
Segue-se daí o corolário político: "Se os processos de competição social
calcados no mecanismo de mercado envolvido no processo de mobilidade social
individual operam em detrimento do grupo racialmente subordinado, então o
enfoque da análise deve se orientar para as formas de mobilização política dos
não-brancos e para o conflito inter-racial" (idem).
Não pretendo questionar a validade dos dados demográficos e estatísticos de que
Hasenbalg faz uso nesse e em outros de seus trabalhos, tanto mais que é matéria
de senso comum a constatação de que os "brancos" (como quer que os
definamos) se encontram, em todas as partes do Brasil, em faixas sociais,
econômicas e educacionais superiores às dos "não-brancos". Supondo
correto o emprego dos dados demográficos16, restam ainda, antes que se possa
concordar com as conclusões do autor, alguns problemas de primeira grandeza. A
ser verdade que os "não-brancos têm oportunidades educacionais mais
limitadas que os brancos da mesma origem social" e que "as
realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos
proporcionais e de rendas proporcionalmente menores que os dos brancos",
não será ainda metodologicamente legítimo passar à conclusão de que isso se
deve "aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos
racistas mais gerais". Faltam premissas a essa tentativa de demonstração.
Tal argumentação, pretendendo deduzir a discriminação a partir da
desigualdade17, possuiria a cogência de uma verdadeira demonstração científica,
ou ao menos a plausibilidade de uma boa hipótese popperianamente falseável,
se,e somente se, o autor que a propõe cuidasse de substanciá-la, descrevendo ou
ao menos indicando, de maneira próxima ou remotamente observável, quais são,
como, onde e quando operam as "práticas discriminatórias sutis" e os
"mecanismos racistas mais gerais" a que alude. Seria também preciso
que apontasse atores mais concretos que "os brancos", isto é,
dissesse quais brancos, em quais circunstâncias, exercem as
"práticas"e põem em ação os "mecanismos" a que se refere. E
como, até onde eu tenha tido conhecimento, não o faz em ponto algum de sua
obra, como não constrói a mediação que levaria à conclusão da discriminação
partindo da premissa da desigualdade (esta, poderíamos conceder, baseada em
verificações empíricas), parece-me legítimo concluir que essa obra, sem dúvida
densa e provocante, opera com um non sequitur, com uma inconseqüência que
representa um begging the questionou, como se diz em bom vernáculo, petição de
princípio, tratando como evidente justamente o que devia demonstrar.
Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes concordam na rejeição do paradigma luso-
tropicalista de Gilberto Freyre, mas são diferentes um do outro. Já destacamos
que não há, e nem pode haver, dentro da perspectiva progressista do Paulista,
lugar para o preconceito de raça propriamente dito, isto é, que não signifique
um resíduoda ordem escravocrata. A perspectiva marxista do homem como produtor
impede, para Florestan, o eventual reconhecimento da atuação de forças
primariamente qualitativas na estrutura e na história das sociedades. A
percepção a priori ' o preconceito ' do Diferente, do Outro, do Negro como
intrinsecamente poluente para o Branco, ou, em outros termos, a dicotomia
purezae perigo,escapa a Florestan e tudo indica que escape (apesar de Eugene
Genovese) à toda visão da sociedade como essencialmente fundada sobre forças
produtivas, com exclusão de outras forças ou valores.
O principal livro de Hasenbalg (1979) contém muitos elementos polêmicos
voltados contra a Escola Paulista representada por Florestan e discípulos,
entre os quais se destacam Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso18, e que é
muito claramente o alvo de passagens como esta:
Há vinte ou vinte e cinco anos considerava-se a sociedade brasileira
dividida por um dualismo estrutural, entre instituições e padrões de
relações sociais arcaicos e modernos. Os componentes tradicionais da
sociedade (e a conseqüente degradação das massas, inclusive da
população de cor) seriam o resultado da herança da plantação
escravista, da monocultura de exportação e da preservação de uma
estrutura agrária anacrônica. Apesar disso, na
"intelligentzia" e nos grupos sociais progressistas
prevalecia uma atitude otimista quanto ao futuro. De acordo com essa
visão, o desenvolvimento econômico ulterior, juntamente com as
reformas estruturais estabelecidas nos marcos de uma política
nacionalista e desenvolvimentista, resultariam finalmente na
integração econômica e social das massas até então excluídas. Os
brasileiros de cor seriam incorporados nesse processo (Hasenbalg
1979: 19-20).
[Uma] forma de ligar o passado escravista ao presente consiste em
interpretar as relações sociais contemporâneas como área residual de
fenômenos sociais resultantes da sobrevivência de padrões
"arcaicos" ou "tradicionais" de relações
intergrupais. [...] A suposição subjacente a essa interpretação é que
apesar da abolição do escravismo, uma inércia histórica perpetua os
padrões tradicionais de comportamento inter-racial. Visto que esses
padrões não são funcionalmente exigidos pela nova estrutura, eles
deverão se atrofiar. Conseqüentemente, o racismo e as desigualdades
raciais eventualmente desaparecerão. [Mas] foi sugerido que: (a) a
discriminação e o preconceito raciais não são mantidos intactos após
a abolição mas, pelo contrário, adquirem novos significados e funções
dentro das novas estruturas e (b) as práticas racistas do grupo
dominante branco que perpetuam a subordinação dos negros não são
meros arcaísmos do passado, mas estão funcionalmente relacionadas aos
benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da
desqualificação competitiva dos não brancos (ibid.: 85).
Se Hasenbalg e seus adeptos são consistentes nessa recusa do racismo como
"resíduo", ao mesmo tempo em que consideram que os preconceitos
adquiriram "novos significados" e pretendem permanecer em uma
perspectiva mais marxista que, digamos, "dumontiana", é tema que vai
além do âmbito deste artigo19. Note-se, porém, o caráter volátil e reversível
desse paradigma: dando tanta ênfase à desigualdade sem explicitar quais seriam
os mecanismos da discriminação, Hasenbalg, talvez não do ponto de vista de suas
intenções subjetivas, mas de acordo com a lógica objetiva de seu trabalho, abre
as portas para outras interpretações.
Relações raciais e Kulturkampf
Meu objetivo vem sendo mostrar como o entendimento das relações raciais, pelo
menos no Brasil, está associado a concepções mais gerais do desenvolvimento
histórico e mesmo a pressupostos metafísicos. Tenho destacado que a oposição às
teses de Gilberto Freyre, sendo muitas vezes questão mais de estilo que de
substância, encontra-se ligada ao pressuposto, ora mais latente, ora mais
aberto, de uma orto-história, de um único modelo válido de progresso, ao qual o
desenvolvimento do Brasil, ou pelo menos a interpretação do desenvolvimento,
deve se conformar para poder ser aceito como válido.
O que menos se admite, no autor pernambucano, é ter ousado ' e isso desde seus
textos mais antigos ' tomar posição em favor de uma sociedade católica,
ibérica, tradicional, com muitos pontos de contato, apesar de seu catolicismo,
com a cultura islâmica da África do Norte, que por muitos séculos dominou em
Portugal e na Espanha. O grande debate se trava em torno de filosofias da
história. Ao paradigma de Gilberto Freyre (cujas conclusões, apesar das
divergências manifestas, são latentemente apoiadas por Marvin Harris e Carl
Degler) opõe-se um modelo orto-histórico, uma concepção progressista do
desenvolvimento, de inspiração marxista ou weberiana (ou ambas ao mesmo tempo),
supostamente associada ao advento da mobilidade social e da igualdade racial.
Trata-se, o tempo todo, de uma luta de culturas, um
Kulturkampf
20. Durante toda sua vida intelectual Gilberto Freyre se dedicou ao serviço do
que ele chamou de "uma cultura ameaçada, a cultura luso-brasileira":
Venho contribuindo modesta mas conscientemente[...] para a
reabilitação da figura ' por tanto tempo caluniada ' do colonizador
português no Brasil; para a reabilitação da cultura brasileira,
ameaçada hoje, imensamente mais do que se pensa, por agentes
culturais de imperialismos etnocêntricos, interessados em nos
desprestigiar como raça ' que qualificam de "mestiça",
"inepta", "corrupta" ' e como cultura ' que
desdenham como rasteiramente inferior à sua (Freyre 1942: 16-7).
Nesse aspecto, é curioso notar como ele se aproxima de Max Weber, que, também
desde a mocidade, fez-se defensor de uma cultura a seu modo ameaçada (e, para
Gilberto Freyre, ameaçadora dos valores de culturas ibero-católico-tropicais),
isto é, a cultura protestante-liberal, associada aos povos do Norte, alemães,
anglo-americanos e holandeses. Em um documento de sua juventude, Weber escreveu
que "De acordo com minha estimação, dois poderes, a burocracia estatal
[que Weber parece associar ao socialismo] e o clericalismo católico [...] têm o
maior poder de colocarem tudo mais a seus pés. Por mais limitadas que sejam
minhas forças (mas justamente porque são limitadas), considero como um
mandamento da dignidade humana empenhar-me na luta contra esses poderes (Weber
apud Mommsen 1985: 165).
Concluirei com rápidas observações. Gilberto Freyre, sem necessariamente
desprezar condicionamentos materiais, infra-estruturais ou tecno-ambientais,
pretendeu explicar as relações raciais no Brasil principalmente por causas
ideológicas, abrangendo fatores muitas vezes sutis, como ethoscultural e
atitudes religiosas. Seu paradigma encontrou acirrada oposição por parte de
autores partidários de dois pressupostos teóricos, o primeiro dos quais
acentua, de maneira unilateral, fatores ecológicos e econômicos, enquanto que o
segundo, inspirado em Hegel, em Marx, em Weber como interpretado por Talcott
Parsons ou em todos eles, reivindica a existência de uma história normativa,
associada, como em Degler, a uma forma de sociedade supostamente móbil,
progressista e protestante, à qual todas as outras histórias devem se
conformar, como se se tratasse do único modelo válido de desenvolvimento.
Diante de paradigmas em conflito, convém ater-se a alguns princípios básicos de
metodologia científica. A elegância e a parcimônia são sem dúvida importantes
no processo de demonstração. Mas não as transformemos em mesquinhez.
Procuremos, e se necessário elaboremos, o paradigma capaz da explicação mais
abrangente, em vez de sacrificar a evidência empírica à pureza das abstrações.
Notas
1.
Este artigo continua uma reflexão iniciada há quase 30 anos, quando, em meus
exames de qualificação para o Doutorado na Universidade de Columbia, meus
examinadores (entre os quais não estava Harris) ' penso que não sem alguma
malícia em relação a gregos e troianos ' me colocaram (entre outras) a seguinte
questão: "Draw a parallel between Marvin Harris's characterization of race
relations in Brazil (with emphasis on the concept of ambiguity) and older
theories, for instance, Freyre's. Do you really see them as mutually
contradictory and irreconcilable?". É da resposta que redigi que,
remotamente, descendem tanto este artigo, novo, original e inédito, quanto as
obras publicadas em 1973, 1983, 1986, 1998 e 2000.
2.
Na citação anterior, Gilberto Freyre não se refere propriamente à Igreja como
instituição, mas à religião tal como vivenciada no cotidiano do Brasil
colonial.
3.
Os portugueses, influenciados por "seu passado étnico, ou antes,
cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África, nem intransigentemente
de uma nem de outra, mas das duas" (Freire 1980: 5), teriam adquirido
"singular predisposição [...] para a colonização híbrida e escravocrata
dos trópicos", (idem). Esse "passado étnico" se configuraria no
longo contato com os mouros, por tanto tempo dominantes em Portugal e na
Espanha. Freyre gostava muito de destacar a "influência moura sobre a vida
e o caráter português: da moral maometana sobre a moral cristã. Nenhum
cristianismo mais humano e mais lírico que o português. Das religiões pagãs,
mas também da de Maomé, conservou como nenhum outro cristianismo na Europa o
gosto de carne. [...] Nesse ponto o cristianismo português pode-se dizer que
excedeu ao próprio maometanismo" (Freyre 1980: 224).
4.
Assim é, por exemplo, em seu artigo com Conrad Kottak datado de 1963, cujo
universo se encontra nos pescadores de Arembepe, na Bahia, e no qual se lê que:
"do ponto de vista funcional, a penumbra de confusão semântica em torno da
identidade racial do povo de Arembepe se enquadra bem com o comportamento real
das pessoas. Em nenhum ponto de seu ciclo vital raça constitui fator
fundamental. [...] A ambigüidade racial é manifestação dos padrões igualitários
dominantes na pesca, atividade da qual depende a vida da comunidade (Harris
& Kottak 1963: 205). Em artigo um pouco posterior, Harris claramente
estendeu suas conclusões a todo o Brasil, pois, como arrematou, a ambigüidade
racial "claramente exclui discriminação e segregação sistemáticas; para
poder proibir os membros de um grupo de votarem ou de entrarem em uma escola ou
em um clube, é absolutamente indispensável haver um critério firme para
estabelecer a identidade dos que devem ser segregados ou discriminados. Nos
Estados Unidos, tal critério se configura na regra de descendência. Esperemos
que, no Brasil, haja sempre confusão a esse respeito e que vá aumentando com o
passar do tempo" (Harris 1964b: 28).
5.
Diga-se de passagem que moreno, no sentido amplo destacado por Gilberto
Freyre, já pode ser encontrado em Cervantes, em uma das Novelas ejemplares
publicadas originalmente em 1613. Trata-se de "El celoso extremeño",
da qual extraio o seguinte trecho: "Yo'respondió Loaysa'soy un pobre
estropeado de una pierna, que gano mi vida pidiendo por Dios a la buena gente;
y, juntamente con esto, enseño a tañer a algunos morenos y a otra gente pobre,
y ya tengo tres negros, esclavos de tres veinticuatros, a quien he enseñado, de
modo que pueden cantar y tañer en cualquier baile y en cualquier taberna, y me
lo han pagado muy rebién"(Cervantes 1613: 43-4). Referindo-se à América
Espanhola e baseado em documentos do período colonial, , Mörner escreveu que
"as pessoas de sangue africano podiam demonstrar seu valor em situações de
emergência e, pouco a pouco, foram sendo recrutados para formar unidades
especiais da milícia. Nesse contexto militar, os mulatos eram chamadospardos, e
os negros,morenos"(Mörner 1967: 44).
6.
Gilberto Freyre não é citado nesse artigo, salvo no seguinte trecho:
"Research carried out at midcentury showed that Brazil was not, as
sometimes claimed (Freyre 1946; Wagley 1952), a racial democracy" (Harris
et al. 1993: 452). Marvin Harris corre o risco de passar por introdutor da
expressão morenono tratamento da questão racial no Brasil, embora o termo seja
bem mais antigo na obra de Gilberto Freyre que o ensaio de 1966 a que aqui se
faz referência.
7.
A tradução brasileira ' revista por Gilberto Freyre ' do trecho que se acaba de
transcrever parece atenuar o otimismo do original em língua inglesa, mencionado
e criticado por Marvin Harris, no qual se diz "The Brazilians have been
successful in using this same power of compromise in the cultural and social
spheres. Hence their ethnic democracy, the almost perfect equality for all men
regardless of race or color" (Freyre 1959: 7-8).
8.
Para Gilberto Freyre, o português foi "o colonizador europeu que melhor
confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com
os escravos"(Freyre 1980: 189). Notemos, contudo, que a hipótese do
português como "bom senhor" não é indispensável para a interpretação
freyriana da escravidão e das relações raciais no Brasil. Eugene Genovese trata
do assunto com vigor e coerência. Para ele "esta distinção fundamenta a
argumentação: o escravo foi maltratado como escravo, mas só acidentalmente como
negro" (Genovese 1971: 83).
9.
De modo parecido (mas não idêntico) Genovese destaca que "não se pode, ao
mesmo tempo, ser de um anticolonialismo irrestrito, ter uma visão unilinear da
história e sustentar o evangelho do progresso sem riscos de esquizofrenia"
(Genovese 1971: 382).
10.
Degler, para nosso alívio, ao mesmo tempo em que dá a entender que há países
nos quais as pessoas trabalham movidas por princípios éticos, admite, afinal de
contas, que alguns brasileiros também trabalham, ainda que menos nobremente
motivados.
11.
Sobre paradigmas, ou antes, sobre a crise dos paradigmase sua relação com a
obra de Gilberto Freyre, ver o ensaio de Sebastião Vila Nova (1995), do qual
extraio a seguinte citação: "A verdadeira crise da sociologia
contemporânea deriva da incapacidade dos sociólogos de superar o hábito de
pensar nos fenômenos sociais e nos problemas teórico-metodológicos próprios de
sua ciência através do crivo do conceito de paradigma, assim como da busca
ansiosa, antes reflexo da necessidade inconsciente de ordenação cognitiva do
real elevada a um nível mórbido, da tábua de salvação de um paradigma
redentor" (Vila Nova 1995: 79).
12.
Com as devidas mudanças, poderia dirigir-se a Carl Degler e autores afins o
comentário de Lévi-Strauss a respeito de Sartre, o qual se "resigna a
situar uma humanidade atrofiada e deformada' no campo do humano, mas não sem
implicar que esse lugar não lhe é devido por direito próprio, sendo antes
decorrente da sua adoção pela humanidade histórica, seja através da
internalização, dentro do contexto colonial, da história dessa última pela
primeira, seja por causa da própria Antropologia, através da qual uma
humanidade concede à outra o dom da inteligibilidade. De qualquer modo, Sartre
deixa fora do esquema toda uma prodigiosa riqueza de hábitos, crenças e
sistemas sociais. É preciso muito egocentrismo e ingenuidade para que se
acredite que o homem se refugiou em um único dos modos históricos e geográficos
de sua existência, quando a verdade reside no conjunto das sua diferenças e
propriedades comuns" (Lévi-Strauss 1962: 329).
13.
Pela ênfase que atribui aos valores e atitudes da população negra com relação
à atividade econômica ' e, para Florestan Fernandes, em um ethos inadequado ao
desenvolvimento do capitalismo encontra-se a causa imediata do atraso do negro
' o paulista tem também alguma coisa que o aproxima de Max Weber e de Werner
Sombart. Da ênfase a valores, atitudes e predisposições psicossociais, surge
logicamente a questão do surgimento da classe empresarial. Portanto, não causa
espanto que também da escola paulista de Sociologia, e presumivelmente da
proximidade do próprio Florestan, tenha surgido o trabalho de Juarez Brandão
Lopes sobre o empresário industrial no Brasil (Lopes 1965). Paradoxalmente,
talvez não seja Florestan Fernandes que melhor represente seu próprio
paradigma, de inspiração fundamentalmente marxista, para o entendimento das
relações raciais no Brasil, mas outro sociólogo dele muito próximo, ao menos
durante algum tempo. Penso no autor de As metamorfoses do escravo, isto é,
Octavio Ianni (1988).
14.
Muitos brasileiros, sobretudo os mais velhos, poderão achar o contraste
esboçado por Florestan Fernandes entre a industriosidade dos imigrantes e a
altivez dos negros exagerado e condescendente, já que esses brasileiros, quer
de São Paulo quer de outras áreas, lembram que atividades como engraxate e
vendedor de peixe ou de jornais eram, e provavelmente ainda são, freqüentemente
exercidas por negros.
15.
Vida, forma e cor
é, como se sabe, o título de um livro de Gilberto Freyre (1962).
16.
Mas vale a pena registrar a crítica desfavorável que René Ribeiro lhes
dispensa em Antropologia da religião (Ribeiro 1982), bem como o severo
tratamento que os raciocínios de Hasenbalg, ou inspirados no paradigma de
Hasenbalg, recebem de Marvin Harris e associados (Harris et al.1993).
17.
Os autores de The bell curve(Herrnstein & Murray 1994) partem exatamente
da mesma constatação, isto é, da desigualdade persistente.
18.
Entre outros muitos livros e artigos, Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni escreveram em conjunto Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960).
19.
O pressuposto fundamental e implícito de Hasenbalg e de outros aderentes do
mesmo paradigma parece ser a concepção, ou mesmo a paixão, da igualdade
abstrata, independentemente de circunstâncias concretas de cultura e
experiência histórica. Não serei eu o primeiro a perguntar por que os negros '
ou os brancos ' do Brasil (ou da África, de Cuba ou dos Estados Unidos)
estariam obrigados, em nome dessa noção abstrata de igualdade (bem como de uma
noção orto-históricade desenvolvimento e progresso), a internalizar valores e
atitudes associados ao desenvolvimento capitalista. De acordo com esse
extremado igualitarismo, os indivíduos, e mesmo as etnias, deveriam representar
exatos espelhos uns dos outros. Passam por aí questões de filosofia da história
que não podem ser totalmente explicitadas, muito menos resolvidas, no contexto
deste artigo. Note-se ainda que muitas desigualdades certamente haveriam de
surgir se se comparassem, quanto a renda, educação, expectativa de vida,
habitação etc., os brasileiros brancos repartidos entre os que têm sobrenomes
portugueses, italianos, sírio-libaneses, alemães e outros, sem que se pudesse
concluir que tais desigualdades se devessem aos "efeitos de práticas
discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais".
20.
Em sentido estrito, Kulturkampfsignifica a disputa, a partir da década de
1870, entre a Alemanha Imperial ' ou entre alguns dos Estados que a constituíam
(sobretudo a Prússia) ' e a Igreja Católica pelo controle de escolas e
seminários, a nomeação de professores de Teologia para as universidades, a
regulamentação dos casamentos etc. (Kupisch 1960). Mas os motivos reais dessa
disputa eram bem mais profundos e se prendiam à grande luta entre a Reforma e a
Contra-reforma. Se os problemas imediatos que suscitaram o Kulturkampfse
resolveram dentro de poucos anos, para contento da Igreja, no sentido amplo é
altamente duvidoso que ele ou seus equivalentes, na Alemanha ou em outros
países ' inclusive latino-americanos ', tenha já terminado.