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National varietyBr
Year2000
SourceScielo

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Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil

Introdução É possível reconhecer três paradigmas principais no estudo das relações raciais no Brasil, relacionados, respectivamente, aos trabalhos de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg. Esses paradigmas também foram usados por outros estudiosos, em razão de possuírem prolongamentos fora do Brasil, influenciando e sendo influenciados por intérpretes estrangeiros, principalmente americanos. Assim, como veremos, autores de tanto destaque quanto Marvin Harris e Carl Degler são, cada um à sua maneira e apesar de tudo que possam dizer em contrário, seguidores do modelo de Gilberto Freyre. Na verdade, grande parte da disputa sobre o tema deriva menos da constatação dos fatos (isto é, do teste ou da "falseação" de hipóteses) que de pressupostos sobre as condições necessárias para que, do ponto de vista da filosofia da história, o desenvolvimento dos países possa ser aceito como válido.1

Freyre, Harris e os morenos O pensamento de Gilberto Freyre sobre raça e cultura no Brasil pode ser resumido na seguinte citação, retirada de Casa-grande & senzala: Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e sentimentos.[...] Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, quase de família entre os santos e os homens que, das capelas patriarcais, das casas-grandes, das igrejas sempre em festas ' batizados, casamentos, festas de bandeira dos santos, crismas, novenas ' presidiu o desenvolvimento social brasileiro. Foi esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e a cultura brasileira [...] A religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização entre as duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível e dura barreira. [...] A liberdade do escravo de conservar e até de ostentar em festas públicas [...] formas e acessórios de sua mítica, de sua cultura fetichista e totêmica, bem idéia do processo de aproximação das duas culturas no Brasil (Freyre 1980: 355-6).

Segundo Gilberto Freyre, em função do tipo de cristianismo2 prevalecente entre os portugueses3, as raças no Brasil tenderam a se fundir em uma comunidade emocional e religiosa. Essa opinião suscitou tanto aplausos entusiásticos quanto ferrenha oposição. Alguns dos adversários mais implacáveis de Gilberto, entretanto, não obstante rejeitem sua concepção do desenvolvimento histórico, estão de acordo com ele quando se trata de descrever o sistema brasileiro de relações raciais. Esse é o caso de Marvin Harris, para o qual É incorreto dizer-se que a identidade racial, no Brasil, depende da aparência e do comportamento das pessoas, pois a percepção da aparência e do comportamento parece estar influenciada por fatores obscuros e mesmo invisíveis. Tem sido amplamente observado que a identificação racial é consideravelmente influenciada pelo nível educacional e econômico quer do informante, quer do indivíduo que está sendo classificado. Pessoas de fenótipo caucásico vêem-se identificadas em termos teoricamente apropriados para a parte mais negróide do espectro das cores (Harris & Kottak 1963: 204).

Desprovida de distinções de castas fundamentadas em identidades raciais, as estruturas sociais do Brasil, na prática, não implicam em uma grande competência intersubjetiva no que se refere a taxinomias raciais (Harris 1970: 12).

Passagens substancialmente idênticas poderiam ser retiradas da obra de Harris4 desde a publicação de Town and country in Brazil (1956), seu primeiro trabalho sobre o tema, resultante, como tantos outros, da famosa pesquisa sobre relações raciais no Brasil patrocinada pela UNESCO. O fato é que, para Harris, "no Brasil, a pessoa, por mais escura que possa ser, pode mudar de categoria racial sem sequer mudar de residência. Basta ter sucesso econômico e atingir um alto nível de educação" (Harris 1964a: 59). Para ele, sendo a raça funcionalmente irrelevante (ao menos relativamente irrelevante) na fixação do status econômico, educacional ou social dos indivíduos, segue-se que os termos que a designam não podem como precisamser ambíguos e imprecisos, expressando uma vivência igualmente ambígua e imprecisa.

Gilberto Freyre, em outras e às vezes com as mesmas palavras de Marvin Harris, pensa o mesmo. Tomemos o caso de moreno 5, de que Gilberto tratou na introdução a New world in the tropics(Freyre 1959), livro muitas vezes citado e criticado por Marvin Harris: Existe elevado número de homens de cor nas repartições públicas, embora a proverbial cortesia brasileira prefira designá-los não como "negros" (como são chamados nos Estados Unidos indivíduos praticamente nórdicos com apenas uma gota de sangue africano nas veias), mas sim como "morenos", ou seja, pessoas de pele mais ou menos escura. Mesmo durante o Império, grande número de notáveis estadistas, membros do Gabinete Imperial e do Senado do Império, diplomatas, juizes e deputados, eram "morenos" (Freyre 1971: 67-8; tradução de Freyre 1959: 10).

Resumindo o tratamento do tema com o qual lidou ao longo de praticamente toda a sua obra, Gilberto dedicou uma de suas publicações em língua inglesa exatamente ao emprego da palavra moreno, cuja ambigüidade mostraria a reduzida importância das classificações raciais na sociedade brasileira. Trata-se do opúsculo The racial factor in contemporary politics, de 1966, no qual, entre outras coisas, disse que Não é difícil entender por que, no Brasil, o emprego, atualmente muito flexível ou elástico, da palavra moreno veio a ser um dos eventos semântico-sociológicos que mais caracterizaram o desenvolvimento da América Portuguesa como de uma sociedade cuja composição multirracial cada vez mais vem a ser aquilo que um inventor de neologismos talvez se atrevesse a descrever como meta- racial. Isto é, uma sociedade na qual em vez da preocupação sociológica com a caracterização minuciosa de tipos intermediários ou de matizes entre branco e preto, branco e vermelho, branco e amarelo, a tendência é, ou começa a ser, para aqueles que, sendo membros da sociedade ou comunidade brasileira, não são completamente brancos, ou completamente pretos, ou completamente vermelhos, ou completamente amarelos, de serem descritos, ou de considerarem-se a si mesmos quase sem discriminação, como "morenos".[...] A mesma palavra vem tendo um emprego sociológico flexível e biologicamente elástico ' tão elástico que mesmo negros retintos ["black negroes"] são atualmente descritos, no Brasil, como morenos (Freyre 1966: 14).

E arrematou declarando que "O uso atual da palavra moreno mostra como um número reduzido de pernósticos, no Brasil, toma a atitude de se considerar, a si próprios ou a seus compatriotas, do ponto de vista biológico ou sociológico, brancos puros, representantes no Brasil, de cultura puramente européia" (Freyre 1966: 27).

O acordo implícito entre Freyre e Harrris se confirma no artigo que este publicou (com associados) em 1993, sob o título de "Who are the whites?" .

Tal como o opúsculo de Freyre, esse artigo se encontra essencialmente voltado para o uso brasileiro da palavra "moreno".O parágrafo inicial demonstra a convergência de opiniões: Quando, no recenseamento, moreno é usado em vez de pardo, a proporção de respondentes que se identifica como sendo de raça-cor misturada [isto é, como morenos] aumenta, ao mesmo tempo que ocorre uma diminuição substancial dos que se identificam como brancos ou pardos.

Tais resultados demonstram o erro de querer-se impor ao resto do Hemisfério categorias rigidamente dicotômicas (brancos/não brancos) ou tricotômicas (brancos/mestiços/negros) tidas como adequadas para representar a identidade racial nos Estados Unidos (Harris et al.

1993: 451).

É um texto que, com certas modificações estilísticas e menos uso de cálculos estatísticos por vezes complicados, poderia ser assinado por Gilberto Freyre, do qual Harris, em quase tudo mas sem jamais o declarar, revela-se fiel discípulo6. Muito gilbertiana ' vêm-me logo à mente artigos de Gilberto publicados em jornais na década de 1970, alertando para as tentativas de certas fundações estrangeiras de introduzir no Brasil padrões e políticas raciais copiados da América do Norte ', a conclusão do artigo declara que: Os cientistas sociais devem pesar cuidadosamente o efeito de tentar medir a discriminação no Brasil pela imposição de categorias de raça- cor emicamente inválidas provenientes do sistema de castas raciais dos Estados Unidos. Concebe-se geralmente que a discriminação fere os direitos civis. Mas é também matéria de direitos civis que os indivíduos possam classificar-se a si mesmos e a seus filhos de acordo com seu próprio sentimento de identidade. Pode ser que o Brasil não esteja mais próximo da democracia racial que outros países, mas seu sistema de estabelecer identidades raciais tem muitas características das quais o resto do mundo tem muito o que aprender (Harris et al. 1993: 459).

Para usar as palavras de Claude Lévi-Strauss (1985: 115), entre Gilberto Freyre e Marvin Harris "não são as semelhanças, mas as diferenças que se parecem". O primeiro diz que existe, no Brasil, uma "democracia étnica": O segredo do sucesso do Brasil em construir uma civilização humana, predominantemente cristã e crescentemente moderna, na América tropical, vem da capacidade brasileira em transigir. Enquanto os ingleses, mais que qualquer outro povo, possuem tal capacidade na esfera política[...] os brasileiros vêm conseguindo ainda maiores triunfos, aplicando essa capacidade à esfera cultural e social, na maior amplitude. Daí sua relativa democracia étnica: a ampla, embora não perfeita, oportunidade dada no Brasil a todos os homens, independente de raça e cor, para se afirmarem brasileiros plenos (Freyre 1971: 4-5; tradução de Freyre 1959: 7-8)7.

Essa invejável situação de harmonia racial encontra-se porém sujeita a certas restrições: Não que inexista preconceito de cor ou de raça juntamente com preconceitos contra a mistura de classes no Brasil. Existe. Mas ninguém pensaria em ter igrejas somente para brancos, assim como não pensaria em leis contra os casamentos inter-raciais; ou em banir os negros dos teatros ou bairros residenciais de uma cidade. O espírito generalizado de fraternidade humana é mais forte entre os brasileiros do que os preconceitos de raça ou de cor, de classe ou de religião. É verdade que a igualdade racial nem é perfeita no Brasil nem se tornou absoluta com a abolição da escravidão, em 1888.[...] Evidentemente não existe paraíso na terra. Mas, quanto às relações raciais, a situação brasileira provavelmente é a que mais se aproxima daquilo que se imagine como um paraíso nesse setor. A felicidade brasileira, contudo, é relativa, pois para a maior parte da população brasileira persistem, senão a miséria, a pobreza, e uma série de doenças (Freyre 1971: 5; tradução de Freyre 1959: 8).

para Marvin Harris não existe democracia racial ou étnica no Brasil.

Contudo, sua não-democracia, de modo simetricamente inverso à democracia de Gilberto, está sujeita a muitas restrições: De maneira geral uma gradação idealizada na qual os brancos ocupam o extremo favorável, os negros o extremo desfavorável e os mulatos as posições intermediárias. Mas esses fenômenos ideológicos não afetam seriamente o comportamento real. O que as pessoas dizem que vão fazer ou que não vão fazer não repercute no comportamento real. De fato, se tem observado que brasileiros extremamente preconceituosos comportam-se com pronunciada deferência com relação a representantes dos grupos que dizem ser os mais baixos. Ou, em outras palavras, o preconceito racial no Brasil não resulta em segregação racial e discriminação sistemáticas. O motivo deste paradoxo é claro. Apesar dos estereótipos idealizados, não um papel ou umstatus [status- role] para o negro enquanto negro, ou para o branco enquanto branco, ou para o mulato enquanto mulato. Não grupos raciais. [...] É a classe da pessoa e não a raça que determina a adoção de atitudes de subordinação e sobreposição entre determinadas pessoas no relacionamento direto. É a classe que determina quem será admitido em hotéis, restaurantes e clubes; quem receberá tratamento preferencial em lojas, igrejas, boates e veículos; e quem terá maiores oportunidades em um grupo de pretendentes ao casamento. Não grupos raciais contra os quais se exerce discriminação. , sim, grupos de classe. [...] A discriminação de raça é em si suave e imprecisa; a discriminação de classe produz desvantagens e desigualdades de caráter agudo, persistente e onipresente (Harris 1964a: 60-1).

Harris também usa a metáfora do paraíso para, em palavras aparentemente diferentes (e politicamente mais corretas), destacar que o problema no Brasil é mais de classe que de raça: Que aqueles que consideram o Brasil como um "paraíso racial" lembrem-se de que esse paraíso está ocupado apenas por criaturas ficcionais. Os homens e mulheres da realidade na Bahia não são membros de raça exceto enquanto de qualquer conjunto de seres humanos pode-se dizer que tem uma identidade racial objetiva. No que diz respeito ao comportamento real, não existem "raças" para os brasileiros. Mas existem classes tanto para o observador como para os brasileiros (Harris 1964a: 64).

Assim se torna patente que, em substância, Harris concorda com Freyre até mesmo no emprego "semântico-sociológico" da palavra moreno. Em questões de estilo, ele se conserva a uma distância prudente e politicamente correta do autor brasileiro, o que não o impede de, juntamente com o próprio Freyre, ser um dos campeões do paradigma da morenidade.

Relações raciais e correção histórica Penso que dificilmente se pode chamar de exagerada a grande influência de Harris sobre outros estudiosos, tanto brasileiros quanto norte-americanos.

Entre eles, destaca-se Carl Degler ' seu livro Nem preto nem branco: escravidão e relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos (1976) goza da reputação de ser um clássico dentro dessa temática. Ora, eu mesmo me espanto da facilidade com que descubro em Degler um dos mais acirrados closet Freyreans de minha lista, embora ele não o admita nem por todo o ouro do mundo. É o vocabulário de Degler o que, muitas vezes, o aproxima de Gilberto. Sua expressão mulatto escape hatch, que podemos traduzir como saída de emergência do mulato (saída sem dúvida suficientemente espaçosa para que por ela escape a maior parte do povo brasileiro), tem todo o jeito de ter sido expressamente inventada como uma saída de emergência para gilbertianos não se sabe por que envergonhados.

Efetivamente, penso que Degler é, juntamente com Marvin Harris, um dos gilbertianos mais ortodoxos que se pode encontrar em toda a vasta literatura sobre relações raciais no Brasil e nas Américas. Senão, vejamos. Tudo bem pensado, "nem preto, nem branco" vem a ser equivalente primeiro do título de um dos artigos de Harris, "ambigüidade referencial no cálculo da identidade racial" (Harris 1970) e, de fato, do próprio termo moreno, entendido por Gilberto Freyre exatamente como nem preto nem branco e adotado em seguida por Marvin Harris.

Na realidade, Freyre, Harris e Degler, apesar de diferirem no vocabulário, concordam em atribuir caráter meta-racial à sociedade brasileira. De acordo com o pensamento dos três, as identidades raciais teriam importância limitada na atribuição de papéis e de status, e tenderiam a ser englobadas e confundidas em termos como morenoou nem preto,nem branco. Ora, é precisamente a confusão de identidades raciais que constitui a essência do primeiro paradigma reconhecido neste trabalho, e que pode ser denominado paradigma da morenidade.

Entretanto, apesar de seu acordo quanto à meta-raça, os autores divergem de modo às vezes agudo a respeito das explicações propostas para o que supõem representar uma realidade incontestável. Existe forte oposição sobretudo entre, de um lado, Gilberto Freyre e, do outro, Marvin Harris e Carl Degler, cujos trabalhos desde o princípio tiveram a intenção de refutar a interpretação do Brasil proposta por Gilberto. O que se pretende destacar neste artigo é que, na raiz dessa divergência, encontra-se toda uma filosofia da história e da cultura. Nas concepções de Harris e Degler podemos reconhecer dois grandes componentes. Em primeiro lugar, uma concepção materialista da história, privilegiando fatores de caráter ecológico, tecnológico, econômico e demográfico. Assim é que, de acordo com Marvin Harris: Embora a grande plantação escravocrata[em todas as partes das Américas] tenha tido efeitos marcadamente os mesmos, independentemente dos antecedentes culturais de escravos ou senhores, o ambiente natural, demográfico e institucional com que a escravidão se articulou esteve muito longe de ser o mesmo. É dever de todos que desejam explicar a diversidade no relacionamento das raças, no Brasil e nos Estados Unidos, voltarem-se em primeiro lugar para explicações materiais (Harris 1964a: 81).

Conseqüentemente, Harris está convencido de que se tratou essencialmente de um problema de mão-de-obra: o número de portugueses capazes de vir para o Brasil era tão pequeno que os conquistadores "viram-se forçados a criar um grupo livre, composto de mestiços, para servir de intermediário entre eles e os escravos, pois havia certas funções essenciais, de caráter econômico e militar, para as quais o trabalho escravo não se prestava e não havia número suficiente de brancos" (Harris 1964a: 86-7).

Encontramos na obra de Carl Degler, entre outros ingredientes, uma versão substancialmente idêntica da primazia atribuída a fatores ecológicos, econômicos e demográficos: Nem a Igreja nem o Estado no Brasil revelaram qualquer preocupação profunda no que diz respeito à condição humana do escravo e, de qualquer forma, nenhum dos dois usou sua autoridade para influir de maneira significativa na vida do escravo[...]. Mesmo quando a Coroa portuguesa procurou dar alguma proteção ao negro, como ser humano, nem sempre era obedecida pelos senhores brancos. As explicações mais convincentes para essas diferenças [entre os padrões da escravidão e das relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos]talvez sejam as de desenvolvimento demográfico e econômico e as circunstâncias geográficas nos dois países (Degler 1976: 101).

Contudo, para empregar aqui a sentença de Oscar Wilde, "a verdade raramente é pura, e nunca simples". Mesmo quando destacam fatores ecológicos e econômicos, mesmo quando rejeitam o "mito do bom senhor"8, Harris e Degler não necessariamente contradizem Freyre, que o autor brasileiro não recusou explicações de caráter "material".

Embora não os pretendesse únicos, Gilberto Freyre não rejeitou a consideração de fatores econômicos e demográficos, e assim declarou que: Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico[...] temos de admitir a influência considerável, embora nem sempre preponderante, da técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades: na caracterização da sua fisionomia moral[...]. No Brasil, as relações entre os brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica ' a monocultura latifundiária; do outro pela escassez de mulheres brancas entre os conquistadores (Freyre 1980: LVIII-LIX).

O segundo e principal componente da oposição teórica a Gilberto Freyre está no que se pode chamar de concepção ortogenética do progresso. Trata-se do postulado do desenvolvimento unlinear do processo histórico, compartilhado, apesar das diferenças existentes entre eles, pelo idealismo de Hegel, o materialismo de Marx e a sociologia histórica de Weber. Simplificando os termos, o problema é o seguinte: como é possível a um país subdesenvolvido como o Brasil apresentar maior sucesso adaptativo na coexistência (desde que se aceite essa coexistência como sucesso adaptativo), na interpenetração racial e cultural, que outros países, supostamente situados na vanguarda do desenvolvimento econômico e social?9 Carl Degler oferece um exemplo arquetípico dessa concepção ortogenética: Como em Portugal, a mãe-pátria, faltava ao Brasil a concepção do valor moral do trabalho que vem sob o rótulo de "ética protestante". Não é que os brasileiros não trabalhassem, pois na verdade as circunstâncias impeliam a maioria deles ao trabalho.

10 As diferenças no relacionamento racial do Brasil e dos Estados Unidos surgiram das muitas diferenças entre uma sociedade dinâmica, competitiva, protestante e socialmente móvel e uma que era estável, tradicional, hierárquica e católica (Degler 1976: 255-6).

Quero destacar a aparente inconsistência da passagem que acabei de citar, derivada da importância que Degler pretendeu atribuir aos fatores materiais e a ênfase que agora coloca em causas éticas e religiosas. Sua mensagem essencial, formulada em termos de Hegel, Marx, Weber e Parsons, consiste em reivindicar para um determinado modelo de sociedade e cultura a primazia sobre outros modelos e, portanto, achar que um determinado paradigma11 de interpretação histórica é melhor que outros. Existiria uma história normativa (ou orto- história) à qual as outras histórias deveriam se conformar ' o que não se encontra distante da atitude racista, que reconhece atrofias e deformações do humano nos povos e sociedades considerados subdesenvolvidos, atrasados ou primitivos.12 É igualmente incoerente apresentar o Brasil como "estável, tradicional, hierárquico e católico" e, ao mesmo tempo, tão propenso a usar a "saída de emergência do mulato".

Entretanto, apesar de suas suposições teóricas tão diferentes ' ou, talvez melhor, apesar do que supõem estarem supondo ', Gilberto Freyre, Marvin Harris e Carl Degler chegam às mesmas conclusões. Convergem para o paradigma da morenidade, de acordo com o qual as classificações raciais, ou a percepção das diferenças raciais, tende a ser irrelevante na formação social brasileira, devido a fatores de caráter religioso, demográfico ou ambos. Como se destacou, vê-se que, atentamente consideradas, a palavra moreno, de acordo com Freyre e com certos textos recentes de Harris; a locução ambigüidade referencial no cálculo da identidade racial, de acordo com um artigo mais antigo de Harris; e a saída de emergência do mulato, de Degler, levando ao surgimento de uma população morena ou, em termos mais estritamente deglerianos, nem preta nem branca, significam muito aproximadamente a mesma coisa.

Florestan Fernandes e a democracia racial A primeira homenagem que rendo a Florestan Fernandes é ao seu espírito de sistema; seu como que cartesianismo, buscando operar através de conceitos o mais possível claros e distintos. Mais claros e mais distintos, diga-se de passagem, que os de Roger Bastide, que foi seu mentor e que, talvez melhor que ninguém na história das ciências sociais da França e do Brasil, parece ter compreendido as vantagens das penumbras cognitivas e conceptuais.

Florestan Fernandes é muito diferente de Gilberto Freyre, em que domina uma intuição mais de artista que de cientista. Para Gilberto, a linha reta não é a menor distância entre dois pontos, ou pelo menos ele jamais parece seguir essa hipotética linha reta, escrevendo com linhas muito sinuosas. De Florestan eu diria justamente o contrário: mesmo quando porventura escreve errado, usa linhas retas.

Para ir diretamente ao essencial, pode-se dizer, de uma maneira, temo, um tanto simplificada demais, que para Florestan não existem relações propriamente de raça, mas de classe, as quais, em determinadas circunstâncias, assumem a forma de relações de raça. Racismo, racialismo ou como quer que o chamemos corresponderiam, em termos paretianos que Florestan não adota, a simples derivações. O resíduo, o núcleo, a essência são os conflitos de classe baseados em determinado sistema econômico, que Florestan raramente ou nunca denomina explicitamente modo de produção.13 Tentarei, como fiz com o Pernambucano, resumir o pensamento do Paulista em uma citação: São Paulo constituía [...] uma das cidades brasileiras menos propícias à absorção imediata do elemento recém-egresso da escravidão. [...] São Paulo aparecia como primeiro centro urbano especificamente burguês. Não prevalecia entre os homens uma mentalidade marcadamente mercantil, com seus corolários característicos ' o afã do lucro e a ambição do poder pela riqueza; pensava-se que o "trabalho livre", a "iniciativa individual" e o "liberalismo econômico" eram os ingredientes do "Progresso", a chave que iria permitir superar o "atraso do País" e propiciar a conquista dos foros de "Nação civilizada" pelo Brasil. Os móveis das ações, os comportamentos e a própria personalidade dos agentes econômicos conformavam-se, de modo cada vez mais profundo, pelos padrões típicos do empresário e do trabalhador livre da civilização capitalista. Nesse clima o negro encontrava boa acolhida: enquanto "escravo insubmisso", que fugia da senzala e se rebelava contra a escravidão (no período final de desagregação do regime servil); enquanto se abrigava como "protegido", "dependente" ou "cria da família", sob o manto das relações paternalistas. [...] Fora e acima disso, surgia como uma pessoa deslocada e aberrante no cenário tumultuoso que se forjava graças à "febre do café".

Mesmo quando conseguia inserir-se no sistema citadino de ocupações, ele não se polarizava na direção do futuro e, assim, não "engrenava". Faltava-lhe coragem para enfrentar ocupações degradantes, como os italianos que engraxavam sapatos, vendiam peixes e jornais etc.; 14 não era suficientemente "industrioso" para fomentar a poupança, montando-a sobre uma miríade de privações aparentemente indecorosas, e para fazer dela um trampolim para o enriquecimento e o "sucesso"; carecia de meios para lançar-se às pequenas ou às grandes especulações, que movimentavam os negócios comerciais, bancários, imobiliários e industriais; e, principalmente, não sentia o ferrete da ânsia de poder voltado para a acumulação da riqueza.

[...] Doutro lado, as deformações introduzidas em suas pessoas pela escravidão limitavam sua capacidade de ajustamento à vida urbana, sob regime capitalista, impedindo-os de tirar algum proveito relevante e duradouro, em escala grupal, das oportunidades novas (Fernandes 1978: 19-20).

Pode-se dizer que, para Florestan, o preconceito de raça é ilusório, uma vez que, bem examinado, reduz-se a um simples preconceito de classe, ou melhor, à sobrevivência de ideologias ou atitudes que, no passado, decorreram de relações de classe e subsistem no presente por força de certa inércia cultural ' apesar de Florestan não ter feito (que eu me lembre) apelo explícito nem a esse nem a outros conceitos de William Ogburn, como o de hiato, atraso ou defasagem cultural (cultural lag).

Não existe, e dentro da sociologia racionalista e progressista de Florestan Fernandes nem poderia existir, lugar para relações de raça propriamente ditas.

Note-se que o homem que, de maneira mais ou menos implícita, apresenta-se como um dos maiores adversários do conceito de "democracia racial" tal como certa ou erradamente é atribuído a Gilberto Freyre é, de certo modo, um defensor ainda mais radical desse conceito por, paradoxalmente, negar-lhe qualquer existência autônoma.

Desse ponto de vista, o contraste mais marcado talvez não seja o que se pode estabelecer entre Gilberto e Florestan, mas entre Florestan e Louis Dumont, um autor que se ocupou muito pouco do Brasil e que, em Homo hierarchicus(1967), derivou o conceito de casta de um contraste a priori ' isto é, anterior a determinações sociais ou econômicas ' entre o puroe o impuro, ou, na famosa formulação de Mary Douglas (1991), entre purezae perigo. Florestan, entenda-se bem, fala em castas e até mesmo em sociedade de castas, mas em sentido completamente diferente do de Dumont. Para o Paulista, a sociedade de castas é uma sociedade de classes mais rígida, fundamentada em certas relações de produção, na qual pouco ou nenhum espaço para mudança ou mobilidade; é a sociedade pré-capitalista, com sua própria base econômica e, mesmo em versão brasileira, apresentando muitas semelhanças com o regime feudal da Europa medieval. Gilberto, por reconhecer a existência autônoma do que por ora chamaremos preconceito de raça' embora o considere fraco ou inexistente no colonizador português, em função de sua "singular predisposição para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos", explicada, "em grande parte", por "seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África" (Freyre 1980: 5) ', encontra-se de certo modo mais distante do projeto talvez utópico de uma democracia racial que Florestan, que parece repelir esse conceito com horror.

Retomemos o ponto de partida, o fio de Ariadne através desse labirinto de autores e teorias, voltando à idéia de orto-história. Essencialmente, essa idéia nãoexiste na perspectiva de Gilberto. Enquanto Florestan a igualdade racial como uma grande conquista do futuro, para Gilberto ela ou existe ou nunca existirá. A idéia de Tropicologia, com esse ou outros nomes, perpassa a obra de Gilberto Freyre desde o princípio, uma vez que ele desde o começo lida com algumas poucas intuições em torno das quais passou toda a vida refletindo, sem jamais querer, ou conseguir, reduzi-las a conceitos claros e distintos como os do cartesiano Florestan.

Em outras palavras, o Pernambucano está muito longe de admitir a superioridade da civilização capitalista, isto é, "do preto, do pardo, do cinzento, do azul escuro da civilização carbonífera" (Freyre 1961: 311) sobre a "vida, a forma, a cor"15 da civilização tropical. Nesse ponto não se enganaram os que perceberam a desconfiança de Gilberto com relação à idéia de progresso, que eu não sei se lhe chegou através de contatos diretos ou indiretos com Charles Maurras, Régis de Beaulieu ou outros membros da Action Française(seria preciso um ensaio monográfico para dirimir a dúvida) ou se se trata de simples convergência, da mesma atitude de defesa de membros de culturas ameaçadas, a luso-tropical ou a franco-católica, diante de imperialismos associados a germânicos ou anglo-saxãos, isto é, à cultura da modernidade. Quanta, mas quanta coisa, ainda precisa ser escrita sobre Gilberto Freyre!

Da desigualdade à discriminação O terceiro paradigma aqui identificado encontra-se associado a Carlos Hasenbalg. Considero Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979) um trabalho pioneiro. Sua tese básica está expressa em muitos trechos (: 20, 24, 61, 76, 85, 211, 221 etc). Na impossibilidade de citá-los todos, escolho a conclusão do capítulo VII, o mais importante de todo o livro, intitulado "Mobilidade social, desigualdade de oportunidades e raça" (: 197- 221): "Devido aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais, os não-brancos têm oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos da mesma origem social. Por sua vez, as realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos ocupacionais e de renda proporcionalmente menores que os dos brancos" (: 221).

Segue-se daí o corolário político: "Se os processos de competição social calcados no mecanismo de mercado envolvido no processo de mobilidade social individual operam em detrimento do grupo racialmente subordinado, então o enfoque da análise deve se orientar para as formas de mobilização política dos não-brancos e para o conflito inter-racial" (idem).

Não pretendo questionar a validade dos dados demográficos e estatísticos de que Hasenbalg faz uso nesse e em outros de seus trabalhos, tanto mais que é matéria de senso comum a constatação de que os "brancos" (como quer que os definamos) se encontram, em todas as partes do Brasil, em faixas sociais, econômicas e educacionais superiores às dos "não-brancos". Supondo correto o emprego dos dados demográficos16, restam ainda, antes que se possa concordar com as conclusões do autor, alguns problemas de primeira grandeza. A ser verdade que os "não-brancos têm oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos da mesma origem social" e que "as realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos proporcionais e de rendas proporcionalmente menores que os dos brancos", não será ainda metodologicamente legítimo passar à conclusão de que isso se deve "aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais". Faltam premissas a essa tentativa de demonstração.

Tal argumentação, pretendendo deduzir a discriminação a partir da desigualdade17, possuiria a cogência de uma verdadeira demonstração científica, ou ao menos a plausibilidade de uma boa hipótese popperianamente falseável, se,e somente se, o autor que a propõe cuidasse de substanciá-la, descrevendo ou ao menos indicando, de maneira próxima ou remotamente observável, quais são, como, onde e quando operam as "práticas discriminatórias sutis" e os "mecanismos racistas mais gerais" a que alude. Seria também preciso que apontasse atores mais concretos que "os brancos", isto é, dissesse quais brancos, em quais circunstâncias, exercem as "práticas"e põem em ação os "mecanismos" a que se refere. E como, até onde eu tenha tido conhecimento, não o faz em ponto algum de sua obra, como não constrói a mediação que levaria à conclusão da discriminação partindo da premissa da desigualdade (esta, poderíamos conceder, baseada em verificações empíricas), parece-me legítimo concluir que essa obra, sem dúvida densa e provocante, opera com um non sequitur, com uma inconseqüência que representa um begging the questionou, como se diz em bom vernáculo, petição de princípio, tratando como evidente justamente o que devia demonstrar.

Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes concordam na rejeição do paradigma luso- tropicalista de Gilberto Freyre, mas são diferentes um do outro. destacamos que não , e nem pode haver, dentro da perspectiva progressista do Paulista, lugar para o preconceito de raça propriamente dito, isto é, que não signifique um resíduoda ordem escravocrata. A perspectiva marxista do homem como produtor impede, para Florestan, o eventual reconhecimento da atuação de forças primariamente qualitativas na estrutura e na história das sociedades. A percepção a priori ' o preconceito ' do Diferente, do Outro, do Negro como intrinsecamente poluente para o Branco, ou, em outros termos, a dicotomia purezae perigo,escapa a Florestan e tudo indica que escape (apesar de Eugene Genovese) à toda visão da sociedade como essencialmente fundada sobre forças produtivas, com exclusão de outras forças ou valores.

O principal livro de Hasenbalg (1979) contém muitos elementos polêmicos voltados contra a Escola Paulista representada por Florestan e discípulos, entre os quais se destacam Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso18, e que é muito claramente o alvo de passagens como esta: vinte ou vinte e cinco anos considerava-se a sociedade brasileira dividida por um dualismo estrutural, entre instituições e padrões de relações sociais arcaicos e modernos. Os componentes tradicionais da sociedade (e a conseqüente degradação das massas, inclusive da população de cor) seriam o resultado da herança da plantação escravista, da monocultura de exportação e da preservação de uma estrutura agrária anacrônica. Apesar disso, na "intelligentzia" e nos grupos sociais progressistas prevalecia uma atitude otimista quanto ao futuro. De acordo com essa visão, o desenvolvimento econômico ulterior, juntamente com as reformas estruturais estabelecidas nos marcos de uma política nacionalista e desenvolvimentista, resultariam finalmente na integração econômica e social das massas até então excluídas. Os brasileiros de cor seriam incorporados nesse processo (Hasenbalg 1979: 19-20).

[Uma] forma de ligar o passado escravista ao presente consiste em interpretar as relações sociais contemporâneas como área residual de fenômenos sociais resultantes da sobrevivência de padrões "arcaicos" ou "tradicionais" de relações intergrupais. [...] A suposição subjacente a essa interpretação é que apesar da abolição do escravismo, uma inércia histórica perpetua os padrões tradicionais de comportamento inter-racial. Visto que esses padrões não são funcionalmente exigidos pela nova estrutura, eles deverão se atrofiar. Conseqüentemente, o racismo e as desigualdades raciais eventualmente desaparecerão. [Mas] foi sugerido que: (a) a discriminação e o preconceito raciais não são mantidos intactos após a abolição mas, pelo contrário, adquirem novos significados e funções dentro das novas estruturas e (b) as práticas racistas do grupo dominante branco que perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da desqualificação competitiva dos não brancos (ibid.: 85).

Se Hasenbalg e seus adeptos são consistentes nessa recusa do racismo como "resíduo", ao mesmo tempo em que consideram que os preconceitos adquiriram "novos significados" e pretendem permanecer em uma perspectiva mais marxista que, digamos, "dumontiana", é tema que vai além do âmbito deste artigo19. Note-se, porém, o caráter volátil e reversível desse paradigma: dando tanta ênfase à desigualdade sem explicitar quais seriam os mecanismos da discriminação, Hasenbalg, talvez não do ponto de vista de suas intenções subjetivas, mas de acordo com a lógica objetiva de seu trabalho, abre as portas para outras interpretações.

Relações raciais e Kulturkampf Meu objetivo vem sendo mostrar como o entendimento das relações raciais, pelo menos no Brasil, está associado a concepções mais gerais do desenvolvimento histórico e mesmo a pressupostos metafísicos. Tenho destacado que a oposição às teses de Gilberto Freyre, sendo muitas vezes questão mais de estilo que de substância, encontra-se ligada ao pressuposto, ora mais latente, ora mais aberto, de uma orto-história, de um único modelo válido de progresso, ao qual o desenvolvimento do Brasil, ou pelo menos a interpretação do desenvolvimento, deve se conformar para poder ser aceito como válido.

O que menos se admite, no autor pernambucano, é ter ousado ' e isso desde seus textos mais antigos ' tomar posição em favor de uma sociedade católica, ibérica, tradicional, com muitos pontos de contato, apesar de seu catolicismo, com a cultura islâmica da África do Norte, que por muitos séculos dominou em Portugal e na Espanha. O grande debate se trava em torno de filosofias da história. Ao paradigma de Gilberto Freyre (cujas conclusões, apesar das divergências manifestas, são latentemente apoiadas por Marvin Harris e Carl Degler) opõe-se um modelo orto-histórico, uma concepção progressista do desenvolvimento, de inspiração marxista ou weberiana (ou ambas ao mesmo tempo), supostamente associada ao advento da mobilidade social e da igualdade racial.

Trata-se, o tempo todo, de uma luta de culturas, um Kulturkampf 20. Durante toda sua vida intelectual Gilberto Freyre se dedicou ao serviço do que ele chamou de "uma cultura ameaçada, a cultura luso-brasileira": Venho contribuindo modesta mas conscientemente[...] para a reabilitação da figura ' por tanto tempo caluniada ' do colonizador português no Brasil; para a reabilitação da cultura brasileira, ameaçada hoje, imensamente mais do que se pensa, por agentes culturais de imperialismos etnocêntricos, interessados em nos desprestigiar como raça ' que qualificam de "mestiça", "inepta", "corrupta" ' e como cultura ' que desdenham como rasteiramente inferior à sua (Freyre 1942: 16-7).

Nesse aspecto, é curioso notar como ele se aproxima de Max Weber, que, também desde a mocidade, fez-se defensor de uma cultura a seu modo ameaçada (e, para Gilberto Freyre, ameaçadora dos valores de culturas ibero-católico-tropicais), isto é, a cultura protestante-liberal, associada aos povos do Norte, alemães, anglo-americanos e holandeses. Em um documento de sua juventude, Weber escreveu que "De acordo com minha estimação, dois poderes, a burocracia estatal [que Weber parece associar ao socialismo] e o clericalismo católico [...] têm o maior poder de colocarem tudo mais a seus pés. Por mais limitadas que sejam minhas forças (mas justamente porque são limitadas), considero como um mandamento da dignidade humana empenhar-me na luta contra esses poderes (Weber apud Mommsen 1985: 165).

Concluirei com rápidas observações. Gilberto Freyre, sem necessariamente desprezar condicionamentos materiais, infra-estruturais ou tecno-ambientais, pretendeu explicar as relações raciais no Brasil principalmente por causas ideológicas, abrangendo fatores muitas vezes sutis, como ethoscultural e atitudes religiosas. Seu paradigma encontrou acirrada oposição por parte de autores partidários de dois pressupostos teóricos, o primeiro dos quais acentua, de maneira unilateral, fatores ecológicos e econômicos, enquanto que o segundo, inspirado em Hegel, em Marx, em Weber como interpretado por Talcott Parsons ou em todos eles, reivindica a existência de uma história normativa, associada, como em Degler, a uma forma de sociedade supostamente móbil, progressista e protestante, à qual todas as outras histórias devem se conformar, como se se tratasse do único modelo válido de desenvolvimento.

Diante de paradigmas em conflito, convém ater-se a alguns princípios básicos de metodologia científica. A elegância e a parcimônia são sem dúvida importantes no processo de demonstração. Mas não as transformemos em mesquinhez.

Procuremos, e se necessário elaboremos, o paradigma capaz da explicação mais abrangente, em vez de sacrificar a evidência empírica à pureza das abstrações.

Notas 1.

Este artigo continua uma reflexão iniciada quase 30 anos, quando, em meus exames de qualificação para o Doutorado na Universidade de Columbia, meus examinadores (entre os quais não estava Harris) ' penso que não sem alguma malícia em relação a gregos e troianos ' me colocaram (entre outras) a seguinte questão: "Draw a parallel between Marvin Harris's characterization of race relations in Brazil (with emphasis on the concept of ambiguity) and older theories, for instance, Freyre's. Do you really see them as mutually contradictory and irreconcilable?". É da resposta que redigi que, remotamente, descendem tanto este artigo, novo, original e inédito, quanto as obras publicadas em 1973, 1983, 1986, 1998 e 2000.

2.

Na citação anterior, Gilberto Freyre não se refere propriamente à Igreja como instituição, mas à religião tal como vivenciada no cotidiano do Brasil colonial.

3.

Os portugueses, influenciados por "seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África, nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas" (Freire 1980: 5), teriam adquirido "singular predisposição [...] para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos", (idem). Esse "passado étnico" se configuraria no longo contato com os mouros, por tanto tempo dominantes em Portugal e na Espanha. Freyre gostava muito de destacar a "influência moura sobre a vida e o caráter português: da moral maometana sobre a moral cristã. Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico que o português. Das religiões pagãs, mas também da de Maomé, conservou como nenhum outro cristianismo na Europa o gosto de carne. [...] Nesse ponto o cristianismo português pode-se dizer que excedeu ao próprio maometanismo" (Freyre 1980: 224).

4.

Assim é, por exemplo, em seu artigo com Conrad Kottak datado de 1963, cujo universo se encontra nos pescadores de Arembepe, na Bahia, e no qual se que: "do ponto de vista funcional, a penumbra de confusão semântica em torno da identidade racial do povo de Arembepe se enquadra bem com o comportamento real das pessoas. Em nenhum ponto de seu ciclo vital raça constitui fator fundamental. [...] A ambigüidade racial é manifestação dos padrões igualitários dominantes na pesca, atividade da qual depende a vida da comunidade (Harris & Kottak 1963: 205). Em artigo um pouco posterior, Harris claramente estendeu suas conclusões a todo o Brasil, pois, como arrematou, a ambigüidade racial "claramente exclui discriminação e segregação sistemáticas; para poder proibir os membros de um grupo de votarem ou de entrarem em uma escola ou em um clube, é absolutamente indispensável haver um critério firme para estabelecer a identidade dos que devem ser segregados ou discriminados. Nos Estados Unidos, tal critério se configura na regra de descendência. Esperemos que, no Brasil, haja sempre confusão a esse respeito e que aumentando com o passar do tempo" (Harris 1964b: 28).

5.

Diga-se de passagem que moreno, no sentido amplo destacado por Gilberto Freyre, pode ser encontrado em Cervantes, em uma das Novelas ejemplares publicadas originalmente em 1613. Trata-se de "El celoso extremeño", da qual extraio o seguinte trecho: "Yo'respondió Loaysa'soy un pobre estropeado de una pierna, que gano mi vida pidiendo por Dios a la buena gente; y, juntamente con esto, enseño a tañer a algunos morenos y a otra gente pobre, y ya tengo tres negros, esclavos de tres veinticuatros, a quien he enseñado, de modo que pueden cantar y tañer en cualquier baile y en cualquier taberna, y me lo han pagado muy rebién"(Cervantes 1613: 43-4). Referindo-se à América Espanhola e baseado em documentos do período colonial, , Mörner escreveu que "as pessoas de sangue africano podiam demonstrar seu valor em situações de emergência e, pouco a pouco, foram sendo recrutados para formar unidades especiais da milícia. Nesse contexto militar, os mulatos eram chamadospardos, e os negros,morenos"(Mörner 1967: 44).

6.

Gilberto Freyre não é citado nesse artigo, salvo no seguinte trecho: "Research carried out at midcentury showed that Brazil was not, as sometimes claimed (Freyre 1946; Wagley 1952), a racial democracy" (Harris et al. 1993: 452). Marvin Harris corre o risco de passar por introdutor da expressão morenono tratamento da questão racial no Brasil, embora o termo seja bem mais antigo na obra de Gilberto Freyre que o ensaio de 1966 a que aqui se faz referência.

7.

A tradução brasileira ' revista por Gilberto Freyre ' do trecho que se acaba de transcrever parece atenuar o otimismo do original em língua inglesa, mencionado e criticado por Marvin Harris, no qual se diz "The Brazilians have been successful in using this same power of compromise in the cultural and social spheres. Hence their ethnic democracy, the almost perfect equality for all men regardless of race or color" (Freyre 1959: 7-8).

8.

Para Gilberto Freyre, o português foi "o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos"(Freyre 1980: 189). Notemos, contudo, que a hipótese do português como "bom senhor" não é indispensável para a interpretação freyriana da escravidão e das relações raciais no Brasil. Eugene Genovese trata do assunto com vigor e coerência. Para ele "esta distinção fundamenta a argumentação: o escravo foi maltratado como escravo, mas acidentalmente como negro" (Genovese 1971: 83).

9.

De modo parecido (mas não idêntico) Genovese destaca que "não se pode, ao mesmo tempo, ser de um anticolonialismo irrestrito, ter uma visão unilinear da história e sustentar o evangelho do progresso sem riscos de esquizofrenia" (Genovese 1971: 382).

10.

Degler, para nosso alívio, ao mesmo tempo em que a entender que países nos quais as pessoas trabalham movidas por princípios éticos, admite, afinal de contas, que alguns brasileiros também trabalham, ainda que menos nobremente motivados.

11.

Sobre paradigmas, ou antes, sobre a crise dos paradigmase sua relação com a obra de Gilberto Freyre, ver o ensaio de Sebastião Vila Nova (1995), do qual extraio a seguinte citação: "A verdadeira crise da sociologia contemporânea deriva da incapacidade dos sociólogos de superar o hábito de pensar nos fenômenos sociais e nos problemas teórico-metodológicos próprios de sua ciência através do crivo do conceito de paradigma, assim como da busca ansiosa, antes reflexo da necessidade inconsciente de ordenação cognitiva do real elevada a um nível mórbido, da tábua de salvação de um paradigma redentor" (Vila Nova 1995: 79).

12.

Com as devidas mudanças, poderia dirigir-se a Carl Degler e autores afins o comentário de Lévi-Strauss a respeito de Sartre, o qual se "resigna a situar uma humanidade ‘atrofiada e deformada' no campo do humano, mas não sem implicar que esse lugar não lhe é devido por direito próprio, sendo antes decorrente da sua adoção pela humanidade histórica, seja através da internalização, dentro do contexto colonial, da história dessa última pela primeira, seja por causa da própria Antropologia, através da qual uma humanidade concede à outra o dom da inteligibilidade. De qualquer modo, Sartre deixa fora do esquema toda uma prodigiosa riqueza de hábitos, crenças e sistemas sociais. É preciso muito egocentrismo e ingenuidade para que se acredite que o homem se refugiou em um único dos modos históricos e geográficos de sua existência, quando a verdade reside no conjunto das sua diferenças e propriedades comuns" (Lévi-Strauss 1962: 329).

13.

Pela ênfase que atribui aos valores e atitudes da população negra com relação à atividade econômica ' e, para Florestan Fernandes, em um ethos inadequado ao desenvolvimento do capitalismo encontra-se a causa imediata do atraso do negro ' o paulista tem também alguma coisa que o aproxima de Max Weber e de Werner Sombart. Da ênfase a valores, atitudes e predisposições psicossociais, surge logicamente a questão do surgimento da classe empresarial. Portanto, não causa espanto que também da escola paulista de Sociologia, e presumivelmente da proximidade do próprio Florestan, tenha surgido o trabalho de Juarez Brandão Lopes sobre o empresário industrial no Brasil (Lopes 1965). Paradoxalmente, talvez não seja Florestan Fernandes que melhor represente seu próprio paradigma, de inspiração fundamentalmente marxista, para o entendimento das relações raciais no Brasil, mas outro sociólogo dele muito próximo, ao menos durante algum tempo. Penso no autor de As metamorfoses do escravo, isto é, Octavio Ianni (1988).

14.

Muitos brasileiros, sobretudo os mais velhos, poderão achar o contraste esboçado por Florestan Fernandes entre a industriosidade dos imigrantes e a altivez dos negros exagerado e condescendente, que esses brasileiros, quer de São Paulo quer de outras áreas, lembram que atividades como engraxate e vendedor de peixe ou de jornais eram, e provavelmente ainda são, freqüentemente exercidas por negros.

15.

Vida, forma e cor é, como se sabe, o título de um livro de Gilberto Freyre (1962).

16.

Mas vale a pena registrar a crítica desfavorável que René Ribeiro lhes dispensa em Antropologia da religião (Ribeiro 1982), bem como o severo tratamento que os raciocínios de Hasenbalg, ou inspirados no paradigma de Hasenbalg, recebem de Marvin Harris e associados (Harris et al.1993).

17.

Os autores de The bell curve(Herrnstein & Murray 1994) partem exatamente da mesma constatação, isto é, da desigualdade persistente.

18.

Entre outros muitos livros e artigos, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni escreveram em conjunto Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960).

19.

O pressuposto fundamental e implícito de Hasenbalg e de outros aderentes do mesmo paradigma parece ser a concepção, ou mesmo a paixão, da igualdade abstrata, independentemente de circunstâncias concretas de cultura e experiência histórica. Não serei eu o primeiro a perguntar por que os negros ' ou os brancos ' do Brasil (ou da África, de Cuba ou dos Estados Unidos) estariam obrigados, em nome dessa noção abstrata de igualdade (bem como de uma noção orto-históricade desenvolvimento e progresso), a internalizar valores e atitudes associados ao desenvolvimento capitalista. De acordo com esse extremado igualitarismo, os indivíduos, e mesmo as etnias, deveriam representar exatos espelhos uns dos outros. Passam por questões de filosofia da história que não podem ser totalmente explicitadas, muito menos resolvidas, no contexto deste artigo. Note-se ainda que muitas desigualdades certamente haveriam de surgir se se comparassem, quanto a renda, educação, expectativa de vida, habitação etc., os brasileiros brancos repartidos entre os que têm sobrenomes portugueses, italianos, sírio-libaneses, alemães e outros, sem que se pudesse concluir que tais desigualdades se devessem aos "efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais".

20.

Em sentido estrito, Kulturkampfsignifica a disputa, a partir da década de 1870, entre a Alemanha Imperial ' ou entre alguns dos Estados que a constituíam (sobretudo a Prússia) ' e a Igreja Católica pelo controle de escolas e seminários, a nomeação de professores de Teologia para as universidades, a regulamentação dos casamentos etc. (Kupisch 1960). Mas os motivos reais dessa disputa eram bem mais profundos e se prendiam à grande luta entre a Reforma e a Contra-reforma. Se os problemas imediatos que suscitaram o Kulturkampfse resolveram dentro de poucos anos, para contento da Igreja, no sentido amplo é altamente duvidoso que ele ou seus equivalentes, na Alemanha ou em outros países ' inclusive latino-americanos ', tenha terminado.


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