Democracia racial e multiculturalismo: ambivalente singularidade cultural
brasileira
Gilberto Freyre é considerado tanto no Brasil quanto fora dele um dos clássicos
da sociologia brasileira e latino-americana. Nas últimas décadas, no entanto,
percebe-se uma tendência crescente para vê-lo como um clássico do passado, em
vez de alguém com contribuições para o presente. Para toda uma geração de
estudiosos americanos que pensa as relações culturais e raciais a partir de uma
perspectiva comparativa, por exemplo, ele não é mais que um ideólogo e
mistificador. O propósito deste artigo é discutir alguns aspectos da obra
gilbertiana de modo a demonstrar que, ao lado de aspectos indiscutivelmente
conservadores e ligados ao debate mais datado de época, algumas de suas
intuições e reflexões ainda possuem uma atualidade surpreendente.
Nesse sentido, gostaria de discutir as idéias de um crítico recente, de modo a
tornar mais claro os termos do debate. Decidi escolher o livro de Anthony Marx,
professor de Ciência Política da Universidade de Columbia, chamado Making race
and nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil. A
escolha desse livro específico se deve aos seus méritos particulares. Anthony
Marx tem uma idéia central interessante e o desenvolvimento de seu argumento é
feito com singular coerência a partir de uma bibliografia exaustiva.
O argumento central de Marx vincula a questão racial ao tema da formação
nacional (nation building) nesses três casos clássicos de grandes nações
constituídas por brancos e negros. Tanto no caso sul-africano quanto no
americano o racismo tornado legal contra os negros é explicado pela
necessidade, vista pelas elites de então como fundamental, de garantir a união
entre setores brancos divergentes. No caso sul-africano, como modo de superar a
competição entre ingleses e descendentes de holandeses, rivalidade que já havia
levado à guerra boer; no caso americano, para garantir a convivência dos
brancos do sul e do norte, que já havia provocado o sangrento conflito da
guerra civil1. Para Marx, o caso brasileiro seria uma confirmação ao inverso de
sua tese, ou seja, precisamente pela ausência de um conflito fundamental entre
elites brancas rivais, teria sido possível evitar uma discriminação legal como
nos dois casos anteriores.
A especificidade do caso brasileiro, para Marx, é a construção de uma ideologia
insidiosa, a da "democracia racial", fabricada pelas elites brancas,
já unidas entre si, de modo a evitar o espírito de revolta dos negros que
tantas vezes já havia se mostrado no período colonial. Gilberto Freyre entra
precisamente nesse momento do desenvolvimento da argumentação do autor.
Gilberto teria sido o criador do conceito de "democracia racial", o
qual agiu e ainda age como principal impedimento da possibilidade da construção
de uma consciência de raça por parte dos negros (Marx 1987: 167). Gilberto
teria construído a contrapartida teórica de uma noção rósea e humanitária do
passado escravista brasileiro, abrindo a possibilidade de constituição de uma
ideologia social apenas aparentemente inclusiva e extremamente eficiente.
Existe sem dúvida muito de verdade na crítica de Marx. O que fica inexplicado
até o fim do livro é por que a ideologia da democracia racial é tão eficiente.
É fácil perceber por que os brancos, na África do Sul e nos Estados Unidos, se
uniram em uma estratégia de exclusão legal dos negros que lhes rendia
dividendos materiais e ideais muito concretos. Mas como explicar o
extraordinário poder de uma ideologia inclusiva que não inclui? Gostaria de
desenvolver a seguir um aspecto da reflexão gilbertiana, de modo a construir um
diálogo com os argumentos avançados por Marx: o que Gilberto considera os
aspectos exclusivos e inclusivos do que ele chama de patriarcalismo brasileiro.
Embora seja um engano que não passa despercebido aos seus melhores críticos
(Benzaquem 1994: 48-57), a concepção de que Gilberto desenvolveu um quadro
róseo, idílico e fantasioso da formação social brasileira é de tal forma
generalizada tanto em uma difusa noção popular em relação à sua obra quanto em
parte da crítica, no movimento negro ou, mais recentemente, nos trabalhos mais
recentes de brasilianistas sobre o tema das relações raciais que vale a pena
nos demorarmos nesse ponto.
Esse aspecto é ainda mais surpreendente quando precisamente o contrário parece
ter sido o caso, e aqui não se trata apenas de citar os inúmeros casos de
crueldade em relação aos escravos que pululam em todo o texto de Casa-grande
& senzala. Existe uma razão mais profunda, que tem a ver com o próprio
status analítico e com o conteúdo sistemático do argumento gilbertiano. Importa
perceber que a categoria estruturante de patriarcalismo em Freyre, com seus
atributos de personalismo, familismo e privatismo, possui dois princípios
complementares aparentemente contraditórios. Esses dois princípios
complementares são os aspectos despótico e segregador, de um lado, e os
"democrático" e inclusivo, do outro. A especificidade do
patriarcalismo brasileiro, sua longevidade até nossos dias, reside na dialética
entre esses dois pólos, desde que o princípio estruturante personalista,
familista e privatista seja mantido.
É esse princípio que Gilberto confessa, na introdução à segunda edição de
Sobrados e mocambos, ter sido sua intuição guia desde os tempos da mocidade, na
esperança de detectar, em uma tradução livre da citação do inglês Lecky,
"nos movimentos lentos do passado suas grandes e permanentes forças"
(Freyre 1936: XC). No caso brasileiro, sua intuição é de que essas forças são
as do familismo, do privatismo, do personalismo; em uma palavra, do
patriarcalismo, que "dificilmente desaparecerá de cada um de nós"
(idem).
Pode-se considerar, nesse sentido, o excelente ensaio de Roberto DaMatta
"Você sabe com quem está falando?" como uma espécie de
"fenomenologia do patriarcalismo moderno brasileiro", como uma
confirmação empírica de sua permanência silenciosa como idéia-força, mas nem
por isso menos eficaz e efetiva, mesmo em um contexto como o atual, no qual o
único discurso aceito como válido é o individualista (DaMatta 1981). Vale notar
que a própria idéia damattiana de um "dilema brasileiro", a partir do
confronto entre dois sistemas de valores rivais, um personalista e outro
individualista, reflete uma clara influência gilbertiana. Em Sobrados e
mocambos, encontramos a reconstituição da gênese mesma desse processo no embate
entre patriarcalismo, herança colonial brasileira e base do personalismo, por
um lado, e reeuropeização, com a introdução dos novos valores da modernidade,
no sentido burguês e individualista desse último termo, por outro.
O fim do primeiro capítulo de Casa-grande & senzala fornece uma
interessante chave explicativa sociopsicológica do princípio segregador do
patriarcalismo. Esse capítulo é um esforço de síntese que abrange o período de
formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro que constitui o
período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as
conseqüências do fato de que, dada a distância do Estado português e de suas
instituições, a família é a unidade básicada formação brasileira, e interpreta
o drama social da época sob a égide de um conceito psicanalítico: o
sadomasoquismo.2 Temos aqui um conceito limite de sociedade, no qual a ausência
de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu
componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa
ser descrito a partir de categorias sociopsicológicas, cuja gênese aponta para
as relações sociais ditas primárias.
É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente
sadomasoquista, no sentido de uma patologia social específica em que a dor
alheia, a perversão do prazer, transforma-se em objetivo máximo das relações
interpessoais, que Gilberto interpreta a semente essencial da formação
brasileira. De forma distinta daquela com que os teóricos da primeira fase da
Escola de Frankfurt (Fromm 1987), na mesma década de 1930, procuravam, com a
ajuda do mesmo conceito, explicar o nazismo partindo de um quadro categorial
que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica preexistente, em que a
obediência acrítica em relação aos estratos superiores possuía uma conexão
estrutural com o despotismo em relação aos grupos mais passíveis de
estigmatização, Gilberto, ao contrário, enfatiza o elemento personalista.
Patriarcalismo, para ele, tem a ver com o fato de que não existem limites à
autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. Não existe justiça superior
a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja, que decidia em última
instância querelas seculares, não existia também poder policial independente
que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívidas
impagáveis de que fala Gilberto, não existia, last but not least, poder moral
independente, posto que a capela era uma mera extensão da casa-grande.
Sem dúvida, a sociedade cultural e racialmente híbrida de que nos fala Gilberto
não significa de modo algum igualdade entre as culturas e raças. Houve domínio
e subordinação sistemática, melhor, ou pior, no caso, houve perversão do
domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico
ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português com as mulheres
índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres
brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Gilberto
(Freyre 1933: 60, 326, 332). Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os
próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos
(Freyre 1936: 68 e 71).
O senhor de terras e escravos era o hiper-indivíduo, não o super-homem
futurista nietzscheano que obedece aos valores que ele próprio cria, mas o
super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites
em relação aos seus impulsos primários.
Esse ponto não me parece um aspecto isolado e pitoresco da reflexão
gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica de um dos dois princípios
estruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito de patriarcalismo e,
portanto, à toda a empresa gilbertiana. Afinal, é o sadismo transformado em
mandonismo, que sai da esfera privada e invade a esfera pública, inaugurando
uma dialética profundamente brasileira de lidar com as noções de público e de
privado.
A conseqüência política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem
da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações
políticas e sociais, se torna evidente na dialética de mandonismo e
autoritarismo, de um lado, no lado das elites, mais precisamente, e no
populismo e messianismo das massas, do outro. Dialética essa que assume formas
múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e
classes mais europeizadas e massas ameríndia e africana e assim por diante.
A explicação sociológica para a origem desse "pecado original" da
formação social brasileira exige, para Gilberto, a consideração da necessidade
objetiva de um país pequeno como Portugal solucionar o problema de como
colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares, antes
estimulando que coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Para Gilberto, é de
fundamental importância para a compreensão da singularidade cultural brasileira
a influência continuada e marcante dessa semente original.
A decadência do patriarcado rural brasileiro está diretamente ligada à
ascendência da cultura citadina no Brasil. Esse processo, que a vinda da
família real portuguesa ao Brasil veio consolidar, estava prenunciado na
descoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais de expressão, na
necessidade de maior vigilância sobre a riqueza recém-descoberta e no maior
controle, a partir de então, sobre o mandonismo privado. Exemplo típico e
sintomático da mudança do poder do campo para as cidades é o caso das dívidas
dos patriarcas rurais, antes incobráveis, e a partir de então pagas sob força
policial. Tão importante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico foi
a transformação social de largas proporções, implicando novos hábitos, novos
papéis sociais, novas profissões e nova hierarquia social.
Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças
políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as mudanças econômicas,
materializadas na introdução da máquina e na constituição de um incipiente
mercado capitalista, foram acompanhadas também de importantes mudanças
ideológicas e morais. Com a maior urbanização, a hierarquia social passa a ser
marcada pela oposição entre valores europeus burgueses e os valores anti-
europeus do interior, marcando no país uma antinomia valorativa cujas
repercussões nos atingem ainda hoje. A opressão tende a ser exercida agora cada
vez menos por senhores contra escravos, e cada vez mais por portadores de
valores europeus ' sejam esses efetivamente assimilados ou simplesmente
imitados ' contra pobres, africanos e índios.
A época de transição do poder político, econômico e cultural do campo para a
cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o
privatismo e o personalismo rural foram transpostos para a cidade tal qual eram
exercidos no campo. A metáfora da casa e da rua em Gilberto assim o atesta. O
sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolongamento
material da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essa espécie
arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a rua é o lixo da
casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência.
O sadomasoquismo social muda de habitação. Seu conteúdo, no entanto, aquilo que
o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não-
reconhecimento da alteridade, permanece.
A passagem do sistema casa-grande e senzala para o sistema sobrado e mocambo
fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes orgânica, antagonismos em
equilíbrio, como prefere Gilberto. Esses fragmentos se espalham agora por toda
a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. Da casa-grande
e senzala, depois sobrados e mocambos, e talvez hoje em dia bairros burgueses e
favelas, as acomodações e complementaridades ficam cada vez mais raras. De
início, a cidade não representou mais que o prolongamento da desbragada incúria
dos interesses públicos em favor dos particulares. O abastecimento de víveres,
por exemplo, foi um problema especialmente delicado, sendo permitido,
inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e sobre os
viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a
preços oligopolísticos (Freyre 1936: 171).
Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos
negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou,
a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez então perigosos,
criminosos, "capoeiras" etc. Os sobrados senhoris, também nenhuma
obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuras e anti-
higiênicas, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos
moleques, dos capoeiras etc.
No entanto, a urbanização também representou uma mudança lenta mas fundamental
na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixou de ser familiar e
abstraiu-se da figura do patriarca, passando a assumir formas impessoais. Uma
dessas formas impessoais foi a estatal, que passou, por meio da figura do
imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente dos mais
ricos e enriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas. O Estado,
ao mesmo tempo, minou o poder pessoal pelo alto, penetrando na própria casa do
senhor, roubando-lhe os filhos e os transformando em seus rivais. É que as
novas necessidades estatais por burocratas, juizes, fiscais, juristas etc.,
todas indispensáveis para as novas funções do Estado, podiam ser mais bem
exercidas pelo conhecimento que os jovens adquiriam na escola, especialmente se
ela fosse européia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.
Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais
velhas, foi rapidamente desvalorizado, em um processo que, por seu exagero, é
típico de épocas de transição como aquela. D. Pedro II é uma figura emblemática
nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, cercou-se de seus iguais,
ajudando a criar o que Nabuco chamaria de "neocracia" (Freyre 1936:
88).
Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga o excesso de
arbítrio do patriarca ao retirar as pré-condições sob a influência das quais
ele exercia seu poder ilimitado. O médico de família, por exemplo, insere no
lar doméstico uma influência incontrolável pelo patriarca. É ele que irá
substituir o confessor. O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de vestir
e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mundo se abre
para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Gilberto, nosso preconceito
mais persistente.
De qualquer modo, as mudanças acima representam transformações importantes
porém limitadas da autoridade patriarcal. Ele é obrigado a limitar-se à sua
própria casa, mas a real mudança estrutural e "democrática" ainda
estava por vir. Em Sobrados e mocambos, essa mudança recebe o nome de
reeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente oriental da sociedade
colonial brasileira, de europeização do Brasil.
Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos
simultâneo do "mercado" e da constituição de um "aparelho
estatal autônomo", com todas as suas conseqüências sociais e culturais. A
reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de
elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura através da influência
de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França, Alemanha,
Itália e, especialmente, da grande potência imperial e industrial da época e
terra natal do individualismo protestante, a Inglaterra.
Tal processo se realizou como uma grande revolução de cima para baixo,
envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio relativo
de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de diferenciação. São
esses novos valores burgueses e individualistas que irão se tornar o núcleo da
idéia de "modernidade" como princípio ideologicamente hegemônico da
sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aí Gilberto chama
atenção para a influência decisiva dos interesses comerciais e industriais do
imperialismo inglês, mudou-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de
vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de tecidos grossos
e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e comia-se pão como um
inglês, e tudo que era português ou oriental se transformou em sinal de mau
gosto (Freyre 1936: 336). O caráter absoluto dessas novas distinções tornou o
brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa no relato
de Gilberto, de comprar gato por lebre.
Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e políticas, com o
advento das novas idéias liberais e individualistas, que logo conquistaram
setores da imprensa e as tribunas parlamentares, criando o contexto da
interpretação machadiana de Roberto Schwartz acerca das idéias fora de lugar,
no caso, idéias liberais em uma sociedade ainda escravocrata. A teoria das
"idéias fora do lugar" guarda sua plausibilidade, certamente, apenas
em um registro sincrônico. A partir de uma ótica diacrônica, percebemos que
essas idéias seriam melhor designadas como "à procura de um lugar", o
qual, aliás, logo encontraram, sendo o individualismo, e por conseqüência o
liberalismo, um componente constitutivo da realidade brasileira desde então.
No entanto, nenhuma dessas mudanças importantes teve o impacto da entrada em
cena no nosso país do elemento burguês democratizante por excelência: o
conhecimento e, com ele, a valorização do talento individual, que tanto o novo
mercado para artífices especializados quanto as novas funções estatais exigiam.
No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da máquina, a qual, como de
resto sabia Karl Marx, não é mais que conhecimento materializado. Gilberto está
perfeitamente consciente da enorme repercussão social dessa inovação técnica
(Freyre 1936: 489-508). É que a máquina veio desvalorizar a base mesma da
sociedade patriarcal, diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto
do escravo, agindo como principal elemento dissolvente da sociedade e cultura
patriarcais.
Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam a sociedade
escravocrata, ela vinha valorizar, por conta disso, precisamente aquele
elemento médio, que sempre havia composto uma espécie de estrato intermediário
na antiga sociedade, na qual, não sendo nem senhor nem exatamente um escravo,
era um "deslocado", um sem-lugar portanto.
Apesar do elemento democrático ter sido "atualizado" e possibilitado
pelos novos valores advindos do processo de reeuropização, ou seja, de
"fora para dentro", sua assimilação só é possível de forma rápida e
eficaz, porque o próprio sistema já havia gestado, desde sempre, um elemento
democrático ao lado do despótico e segregador, cujas origens estão também nas
formas de convivência do patriarcalismo, que é precisamente aquilo que Gilberto
chamará um tanto vagamente de seu elemento democrático.
A gênese social desse elemento remonta a "intimidade sexual e
cultural" entre as diversas raças e culturas, especialmente a portuguesa e
a africana, que predominava no sistema casa-grande e senzala. O enorme número
de mestiços e filhos ilegítimos de senhores e padres, indivíduos de status
intermediários, quase sempre assumindo as funções de escravo doméstico ou
agregado da família, de qualquer modo quase sempre mais ou menos deslocado no
mundo de posições polares como são as de senhor e escravo. A enorme mudança
social implicada pela mudança do campo para a cidade abre, no entanto,
oportunidades antes imprevistas para esse estrato.
Na nova sociedade nascente são as antigas posições polares que perdem peso
relativo, e esses indivíduos, quase sempre mestiços, sem outra fonte de riqueza
que não sua habilidade e disposição de aprender os novos ofícios mecânicos,
quase sempre como aprendizes de mestres e artesãos europeus, passaram a formar
o elemento mais tipicamente burguês daquela sociedade em mudança: o elemento
médio, sob a forma de uma meia-raça.
Ao invés apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da complexa
ritualística que, como conseqüência da maior proximidade social entre os
diversos estratos sociais que a urbanização enseja, instaura-se no país nessa
época, como a forma da vestimenta, a comida, o modo de transporte, o jeito de
andar, o tipo de sapato etc, temos um elemento diferenciador novo. Esse
elemento é revolucionário no melhor sentido burguês do termo, posto que
"interno" e não externo, sendo antes uma substância e um conteúdo que
uma aparência, mais ligados portanto a qualidades e talentos pessoais que a
privilégios herdados.
O conhecimento, a perícia, passa a ser o novo elemento que passa a contar de
forma crescente na definição da nova hierarquia social. Nesse sentido, servindo
de base para a introdução de um elemento democratizante, pondo de ponta-cabeça
e redefinido revolucionariamente a questão do statusinicial para as
oportunidades de mobilidade social na nova sociedade. Uma democratização que
tinha como suporte o mulato habilidoso. Do lado do mercado, essas
transformações se operam segundo uma lógica de "baixo para cima", ou
seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais, as quais,
sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades escravocratas, não
eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o enriquecimento
paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessa
época especialmente portugueses, como caixeiros e comerciantes, as rivalidades
e preconceitos tenderam a aumentar proporcionalmente.
O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato bacharel para Gilberto,
de cultura superior e portanto mais aristocrático que o mulato artesão, é o
símbolo de uma modernização que se operou não apenas de "fora para
dentro" e de "baixo para cima", mas também de "cima para
baixo". O mestiço bacharel constitui uma nobreza associada às funções do
Estado e de um tipo de cultura mais retórico e humanista que a cultura mais
técnica e pragmática do mestiço artesão. O Estado, portanto, e não apenas o
mercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi também um locus
importante dessa nova modernidade híbrida, já burguesa, mas ainda patriarcal,
se bem que de um patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na
figura do imperador pai de todos, e já mais afastado portanto do patriarcalismo
familístico todo-dominante na colônia.
O processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo
de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo quanto o pária dos
mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se
distinguir. A enorme importância da vestimenta nessa época servia agora para
fins de diferenciação social, que antes sequer necessitavam de externalização.
O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o mestiço em geral, o
semi-integrado, o agregado e todas as figuras intermediárias da sociedade. A
própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas
contra os mestiços que usavam casaca ou luva já demonstram, como uma
conseqüência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com
indivíduos brancos antes seguros de sua posição (Freyre 1936: 399), a
possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos do
sistema: um segregador e outro democratizante.
Fundamental para a compreensão do argumento de Gilberto, no entanto, vale a
pena repetir, é que o componente externo, burguês, da revalorização do trabalho
manual e da habilidade pessoal, produto do processo de reeuropeização é apenas
parte do processo de constituição de uma sociedade mestiça e híbrida. Tão
importante quanto a entrada desse novo elemento é o fato de que a tendência
segregacionista do sistema teve desde sempre a competição de um elemento de
tolerância, de acomodação e compromisso como um traço constitutivo
complementar, também ele intrínseco ao sistema valorativo do patriarcalismo.
Sendo portanto duas tendências, uma segregadora e despótica e outra
"democrática", dentro do mesmo sistema, em complexa relação de
complementaridade e oposição.
As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim prefiguradas pelo
costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou seja, mestiços de
alguns senhores, problema que deve ter atingido proporções razoáveis para
estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser supostamente
fragmentadora da riqueza acumulada, como nos conta Gilberto em Casa-grande e
senzala. Também pela proximidade e intimidade afetiva, e não apenas
sadomasoquismo, entre o senhor e suas concubinas, assim como pelos sentimentos
filiais entre filhos de senhores e amas negras, em resumo, por todas as formas
de extensão em linha vertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e
de classe a agregados, no sentido amplo do termo, da família patriarcal.
Para a crítica, sempre foi um anátema chamar-se democrática uma relação que se
refere a privilégios concedidos em linha vertical, o que envolve claramente a
noção de hierarquia e de desigualdade. Duas considerações merecem ser
desenvolvidas aqui. Primeiro, Gilberto está falando de uma sociedade
escravocrata, ou seja, a relação social mais desigual e violenta possível. O
seu ponto de vista hermenêutico implica perceber a sociedade patriarcal nos
seus próprios termos, o que certamente lhe proporciona a extraordinária
vantagem de examinar o patriarcalismo brasileiro sem a refração, não só de
conceitos etnocêntricos, mas também do julgamento ex post, que envolve a
distorção de perceber situações históricas segundo critérios de valor surgidos
séculos mais tarde.
Interessava a ele perceber contradições dentro de uma sistema cuja regra era a
violência e o mando. Relações que apontassem para um afrouxamento do princípio
inerentemente exclusivo da escravidão. Democrático aqui, portanto, assume o
sentido sóbrio de um conceito derivado, que apenas ganha sentido pela oposição
ao caráter despótico da escravidão. Real função revolucionária e renovadora
pôde ter esse princípio apenas em conjunção com o advento de elementos
estranhos ao sistema original que possibilita seu desenvolvimento para além dos
limites anteriores. E é apenas em ação conjunta com os novos impulsos
individualizantes do mercado e da constituição de um aparelho de Estado que
permitem a realização de elementos apenas gestados no sistema anterior e que
haviam permanecido como que em estado de estufa na fase rural do patriarcalismo
brasileiro.
O inverso, no entanto, também é verdadeiro. As influências individualizantes e
burguesas só são rapidamente assimiladas e lograram encontrar acomodação na
nova fase do patriarcalismo urbano apenas porque essas potencialidades
integradoras e não excludentes já existiam em potência no sistema anterior.
Prova disso é o fato de que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram,
para Gilberto, funcionais, e não essencialistas. Isso permite que a figura
masculina do patriarca possa ser exercida por uma mulher, a qual obviamente
continua biologicamente mulher,mas é sociologicamente ou funcionalmente homem/
patriarca. Assim, do mesmo modo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados
os filhos ilegítimos de senhores de terra e padres, os quais poderiam se tornar
sociologicamente filhos, herdando a riqueza paterna, ou mesmo o substituindo na
atividade produtiva.
O mesmo traço sistêmico fazia o biologicamente mulato se transformar em
sociologicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, em um sistema
escravocrata, são privilégio de brancos (Freyre 1936: 366). Com isso Gilberto
está evidentemente dizendo não que o sistema não era injusto ou despótico, mas
apenas que ele era sociologicamente flexível e não rígido, desde que o
princípio estruturante, personalista, privatista e familístico fosse mantido.
Isso explica, talvez, sua extraordinária sobrevivência, sob outros disfarces,
até nossos dias.
Em segundo lugar, no entanto, acho que Gilberto está efetivamente convencido de
que a reeuropeização implica também ambigüidades antidemocráticas em um sentido
bastante preciso, representando, nesse aspecto particular, antes um atraso que
um progresso digno de ser assimilado. É que a relativa flexibilidade
sociológica do sistema que quebrava a rigidez das contraposições entre senhor e
escravo implicava também a possibilidade de absorção de tradições culturais
diversas daquela do elemento dominante.
Com a reeuropeização do Brasil, o primado cultural não despótico do português,
que não só admitia como até estimulava compromissos e acomodações com as
tradições culturais dominadas, foi substituído pela dominação do absolutamente
superior pelo absolutamente inferior. As leis citadinas da primeira metade do
séc. XIX documentam incontável número de sanções, algumas absurdas, contra
valores não-europeus ou rurais. Comportamentos, como diziam os jornais da
época, "que nos fariam parecer selvagens aos olhos dos europeus", o
nosso ubíquo "panopticum", todo vigilante e cioso, desde então
(Freyre 1936: 426, 433, 462, 464). A estigmatização de valores portugueses,
mouros, judeus e negros, que no fim do séc. XVIII já eram
"brasileiros", seria uma conseqüência dessa nova e rígida hierarquia
valorativa. Para além da estigmatização, Gilberto pensa na criminalização de
ritos e festas africanas como a capoeira, por exemplo, que foi proibida pela
polícia, ajudando sua transformação, na época, de jogo e dança em arma de
vingança e revolta.
Muito do "tropicalismo" gilbertiano tem a ver com essa noção de
pluralidade cultural que ele tanto admirava na colonização portuguesa tanto
aqui como na Ásia. Sua idéia básica nesse particular vincula tanto preocupações
universalistas quanto culturalistas. Do universalismo lhe interessa manter a
abertura a novas orientações e valores, uma permanente flexibilidade e abertura
ao estranho. Do culturalismo ele pretendia retirar um princípio hierarquizador
que, ao mesmo tempo que possibilitasse a expressão do múltiplo, permitisse um
lugar no qual a reflexão do que merecesse assimilação pudesse ser diferenciado
do mero modismo ou da mera necessidade arrivista daqueles ansiosos por ascensão
social, e portanto por critérios de diferenciação de statussem relação com
verdadeiro e sóbrio aprendizado cultural. Sua preocupação "ecológica"
tem a ver com a continuação de uma tradição luso-brasileira de contato
intercultural que, a seus olhos, nada tinha a ver com atraso ou com o
particularismo míope.
Se voltarmos nessa altura a reexaminar o argumento de Anthony Marx e sua
crítica a Gilberto, podemos perceber alguns pontos interessantes. Primeiro,
podemos afastar a crítica de um quadro róseo do período colonial brasileiro e
de uma "escravidão humanitária", sem dúvida uma contradição em
termos. Depois, e mais importante, podemos procurar tentar responder a questão
sem resposta para Marx: afinal, de onde vem a tremenda eficácia da ideologia da
democracia social? Por que as pessoas no Brasil, e entre elas especialmente os
negros, acreditam nela?
Anthony Marx parte, como vimos, de um argumento funcional e institucional para
avaliar comparativamente os diversos resultados da forma que a discriminação
racial assume: são as necessidades de garantir solidariedade e estabilidade
interna indispensáveis para a construção do Estado nacional de tipo moderno.
Ele examina as tradições culturais e históricas distintas apenas para concluir
pela ausência de seu peso heurístico específico (Marx 1987: 78). No entanto,
talvez fosse interessante nos demorarmos um pouco mais nesse aspecto.
Não acho que a questão essencial para Gilberto nesse particular seja o tema da
maior ou menor "humanidade" no tratamento dos escravos, como supõe
Marx. Nesse particular, inclusive, Gilberto, ao contrário de Frank Tannembaum
no seu livro clássico (Tannembaum 1991) não enfatiza a distinção fundamental
entre a escravidão no Brasil e àquela do sul dos Estados Unidos.3 No entanto,
existe um outro legado histórico, para o qual o próprio Marx chama a atenção no
decorrer de seu texto, sem conferir a atenção que o assunto mereceria. Trata-se
da relação diversa dos Estados Unidos e do Brasil com a questão da modernidade.
Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos são um dos países que nasceram e
retiraram sua razão de ser a partir de idéias que vieram a ser conhecidas mais
tarde como constitutivas para o ideário ocidental. No caso americano,
especialmente as noções de liberdade religiosa, depois expandidas para as
esferas da política e da economia, e a noção, de fundo sectário protestante, da
responsabilidade individual. Ao contrário de outras matrizes do ideário
ocidental como a Inglaterra, a França e a Alemanha, nos Estados Unidos a
consciência de que se estava realizando uma experiência societária original e
única foi absolutamente singular. Já o discurso de John Winthrop, o seu city
upon a hill, tendo como público os primeiros pioneiros, aponta para um grau de
internalização reflexiva do projeto de sociedade que ali nascia que não deve
ter comparação na história. É essa tradição que Robert Bellah chamou de
"religião cívica" americana, para se referir à constante
reinterpretação do ato fundador da comunidade política como uma missão a ser
cumprida coletivamente.
É o próprio Marx que escreve: "Já em Gettysburg, Edward Everett havia se
referido à necessidade de reconciliação' entre nortistas e sulistas os quais
dividem uma comunidade substancial de origem'. Os negros eram claramente
concebidos como não fazendo parte dessa unidade ancestral" (Marx 1997:
134). O ponto de convergência fundamental entre ingleses e descendentes de
holandeses na África do Sul, na sua aliança contra os negros, teve também em
uma ancestral "comunidade cultural e de valores" seu cimento
primeiro. O caso brasileiro apresenta um desvio importante dessa lógica. A
"modernidade" chega ao país de navio, como vimos, e põe de ponta-
cabeça seja em seu aspecto material, seja em seu aspecto simbólico, toda a
sociedade vigente. Com relação a esses novos valores que chegam, não havia
diferença de fundo entre brancos, mestiços ou negros. Esses valores são
estranhos a todos igualmente e põem, portanto, a questão do statusrelativo sob
novos padrões, como havia percebido Freyre.
Foi nas necessidades abertas por um mercado incipiente, em funções manuais e
mecânicas rejeitadas pelos brancos, assim como pelas necessidades de um
aparelho estatal em desenvolvimento, que mestiços puderam afirmar seu lugar
social. Nesse último caso, por se tratar de colocações de alta competitividade,
disputando posições com os brancos, é que Gilberto fala da
"cordialidade" e do sorriso fácil, típico do mulato em ascensão, como
a "compensar" o dado negativo da cor. Essa "compensação",
ao mesmo tempo que reafirma o racismo, mostra que o empecilho não era absoluto
e sim relativo, superável pelo talento individual, ou seja, mostra que havia
espaço para formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial
e não apenas em categorias adscritivas de cor.
Afinal, fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o abandono de
características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão determinante
em outros sistemas com características semelhantes, em favor de uma
sobredeterminação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era
construtivo e funcional para a reprodução do sistema como um todo, governado já
agora pela palavra mágica da modernização, era passível de valorização. Assim,
a realização diferencial de certos fins e valores considerados de utilidade
social inquestionável era mais importante, por exemplo, que a cor da pele do
indivíduo em questão.
O esforço de assimilação de valores e da tecnologia ocidental por brasileiros é
precisamente o ponto em que diferenças de raça e classe sempre foram e são até
hoje relativizadas (Costas s/d: 5). É o aspecto no qual o ideário de ordem e
progresso encontra seu alfa e ômega. Quem quer que contribua para esse
desiderato maior de modernização é premiado pelo sistema. Em todos os estratos
tradicionais da sociedade patriarcal brasileira, nenhum tinha relação
privilegiada com a modernidade. Eram valores estranhos a todos, os quais foram
assimilados ou imitados avidamente por um país que antes da europeização mais
lembrava um país asiático que americano ocidental.
Esse aspecto é fundamental para que compreendamos por que a noção de democracia
racial era e é eficaz. Do começo ao fim do século XIX a proporção de mulatos
cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implica rápida miscigenação e
casamentos inter-raciais e indica que a mobilidade social desse estrato era
mais que mera fantasia. A partir da segunda metade do séc. XIX, a ascensão
social de mestiços no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos mulatos como
figuras de proa na literatura, na política, no exército, e atuantes como
ministros, embaixadores e até presidentes da república. Seria certamente uma
hipótese interessante estudar que tipo de modificações nesse processo foi
causado pela entrada em número significativo, estima-se entre cinco e sete
milhões de pessoas, de europeus a partir do fim do século XIX. A chegada dos
portadores mesmos ' reais ou fictícios ' dos valores da modernidade deve ter
certamente contribuído para uma modificação decisiva nesse padrão.
Não é que essas questões históricas e culturais, as únicas possíveis de
explicar a seletividade de processos históricos contingentes, não sejam
tratadas por Marx. O fato é que, apesar de discutir essas questões, elas não
adquirem em seu esquema nenhum espaço explicativo ou causal. Assim, os laços de
solidariedade cultural e moral que unia os setores brancos nos EUA e na África
do Sul são subordinados, no seu esquema explicativo, em favor da escolha
instrumental da estabilidade política pelo nascente Estado-nação. Uma
combinação das duas perspectivas teria talvez contribuído para conferir uma
ainda maior abrangência e poder de convencimento ao seu argumento, de resto
desenvolvido com maestria.
Do mesmo modo, o "mito" da democracia racial, desprovido das
condições culturais e históricas que lhe deram realidade, torna-se simples
maldade ou esperteza das elites brancas, complementada pela tolice dos negros e
mestiços que acreditaram e acreditam nela.
Contudo, o ponto de partida gilbertiano apresenta dificuldades de outra ordem.
Gilberto é o pensador por excelência da hierarquia, das partes que se combinam
sem antagonismo. Seu "holismo" o impede de perceber, em toda a sua
inteireza, a perspectiva das partes, por exemplo dos grupos e classes oprimidos
pelo sistema como um todo.4 É interessante perceber que essa deficiência é a
contrapartida, por assim dizer, de uma vantagem: uma tentativa de abordagem
hermenêutica da realidade brasileira.
Para Gilberto Freyre a questão era evitar a armadilha de refletir acerca da
formação social brasileira a partir de um ponto de vista que poderíamos chamar
de perspectiva da terceira pessoa, imposto de fora para dentro, produzido pelo
discurso "civilizador" europeu, que assumiu nessa fase a forma do
discurso da superioridade racial acerca de suas colônias. Não que o caso fosse
de construção de um contradiscurso no sentido banal de anti-imperialismo. Creio
que não escapava a Gilberto a armadilha desse tipo de discurso, o qual, ao fim
e ao cabo, apenas inverte os termos da questão de forma especular, conservando
do outro todos os defeitos: o conteúdo emotivo e irrefletido, o vínculo
arrogância'ressentimento, o fechamento da perspectiva reflexiva e de
aprendizado mútuo.
Um antidiscurso que não envolvesse a banalização anti-imperialista exigia,
antes de tudo, a consideração da formação social brasileira segundo seus
próprios termos, a partir da perspectiva da primeira pessoa, precisamente o que
tentamos nomear aqui como uma perspectiva hermenêutica. Nesse sentido, Gilberto
procurou estudar a especificidade brasileira sem apelar para conceitos
derivados como patrimonialismo, homem cordial, capitalismo dependente ou
cidadania regulada. Em cada um desses conceitos convive, muitas vezes sem que
isso seja explicitado, seu contrário. Sem nenhum demérito para os propositores
dessas categorias explicativas, os quais sem dúvida contribuíram de forma
importante para o esclarecimento de aspectos essenciais de nossa realidade, o
caráter derivativo desses conceitos tende a enfatizar seu caráter negativo, de
ausência e, especialmente, de desvio ou refração em relação a um modelo tido,
implícita ou explicitamente, como exemplar. A reflexão teórica construída a
partir desses modelos já está saturada, quase sempre imperceptivelmente, de uma
série de pressupostos, de toda uma carga normativa, que funcionam, muitas
vezes, como interditos, e não apenas como aberturas à reflexão.
A estratégia conceitual que possibilitou a Gilberto Freyre realizar tamanha
revolução na contramão das tendências dominantes tanto de sua época como de
hoje parece ter sido sua preocupação em ir do mais particular ao mais geral,
como já havia aliás notado Álvaro Lins (1980), um de seus primeiros
comentadores. Gilberto parte do dia-a-dia, do vestuário, da arquitetura das
casas, da decoração interior, dos hábitos de alcova e da intimidade erótica,
das comidas, dos gostos mais ou menos acres dos quitutes e dos doces, das
formas de cumprimentar, das modificações da linguagem que denotam mudanças na
sociabilidade etc. Assim, seus conceitos mais gerais, como o de patriarcalismo,
não são construídos de acordo com um modelo implícita ou explicitamente já
existente. Sua ciência nasce de "baixo para cima", atentando para
perceber o sentido, a direção, a tendência daquele componente social apenas
parcialmente acessível à consciência, a obsessão de articular o que aindanão
tem nome.
Isso significa para os seus fins um ganho extraordinário. O modelo para o
Brasil não é mais apenas a Europa, mas também o próprio Brasil ou, pelo menos,
potencialidades que são brasileiras em um sentido profundo. A Europa, aliás, a
Europa burguesa e industrial, é um invasor tardio e chega de navio com a
abertura dos portos e a chegada da Família Real em 1808. A semente societária
brasileira, portanto, já tinha quase três séculos de desenvolvimento e
consolidação. Semente essa, a sociedade patriarcal, cujo "conteúdo"
era mouro e africano, ou seja, oriental, no sentido vago que Gilberto empresta
ao termo para se referir a tudo que não seja ocidental.
O próprio português, o elemento que contribui para a "forma" da
sociedade patriarcal, é ele próprio muito pouco europeu. A estratégia
argumentativa de Gilberto em Casa-grande e senzala é separar a Ibéria da
cultura européia mais geral, seja a resultante da reforma, seja da revolução
francesa, seja ainda da renascença italiana. E, dentro do próprio mundo
hispânico, separar o "anguloso" castelhano do Português. A
especificidade do português para Gilberto é não ter especificidade alguma. Ele
é o contemporizador por excelência, e é isso que o diferencia dos colonizadores
espanhol e inglês na América: "nem ideais absolutos, nem preconceitos
inflexíveis", na bela fórmula gilbertiana. A ontologia do português é ser
mediador, curvar-se às circunstâncias, entrar em relação com as culturas
dominadas. Sua fraqueza é sua força, como diz Sérgio Buarque (Buarque 1978:
79).
O ganho desse tipo de perspectiva é precisamente o fato de ter possibilitado
interpretar a formação social brasileira como uma experiência ambígua, com
aspectos positivos e negativos. E nesse desiderato ele é, ainda hoje, um quase
solitário. Porque a superação entre nós do paradigma racista pelo cultural nas
primeiras décadas do século XX, processo do qual ele próprio foi um dos
pioneiros, se, por um lado, efetivamente elevou a reflexão nacional ao standard
científico dominante internacionalmente nessa época, por outro, manteve o mesmo
pressuposto de uma absoluta positividade, agora cultural e institucional e não
mais racial, da qual a experiência brasileira seria apenas um desvio.
Na ciência como na vida, no entanto, toda realização tem seu preço. Talvez um
dos preços pago por Gilberto tenha sido o excessivo formalismo dos seus poucos
conceitos mais abrangentes como, especialmente, o de patriarcalismo, alfa e
ômega da formação social brasileira na sua visão. O nível de abstração da noção
de patriarcalismo é tão alto, e se refere a tantas situações concretas
aparentemente tão diversas, que quase poderíamos dizer dele o que Max Weber diz
a respeito do conceito de poder: de tão ubíquo ele se torna sociologicamente
amorfo, ou seja, ele perde parte da força diferenciadora, atributo dos
conceitos claros e de menor alcance. Esse foi, inclusive, o ponto principal da
discórdia com Sérgio Buarque, seu crítico mais ilustre.
Preço talvez ainda maior tenha sido seu "organicismo sociológico",
que faz com que sua obsessão com o tema da ambigüidade cultural assuma uma
forma extremamente peculiar e pessoal. Por ambigüidade aqui se compreende todas
as matizes da dualidade: a indecisão, a harmonia, o equilíbrio, e também a
desarmonia e o conflito, a flexibilidade e o antagonismo etc. O que parece
conferir o caráter conservador e saudosista da reflexão gilbertiana é a noção
de que no Brasil colonial da casa-grande e da senzala esses antagonismos e essa
ambigüidade eram tendencialmente harmônicos e complementares de algum modo. Em
Sobrados e mocambos, como resultado do processo de proletarização e favelização
produzidos pela incipiente urbanização e industrialização, é que o
desequilíbrio passa a ser a regra.
No entanto, o próprio uso de termos como equilíbrio ou desequilíbrio traem a
relação prioritária em referência à uma concepção holista de sociedade na qual
a ênfase na complementaridade entre as partes é, tanto normativa quanto
empiricamente, a preocupação principal. Essa limitação é evidente na questão da
"democracia racial". Apesar de Gilberto reconhecer a situação de
abandono do negro no período pós-abolicionista, abandono da Igreja, do Estado,
da indústria nascente, levando à marginalização do negro pobre5, ele se
preocupa com quem "esteja procurando introduzir entre nós o mito da
negritude, com intenções sectariamente ideológicas".6 A palavra
"sectária" é sintomática. Ela acusa o desconforto com a parte que não
se inclui no todo, na "hierarquia" que constitui uma espécie de
totalidade orgânica. Sua crítica, de forma conseqüente, se dirige às elites, a
quem cabe "aprimorar" a relação entre as partes e levá-las a um
mínimo de tensão interna. A reflexão gilbertiana se revela presa a uma noção de
identidade nacional indivisa, que hipostasia e no limite impede a tematização
de interesses divergentes.
Ao mesmo tempo, as formas de luta contra o racismo não podem desconhecer a
eficácia do mito da democracia racial. Não apenas a eficácia da mentira
perversamente mantida para fins de dominação, que é sem dúvida um de seus
aspectos, quer haja ou não consciência de quem o pratica. Penso na eficácia de
seu componente ambivalente, que permite pensar a interação e a assimilação
cultural como algo desejável e como um valor, o que está longe de ser evidente
no mundo em que vivemos, e não apenas nos países ditos pré-modernos e
fundamentalistas.
Para Anthony, Marx a estratégia de enfatizar uma origem cultural africana
diversa teve menos sucesso no Brasil que nos Estados Unidos porque esse
discurso foi "incorporado pelo Estado brasileiro", de resto
confirmando sua tendência corporativa e inclusiva (Marx 1997: 261). Novamente,
acho que estamos diante de uma evidente subordinação da variável cultural em
relação à institucional. É como se a variável cultural não tivesse um peso
específico próprio, podendo ser instrumentalizada para a luta política com
maior ou menor sucesso. Também esse ponto pode ser percebido de outro modo. O
sucesso do movimento negro americano em usar o tema da origem africana
distinta, muito provavelmente tem relação com o fato de que os negros
americanos não eram percebidos como construtores da "comunidade ancestral
americana" em igualdade de direitos com os brancos. Nesse caso, a origem
africana comum forjava de forma efetiva um contradiscurso e uma solidariedade a
partir de um destino compartilhado. Essa solidariedade só me parece possível
pelo fato, de resto amplamente confirmado pelo rico material histórico trazido
à baila por Marx em seu livro, de que os brancos efetivamente não viam no negro
nenhuma contribuição cultural ou moral efetiva para a construção da nação
americana.
O caso brasileiro é bastante diverso. Jamais houve um projeto consciente de
construção da sociedade e da nação no sentido americano, visto desde o começo
como uma experiência única e exemplar, sob a forma de um contrato sagrado entre
os pioneiros e seu Deus, a semelhança do contrato dos judeus com Jeová, de
resto explicando a notável semelhança ideológica entre judeus e americanos.
Esse contrato entre puritanos, cuja importância para a vida civil e política
americana moderna não pode ser esquecido, já existia antes da chegada dos
negros, os quais não eram vistos como parte do contrato (Bellah, 1990 e 1991).
Apenas na década de 1960, com John Kennedy, e especialmente Lyndon Jonhson,
temos a explícita integração dos negros à comunidade política americana, a
partir precisamente de uma reinterpretação do contrato original de modo a
incluí-los (Munch 1993: 277).
No Brasil, ao contrário, com a abertura ao mundo civilizado no século XIX, os
ansiados valores da modernidade européia e norte-americana eram estranhos tanto
a negros quanto a brancos ou "morenos". Assim, um aspecto não levado
em consideração por Marx é o fato de que um aspecto central do racismo é o
"eurocentrismo" (Fraser 1997: 22), ou seja, a associação consciente e
inconsciente de traços morais privilegiados à "brancura" e de traços
desvantajosos a pessoas de cor em geral, negros, morenos, amarelos etc. Em
Hollywood, não são apenas os negros que interpretam os papéis de criminosos,
violentos, tolos e primitivos, mas também o latino-americano, o chinês, o árabe
etc., ou seja, todo aquele não diretamente associado ao núcleo do projeto
ocidental, puritano e individualista.
Nesse sentido, um ponto importante nesse tema é a consideração simultânea de
dois aspectos constitutivos da modernidade ocidental: por um lado, seu
potencial pedagógico, aquilo que Weber chamaria sua validade universal em
comparação com outras culturas, de aprendizado moral no sentido do
universalismo ético e do ideal da igualdade, e, por outro, seu elemento de
dominação arbitrária, magistralmente analisada por Norbert Elias, na qual a
"civilização" se revela principalmente como um elemento diferenciador
entre classes e nações (Souza 1999). Decisivo no argumento de Elias é que essa
necessidade de distinção social não é intrinsecamente "racional", ou
seja, baseada em alguma espécie de necessidade social fundamental. Ao
contrário, ela muitas vezes é também, em grande medida, pelo menos, arbitrária,
estigmatizando alguns comportamentos e favorecendo outros de acordo com as
necessidades de legitimação dos estratos sociais superiores. A justificação
desses comportamentos como mais racionais, mais saudáveis ou higiênicos é
posterior à sua estigmatização.
Nesse sentido, conceitos como razão e racionalidade são, para Elias, expressões
coisificadas (racionalizações, no sentido freudiano) de uma certa direção
específica da economia instintiva. Desse modo, não existe razão, mas no melhor
dos casos, racionalização (Elias 1990: 378), ou seja, certa direção de
desenvolvimento originada a partir da concorrência entre grupos sociais, assim
como pela concorrência dos indivíduos dentro desses grupos. O resultado
reflete, portanto, um contexto contingente de poder relativo específico (Bogner
1989: 21), no qual a "posse" de certas características externas de
comportamento se destina à legitimação de situações fáticas de dominação.
Esse último elemento aponta precisamente para o potencial de solidariedade
entre dominadores que se reconhecem mutuamente como dividindo um padrão
cultural comum. Embora devamos nos precaver contra perspectivas que absolutizem
o elemento do poder em detrimento do elemento de aprendizado ético do
racionalismo ocidental, um adequado equilíbrio entre essas duas perspectivas se
revela muito frutífero.
Desse modo, é fundamental, em uma comparação que leve a sério o elemento
cultural, a disparidade entre uma nação fundadora do ocidente, retirando sua
auto-estima desse fato, e uma nação com "complexo de inferioridade",
como afirma o próprio Marx em outro contexto (Marx 1997: 34). Por conta disso,
tudo que iria servir de elemento formador de algum sentimento de
"brasilidade" e de especificidade cultural seriam elementos da
cultura negra: a música, a dança, o espírito festivo, a forma
"dionisíaca" de jogar futebol etc. Nesse contexto, não surpreende que
uma origem africana específica seja percebida como patrimônio comum de todos os
brasileiros. Um Estado arregimentador como o de Getúlio Vargas pode certamente
tentar se aproveitar dessa tradição, mas não pode criá-la. O Estado todo-
poderoso do argumento de Marx, uma espécie de Deus ex machina, ocupa o lugar,
na verdade, do peso específico da variável cultural.
O fato de grande parte de nossa auto-estima estar ligada ao tema da democracia
racial é algo que pode ser aprofundado e aproveitado positivamente,
precisamente pela oposição entre a idéia e a realidade, para mudar o contexto
de desigualdade racial flagrante. Em pesquisa sobre racismo e preconceito
realizada em setembro de 1998 no Distrito Federal, encontramos resultados
interessantes para o tema da democracia racial.7
Exceto para o segmento de menor escolaridade, a convivência entre as diferentes
raças é percebido como o cimento identitário mais importante.
O aumento da militância negra nas últimas décadas, assim como a crescente
importância desse debate na comunidade científica atraíram a atenção do Estado
brasileiro. Um debate realizado em 19968 e promovido pelo Departamento de
Diretos Humanos do Ministério da Justiça trouxe sugestões interessantes para o
tema do combate ao racismo. O tema do seminário nos interessa de perto, uma vez
que sua realização visava precisamente a comparação dos casos brasileiro e
americano, de modo a especificar as formas mais adequadas de combate ao racismo
no Brasil. Especialmente interessantes, para o caso brasileiro, parecem aquelas
sugestões que combatem a desigualdade flagrante entre brancos e negros no
Brasil a partir de uma referência apenas indireta à questão da cor.
Para George Reid Andrews, por exemplo, o modelo da revolução cubana que
eliminou as diferenças raciais em saúde, expectativa de vida, educação e
emprego a partir de programas definidos não pelo critério racial, mas pelo de
classe, seria uma perspectiva interessante. Em uma sociedade como a brasileira,
na qual os mais pobres são negros, qualquer programa dirigido a esses setores
teria impacto direto na questão racial (Andrews 1997: 142). Acresce-se a isso a
dificuldade prática, em um país com alto grau de miscigenação, de verificar
quem seriam os beneficiados de tais programas. Quanto à institucionalização de
programas afirmativos, sua posição é mais ambivalente: "Tendo vivido a
minha vida inteira em uma sociedade que ainda está sofrendo as conseqüências de
ter institucionalizado as divisões raciais, vejo com certo horror o Brasil
entrar nesse poço sem fundo, cujos efeitos persistiriam muito depois de
terminarem os programas mesmos" (Andrews 1997: 143).
Para ações que atacassem o problema em sua dimensão especificamente racial e
cultural, e não apenas em conjunto com o elemento de classe, poderíamos pensar
em uma reflexão interessante que Nancy Fraser propõe nesse contexto. Ela
distingue analiticamente as ações afirmativas das transformativas (Fraser 1997:
23). As primeiras procuram compensar injustiças sem tocar no pano de fundo
cultural que as provoca. As últimas, ao contrário, procuram reestruturar o
próprio pano de fundo cultural que produz a injustiça. Essa idéia me parece
interessante e aponta para uma solução específica de combate ao racismo em um
contexto como o brasileiro.
O racismo brasileiro, por suas peculiaridades culturais, poderia ser combatido
com ações visando o segundo caso, e não o primeiro. Para Roberto DaMatta,
pensando no mesmo sentido, campanhas utilizando sobretudo a televisão, nas
quais os brasileiros se vissem confrontados com seus mecanismos implícitos de
exclusão racial, seriam especialmente indicadas (DaMatta 1997: 74). A discussão
aberta do tema nas escolas e na mídia poderia certamente ajudar a transformar
um belo mito em realidade. O melhor exemplo nesse ponto talvez seja a Alemanha
Federal, a qual, a partir do enfrentamento corajoso e público de seu passado
recente, logrou formar uma das juventudes mais democráticas e liberais da
Europa atual.
Desse modo, estaríamos lidando com uma dimensão não instrumental da cultura.
Essa seria uma forma de aproveitar o potencial cultural e simbólico do mito da
"democracia racial", levando-o às suas últimas conseqüências. Aqui, é
necessário chamar a atenção para o fato de que os mitos não são simples
mentiras. Mitos não são falsos ou verdadeiros do mesmo modo que teorias
científicas. Mitos não pretendem descreverrealidades. Uma vez que o mito serve
primariamente para conferir um sentidoa essa realidade (Bellah, 1991), ele
visa, antes de mais nada, à produção de solidariedade social e à viabilização
de projetos coletivos. O fato de grande parte de nossa auto-estima estar ligada
ao projeto da miscigenação racial e da integração cultural é um fato
sociologicamente relevante e extremamente importante para que políticas
públicas possam eficazmente mudar a realidade cotidiana das pessoas que teriam
mais a ganhar com isso.
Notas
1.
Os dois casos são argumentados convincentemente no decorrer do livro como
casos específicos de uma tendência mais geral da formação do Estado nacional
moderno: a exclusão de etnias, grupos ou classes como forma de consolidar
solidariedades internas. Além do caso óbvio da Alemanha nazista, Marx cita
também a Espanha, unificada pela exclusão dos judeus, e a Rússia, pela exclusão
de uma classe capiltalista incipiente.
2.
Para Freud, tanto o sadismo quanto o masoquismo são componentes de toda
relação sexual "normal", desde que permaneçam como componentes
subsidiários. É apenas quando o inflingir ou receber a dor se transformam em
componente principal, ou seja, quando passam a ser o objetivo mesmo da relação,
que temos o papel determinante do componente patológico.
3.
Essa é a opinião também de Ricardo Benzaquen (1993: 98). Na verdade, em Casa-
grande & senzala a ênfase é efetivamente na igualdade de condições nos dois
países. Recentemente, no entanto, a revista Veja publicou um trecho inédito de
uma conferência proferida por Freyre na Universidade de Stanford em 1931 '
portanto dois anos antes do lançamento de Casa-grande & senzala ' na qual
Freyre, sem se referir explicitamente ao caso americano, supõe uma "imensa
distância" entre a escravidão nos domínios portugueses e aquela praticada
por outros europeus em suas colônias (Veja, 15 de setembro de 1999, p. 71).
4.
Devo o melhor esclarecimento desse ponto e de suas consequências a comentários
de Sérgio Costa a uma versão anterior deste texto.
5.
Entrevista concedida a Lêda Rivas em 15 de março de 1980.
6.
Entrevista concedida a Renato Carneiro Campos em Recife, 1970.
7.
Pesquisa realizada em todo o Distrito federal e coordenada por mim e pelo
professor Franz Hoellinger da Universidade de Graz, Áustria.
8.
As contribuições ao Seminário foram reunidas em Souza (1997).