Passos em falso da razão antiimperialista: Bourdieu, Wacquant, e o Orfeu e o
Poder de Hanchard
São os estudos afro-americanos, como definidos e praticados nos Estados Unidos,
um instrumento do imperialismo cultural dos EUA? Devem as discussões de raça,
desigualdade racial, ou opressão racial em outras sociedades, quando conduzidas
por norte-americanos, serem vistas como "intrusões etnográficas
brutais"? São os termos "raça" e "racismo" conceitos
perniciosos "que os EUA exportam e impõem" aos países
"dominados" pelo imperialismo cultural americano? E devem os estudos
abertamente anti-racistas, levados a cabo nos EUA sobre outros países, serem
vistos como prova da infiltração de "perspectivas racistóides" norte-
americanas em todos campos intelectuais nacionais? Estas estão entre as teses
centrais de uma vigorosa polêmica ocorrida em 1998 e protagonizada por dois
sociólogos franceses, Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, em um artigo traduzido
para o inglês em 1999 com o título "Sobre as Artimanhas da Razão
Imperialista" (Bourdieu & Wacquant, 1999:44, 46, 48).1
Como prova, Bourdieu e Wacquant chamam a atenção para o recente diálogo
acadêmico transnacional acerca da raça no Brasil, o país no hemisfério
ocidental com a maior população de descendentes de africanos. Eles denunciam a
"imposição" de uma "tradição americana [sic]",2
"modelo" e "dicotomia de raça" ao Brasil, através da
pesquisa levada a cabo "por [norte-] americanos e latino-americanos
formados nos EUA" (ibidem:44). Mais amplamente, sugerem que as recentes
publicações lidando com raça, desigualdade racial, e mobilização racial no
Brasil representam a transposição de um problema estrangeiro (dos EUA) para uma
sociedade em que a noção de "raça" não faz sentido. Para estes
estudiosos franceses ' nenhum dos dois especialistas em Brasil ' as comparações
entre as realidades brasileira e norte-americana em termos de suas diásporas é,
por definição, uma "intrusão etnocêntrica" por parte da nação mais
poderosa. Em particular, atacam como um "veneno etnocêntrico" uma
monografia de 1994, escrita por Michael Hanchard a respeito dos movimentos
brasileiros de "consciência negra", Orfeu e o Poder: O Movimento
Negro do Rio de Janeiro e São Paulo, Brasil, 1945-1988(ibidem; Hanchard,
1994a).
Como um historiador com vinte anos de pesquisa no e sobre o Brasil, pretendo
dissecar a caracterização errônea de Bourdieu e Wacquant do presente diálogo
entre EUA e Brasil acerca da diáspora africana no Novo Mundo. Ainda que tenha
simpatia pela retórica antiimperialista destes autores, identificarei passos em
falso fundamentais e erros de julgamento que comprometem o projeto intelectual
e político que pretendem defender. Depois de caracterizar brevemente seu modelo
esquemático de circulação intelectual transnacional, apresentarei sua
representação radicalmente equivocada de Orfeu e o Poder de Michael Hanchard, e
situarei a contribuição deste último dentro da literatura mais ampla sobre a
dinâmica de raça e cor no Brasil. Terminarei com uma breve discussão a respeito
do atual boom das publicações acadêmicas, escritas tanto por brasileiros quanto
norte-americanos, que abordam questões da raça, cor e nação no Brasil dentro de
uma perspectiva mais ampla da diáspora no Novo Mundo.
Circulação Intelectual, a "Mcdonaldização do Pensamento" e Raça
Ao evitar eufemismos, Bourdieu e Wacquant quebraram um tabu contemporâneo
contra a menção aberta do imperialismo dos EUA e suas manifestações ideológicas
que se seguem a ele. Rejeitam devidamente o termo globalização, que "tem o
efeito, se não a função, de fazer submergir os efeitos do imperialismo em um
ecumenismo cultural, ou fatalismo econômico, e de fazer as relações
transnacionais de poder parecerem uma neutra necessidade". Esta
"crença [norte] americanocêntrica na 'globalização'", continuam, é
"compreendida, pura e simplesmente como a [norte-] americanização do mundo
ocidental e [...] do universo inteiro". A habilidade dos arquitetos da
globalização de evitar a investigação e a crítica intelectuais sérias ' sugerem
' não deixa de forma alguma de ser relacionada ao "remodelamento das
relações sociais e práticas culturais nas sociedades avançadas de acordo com o
padrão dos EUA" que é "hoje em dia aceito com resignação," se
não com "um entusiasmo envergonhado" (Bourdieu e Wacquant, 1999:
42,46, 43).
Em seu tom mais cuidadoso, Bourdieu e Wacquant criticam a "difusão do
'pensamento dos EUA' nas ciências sociais" e, mais particularmente,
"a hegemonia da produção dos EUA" no mercado intelectual mundial. Em
seu tom mais histérico, descrevem a exportação de idéias e conceitos,
"freqüentemente corrompidos e apagados", como a "mcdonaldização
proliferante do pensamento". A "doxa intelectual com pretensões
planetárias" dos Estados Unidos está se tornando rapidamente "o
lugar-comum da grande nova vulgata global, que uma repetição infinita na mídia
paulatinamente transforma em bom senso universal". Materializadas em uma
série de termos "indefinidos e vagos" estas tendências nocivas são
exprimidas "em um jargão extraordinário, uma terrível (e aterrorizante)
língua franca internacional", que tem crescentemente "atravessado o
Atlântico em plena luz do dia ou... tem sido contrabandeada". Desta
maneira, "as noções do senso comum acadêmico [norte] americano [chegaram]
a penetrar" o campo intelectual de países-alvo na forma
"insidiosa" de "termos isolados aparentemente técnicos" que
funcionam "como verdadeiros motes e palavras políticas codificadas"
(entre os exemplos dados estão tais ortodoxias neoliberais como
"flexibilidade do trabalho", "guetificação" e
"subclasse urbana"). Estas tendências do pensamento americano ' os
autores notam de forma acertada ' são marcadas pela negação da idéia de classe
e por "um tipo de despolitização, por princípio, de problemas sociais e
políticos", que ficam "desprovidos de qualquer referência a qualquer
tipo de dominação" (ibidem: 50, 52, 46, 47, 52, 42, 53-4, 54, 43, 42, 49).
No entanto, a apressada descrição oferecida por Bourdieu e Wacquant os deixa
com uma questão não resolvida: como devemos explicar "a extraordinária
força da imposição" do "imperialismo cultural dos EUA?" Como uma
resposta parcial, citam o "papel fundamental exercido pelas mais
importantes fundações filantrópicas e de pesquisa americanas" e a
"internacionalização das publicações acadêmicas". Todavia, admitem
que esses fatores, mesmo quando "somados [,] não podem explicar de forma
completa a hegemonia da produção dos EUA" no "mercado intelectual
mundial". Ao explicar a predominância dos EUA, Bourdieu e Wacquant
selecionam colaboradores não-norte-americanos para sua crítica: aqueles
"passeurs semi-acadêmicos, 'carreiristas' e importadores de produtos
culturais fajutos ou pré-fabricados" nos "países-alvo" que são
atraídos pelos "lucros materiais e simbólicos" a serem obtidos de
"uma aderência mais ou menos assumida ou envergonhada ao modelo derivado
dos Estados Unidos" (idem:54, 46-7).
A dinâmica da exportação intelectual do imperialismo dos EUA ' argumentam
Bourdieu e Wacquant ' obedece à mesma lógica de outros produtos de exportação
"da grande indústria cultural [norte] americana como o jazz ou o rap"
ou os jeans: eles "devem parte da sedução quase universal que exercem
sobre os jovens ao fato de serem produzidos e usados por minorias
subordinadas". Por analogia, os "falsos universalismos"
intelectuais promovidos pelos EUA adquirem um "chamativo de mensagens de
libertação" por causa de sua associação com "disciplinas tidas como
marginais ou subversivas, tais como os Estudos Culturais, Estudos de Minoria,
Estudos Gay, ou Estudos Feministas". De fato, "'intelectuais
progressistas' dos EUA, ou 'intelectuais de cor' no caso de desigualdade
racial" desempenham um papel especial, justamente porque "pareceriam
estar acima de qualquer suspeita para promover os interesses hegemônicos"
dos EUA. Desta forma, "tais mistificadores mistificados [...] transportam
sem saber a parte oculta ' e freqüentemente maldita ' dos produtos culturais
[norte-americanos] que são postos em circulação" pelo mundo inteiro (idem:
50-1).
Impacientes e excessivamente críticos, Bourdieu e Wacquant sofrem de uma visão
afunilada em sua caricatura geral e indiferenciada das tendências intelectuais
"americanas" e sua difusão internacional. Demonstram a mais acentuada
e impressionante cegueira, intelectual e política, quando descrevem movimentos
e tendências intelectuais anti-racistas como um exemplo-chave do imperialismo
cultural dos EUA em ação. Em seu ponto de vista, um dos mais perturbadores
desdobramentos tem sido a habilidade desta "sociodice racial (ou
racista)" norte-americana "de se globalizar recentemente", que
apresentam como "uma das provas mais marcantes da dominação simbólica
exercida pelos EUA sobre qualquer tipo de produção acadêmica ou semi-
acadêmica". Para estes intelectuais franceses, os presentes esforços por
parte de norte-americanos em abordar questões de opressão racial e étnica no
exterior inevitavelmente refletem a tendência geral da "visão de mundo
[norte] americana [...] de se impor como um ponto de vista universal,
especialmente quando se depara com questões como de 'raça'" (idem: 45-6)
Para Bourdieu e Wacquant, o apelo internacional deste discurso racial dos
Estados Unidos advém, em grande parte, do seu anti-racismo ostensivo; na
realidade, os autores misturam discursos norte-americanos, tanto racistas
quanto anti-racistas, e apresentam o processo como "a quase
universalização do conceito popularizado de 'raça' nos EUA, como um resultado
da exportação pelo mundo inteiro de categorias acadêmicas dos Estados
Unidos". "'Teorias' de 'relações raciais' norte-americanas não são
mais do que "transfigurações fracamente conceitualizadas, infinitamente
renovadas e atualizadas... dos estereótipos raciais mais comumente usados"
que servem para justificar a "dominação dos brancos sobre os negros"
na sociedade norte-americana. Depois de notar o grande peso da opressão racial
na história dos Estados Unidos, asseveram os autores que os discursos
"raciais" derivados dos EUA servem, antes de mais nada, para
"ocultar" a "divisão de casta" dentro da sociedade norte-
americana "ao submergi-la no universo de visões diferenciadoras 'revistas'
através de lentes dos EUA por meio da 'globalização'" (idem: 42).
Para provar seu argumento, Bourdieu e Wacquant voltam-se para o papel dos EUA
no debate "em torno da 'raça e identidade'" no Brasil, marcado por
"uma intrusão etnocêntrica similar, ainda que mais brutal" do que
aquelas criticadas no caso europeu, "uma que é ainda mais ameaçadora, já
que toca em um domínio mais próximo à realidade política". Os últimos
vinte anos de pesquisa sobre a desigualdade racial no Brasil são apresentados
como uma imposição unilateral dos Estados Unidos em uma sociedade
substancialmente sem racismo. O processo que descrevem é aquele no qual
[...] uma representação histórica, oriunda do fato de que a tradição
[norte] americana sobrepõe a uma realidade social infinitamente mais
complexa uma dicotomia rígida entre brancos e negros [...] impõe-se a
países onde os princípios operativos de visão e divisão das
diferenças étnicas, codificadas ou práticas, são bem diferentes e
que, como o Brasil, eram até recentemente considerados como contra-
exemplos ao "modelo [norte] americano". (idem: 44, 53, 44-
5)
As iniciativas dos Estados Unidos a respeito da questão racial no Brasil '
insistem ' são elaboradas "para encorajar os líderes do Movimento Negro
[...] a denunciarem a categoria do pardo (um intermediário entre o branco e o
preto, que se refere a pessoas de aparência física mista)" de forma a
"mobilizar todos os brasileiros de origem africana sobre a base de uma
oposição dicotômica entre 'afro-brasileiros' e 'brancos'". Além disso,
estes estudiosos seguem "o mito [norte-americano] segundo o qual todas as
sociedades são 'racistas'", mesmo aquelas nas quais "as relações
'raciais' parecem ser, à primeira vista, menos distantes e hostis" do que
nos Estados Unidos (idem: 47, 44). "A difusão da doxa racial dos EUA
dentro do campo acadêmico brasileiro" ' Bourdieu e Wacquant sugerem '
"tem sido incentivada por financiamentos das fundações norte-americanas
para programas de pesquisa e intercâmbio acadêmico sobre questões raciais em
instituições brasileiras", iniciativas governadas ' notam com irritação '
por "critérios de ação afirmativa dos EUA", que, acreditam, geram
"problemas insuperáveis" no Brasil, dada a ausência da dicotomia
branco/negro.
3 "A corrente intelectual neste intercâmbio", insistem, "flui
apenas em uma direção" com os brasileiros, especialmente nos movimentos
negros, sendo incentivados a retraduzir "problemas sociais de relevo
atuais em um vocabulário importado dos EUA (etnicidade, identidade, minoria,
comunidade, fragmentação etc.)" (idem: 46, 50).
É curioso, dadas as suas posições indiferentes à cor, que Bourdieu e Wacquant
decidam chamar a atenção em especial à "raça" de um pesquisador,
Michael Hanchard, descrito como um "cientista político afro-
americano", apesar de não apresentarem autores norte-americanos com quem
concordam, como Carl Degler, como "historiadores euro-americanos".
Bourdieu e Wacquant julgam a monografia de 1994 de Michael Hanchard, Orfeu e o
Poder, como sendo o epítome do imperialismo cultural dos EUA nesta área. Este
texto é "um veneno etnocêntrico", insistem, para o qual antídotos
devem ser buscados e divulgados (como um recente livro escrito por outro autor
norte-americano, Anthony Marx, que não é identificado como um "cientista
político euro-americano", e cujos argumentos, de fato, não são comparados
aos de Hanchard) (idem: 44).
A acusação a Hanchard é simples e direta. Hanchard ' sugerem Bourdieu e
Wacquant ' se esquece que as conceitualizações raciais norte-americanas
[...] têm suas raízes na realidade complexa e controversa dos
[Estados Unidos como] uma sociedade histórica particular, agora
tacitamente constituída como um modelo para todas as outras e uma
unidade de medida para todas as coisas. [Assim, ele] traz consigo
todas as particularidades e os particularismos [do caso norte-
americano] sem nunca levá-los em consideração conscientemente.
Em particular, ele aplica categorias raciais norte-americanas à situação
brasileira, com o seu contínuo de cor, e ao mesmo tempo faz "da história,
particular, do Movimento dos Direitos Civis dos Estados Unidos, o padrão
universal para todos os grupos oprimidos pela cor (ou casta)". O estudo de
Hanchard ' defendem ' é ainda mais minado pela sua recusa dogmática em expor
suas idéias ou desejos "ao menor teste empírico" em temos da
realidade brasileira" (idem).
Para Bourdieu e Wacquant o problema com Orfeu e o Podervai ainda mais longe.
Como outros norte-americanos, Hanchard procura "[...] provar que,
contrariamente à imagem que os brasileiros têm de sua própria nação, o país das
'três tristes raças' [...] não é menos 'racista' do que outros e que os
'brancos' brasileiros não têm nada a invejar dos seus primos norte-americanos
neste sentido". Com efeito, dizem que Hanchard acredita que "o que é
pior, o racismo mascarado brasileiro deveria ser visto como o mais perverso,
justamente por ser dissimulado e negar-se a si próprio" (idem).
Em vista desta linguagem desdenhosa e altamente derrogatória, o leitor poderia,
com razão, esperar que os autores oferecessem uma crítica enfática e
cuidadosamente articulada do livro de Hanchard. Se seus argumentos fossem
precisos, seria relativamente fácil citar capítulos e páginas para demonstrar a
natureza flagrante dos erros de Hanchard. Porém, para nossa surpresa, os
autores não oferecem uma única citação ou referência direta às páginas de Orfeu
e o Poder. Ainda que prejudicados por um conhecimento superficial da literatura
relevante nas Ciências Sociais sobre a questão racial, eles oferecem uma
representação escandalosamente errônea das proposições centrais desta recente e
significante contribuição para o debate em torno de raça, cor e nação no
Brasil. Com efeito, os leitores familiarizados com o livro de Hanchard podem
imediatamente reconhecer a natureza falsa dos argumentos de Bourdieu e Wacquant
sobre o uso da comparação entre Brasil e Estados Unidos em Orfeu e o Poder.
"Raça", "Racismo" e "Mobilização Racial" em
Orfeu e o Poder:
4 Uma Perspectiva Norte-Americana a Respeito do "Quebra-Cabeça" ou da
"Charada" Brasileira
Bourdieu e Wacquant acusam Hanchard de mobilizar três "idéias fora do
lugar" que definem como sendo essencialmente norte-americanas. Contudo,
estão simplesmente errados quando asseveram que Hanchard utiliza categorias
raciais oriundas de uma conceitualização norte-americana de "raça"
definida por descendência. De fato, Hanchard rejeita, tanto em um nível teórico
quanto prático, um conceito essencialista (quanto mais biológico) de raça.
"Raças" e diferenças raciais, insiste, são construídas socialmente
(Hanchard, 1994a:14; 1991:86-7) e rejeita enfaticamente a noção de que a
"raça" seja uma quantidade conhecida ou que possa ser lida ou
entendida automaticamente devido à sua ligação a um fenótipo (aparência).
A abordagem construcionista de Hanchard à raça, que não é ponto pacífico entre
as comunidades afro e euro-norte-americanas, permite que ele admita francamente
que
[...] em um país como o Brasil [...] qualquer abordagem que
automaticamente pressuponha a existência de duas ou mais 'raças'
fenotipicamente distintas limitaria severamente os esforços do
pesquisador para explicar empírica e teoricamente a 'raça' em questão
[...]. Não há 'dados' para as filiações étnicas ou raciais [e seus]
significado e interpretação estão sempre sujeitos a revisão, mudança
[e] negociação. (idem, 1994a:15)
A peculiaridade brasileira, conclui, reside no fato de que "a ausência de
'dados' raciais e étnicos é mais profunda [no Brasil] do que em outros
países" (idem).
Desta maneira, Hanchard está longe de oferecer uma versão reciclada do
"conceito popular" norte-americano de raça. "O termo raça
utilizado neste estudo", escreve Hanchard, "refere-se ao emprego de
diferenças fenotípicas como símbolos de distinção social [...]. Estes símbolos,
significados e práticas materiais diferenciam sujeitos dominadores e
subordinados de acordo com suas categorizações raciais". Diferentemente de
Bourdieu e Wacquant, todavia, ele de fato insiste que a "raça," neste
caso, é não apenas um marcador de diferenças fenotípicas, mas também de status,
classe e poder político. Neste sentido, "as relações raciais são relações
de poder",5 através das quais emergem "modos de consciência
racial", definidos mais geralmente como "o resultado dialético do
antagonismo entre dois ou mais grupos definidos como 'raças' em uma dada
sociedade" (ibidem:14; 1991:86-7). Discordando de uma posição puramente
racial, ele caracteriza como problemática "a própria noção de uma
consciência singular e unitária que possa mobilizar um grupo social inteiro
[...] tendo em vista o grande número de variáveis divisoras (sexo e classe
entre elas) que complicam as formas de identificação". Finalmente, ele
também adverte que "um esforço não-crítico de enfatizar a autonomia
relativa da dominação racial e étnica vis-à-vis relações de classe" corre
o "risco de um reducionismo determinista" (ibidem:97).
A adoção por parte de Hanchard do conceito de "raça social" (um termo
cunhado por Charles Wagley, 1959) traz consigo o reconhecimento de que a
dinâmica da subordinação de povos descendentes de africanos no Brasil e nos
EUA, e as estruturas discursivas que as envolvem, diferem de forma
significativa. Diferentemente de seus críticos franceses, Hanchard reconhece
que há racismos e não simplesmente um racismo em jogo na diáspora africana: a
existência, não de um "racismo no singular", mas, ao invés, no
plural, para usar as palavras de Paul Gilroy (ibidem:17). Negando que existam
racismos melhores ou piores, Hanchard reconhece claramente que os sistemas de
dominação racial variam não apenas em sua lógica intelectual, modos de operação
e de manifestação, mas em seu impacto nas subjetividades dos grupos tanto super
quanto subordinados. Assim, Hanchard junta-se a outros estudiosos que
recentemente têm chamado a atenção para a variação nas formas e termos da
opressão racial e, conseqüentemente, nas formas de resistência (Butler, 1997;
Segato, 1998).
Assim como em seus outros argumentos, Bourdieu e Wacquant estão enganados na
forma como situam Orfeu e Poder dentro do contexto de setenta anos de pesquisa
e discussão contínuas das relações de raça nas Américas, com uma ênfase
especial na experiência negra no Brasil.6 Desde os anos 30, várias gerações de
estudiosos ' brasileiros, norte-americanos, europeus e africanos ' têm lidado
com a dificuldade de se incorporar o Brasil no mesmo quadro conceitual que o
caso específico dos EUA. As posições teóricas têm mudado com o tempo,
dependendo da conjuntura política dentro das respectivas sociedades, mas a
discussão tendeu a girar em torno da questão de onde colocar a ênfase ' se nas
diferenças ou nas semelhanças entre a experiência histórica da escravidão
racial e suas repercussões nos EUA e Brasil (Hellwig, 1992; Guimarães, 1995a,
1995b). Em nenhum caso, no entanto, os estudiosos negam que se possa encontrar
tanto semelhanças quanto especificidades nas histórias dos povos descendentes
de africanos nestas duas sociedades do Novo Mundo.7
As críticas de Bourdieu e Wacquant sobre Hanchard teriam sido, com efeito, bem
mais apropriadas se fossem dirigidas contra a tendência dominante da pesquisa
sobre raça e cor nos anos 80. Foi durante o final dos anos 70 que uma nova
militância a respeito de raça e racismo emergiu tanto no Brasil, com a fundação
do pequeno mas bem visível Movimento Negro Unificado ' MNU, quanto entre
estudiosos brasileiros e estrangeiros. Com uma natureza denunciadora, esta onda
de pesquisa radicalizou a crítica revisionista das décadas de 50 e 60, que foi
a primeira a atacar o argumento de que o Brasil não seria racista. Operando em
solidariedade com os protestos negros no Brasil, a geração de estudiosos depois
de 1978 tendeu a adotar uma abordagem quantitativa com vistas a provar, de uma
vez por todas, a falsidade do mito da democracia racial. Ao fazer isso,
esperava fortalecer os movimentos negros incipientes dando-lhes apoio
intelectual por meio do argumento de que o sistema racial brasileiro seria
melhor entendido como fundamentalmente birracial, em vez de multirracial, e que
as desigualdades que afetam os povos descendentes de africanos estariam
relacionadas a padrões abrangentes de preconceito e discriminação.
Em sua forma mais enfática, a pesquisa realizada depois de 1978 asseverava que
branco e negro deveriam ser consideradas as categorias raciais fundamentais no
Brasil, em vez de negro, pardo e branco, ou branco e não-branco (para a
argumentação mais extensiva a este respeito, ver Andrews, 1991a; 1998). Ao
fazer isso, pode-se dizer que se adotava a tática política do MNU como a base
intelectual para a sua análise.8 Ao mesmo tempo, o objetivo era claro: expor a
falsidade da prolongada defesa do Brasil como uma sociedade racialmente livre
por meio da mobilização de dados estatísticos (especialmente a PNAD,
recentemente disponível) de forma a revelar, em oposição à crença comum a
brasileiros de todas as cores, que havia desigualdades raciais,
independentemente de como fossem medidas. No mínimo, estudiosos como Nelson do
Valle Silva (1978, 1985), Carlos A. Hasenbalg (1979a, 1979b, 1985), Charles
Wood e José de Magno Carvalho (1988) obtiveram resultados surpreendentes que se
punham em contradição à forte opinião nacional de que não haveria impedimentos
raciais para a ascensão social ou o sucesso.9 Além disso, eles tendiam a
refutar com dados estatísticos a suposição de que os brasileiros de raça mista
ocupavam uma posição "média" entre negros e brancos, a hipótese da
existência de "uma porta de escape mulata", como foi batizada por
Carl Degler (1986).
Fazendo uma retrospectiva, a ênfase provocadora destas obras com relação à
semelhança entre os EUA e o Brasil poderia ser vista como oriunda de um
entendimento errôneo, ainda que louvável, a respeito do que constitui a
solidariedade anti-racista. Quando vulgarizada e convertida em discursos de
comício, no entanto, esta postura iconoclástica chega quase a postular um dogma
racial essencialista ou primordialista (ou seja, a opinião de que, nas palavras
de Michael Hanchard, os
[...] negros têm uma posição unilateral em relação à sua própria
negritude (identidade e experiência) [ou seja,] a pressuposição de
que todos os negros são os mesmos, oprimidos da mesma maneira em
todos os lugares e que devem reagir de uma forma absoluta [e
idêntica]. (Hanchard, 1991:91-2)10
Hanchard reconhece corretamente as limitações de tal homogeneização e dos
"discursos totalizadores dentro da experiência [da] diáspora
africana", e francamente admite que a esperança em torno de "uma
afinidade universal e absoluta para e entre os povos da diáspora africana tem
sido tão ilusória quanto a formação de um proletariado internacional"
(ibidem:92).
Desta forma, Hanchard recusa-se a adotar uma solidariedade retórica baseada em
uma visão romântica de traços comuns. Sua análise também não depende da
esperança, momentaneamente defendida nos anos 80, de que as resistências euro e
afro-brasileira à mobilização racial evaporariam sob o impacto combinado de uma
nova geração de militância afro-brasileira e de estudos engajados. Este tipo de
resposta solidária mais simples é melhor exemplificado pelos escritos do
sociólogo norte-americano Howard Winant, que defendia, por exemplo, que já em
1988 "um consenso substancial existia entre os negros [brasileiros] [e até
mesmo entre a maioria dos brancos] de que a 'democracia racial' era uma farsa e
uma fraude e que o racismo continuava a dominar a sociedade brasileira"
(Winant, 1996:86-87). Em contraste, especialistas em Brasil, incluindo os
recentes trabalhos de Twine (1997) e Sheriff (1997), são bem mais realistas a
respeito da profundidade e da extensão deste desmascaramento, altamente
desejado, do racismo brasileiro. Como nota Richard Graham, o mito da democracia
racial brasileira "foi completamente demolido no meio acadêmico nos
últimos trinta anos, mas permanece profundamente entrincheirado na opinião
popular e da elite, até mesmo entre os negros" (Graham, 1995). Mitchell
também nota a "insistente persistência da credibilidade deste mito" e
seu entrincheiramento na cultura brasileira. "Diferentemente de
pesquisadores anteriores, [que] estavam preocupados com a denúncia direta do
mito da democracia racial" ' continua ' "Hanchard aponta o poder
continuado do mito ao incorporá-lo numa análise sistemática do protesto negro
[, num esforço para] explicar as persistentes questões que se seguiram à erosão
do mito da democracia racial nos círculos acadêmicos" (Mitchell 1995).
Apesar de crítico em relação ao mito brasileiro da harmonia racial, Hanchard
insiste em que as diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos devem ser
confrontadas e não apenas varridas para debaixo do tapete em nome da
solidariedade. O reconhecimento de tais diferenças não leva Hanchard, no
entanto, a asseverar que a experiência negra no Brasil seja totalmente
diferente da dos EUA (esta é a posição defendida por Bourdieu e Wacquant). Em
vez disso, ele insiste, com acerto, que as características distintivas da
dinâmica racial e étnica brasileiras não impossibilitam análises comparativas
com outras sociedades, até mesmo os EUA (Hanchard, 1994a:78). Hanchard propõe,
de forma sensata, trazer o Brasil para a discussão do Atlântico Norte através
de uma abordagem sólida que leva em consideração o diferente à luz do similar.
Ainda que reconheça divergências fundamentais no escopo, escala e intensidade
da "mobilização racial" no Brasil, Hanchard, no entanto, lembra a
seus leitores que "a ausência de solidariedade afro-brasileira não é
total", nem mesmo se "a sua presença não tenha foco ou direção"
quando comparada aos exemplos norte-americano ou sul-africano (ibidem:80).
O enfoque explícito e restrito de Hanchard na mobilização política baseada na
raça o leva a ignorar questões "não-políticas" da cultura ou
identidade afro-brasileiras.11 Isto o faz capaz, todavia, de formular, da forma
mais persuasiva, o desafio que comparativistas têm diante de si: "Por que
não houve nenhum movimento social afro-brasileiro continuado no Brasil e que
pudesse ser comparado ao movimento dos direitos civis nos EUA ou às rebeliões
nacionalistas na África do sub-Saara e em partes do Novo Mundo depois da
Segunda Guerra?" (ibidem:5). Como é possível, continua, que o
"Brasil, o país com a maior população negra no Novo Mundo, tenha uma
população negra com um dos mais baixos níveis de conscientização racial nas
Américas?" (ibidem:95).12
Graham (1995) observa que o estudo de Hanchard abriu novos caminhos de
pesquisa, justamente por causa da nitidez com a qual ele abordou a questão da
razão do protesto negro, que existe e acontece no Brasil, e dos "[...]
movimentos de solidariedade negra, que têm sido tão poucos e esporádicos, com
vida curta, e que até agora não geraram resultados. Por que o mito da
democracia racial persiste? Como a dominação racial é construída e mantida?
Onde estão seus limites? Como é posta em questão e contestada?" Estas são
precisamente as "questões [que] incomodam aqueles que estudam a
subordinação racial no Brasil", notou a brasileira Denise Ferreira da
Silva, assim como
aqueles que estudam relações de raça comparativamente, e, ainda mais
importante (de um ponto de vista de auto-interesse) [...] aqueles
entre nós envolvidos no projeto de incentivar a emancipação racial no
Brasil [...]. Como pode a exclusão racial ser possível sem a
discriminação aberta, e sem mecanismos mais ou menos explícitos de
segregação racial? Por que níveis tão altos de exclusão racial não
conduzem à emergência de uma consciência de raça, e às conseqüentes
mobilizações políticas entre brasileiros negros? Por que os negros
brasileiros não possuem uma identidade (racial) separada? (Silva, D.,
1998:222, 204)
Hanchard aborda estas difíceis questões ' que não são nem mesmo compreendidas
por Bourdieu e Wacquant ' através de uma estratégia de pesquisa qualitativa bem
específica. Tendo em vista seus interesses altamente delineados, ele não estuda
os brasileiros descendentes de africanos como um todo, mas apenas a minoria de
militantes negros que de fatoconstruíram uma "identidade afro-brasileira
consciente de si mesma" baseada na politização da diferença racial.
"Com pôde emergir tal forma de consciência racial politicamente
conseqüente", Hanchard pergunta, "em uma sociedade tão avessa ao
conceito de 'raça' e tão hostil à mobilização de 'diferenças raciais'?"
(Hanchard, 1994a:79). Como e por que os brasileiros de ascendência africana
obtêm uma consciência de "raça", "assumem sua negritude",13
e decidem-se a agir com ela de forma política? As reflexões de Hanchard a
respeito destes assuntos são derivadas de entrevistas feitas com sessenta
líderes de movimentos, em um esforço para entender "como, baseado em
incidentes de suas vidas privadas, eles alcançaram" sua posição de
militância negra.
14
Em sua preocupação com a identidade racial, Orfeu e o Poder representou uma
mudança significativa na literatura acadêmica em 1994, haja vista a ligação
entre a ênfase ainda predominante em dados raciais quantitativos e os objetivos
anti-racistas comuns. As estatísticas a respeito da desigualdade racial, afinal
de contas, pareciam oferecer evidências objetivas para serem usadas em
denúncias e na conscientização, em contraste com as obscuras discussões sobre a
identidade "racial" de brasileiros de origem africana, que pareciam
minar a luta ao introduzir uma "confusão" subjetivista. Nadando
contra a corrente, Hanchard re-introduziu uma ênfase "antropológica"
mais antiga sobre a "raça", entendida como um fenômeno discursivo, e
fez isso precisamente quando um proeminente estudioso, Thomas Skidmore, havia
declarado que os dias para tal tipo de pesquisa já tinham passado, já que dados
"duros" sobre raça estavam agora disponíveis (para o potencial pleno
de uma rica abordagem atropológica, cf. as etnografias imensamente estimulantes
de Burdick, 1998, e Sheriff, 1997a). No mesmo artigo de 1992, Skidmore também
dividia a opinião, então prevalente, de que o Brasil estaria se dirigindo para
a birracialidade, enquanto os EUA, em contraste, estariam se tornando mais
multirraciais (Skidmore, 1992, 1993).
Orfeu e o Poder
não foi único em seu exame dos movimentos da "consciência negra" que
surgiram durante as intensas revoltas populares e trabalhistas que marcaram a
luta contra o regime militar brasileiro no final dos anos 70.15 Contudo, a
abordagem de Hanchard é original, até mesmo controversa, precisamente porque,
como salienta Fry (1995), Hanchard é bem "diferente dos autores que
escreveram sobre os movimentos negros brasileiros antes dele, que, de uma forma
ou de outra, estavam ligados a eles, e tendiam a repetir a retórica dos
comícios". Seu distanciamento da forma simples de solidariedade é baseado
em sua posição como um afro-norte-americano com uma visão diaspórica que
procura entender melhor a base e os obstáculos para a criação de uma política
negra no Brasil. Sua preocupação é, nas palavras de Mitchell, com "as
possibilidades e limitações da militância negra" dentro da parte
brasileira da população do Novo Mundo que é descendente de africanos (Mitchell,
1995).
Hanchard oferece comentários mais sugestivos em relação às dificuldades de se
mobilizar a identificação racial no Brasil, em um capítulo intitulado "A
Formação da Consciência Negra". Da mesma forma que os estudiosos
anteriores, reconhece que a variabilidade na autodesignação no Brasil e a falta
de categorias raciais dicotômicas fazem do fenótipo "uma base ainda mais
precária para a mobilização coletiva do que em outras sociedades".
Todavia, utiliza as experiências de vida de vários militantes para demonstrar
que a experiência afro-brasileira é marcada por uma relativa, mas de forma
alguma absoluta, "falta de identificação racial". Sugere que, para
apreender esta distinção, o fenômeno deve ser descrito pela distinção entre
semelhanças fracas ("uma questão de disposição, atitude) e semelhanças
fortes, bem menos comuns, que surgem e "operam em momentos históricos
específicos" de polarização e conflito ("o momento histórico")
(Hanchard, 1994a: 78, 80).
Fiel a uma abordagem construcionista da questão da raça, Hanchard enfatiza
assim a trajetória distinta do Brasil, quando comparada à de outros países, de
uma forma similar, mas menos sistemática do que no recente livro de Anthony
Marx (1998), que é elogiado por Bourdieu e Wacquant como um antídoto a
Hanchard. Diferentemente dos EUA ou da África do Sul, "a ausência de
ameaças externas e de uma sociedade dicotomicamente segregada [no Brasil]
impediram a necessidade de semelhanças fortes em termos absolutos e
unidimensionais" que se combinam à ausência do tipo "de instituições
e projetos coletivos [negros] auto-suficientes" no Brasil, que
constituíram, por assim dizer, "o prêmio de consolação" no caso dos
EUA. Usando a idéia de uma família de semelhanças, fortes e fracas, Hanchard
sugere que o objetivo dos movimentos de consciência negra é tornar as
"semelhanças fracas em fortes". Esta identidade oposicionista afro-
brasileira, admite, ainda não está "difundida o suficiente para catalisar
a massa dos afro-brasileiros" e, assim, está
[...] altamente em funcionamento [somente] entre os militantes afro-
brasileiros e seus [pequenos] círculos [...] [naqueles lugares] onde
o movimento negro tem uma força relativa [...]. Até mesmo [os
militantes negros], que estariam livres para pôr em prática uma
versão mais contundente da identidade afro-brasileira entre as
massas, hesitam [em fazer isso], [...] por medo de se alienarem em
uma sociedade onde semelhanças fortes não são mutuamente reforçadas
[...]. [Há, desta maneira,] dificuldades práticas para se estender
semelhanças afro-brasileiras fortes para um público de massa.
(Hanchard, 1994a:78-80, 82)
Orfeu e o Poderdemonstra, de forma convincente, que o surgimento de uma agenda
racial de oposição entre alguns afro-brasileiros ajuda a iluminar a dinâmica da
subordinação e resistência raciais no Brasil, não importa quão limitado o seu
apelo popular até agora. O livro oferece um contribuição ao ajudar os norte-
americanos a entender não apenas "porque afro-brasileiros não são afro-
norte-americanos" (título da excelente palestra de Anani Dzidzienyo, um
brasilianista da Brown University, nascido em Gana, e por muito tempo um
estudioso da raça e cor no Brasil), mas também porque "o Brasil não é
(como) os Estados Unidos" em termos de negritude (o subtítulo de um
recente e extraordinário artigo da socióloga brasileira e militante negra
Denise Ferreira da Silva, 1998).
"Raça" e Mitologias Sociais no Brasil, França e Estados Unidos: Dois
Pesos, Duas Medidas e Má-Fé
A indignação com a qual Bourdieu e Wacquant condenam Orfeu e o Poder, sem um
compromisso ou argumentação sérios, pode apenas advir de uma confiança de que,
de fato, eles conhecem algo sobre a raça e cor no "país 'das três raças
tristes'" (um clichêensaístico ultrapassado e condenscendente sobre o
"caráter nacional" brasileiro). Apesar do fato de que "as
relações raciais [no Brasil] aparentam à primeira vista ser menos distantes e
hostis" do que nos Estados Unidos ' declaram ' o imperialismo cultural dos
EUA está intensificando seus esforços em "impor" seu peculiar e
venenoso entendimento da raça na visão particular que o Brasil tem a respeito
da diferença étnica. A existência no Brasil de um contínuo de cor do negro ao
branco, com centenas de "categorais intermediárias e parcialmente em
intersessão", combinadas com a ausência de hipodescendência ' argumentam '
está em contraste flagrante com as categorias raciais rígidas e dicotômicas dos
EUA. Estes autores apontam para a ironia de que, no mesmo instante em que
agentes dos EUA pregam uma luta racial de "'afro-brasileiros' contra
'brancos', pessoas de origem mista [nos EUA], incluindo os chamados 'negros',
estão tentando obter reconhecimento como uma categoria [norte] americana de
raça mista, em vez de serem 'forçadamente' classificados sob o rótulo único de
'negros'" (Bourdieu & Wacquant, 1999:44-5, 47).
Ainda que criticando os EUA por sua inflexível insistência no mito do que seria
uma sociedade excepcionalmente fluida, aberta e sem classes, Bourdieu e
Wacquant denunciam que os norte-americanos estão envolvidos em uma agressão
imperialista brutal, através de uma falsa acusação de racismo, na "imagem
que os brasileiros têm de sua própria nação". Até recentemente ' enfatizam
' o Brasil era considerado um contra-exemplo do "'modelo' [racial] [norte]
americano (de acordo com o clássico estudo do [historiador norte-americano]
Carl Degler)"16 e continuam, citando um outro artigo "clássico"
agora do antropólogo norte-americano Charles Wagley, visando mostrar que o
conceito de "raça" varia nas Américas (ibidem:44-5). No entanto, a
leitura de Degler da literatura brasileira levou-o a concluir que "o
preconceito e discriminação de cor [realmente] existem no Brasil, como ainda
existem nos Estados Unidos" (Degler, 1986:268). E o ciclo de pesquisas
patrocinado pela Unesco nos anos 50 sobre relações raciais, no qual Wagley foi
uma figura-chave, foi "unânime ao detectar o preconceito racial",
ainda que alguns, como Wagley, "fossem tímidos ao interpretar o
preconceito observado" (Guimarães, 1999:77; Fontaine, 1980:123-4).17 Como
recentemente escreveu John Burdick, desde 1945 "três gerações de
estudiosos produziram uma prateleira de obras que revelam a realidade da
discriminação brasileira baseada na cor [...] a questão não é mais se, mas
como, a cor de um brasileiro influencia a sua vida" (Burdick, 1998:1).
Com todas as suas peculiaridades, o sistem brasileiro de raça e cor ainda é,
por sinal, baseado em uma hierarquia racial clara na qual a branquidão/
europeidade é valorizada e a negritude/africanidade é estigmatizada. Estas
normas e práticas estão socialmente ligadas a estereótipos racistas e imagens
normativas, somáticas e derrogatórias, que degradam a negritude (Blanco, 1978).
Neste sentido, "o racismo no estilo brasileiro" difere do racismo nos
EUA fundamentalmente em seu foco: no Brasil, o preconceito contra a aparência
(preconceito de marca ou fenótipo) versus o preconceito contra origem ou
descendência (preconceito de origem ou genótipo) de acordo com a formulação
clássica do sociólogo brasileiro Oracy Nogueira (1959, 1985; cf. também
Cavalcanti, 1999).
Bourdieu e Wacquant tentam minimizar a realidade do preconceito e da
discriminação no Brasil, contrastando a situação brasileira com a
"ostracização racial ou estigmatização sem direito a recurso ou
reparação" à qual acreditam que os negros nos Estados Unidos estão
submetidos. Depois de descrever a condição americana como se pouco tivesse
mudado desde a década de 50, procedem a caracterizar a relação entre negros e
brancos nos EUA como "mais próxima daquela entre castas definitivamente
definidas e delimitadas" (uma declaração particularmente controversa, que
é simplesmente jogada, sem muita elaboração ou justificativa).
Contudo, o contraste que Bourdieu e Wacquant fazem entre Brasil e EUA,
grosseiro e exagerado, já era anacrônico em 1971, quando Degler publicou Nem
Preto Nem Branco. Degler chegou à conclusão que os acadêmicos e jornalistas
durante o período pré-Direitos Civis nos EUA comparavam as relações raciais no
Brasil e Estados Unidos de forma bem rotineira, "normalmente para o
descrédito do último". Tais estudos inevitavelmente eram "muito bem
recebidos por norte-americanos que desejavam salientar a natureza racista das
relações de raça nos EUA", observa, e tiveram uma forte aprovação no
Brasil "por parte daqueles que desejavam enfatizar a democracia racial em
seu país". Todavia, muitos estudiosos brasileiros, mesmo naquela época,
rejeitaram esta comparação entre EUA e Brasil, justamente porque ela servia
para "obscurecer, se não negar", a existência de preconceito e
discriminação no Brasil: "tudo vai bem [racialmente] porque no Brasil a
situação não é tão ruim quanto no interior do sul [dos EUA]" (nas palavras
de Luiz Costa Pinto em 1952 [Degler, 1986:286]).18
Tendo lido o "clássico" livro de Degler com a mesma falta de cuidado
que Orfeu e o Poder, Bourdieu e Wacquant não percebem que Degler chega, na
realidade, à mesma conclusão "imperialista" que rejeitam: que, depois
de 1960, os dois países são mais similares do que diferentes em termos de raça.
Já que as práticas segregacionistas "que outrora distinguiam os EUA do
Brasil em sua maior parte não mais existem", escreve Degler, "talvez
tenha chegado a hora de reconhecer que hoje a comparação das relações de raça
nos dois países não é sempre favorável ao Brasil"; ele chega mesmo a
prever "a possibilidade de uma discriminação crescente" e uma
ampliação da "tensão racial e preconceito de cor no Brasil" (Degler,
1986: 268; cf., também, Andrews, 1991b:4, 24-44)!
Contudo, Bourdieu e Wacquant ainda poderiam defender-se aqui. Afinal de contas,
declaram com um floreio, o Brasil é marcado pela "ausência virtual"
(uma expressão estranhamente obscura) de "duas formas típicas de violência
etno-racial dos EUA: o linchamento e os distúrbios urbanos" (Bourdieu
& Wacquant, 1999:45). Tal ingenuidade é tocante, como Kim Butler
recentemente observou:
Apesar de ser verdade que os horrores do terrorismo racial que
ocorreram nos Estados Unidos, tal como o linchamento, não terem
acontecido no Brasil, isto não nega o impacto social das ideologias
do racismo e racialismo. Tal raciocínio confunde racismo com
animosidade, violência e preconceito, nenhum dos quais tem
necessariamente que estar presente em uma ideologia racista. (Butler,
1998:49)
A lógica por detrás dos comentários de Bourdieu e Wacquant a respeito dos
linchamentos por raça é também surpreendentemente limitada. Uma das observações
mais importantes de Wagley, em seu artigo de 1959, foi chamar a atenção para a
natureza racializada das classes sociais em países da América Latina como o
Brasil, onde ser mais claro ou escuro na aparência é fortemente correlacionadao
com os extremos altos e baixos da estrutura social. Não é fora de propósito
relacionar estas realidades aos altos níveis de violência no Brasil, não apenas
à violência estrutural, mas também aos linchamentos, esquadrões da morte e
assassinatos promovidos por policiais (dentre os quais o massacre de crianças
de rua recebe a maior atenção). As vítimas tendem a ser, bem mais, negras do
que aqueles "que contam" e, apesar de não serem mortos explicitamente
por causa de sua "raça" (que éimportante), com certeza a sua cor faz
com que as classes média e alta, que são em sua grande maioria brancas ou
claras, ignorem e se distanciem do destino de tais "marginais" ou
"favelados".
Há ainda uma ironia final em relação à combinação que Bourdieu e Wacquant fazem
de uma caracterização peculiar e indevidamente negativa da dinâmica racial dos
EUA e uma leitura generosa e positiva demais do panorama racial brasileiro. Ao
realizarem isto, eles não fazem mais do que ocupar o último lugar em uma longa
lista de observadores e cientistas sociais estrangeiros e ingênuos, que têm
sido iludidos pela "ambigüidade e a natureza evasiva da ideologia racial
latino-americana, especialmente na sua forma brasileira", como notou
Pierre Fontaine em 1980, sendo levados à conclusão errônea "de que não
haveria problemas raciais [no Brasil] (apesar de esta posição não ser mais
mantida entre os estudiosos sérios)" (Fontaine, 1980:111).19 De fato, nas
últimas décadas, não houve uma única tentativa, por parte de brasileiros nos
meios acadêmicos, de defender a hipótese, sustentada por evidências em oposição
a ideais ou mitos, de que o Brasil é uma sociedade sem racismo (para uma bela
seleção da pesquisa sobre a desigualdade racial levada a cabo por cientistas
sociais brasileiros, cf. Reichmann, 1999). Afirmações simples sobre a
democracia racial brasileira são encontradas apenas na crença popular de
brasileiros que não pesquisam o assunto.
O mito da democracia racial brasileira é, neste sentido, similar em suas linhas
gerais ao mito dos Estados Unidos como sendo uma sociedade única em sua
meritocracia e abertura, com oportunidades para todos que se esforçam. No
entanto, Bourdieu e Wacquant atacam enfaticamente esta doce imagem que os EUA
gostariam de ter de si mesmo. "Estudos comparativos rigorosos"
baseados em pesquisas estatísticas ' dizem ' desmascararam a noção norte-
americana de que os EUA seriam uma sociedade excepcionalmente fluida, com um
alto grau de mobilidade social, em contraste às rígidas estruturas sociais do
Velho Mundo (Bourdieu & Wacquant 1999:51). Todavia, esta tática de crítica
(os EUA são como a Europa), assim como o tipo de provas utilizadas, também
caracterizavam o estudo brasileiro sobre a raça depois de 1978, que é
justamente atacado por Bourdieu e Wacquant. Uma contribuição magnífica neste
sentido foi o excelente artigo, de 1992, de George Reid Andrews, intitulado
"Desigualdade Racial no Brasil e Estados Unidos: Uma Comparação
Estatística," que reverteu a convicção brasileira de que os negros
obviamenteestariam em uma melhor condição no Brasil do que nos EUA.
Bourdieu e Wacquant claramente lidam com dois pesos e duas medidas quando
comparam os EUA e o Brasil, pois oferecem uma descrição excessivamente dura e
negativa da situação racial nos EUA e são intolerantes em relação à sua
mitologia nacional; em oposição a isso, oferecem uma descrição excessivamente
tolerante e positiva da situação racial no Brazil, ao mesmo tempo que acolhem
sua mitologia nacional sem crítica. Como chegaram a ter esta postura de
defensor da honra nacional brasileira contra os norte-americanos? E o que
levaria pensadores críticos franceses, oponentes proeminentes do
neoliberalismo, a desculpar a desigualdade racial no Brasil e partir com quatro
pedras em cada mão contra críticos nacionais e estrangeiros de uma democracia
racial que está longe de ser perfeita? Por que são tão impiedosos para com as
ilusões dos EUA e tão conciliatórios com as brasileiras?
A resposta pode talvez ser encontrada em sua discussão sobre os esforços dos
EUA para "substituir completamente o mito nacional da 'democracia racial'
[...] pelo mito [norte-americano] segundo o qual todas as sociedades são
'racistas'". Para os autores, este procedimento faz do "conceito de
racismo", não uma "ferramenta analítica", mas um "mero
instrumento de acusação" dentro de uma lógica, não de pesquisa científica,
mas de um julgamento. É apenas a partir de uma numa nota de rodapé que se
começa a perceber o que realmente está em jogo para Bourdieu e Wacquant (1999:
44, 53):
Quanto tempo teremos que esperar para ver surgir um livro intitulado
Brasil Racista, modelado segundo o cientificamente escandaloso França
Racista de um sociólogo francês mais preocupado com as expectativas
do campo do jornalismo do que com as complexidades da realidade
social?
Estariam eles invocando o Brasil, talvez, como parte de um esforço para
defender a honra da França? Poderiam estar desmascarando, por antecipação,
aqueles que estariam usando o exemplo dos EUA, através de retórica ou
metodologia acadêmica, para ameaçar a autoconstrução mítica de seu próprio país
como universalista e, por definição, a- ou anti-racista?20 Não poderiam eles
estar usando o Brasil de forma oportunista para atacar intelectuais,
especialmente esquerdistas nos EUA ou afro-norte-americanos (ou, quiçá, mais
perto de casa, cidadãos franceses ou residentes de origem árabe ou norte-
africana), que estariam pondo em risco a sua querida noção de francesidade?
Ao adotar uma postura de vitimização junto com o Brasil nas mãos do
imperialismo norte-americano, Bourdieu e Wacquant parecem exibir o mesmo
"nacionalismo vangloriante" que os brasileiros defendem quando
impedem a autocrítica ao julgar seu país apenas, e positivamente, contra os EUA
em termos de raça (Cunha, 1998:247). Se o racismo é, por definição, aquilo que
se faz nos EUA, então nem a França nem o Brasil podem ser chamados de racistas.
Tal gesto é também essencialmente brasileiro; é o que o sociólogo Florestan
Fernandes certa feita definiu como o preconceito brasileiro mais profundo:
"o preconceito de não ser preconceituoso". Como um informante disse a
Robin Sheriff no Rio: "Não há violência racial no Brasil, nada. Não é como
nos Estados Unidos, sabe?" (Sheriff, 1997:409).
Bourdieu e Wacquant conhecem muito pouco sobre a realidade da raça ou do
pensamento sobre a raça no Brasil ou EUA para que seu artigo seja útil ou de
valia. Na melhor das hipóteses, sua polêmica esclarece o sentimento de dois
intelectuais europeus importantes, seu sonho de França, e a distopia que vêem
nos "Estados Unidos" (tratados simplisticamente como um monolito). Em
resumo, a melhor forma de ver seu artigo é como um grito de frustração de
dentro do mundo imperialista do Atlântico Norte, uma polêmica defensiva marcada
pela surpreendente hiper-sensibilidade dos autores e pelo sentimento,
claramente expressado, de uma honra ferida.21 Em sua retórica bombástica, rica
em metáforas sexualizadas de processos ilícitos de sedução e penetração, os
autores revelam uma falta de confiança e acuidade que gera erros vergonhosos de
avaliação ' do Brasil, dos Estados Unidos, eda França.
A Dimensão Ausente: Idéias Norte-Americanas de "Raça" e seu
"Consumo" no Brasil
Em sua polêmica, Bourdieu e Wacquant tratam seus adversários de forma
agressivamente desdenhosa, especialmente os norte-americanos e os ingleses,22
ao mesmo tempo em que criticam o tropismo em direção ao poder exibido por
muitos intelectuais nos países dominados. Porém, estes dois intelectuais
europeus mostram uma arrogância imperial em seu olhar apressado e desenhoso
sobre o debate em torno da "raça" na diáspora africana no Novo Mundo.
Emitem opiniões de forma descompromissada sobre o Brasil, apesar de sua
ignorância a respeito deste país continental com mais de 170 milhões de
habitantes. De acordo com a sua interpretação, os brasileiros indefesos
precisam de um defensor estrangeiro em face do ataque dos EUA, justamente
porque a troca intelectual "flui apenas em um sentido"; até mesmo as
idéias norte-americanas "fora do lugar", lamentam, podem se impor no
Brasil (Bourdieu & Wacquant, 1999:46).
Os autores de "Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista" dão peso
analítico apenas à produção e circulação transnacional de idéias, enquanto
ignoram a dinâmica de "leitura" e "tradução" através das
quais as idéias estrangeiras são incorporadas às áreas intelectuais nacionais,
cada uma com a sua trajetória histórica, formação cultural, e mitologias
sociais próprias.23 Seu modelo simplista de dominação/imposição dos EUA e
submissão/cumplicidade subalterna é teimosamente errado, tanto de um ponto de
vista empírico, quanto teórico. Ele apaga o processo de apropriação local ao
mesmo tempo em que amplamente exagera o poder e influência que as noções
produzidas nos EUA têm tido ou podem ter no Brasil. Em resumo, fetichizam a
origem "estrangeira" das idéias (ela mesma questionável), enquanto
descrevem o processo de troca transnacional como inerentemente de mão única.
Pior de tudo, seu chamado à resistência é comprometido pela sua própria
preferência para se refugiarem por detrás de tênues barricadas nacionalistas,
em vez de promoverem um debate intelectual e político transnacional sério.
De fato, pesquisadores e militantes brasileiros, hoje, não aderem ao modelo
racial postulado por Bourdieu e Wacquant, mesmo quando tenham sido formados nos
EUA, ou tenham recebido bolsas da Ford Foundation. A publicação de Orfeu e o
Poderem 1994 também não levou acadêmicos e militantes negros brasileiros a se
submeterem a "leituras" norte-americanas de raça. Em vez disso,
ajudou a cristalizar uma convicção brasileira, que passa pela diversidade em
termos de nacionalidade de origem, raça e sexo, que as diferenças são mais
importantes do que as semelhanças neste momento da discussão comparativista (o
vigoroso debate pode ser acompanhado em Bairros, 1996; Fry, 1995a, 1995b;
Hanchard, 1994a, 1996a, 1996b, 1996c; Silva, D., 1998; Cunha, 1998; Segato,
1998). Se a tônica nos anos 80 era a ênfase na similaridade, a literatura mais
recente sublinha as especificidades nacionais e até mesmo a originalidade
dentro do contexto diaspórico. Representa, poderíamos dizer, a consolidação de
"uma problemática de relações raciais propriamente brasileira, [que
começou a surgir na década de 50, e] que se distancia do modelo comparativista
e contrastivo herdado de Gilberto Freyre" nos anos 30 (ao qual Bourdieu e
Wacquant ainda estão presos, com o seu uso da dicotomia entre Brasil e EUA)
(Guimarães, 1999:91) Onde se encaixa Orfeu e o Poder, com seu contraste EUA/
Brasil, no renascimento atual da literatura sobre raça, cultura, nação e poder
no Brasil?
A idéia da diáspora africana representou, em si mesma, um avanço conceitual
decisivo, que sublinhou o pano de fundo comum da escravidão racial a suas
ideologias anti-negras de superioridade branca sem, contudo, reduzir a história
subseqüente dos povos descendentes de africanos apenas à sua vitimização pela
subordinação racial. "A civilização e negritude africanas influenciam-se
mutuamente", como observa a antropóloga Rita Segato, "e o lugar da
África e o lugar da raça nas nações do Novo Mundo estão mutualmente banhadas em
uma articulação complexa [que é] extremamente difícil de ser desembaraçada...
[mas que] varia de acordo com o quadro nacional" (Segato, 1998:130).
"Nossa negritude comum" dentro do Novo Mundo, observa Denise Silva,
"tem sido atravessada por efeitos particulares da condição nacional, de
sexo e classe. A escravidão e o colonialismo formaram o chão histórico... [mas]
em cada caso, é construído... de acordo com condições históricas e sociais de
um dado espaço social multiracial... [e] os desdobramentos históricos e
discursivos específicos que informam as estratégias de subordinação
racial" (Silva, D., 1998:230). Nas palavras dela, há muitas subjetividades
negras dentro da diáspora africana no Novo Mundo que não podem ser facilmente
tidas como análogas ao caso norte-americano.24
"É importante enfatizar a diferença de como o sistema racial brasileiro
foi constituído", argumenta a antropóloga Olívia Cunha (1998:247), porque
[...] os casos paradigmáticos do Brasil e dos Estado Unidos mostram
que as modalidades específicas de exclusão e as concepções étnicas
estão profundamente relacionadas [...] [à] variedade de operações
cognitivas de discriminação e exclusão que fundimos no nome comum de
racismo [e que] estão profundamente enraizadas nas estruturas de
relacionamentos desenvolvidas através de uma história nacional
particular. (Segato, 1998:130, 135)
Resumindo, "o racismo no Brasil, independente do quanto pode ser
proveitoso localizá-lo em continuidades globais, permanece culturalmente
distinto" (Sheriff, 1997:42).
A dificuldade apresentada pela comparação EUA/Brasil, sugere Denise Silva,
reside no fato de que
As pressuposições que alimentam a análise contemporânea da
subordinação racial no Brasil [...] [assim como] as categorias
empregadas no estudo das sociedades multirraciais surgiram
[primeiramente] como uma tentativa de lidar com uma condição
particular de multirracialidade, os Estados Unidos [...]. Quando
estudiosos começaram a dar atenção às similaridades entre estas duas
sociedades, [...] tenderam a interpretar a subordinação racial no
Brasil como uma mera variação no modelo que[...] antes de mais nada
representava os pontos de contraste [...] [Assim,] as peculiaridades
da raça no Brasil aparecem como uma questão de grau, como uma
realização menos desenvolvida de uma construção de raça, que tem suas
premissas em uma visão da sociedade como composta de grupos raciais
claramente distinguíveis. (Silva, D., 1998:204, 206-207)
Assim, há um sério erro, argumenta Silva, nos argumentos de alguns dos
analistas norte-americanos menos cuidadosos, tais como Howard Winant, o
"principal interlocutor" de Hanchard (Hanchard, 1994a:ix). Apesar de
teoricamente aprovar uma abordagem social construcionista para a questão da
raça, Winnant ainda baseia-se em seus escritos em uma noção, típica dos EUA,
[...] de que a diferença racial é (como o sexo) um substrato pré-
social, sobre o qual relações sociais são desenvolvidas. O que se
perde [...] é que a importância política da raça não reside na
interpretação e imposição de significados sobre estas diferenças
[fenotípicas], mas na própria produção de tais diferenças como sendo
raciais (Silva, D., 1998:212).25
Assim, Winant trata a raça como "um fato que passa por fronteiras
contextuais" ao mesmo tempo que revela "a falta de fronteiras sociais
e históricas" para sua "noção de formação racial" (Segato, 1998:
132).26
"Ironicamente, o esforço problemático de Hanchard para responder a questão
também fornece sugestões importantes para abordar o assunto", Denise da
Silva argumenta, apesar de reproduzir, ao menos parcialmente, a
"universalidade etnocêntrica de Winant". Quando Hanchard defende que
a ideologia da democracia racial tem "neutralizado a identificação
racial" e produzido a "ausência de uma consciência racial entre os
afro-brasileiros", ela continua, ele se esquece que a subjetividade afro-
norte-americana (um termo que ela prefere à "consciência racial")
"surgiu de uma condição particular de subordinação racial.
Conseqüentemente, esta construção particular da subjetividade negra sub-
repticiamente coloniza sua análise da mobilização racial no Brasil... [No
entanto] a articulação específica de raça, nação, e sexo que caracteriza a
construção brasileira de raça", ela reitera, "não é melhor ou pior do
que aquela predominante nos Estados Unidos; é apenas diferente. E esta
diferença deve ser o ponto de partida da análise da política racial no
Brasil" (Silva, D., 1998: 222-3).
A intrigante crítica da autora também reflete a natureza dual da troca que
ocorre entre as diferentes realidades nacionais dentro da diáspora. Apesar de
ser ela mesma uma militante negra inspirada pelas luta dos afro-norte-
americanos, esta estudante brasileira de pós-graduação em sociologia na
Universidade de Pittsburgh observa que "ser negro aqui [nos Estados
Unidos] deu-me a vantagem de poder me ver pelos olhos de 'Outros' ' negros e
brancos neste caso. Pareceu ter-me ajudado a diminuir a distância e perceber
que eu e meus companheiros de militância somos mais 'brasileiros negros' do que
éramos levados a crer no Brasil" (ibidem: 225). Esta experiência de
alteridade é paralela às observações de uma jovem estudiosa afro-norte-
americana da história do Brasil, Kim Butler, em seu livro inovador Liberdades
Dadas, Liberdades Conquistadas: Afro-Brasileiros na São Paulo e Salvador Pós-
Abolicionistas. O contato dos EUA com o Brasil, ela insiste, deixa "claro
que, o que inicialmente ao olhos norte-americanos aparentava ser uma grande
população negra", era, de fato, um grupo heterogêneo de várias comunidades
pequenas. "Apesar de dividirem uma herança de escravidão e uma ligação com
o continente africano", ela continua, "não havia nenhuma identidade
étnica unificadora que pudesse criar um verdadeira comunidade dentro desse
grande e diverso grupo demográfico... [apesar de sua] existência freqüentemente
parecer óbvia quando vista pelo prisma da experiência norte-americana"
(Butler, 1998:218).
Como os brasileiros, Butler conclui que a "negritude" "não surge
intrinsecamente da existência de uma herança africana, mas é condicionada e
modelada pela dinâmica histórica e específica de cada sociedade escravocrata...
[e que] a etnicidade da 'negritude,' uma combinação de traços somáticos e de
uma herança cultural africana, não é nem fixa nem constante na diáspora
africana" (ibidem: 218, 50, 7). Contextualizando explicitamente seu
trabalho dentro do que há de comum na diáspora africana, a investigação de
Butler da experiência afro-brasileira desde a Abolição também revela a
utilidade limitada das comparações nacionais. Ao comparar as diferentes
trajetórias de povos descendentes de africanos nas cidade de Salvador e São
Paulo, Butler ilustra a riqueza da diversidade mesmo dentro de um único espaço
nacional: "À medida que as diferenças regionais são exploradas, a
etnicidade [negra] aparece como um fenômeno fluido, tanto em resposta a
condições sócio-políticas, como seu resultado" (ibidem: 129)
Se a situação brasileira em termos de desigualdade racial e "dominação
etno-racial" é bem pior do que admitem Bourdieu e Wacquant, deve-se também
enfatizar que os trabalhos que deploram, como Orfeu e o Poder, não têm sido de
maneira alguma nefastos em seu impacto na comunidade intelectual brasileira.
Tais autores ficariam felizes, ou, talvez, reassegurados a respeito da
ineficiência do imperialismo cultural em questões de raça, assim como em
relação à sofisticação e clareza com as quais as vítimas, agentes e cúmplices
brasileiros formularam, em termos bem mais precisos e convincentes, uma ampla
crítica da "universalidade etnocêntrica" na discussão conceitual da
raça. Se honestos, eles poderiam até ficar impressionados pela publicação
destes artigos em inglês e apreciar o diálogo, respeitoso e de alto nível, que
tem ocorrido sobre este tema vital. Poderiam até notar que é Rita Segato, da
Universidade de Brasília, e não Michael Hanchard, que mais severamente denuncia
"a existência de uma atitude e sentimento racistas virulentos contra
pessoas de cor negra" no Brasil (Segato, 1998: 148).
Bourdieu e Wacquant, no entanto, não estão no mesmo terreno que os atuais
estudiosos de raça e cor no Brasil, sejam eles brasileiros, norte-americanos ou
europeus. Indulgindo em seu recalque contra os EUA, os autores de "Sobre
as Artimanhas da Razão Imperialista" distorceram o trabalho de estudiosos
sérios como Michael Hanchard e se refugiaram na asserção fácil demais, de que a
palavra "raça" não tem relevância no contexto brasileiro, porque ela
teria que significar "raça" como é entendida nos EUA! Pior ainda,
eles adotaram, em nome de uma solidariedade antiimperialista, uma postura
acrítica de solidariedade com a mitologia nacional brasileira de uma sociedade
racialmente igualitária e assim se distanciaram do projeto anti-racista que une
todos os participantes do atual debate (Burdick, 1998; Twine, 1997; Sheriff,
1997). Sua surpreendente falta de sensibilidade para as questões de raça
reflete uma recusa implícita ou, ao menos, a minimização, do processo histórico
de subalternização ao qual os africanos e seus descendentes têm sido submetidos
no Brasil, Estados Unidos eFrança.
A força motriz e a urgência do presente debate sobre raça e racismo no Brasil
vêm de uma busca comum para se encontrar as armas mais eficientes a serem
usadas na luta anti-racista. O desdobramento desta discussão é, assim, político
no melhor sentido da palavra e reflete, como explica Cunha, a mudança no
terreno político brasileiro nos vinte anos desde a fundação do Movimento Negro
Unificado (MNU). A questão central hoje, sugere, é "que tipo de linguagem
deve ser utilizada para trazer visibilidade à discriminação racial e ao racismo
que existem na sociedade brasileira?" (Cunha, 1998: 240). Este objetivo
anti-racista também define o campo para o diálogo transnacional. Segato explica
que a comparação com os EUA pode ser usada "para contribuir para a
formulação de uma política adequada para a luta contra o racismo no
Brasil" (Segato 1998: 148, 137). E Denise da Silva, apesar de sua ênfase
nas diferenças, insiste que, como "a raça tem sido a base discursiva comum
para [a] subordinação mundial dos não-brancos", a comparação transnacional
é essencial para nossos esforços comuns com vistas a "formular
contradiscursos insurgentes, que serão, ao mesmo tempo, intervenções teóricas e
políticas verdadeiramente não-etnocêntricas" (Silva, D.,1998: 230).
O terreno prático e ideológico sobre o qual a luta anti-racista se desdobra no
Brasil, como nota Silva, é aquele de "uma sociedade multirracial onde
manifestações de 'preconceito de raça' e atos de 'discriminação racial,' e
grandes níveis de desigualdade entre negros e brancos coexistem com uma
construção da raça que rejeita a separação e celebra a harmonia racial"
(ibidem: 223). Seguindo Peter Fry (1995), Cunha chama a atenção para o risco de
se reduzir "a democracia racial" a um mero mito, entendido como
sinônimo de fraude (Cunha 1998: 225-6; cf. também Sheriff, 1997: 435-6). Seja
em relação aos EUA ou ao Brasil, as dinâmicas das mitologias sociais são bem
mais complexas do que a mera oposição de uma "mentira" à
"verdade". Essa complexidade é sugerida pela tentativa de Segato de
relacionar as mitologias raciais e nacionais nas duas sociedades: "Se, de
cima para baixo, o paradigma étnico norte-americano é baseado na separação,
dentro do mito compartilhado por todas as raças da recompensa de acordo com o
esforço e o mérito, no Brasil o paradigma étnico é baseado na incorporação do
outro, na inclusão como seu forte tema-chave, e o mito aqui é o mito de um povo
se interrelacionando independentemente da cor" (Segato, 1998: 137).
Muitos brasileiros, nota Robin Sheriff, temem que os movimentos negros criarão
separações entre os brasileiros assim como ocorre nas relações
"raciais" no estilo norte-americano. Com efeito, ela descobriu que os
militantes negros mais freqüentemente "invocam o sonho, não de um
movimento composto unicamente por pessoas de cor, mas um movimento dirigido
contra todas as formas de discriminação" (Sheriff, 1997: 429). De fato,
Michael Hanchard também relata que a criação de uma sociedade negra
alternativa, como nos Estados Unidos, vai contra os sentimentos expressados
pelos militantes negros entrevistados: "Ninguém expressou interesse em ser
parte de um partido político, igreja ou outra instituição a nível nacional que
fosse racialmente específica" (Hanchard, 1994a: 84-82). Poderia ser
sugerido, talvez, que a luta dos movimentos negros no Brasil tem em seu centro
a exigência ' articulada no manifesto fundador do MNU em 1978 ' de que o Brasil
seja uma verdadeira democracia racial, ao invés da rejeição de uma democracia
racial per se. Sua esperança para a sociedade brasileira, como coloca Sheriff,
é "simplesmente de voltá-la para seu próprio sonho" (Sheriff, 1997:
431).
O movimento da "Consciência Negra", renascido como parte integrante
da grande revolta democrática contra o regime militar no fim da década de 70,
na realidade adotou discursos e símbolos estrangeiros, tanto dos EUA quanto da
África (uma prática que Michael Hanchard critica em Orfeu e o Poder). O
movimento fez uso do gesto radicalmente iconoclasta de asseverar que a raça e o
racismo no Brasil são como nos EUA, mas este discurso nunca deveria ser
entendido, como sugerem Bourdieu e Wacquant, como uma simples
"imitação" ou submissão a um produto "estrangeiro"
importado. O mínimo que se pode dizer é que o caso das idéias norte-americanas
de "raça" e sua apropriação no Brasil demonstram a capaciadade dos
intelectuais subalternos de subverter as idéias estrangeiras.
Como uma sociedade periférica à margem do mundo do Atlântico Norte, os
brasileiros têm há muito tempo vivivenciado a importação por atacado de idéias
da metrópole e a dependência cultural tem gerado um intenso debate sobre o
papel de tais "idéias fora do lugar" (Schwarz, 1992). Estas questões
são fundamentais: as idéias têm de fato um lugar? E que papel, se é que ele
existe, as idéias "importadas" desempenham dentro da sociedade
brasileira? Representam elas desvios nocivos que devem ser combatidos, ou uma
pura ornamentação que é irrelevante? Exercem um papel positivo ou prejudicial?
Essa longa controvérsia tem sido concentrada na importação, não de idéias
norte-americanas, mas européias, como o liberalismo, por exemplo.27 O impacto
limitado de produtos importados do imperialismo cultural fancês e inglês no
século XIX também foi demonstrado pelo surgimento do "racismo
científico", como nos escritos do francês Gobineau, que baseou sua
"ciência" fraudulenta em parte em seu serviço diplomático no Brasil
(Raeders, 1988). Esta doutrina da superioridade européia era amplamente aceita
por intelectuais da classe alta brasileira, mas ao fazer isso, como mostraram
Skidmore (1993) e Costa (1995), tais intelectuais descartavam princípios
subjacentes fundamentais da ortodoxia racista que pretendiam abraçar.
A adoção de idéias raciais dos EUA por intelectuais brasileiros e militantes
negros foi também marcada, com o decorrer do tempo, pelas próprias
"leituras" que fizeram destas "idéias fora do lugar". O
militante Joel Rufino dos Santos recentemente chamou a atenção para as
dificuldades envolvidas no uso, pelo movimento negro, de uma "idéia de
raça do século XVIII" para alcançar objetivos anti-racistas. O
"negro" no Brasil, ele propõe, seguindo Guerreiro Ramos, deveria,
pelo contrário, ser visto como
[...] uma configuração social, um lugar que pode ser ocupado mesmo
por não negros (assim como o lugar do branco pode ser ocupado por um
preto ou mulato). Como se descreve esse lugar? As coordenadas para
fixar o negro como lugar seriam: o fenótipo (crioulo), a condição
social (pobre), o patrimônio cultural (popular), a origem histórica
(ascendência africana) e identidade (autodefinição e definição pelo
outro). A coordenada mais fraca é o fenótipo, uma vez que a maioria
da nossa população tende para o escuro. Brasileiro é, como se deduz,
o melhor sinônimo de negro; e branco, um sinônimo de não brasileiro.
(Oliveira, 1995)
"[A]presentar o problema do negro como o problema do Brasil",
continua, é a maneira mais radical de lutar contra o racismo. "O problema
do negro", insiste o militante Clovis Moura, "faz parte, pois, do
problema nacional... [cuja solução] passa pela sua integração social,
econômica, cultural e psicológica ao seio da nação e a sua desmarginalização
como cidadão" (Moura, 1994: 234). O veterano militante Hamilton Cardoso
observa de forma similar: "O problema crucial encontra-se na definição do
próprio modo de ser do brasileiro que, hoje, por mais branco que possa ser,
quando visto pelo europeu (o verdadeiro branco, o puro, o legítimo, como se
costuma dizer ironicamente entre negros), é visto como 'um branco fora do
lugar'". Isso é o que os "ativistas, militantes e intelectuais
negros" querem dizer, prossegue, quando notam que "todo branco
[brasileiro] tem um pé na senzala" (Cardoso, 1987: 89; para a construção
brasileira da brancura cf. Segato, 1998: 136, 146-7; Sheriff, 1997, 321; Twine,
1997: 71). Resolver o problema do racismo no Brasil, disse uma vez uma líder do
MNU, Lélia Gonzales, seria resolver "a neurose cultural brasileira...
Racismo? No Brasil? Isso é coisa de americano!"
Apesar de serem freqüentemente criticados como "não-brasileiros", os
militantes e movimentos de consciência negra têm demonstrado uma grande
habilidade para incorporar idéias vindas de fora a uma visão de mundo
brasileira que corresponde àquilo de melhor que o país sonha ser. Ainda que
importações do estrangeiro muitas vezes tenham motivado uma reação defensiva e
nacionalista no Brasil, a resposta mais saudável para a dependência cultural
brasileira tem sido "consumir" confiantemente idéias estrangeiras e
incorporá-las a produções originais brasileiras. Chegamos, assim, ao elogio da
antropofagia, que data dos anos 20, como a metáfora central para a
conceitualização do elo entre o local e o global em um mundo cada vez mais
fortemente, ainda que desigualmente, integrado (Johnson, 1987; Santiago,
1978).28
Conclusão
A trajetória histórica dos povos descendentes de africanos no Brasil e nos
Estados Unidos tem atraído gerações de talentosos estudiosos nos últimos
setenta anos, produzindo um corpus de pesquisa nas ciências humanas de alta
qualidade e de forma contínua, que corta várias disciplinas (Barcelos, 1991;
Andrews, 1997; Bastide, 1974; Fontaine, 1980; French, 2000; Parker, 1978;
Russell-Wood, 1982). A última década testemunhou uma emocionante nova fase de
engajamento, tanto no Brasil quanto nos EUA, com os brasileiros exercendo um
papel cada vez mais ativo junto com intelectuais de origem africana nos dois
países.29 Mais importante ainda, este diálogo transnacional sem precedentes,
que Bourdieu e Wacquant simplesmente não conseguem ver, é bem menos desigual do
que no passado; na verdade, um dos desdobramentos mais proveitosos e
provocadores foi a emergência de uma articulação brasileira e claramente
enunciada da dialética entre similaridades ediferenças entre Brasil e Estados
Unidos, especialmente em relação a questões de identidade e subjetividade
(Cunha, 1998; Silva, D., 1999, Segato, 1998; Guimarães 1999).
A hegemonia global das "idéias norte-americanas" hoje, Bourdieu e
Wacquant observam com razão, não é, na realidade, "natural", apesar
do predomínio contemporâneo de metáforas de mercado, e o volume e velocidade
crescentes da troca de idéias e produtos culturais não altera a assimetria
entre nações. Eles também não estão errados em ver um desejo por parte dos EUA
de se tornarem a autoproclamada "única superpotência", para alcançar,
dentro do campo cultural e intelectual, o mesmo predomínio, quiçá domínio, já
alcançados nas áreas econômica, diplomática e militar. De fato, a própria
predominância dos EUA serve como um azedo contraste para seus rivais, potências
imperialistas menores como a França, que estão encontrando dificuldades
crescentes para manter seu "lugar ao sol" dentro do terreno do
capitalismo global. Todavia, o uso mal fundamentado do exemplo brasileiro por
parte de Bourdieu e Wacquant, motivado por suas angústias e sensibilidades,
contribui muito pouco para o conteúdo do presente debate. Seria muito triste,
no entanto, se leitores não especializados, por respeito às muitas
contribuições intelectuais de Pierre Bourdieu, fossem desencorajados de
participar deste promissor diálogo transnacional sobre o Brasil, no qual novas
questões sobre um velho tópico estão sendo formuladas, dentro de um quadro
comum de luta contra o racismo e a desigualdade.
Em um mundo marcado pela regressão social e dominado pelas ocupações imperiais
da OTAN, Bourdieu e Wacquant deveriam lembrar-se de que o sucesso das lutas
populares só pode ser alcançado através de uma investida abrangente contra as
desigualdades estruturais e todo tipo de violência, esteja ela relacionada aos
sexos, classes sociais ou grupos raciais ou étnicos. Para que se leve a cabo
esta luta transnacional é necessário que intelectuais e militantes mantenham
uma visão vigilantemente autocrítica das deficiências de sua própria sociedade.
Ao mesmo tempo, intelectuais com um posicionamento crítico devem manter uma
postura de respeito e solidariedade (que não impede o desacordo e o debate) que
evite o des-entendimento teimoso e ataques mal fundamentados contra aliados
potenciais em outros países.
Notas
1.
O título em francês é "Sur les Ruses de la Raison Imperialiste",
Actes de la Recherché en Sciences Sociales,121-122, março 1998, pp. 109-118.
2.
Em uma capitulação inconsciente à arrogância imperial dos EUA, Bourdieu e
Wacquant usam o termo "americano" em referência aos Estados Unidos,
apesar de os residentes dos países de todo o Novo Mundo serem de fato
"americanos". Esta é uma questão algo delicada na América Latina,
onde cidadãos dos EUA são freqüentemente chamados de norte-americanos. Na falta
de uma alternativa melhor, seguirei esta prática latino-americana, mesmo em
detrimento das especificidades nacionais do Canadá.
3.
O antropólogo Peter Fry refutou recentemente, com alguma irritação, a
afirmação de Bourdieu e Wacquant segundo a qual a Rockefeller Foundation
"estabeleceu como condição para a liberação de verbas que o grupo de
pesquisa [sobre raça e etnicidade em sua instituição, a Universidade Federal do
Rio de Janeiro] fosse selecionado de acordo com critérios de ação afirmativa
[norte] americanos". A fundação em questão, continua, "na realidade
não impôs nenhuma condição para financiar o programa de raça e entnicidade, que
trouxe estudiosos do mundo inteiro para nossa universidade (incluindo Löic
Wacquant). Neste caso, então, ao menos uma universidade brasileira foi
financiada por uma famosa fundação [norte] americana para colocar a experiência
[norte] americana em seu devido lugar, como nada mais do que uma forma
historicamente específica de se construir a raça, institucionalizar o racismo e
em seguida combatê-lo" (Fry, 2000:112-13).
4.
Para discutir o trabalho de Hanchard, utilizarei resenhas relevantes de Orfeu
e Poderescritas por brasilianistas (o cientista político Michael Mitchell, os
historiadores Kim Butler e Richard Graham, e o antropólogo John Burdick). Farei
uso, também, de duas resenhas escritas por especialists em outras áreas
(Alejandro de la Fuente, um recente Ph.D que estuda a questão racial em Cuba, e
o sociólogo Howard Winant). Finalmente, aproveitarei as discussões e artigos
recentes sobre Hanchard tanto de sociólogos brasileiros (Luiza Bairros, Denise
Ferreira da Silva, e Antonio Sérgio Alfredo Guimarães) quanto de antropólogos
(Peter Fry, Rita Segato, e Olivia Gomes da Cunha).
5.
Richard Graham (1995) nota que "as relações de poder entre raças no
Brasil têm por muito tempo atraído a atenção de observadores estrangeiros [...]
até mesmo quando estes escritores não reconheciam que o que estava em jogo eram
questões de poder" (como no caso de Bourdieu e Wacquant).
6.
Em sua revisão bibliográfica dos estudos latinos-americanos, Pierre-Michel
Fontaine notou que "os estudos afro-brasileiros têm ocupado um espaço
crescente" e que "não é por acaso que boa parte dos trabalhos mais
interessantes foi e tem sido feita no ou sobre o Brasil, apesar dos obstáculos
lá encontrados" (Fontaine, 1980:208).
7.
Devido à sua própria natureza, as comparações não têm razão de ser se os
objetos comparados são exatamente os mesmos ou completamente diferentes
(French, Mörner e Viñuela, 1982). Para uma apresentação esquemática das
semelhanças e diferenças entre as experiências dos povos descendentes de
africanos nos EUA e no Brasil, cf. French (2001) [http://www.duke.edu/web/las].
8.
Cf. Cunha (1998), para a lógica política por detrás desta tática do movimento.
9.
Para trabalhos mais recentes nessa linha, ver Telles (1992, 1993, 1994),
Lovell (1994), Reichmann (1999).
10.
Para uma crítica das idéias "primordialistas", cf. o estimulante
artigo dos antropólogos John e Jean Comaroff (1992) que também delineiam uma
discussão teórica muito proveitosa sobre a origem das "raças" ou
etnias, assim como a emergência e subseqüente transformação da consciência
"racial" ou étnica.
11.
Hanchard se destaca em relação a outros estudiosos e militantes precisamente
por causa de sua recusa em equacionar a sobrevivência africana ou resistência
cultural negra com a mobilização política contra o racismo ou a desiguladade
racial. Sua postura em relação à cultura e religiosidade afro-brasileiras gerou
discordâncias fortes mas proveitosas por parte outros estudiosos (Burdick,
1998; Butler, 1998; Segato, 1998). Além disso, Hanchard também se move dentro
dos debates nos movimentos da "Consciência Negra" em torno do papel
do "culturalismo" como estratégia do movimento.
12.
Um sentimento de alienação pode acompanhar algumas variantes da militância
negra brasileira, como em um artigo de 1992, publicado em inglês por dois
líderes do MNU. O racismo no Brasil, escrevem, "permeia todas as áreas da
vida nacional [...] com tanto sucesso [...] que a maioria da população
brasileira tem dificuldade para identificar o racismo, quando ele acontece
[...] Porque ele está tão profundamente enraizado no dia-a-dia de nossas vidas,
o Brasil é um dos poucos lugares do mundo em que podemos dizer que há uma
aceitação do racismo por parte daqueles que sofrem com ele." Desta
maneira, o racismo opera no Brasil não apenas através "da dominação da
maioria da população por uma minoria, mas também pela aceitação e colaboração
tácitas em sua continuação, com mínimos protestos por parte daquela
maioria" (Caetano e Cunha, 1992:86).
13.
Para militantes brasileiros negros, o processo de "conscientização"
é um desafio para os indivíduos descendentes de africanos para "assumir
sua negritude", uma terminologia característica quando comparada ao caso
norte-americano. Florestan Fernandes (1989) discute o negro assumido dentro da
classe média em relação ao seu oposto: o negro de alma branca.Cf. também a
análise de Sheriff (1997b:418-427).
14.
O antropólogo John Burdick (1995) questionou o fato de Hanchard "basear-
se quase exclusivamente no discurso oral de líderes", sem observações
vindas de baixo, de participantes que não eram líderes, ou que estavam fora do
movimento, "afro-brasileiros que, por qualquer razão, decidiram manter
distância dele". No entanto, o foco exclusivo de Hanchard em militantes
negros (negros assumidos) de fato revela os supreendentes dilemas do movimento
com uma claridade persuasiva. O rico potencial de uma abordagem dos não-
militantes é bem revelado na fascinante monografia de 1998 de Burdick sobre as
mulheres no Rio de Janeiro, assim como a provocativa exposição, ainda que menos
elaborada, de entrevistas sobre raça que ela conduziu no interior do Rio de
Janeiro (Twine 1998). Sheriff (1997a) fornece uma explicação sensata de
discursos sobre raça e cor por militantes e não-militantes, brancos e não-
brancos, tanto pobres quanto da classe média do Rio de Janeiro. Lamento apenas
que Hanchard não tenha explorado mais completamente seu material de entrevistas
e o combinado com uma análise mais extensiva da produção intelectual do
movimento. Sobre este último ponto, Hanchard foi criticado por um membro do MNU
por subestimar a capacidade própria do movimento negro brasileiro "para
elaborações práticas e teóricas". Como um exemplo, Bairros menciona o
erro, por parte de Hanchard, de aplicar uma teoria de hegemonia baseada em
Gramsci ao caso brasileiro, sem "dar atenção à sua configuração dentro do
próprio movimento negro" (Bairros, 1996:178, 180) em que era, como Cunha
(1998:229) observa, a principal moeda corrente da discussão do movimento na
década de 70 (assim como na esquerda como um todo).
15.
Deve-se enfatizar que Orfeu e o Podernão é uma história enciclopédica dos
movimentos de consciência negra desde 1945 (uma continuação do valioso estudo
de Butler dos movimentos negros em São Paulo até a década de 1940 [1998] se faz
altamente necessária, e ainda esperamos o final do estudo de Anani Dziedzenyo
sobre o importante militante do Movimento Negro, Abdias do Nascimento
[Dziedzenyo, 1991]). O livro de Hanchard também não é um exercício rigoroso de
como construir um modelo de análise social científica por meio da formulação de
hipóteses e seu teste. Em vez disso, é um sugestivo conjunto de ensaios inter-
relacionados, motivados por preocupações teóricas, que é "rico em idéias e
cheio de detalhes surpreendentes" sobre o mundo dos movimentos negros no
Brasil (Graham, 1995). Ainda que Hanchard tenha sido criticado por não
conseguir fornecer um estudo comparativo sistemático da evolução dos movimentos
negros em São Paulo e no Rio de Janeiro (Fuente, 1995), Kim Butler observa, com
acerto, que Orfeu e o Poder não é "um relato estritamente histórico, nem
pretende ser" (Butler, 1996). Como Mitchell (1995) nota, ele é "antes
de mais nada, uma obra teórica" na qual encontramos "menos atenção
aos detalhes" do que nos estudos históricos revisionistas, tal como o
excelente, e merecidamente influente, estudo de George Reid Andrews, Os Brancos
e os Negros em São Paulo, Brasil, 1888-1988 (1991; 1998). Com efeito, o livro
de Hanchard não se "propõe a ser um texto definitivo, mas, ao contrário, a
gerar novos debates e abordagens metodológicas à história política afro-
brasileira" (Butler, 1996) e as evidências são usadas primordialmente para
ilustrar seus argumentos teóricos e conceituais (Mitchell, 1995). Neste
sentido, a monografia de Hanchard não oferece uma contextualização profunda do
movimento da consciência negra no Brasil, mas, em vez disso, um criativo esboço
de alguns de seus dilemas principais.
16.
Bourdieu e Wacquant demonstram uma ingenuidade considerável ao selecionar o
Nem Negro nem Branco,de Carl Degler, como seu "estudo clássico".
Ainda que útil, especialmente para norte-americanos, o livro é, em grande
parte, carente de originalidade e consiste quase que totalmente em uma
explicação de resultados da pesquisa de campo realizada por estudiosos
brasileiros, norte-americanos e franceses na década de 50. A importância do
livro de Degler, com efeito, reside menos naquilo que revela sobre o Brasil do
que naquilo que mostra sobre as mudanças no campo intelectual dos EUA entre a
época de Frank Tannenbaum nos fins dos anos 40, e a revolução do Movimento dos
Direitos Civis nos anos 60. O novo prefácio à edição de 1986 fornece exemplos
adicionais das guinadas ideológicas que ocorreram desde aquela época.
17.
A existência de preconceito e discriminação racial no Brasil (agora chamados
de racismo ao estilo brasileiro) tem, na realidade, sido um consenso entre os
estudiosos, que data dos clássicos estudos patrocinados pela UNESCO na década
de 50, sejam eles os brasileiros como Florestan Fernandes, Thales de Azevedo,
Oracy Nogueira, ou Luis Costa Pinto, ou os norte-americanos como Charles Wagley
e Marvin Harris, ou ainda o francês Roger Bastide. Os resultados da pesquisa
acadêmica, como recentemente observou Andrews, deixam claro que
"desigualdade, preconceito e discriminação raciais são fatos sociais que
estão profundamente inscritos na vida brasileira" (Andrews, 1997:25).
18.
Duas décadas depois, o historiador afro-norte-americano Leslie Rout atacou
vigorosamente "a farsa construída em torno das relações raciais no
Brasil" por autores, em sua maioria brancos e norte-americanos, na
primeira metade do século XX, quando apresentavam "a situação racial
brasileira como relativamente paradisíaca [...] de forma a exteriorizar sua
cólera contra uns Estados Unidos da América segregados", especialmente
"a propensão dos brancos sulistas a linchar e queimar". Isto
representou, conclui, "a construção de uma fantasia que teria efeitos
nocivos para o estudo da história brasileira", por subestimar o estilo
brasileiro de racismo. Foi, ele esperava, um "exemplo claro do tipo de
desonestidade intelectual que historiadores [e sociólogos] do futuro deveriam
escrupulosamente evitar" (Rout, 1973: 485-6, 488). Esse uso do Brasil como
uma arma no campo dos EUA era também comum entre os afro-norte-americanos em
seu contato com o Brasil neste século (Hellwig, 1992). Apesar de não
explicitados, os relatos de visitantes norte-americanos nesta coleção, tanto
críticos quanto laudatórios, demonstram uma percepção nítida das semelhanças e
das diferenças entre as duas realidades raciais.
19.
Observadores freqüentemente tomam "a falta de pronunciamentos sobre o
racismo no Brasil", nota Robin Sheriff, "como uma evidência prima
facie de que o preconceito e discriminação raciais, como um conjunto de
problems sociais e/ou políticos, não são significantes o suficiente para gerar
discussões". E os comentários críticos de norte-americanos sobre o racismo
no Brasil são ignorados por esses mesmos observadores por serem
"julgamentos etnocêntricos, feitos porque os [norte] americanos são tão
obsecados com seu próprio dilema, que não conseguem entender que tal dilema não
existe para os brasileiros" (Sheriff, 1997a:126). Sua detalhada e sensata
análise dos múltiplos discursos (e silêncios) sobre a questão racial no Rio
oferece uma resposta bem-vinda a estas defesas agora já cansativas.
20.
Podemos nos lembrar aqui da análise semiótica de Roland Barthes da foto na
capa da revista Paris Matchoferecida a ele por seu barbeiro. Ela mostrava um
jovem negro, em um uniforme militar francês, provavelmente saudando a bandeira
nacional. É claro, escreve Barthes, o que isto deveria significar para o leitor
francês: "que a França é um grande Império, que todos os seus filhos, sem
distinção de cor, fielmente servem à sua bandeira, e que não há melhor resposta
a [seus] detratores [...] do que o fervor demonstrado por este negro"
(Barthes, 1972:116).
21.
Bourdieu e Wacquant descrevem, em várias passagens, a humilhação envolvida no
processo de "dominação simbólica" da Europa pelos Estados Unidos.
Afinal de contas, assinalam, muitos dos produtos de exportação dos EUA,
denunciados por eles, foram, em sua origem, "tomados de empréstimo"
dos europeus, que "agora os recebem como as mais avançadas formas de
teoria". E este erro de interpretação, continuam, está agora "em vias
de ser imposto em sua forma [distorcida norte-] americana aos próprios
europeus" (Bourdieu & Wacquant, 1999:53, 43).
22.
Bourdieu e Wacquant querem evitar o debate e não querem ser incomodados por
idéias das quais discordam. Em vez disso, procuram desqualificar
automaticamente visões "incorretas" baseando-se em sua nação de
origem (apesar de reconhecerem que este é um assunto confuso). O pior de tudo,
no entanto, é que seu ensaio não apenas desencoraja qualquer discussão, mas
tenta ativamente impedir o debate produtivo através de gestos de desdém, que
são o oposto de um debate intelectual entre pares, político e proveitoso.
23.
Se os intelectuais quiserem dominar seus instrumentos analíticos, dizem
Bourdieu e Wacquant, precisamos de "uma história genuína sobre a gênese
das idéias a respeito do mundo social, combinada a uma análise dos mecansimos
sociais de circulação intelectual dessas idéias" (Bourdieu & Wacquant,
1999:51). Os autores apenas reconhecem a questão do "consumo", para
usar o tipo de metáfora mercantilista tão apreciada por eles, em uma referência
à "retradução [local] de problemas sociais relevantes" atuais para um
vocabulário importado pelos nativos (ibidem:50).
24.
Aqueles sem muito contato ou conhecimento da comunidade afro-norte-americana
tendem a pensar erroneamente, como notou Hanchard em sua resposta a Peter Fry
em 1996, que há apenas um "modo de ser" entre os descendentes de
africanos nos EUA. Esta subestimação da diversidade interna dentro dos EUA, uma
noção equivocada, mas presente em Bourdieu e Wacquant, assim como em muitos
brasileiros, pode levar a uma interpretação distorcida da forma-de-ser afro-
norte-americana como monolítica e implicitamente separatista (Segato, 1998:134,
130). Apesar de escapar facilmente àqueles que estão do lado de fora, o tema da
integração e da busca de uma sociedade igualitária racialmente, não são, de
maneira alguma, marginais para a vida e luta atuais dos afro-norte-americanos.
25.
A crítica de Silva é bem exemplificada pelo argumento de Winant de que sua
"teoria da formação racial" é "particularmente adequada para
lidarmos com as complexidades da dinâmica racial brasileira [porque] a raça é
vista como constitutiva da psiquê individual e dos relacionamentos entre
indivíduos; ela é também um componente irredutível de identidades coletivas e
estruturas sociais" (Winant, 1994:94, ênfase minha).
26.
Livio Sansone, um brasilianista italiano, critica Winant por defender que
"uma polarização étnica global e unilinear esteja ocorrendo, o que
basicamente significa postular o desenvolvimento por todo o mundo de um tipo
único, polarizado, de relações raciais e racismo ' uma cópia em grande escala
da situação nos EUA e, em menor escala, no Nordeste Europeu. Tais
generalizações refletem uma dificuldade geral dentro dos estudos étnicos em
relação a situações de mestizaje com fronteiras étnicas pouco claras e
subestima as peculiaridades das relações de raça e identidade étnicas no Brasil
[...]. Até mesmo com a globalização", nota com bom senso, "algumas
diferenças básicas continuam a existir entre a cultura e as identidades negras
na Bahia e a diáspora negra européia ou a comunidade negra nos Estados
Unidos" (Sansone, 1997:303-4).
27.
A questão de "idéias fora do lugar" e "importadas" pode
ser encontrada na minha recente discussão dos debates em torno do extenso, mas
problemático, sistema brasileiro de leis trabalhistas (French, 1998; 2001).
28.
Devo este argumento a Jan Hoffman French, cujas idéias e insights sobre o
Brasil alimentam este ensaio.
29.
A participação crescente de intelectuais brasileiros de descendência africana
é um desdobramento novo em termos da sociologia do conhecimento. A ausência de
intelectuais afro-latino-americanos, lamentava Pierre Fontaine em seu artigo de
1980, reflete "a estrutura e distribuição de riqueza, poder e status na
região. Falando mais diretamente, esta situação reflete o fato de que os
latino-americanos, devido à sua falta de riqueza, status e poder, têm tido
pouca influência na formação e desenvolvimento" dos Estudos Latino-
Americanos (Fontaine, 1980:111).