As fundações norte-americanas e o debate racial no Brasil
E
mbora eu simpatize com a preocupação sobre a influência desproporcional das
idéias e dos conceitos sociológicos norte-americanos em geral e, em alguns
casos, sobre o poder que possuem as fundações norte-americanas de exportá-los,
a escolha feita por Bourdieu e Wacquant das relações raciais brasileiras como
um exemplo disso diminui em grande medida a força de seu argumento. Em
particular, a Fundação Ford não impõe um modelo de raça ao Brasil,
especialmente não da forma simplista que Bourdieu e Wacquant visualizam.
Certamente a Fundação Ford e outras agências têm influência, mas de forma
alguma são a "força motriz". O movimento negro (Nascimento, 1982) e mesmo o uso
de categorias raciais dicotômicas por acadêmicos de importância são anteriores
à presença das fundações filantrópicas norte-americanas, não podendo, portanto,
ser creditados a elas. A questão da raça tem sido um tema importante no Brasil
ao longo de seus 500 anos de história e a decisão da Fundação Ford de trabalhar
nesta área, desde mais ou menos 1980, tem sido uma resposta às necessidades
prementes e reais neste país. Bourdieu e Wacquant simplesmente fazem suposições
erradas, baseadas em seu conhecimento muito limitado sobre o tema.
A partir de minha experiência no escritório da Fundação Ford no Brasil
investiguei o papel daquela fundação no lançamento de tais idéias. A Ford é o
maior suporte financeiro das organizações do movimento negro no Brasil e o
maior apoio filantrópico das pesquisas sobre relações raciais, principalmente
através de seus programas de direitos humanos. Outras fundações norte-
americanas, incluindo MacArthur, Rockefeller e Kellogg, apóiam esta área em
escala muito menor. Como responsável pelo Programa de Direitos Humanos do
escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro do começo de 1997 até o final de
2000, e como consultor desta Fundação desde 1995, sinto-me capaz de comentar
sobre como as fundações norte-americanas abordam as questões raciais no Brasil
e avaliar seu impacto. Voltei ao exercício de minha atividade acadêmica, e não
há nenhum interesse velado em defender a Fundação Ford, se é que algum dia o
tive. Embora eu normalmente evitasse assumir uma posição pública que pudesse
parecer uma enérgica defesa de minha instituição anterior, senti-me compelido a
desmitificar seu trab
A Fundação Ford e a Raça no Brasil: Colocando os Dados Corretos
Nos últimos 20 anos, a Fundação Ford elaborou seu programa sobre o tema da raça
no Brasil interativamente com o movimento negro e seus aliados (brasileiros)
acadêmicos e ativistas. Hoje, a agenda deriva principalmente de preocupações
internas a respeito dos direitos humanos no Brasil, que emergiram como
desdobramento de uma preocupação dominante na sociedade civil desde a atual
democratização, que começou no final dos anos 70. Por outro lado, a Ford busca
integrar este trabalho ao seu projeto mais amplo, dado o crescente valor do
intercâmbio das sociedades e a importância de um sistema internacional de
direitos humanos cada vez mais premente. Assumidamente, a Fundação Ford defende
princípios institucionais que, muitas vezes, percorrem seu trabalho
internacional, embora provavelmente não o suficiente. Durante meu período como
consultor, em 1995, Sueli Carneiro, uma liderança brasileira do movimento
negro, articulou bem esta posição, comentando que seria hipócrita por parte da
Fundação Ford no Brasil simplesmente ignorar os princípios que endossa nos
Estados Unidos (Telles, 1995).
Embora a Fundação Ford tenha feito de temas ligados à justiça racial o centro
de seu portfólio americano, considerou que estava apenas expandindo esta linha
de seu programa para os quatorze escritórios e os 44 países onde trabalha. Este
tema é especialmente atual considerando a recente Conferência Mundial sobre
Racismo, Xenofobia e outras Formas de Intolerância, que aponta para a
universalidade da raça e da discriminação. Dito isto, fora dos Estados Unidos e
da África do Sul, o trabalho da Fundação nesta área está mais avançado no
Brasil, onde a compreensão sobre raça e racismo ecoa em grande parte da
população. Embora em menor escala, a Ford começou a financiar programas sobre o
povo rom1 na Europa Oriental, sobre as relações entre árabes e judeus em
Israel, e sobre os povos indígenas nas Filipinas.
Sua hesitação em expandir o programa sobre raça e etnicidade a contextos não-
americanos provém de um cuidadoso estudo sobre a adequação e o caráter deste
trabalho, em vez da vontade irrefletida de impor visões americanistas sobre
estas sociedades. As decisões de expandir seu trabalho nestas áreas, assim como
os princípios gerais de apoio financeiro, vêm principalmente dos responsáveis
pelos escritórios locais, embora estes consultem os já agraciados com dotações,
os experts locais e colegas espalhados por todo o mundo, incluindo aí os
nativos das regiões em que estão trabalhando, norte-americanos e outros. Estes
responsáveis também são experts em suas áreas, geralmente vindos da academia ou
de longas experiências como líderes de movimentos sociais. Os responsáveis por
programas da Fundação Ford decidem financiar propostas específicas e têm quase
completa autonomia na definição de seus programas. Nos quase quatrocentos e
poucos projetos que foram financiados durante a minha gestão, nenhum foi
modificado, nem pelo alto escalão da Ford, nem pelo Conselho de Curadores da
Fundação. O maior impacto que tem o alto escalão no processo é na seleção dos
específicos responsáveis pelos escritórios, apesar de eles não serem nada
homogêneos em termos nacionais, étnicos ou ideológicos (apesar disso, a grande
maioria tende a ser de esquerda, para os padrões americanos). A crescente
diversidade nacional da equipe mais antiga da Ford, incluindo os diretores e
responsáveis por programas em Nova York e nos escritórios pelo mundo afora
surpreenderia Bourdieu e Wacquant. O Conselho de Curadores está cada vez mais
diversificado, mas seu papel é indicar e supervisionar o presidente da Fundação
e, ocasionalmente, promover grandes modificações nos programas, mas isto não
interfere nos planejamentos em âmbito mais micro, nem nas decisões de
financiamento feitas pela equipe de cada programa. Atualmente, por exemplo, o
escritório brasileiro da Ford é comandado por um representante naturalizado
brasileiro, de origem britânica, e dois dos quatro responsáveis por programas
são brasileiros. Quase metade dos representantes e responsáveis por programas
são nativos da região com a qual estão trabalhando. O escritório de Nova York
atualmente emprega latinos, africanos, indianos e pessoas vindas do Oriente
Médio, incluindo teóricos altamente respeitados destas regiões, que estão em
altas posições.
Assim, o programa sobre raça da Fundação Ford no Brasil foi minha
responsabilidade durante aproximadamente quatro anos, de 1997 a 2000. Ao
contrário da sugestão de Bourdieu e Wacquant, eu não acreditava que era um mero
transmissor do pensamento racial americano, apesar de, dado o emblema no meu
passaporte, eu não pudesse evitar isto totalmente. Pelo menos, enquanto latino,
como o diretor porto-riquenho do Programa Internacional de Direitos Humanos da
Ford desde 1994, eu compreendia os limites do paradigma branco/negro e estava
ciente do pensamento sobre a existência de um contínuo fenotípico ao longo de
toda a América Latina. Mais importante que isso, minha própria pesquisa
acadêmica apontava para as diferenças entre Estados Unidos e Brasil a respeito
do casamento inter-racial, da segregação residencial, da classificação racial e
da desigualdade. Bourdieu e Wacquant inclusive citam meu trabalho para
demonstrar que os níveis brasileiros de segregação residencial urbana são
substancialmente menores que os existentes nos Estados Unidos (Telles, 1994).
Fui o primeiro a observar como a celebração brasileira da miscigenação como
sendo oposta à herança segregacionista americana tinha tido profundas
implicações para estabelecer padrões distintos de sociabilidade inter-racial,
tal como aferida na segregação residencial, no casamento inter-racial2 e nas
amizades, assim como no desenvolvimento de uma classe média negra e de
movimentos anti-racistas (Telles, 1999).
Entretanto, níveis notadamente mais baixos de segregação residencial no Brasil
não significam que não há racismo, ou que o racismo lá é menor do que nos
Estados Unidos, como sugerem os autores. Afinal, não há quase nenhuma
segregação residencial entre homens e mulheres. Na verdade, eles vivem nas
mesmas unidades domésticas. Mas isto significa que não há sexismo ou que sua
virulência é menor que a do racismo? Sociólogos nos Estados Unidos têm chamado
a segregação residencial da base da desigualdade entre brancos e negros nos
Estados Unidos (Bobo, 1997; Massey & Denton, 1994; Oliver & Shapiro,
2000), mas este certamente não é o caso no Brasil. Será que Bourdieu e Wacquant
sugerem que para o Brasil ser considerado racista este pressuposto americano
tenha que ocorrer lá também? Para eles, as relações sociais brasileiras entre
pessoas de diferentes cores ou raças parecem precisar passar por um teste a
partir de critérios norte-americanos para serem consideradas racistas. As
manifestações de um racismo pernicioso no Brasil simplesmente são diferentes.
No Brasil, a desigualdade entre brancos e não-brancos é maior que nos Estados
Unidos3 e expressões explícitas de racismo no entretenimento de massa seriam
impensáveis hoje nos Estados Unidos. Por exemplo, mesmo a letra de uma música é
explicitamente racista: intitulada "Olha o Cabelo Dela", cantada por um palhaço
de nome Tiririca, e gravada pela Sony Music Co., a canção revela a aceitação do
insulto racial com humor, apesar de sua carga ofensiva. Esta parece ser
percebida pela maioria dos brasileiros, conforme verificado por uma pesquisa
promovida no Estado do Rio de Janeiro, na qual 67% da população achava a letra
"racista" ou "de mau gosto", sem diferenças de cor. Para citar algumas frases
da canção: "parece bombril de arear panela; eu levei ela pra tomar banho/
a doida não me escutou/aquela nega fede, não agüento seu fedor; a bicha fede
mais que um gambá".
Portanto, o racismo no Brasil atualmente é pelo menos tão insidioso quanto o é
nos Estados Unidos, em alguns níveis. No entanto, estes níveis são muitas vezes
ignorados, enquanto outros, particularmente a miscigenação, são realçados para
demonstrarem que o Brasil está mais perto de uma democracia racial do que os
Estados Unidos.4 Felizmente, os militantes anti-racistas estão atualmente
começando a desafiar a mídia, a indústria fonográfica e os produtores e
legitimadores da cultura de massas, graças, em parte, ao apoio financeiro da
Ford. Embora isto possa parecer uma exportação dos valores liberais norte-
americanos, também representa os valores de muitos brasileiros, como indicam
recentes estudos sobre atitudes raciais.
Ao longo da história brasileira, a raça tem estado na pauta de discussões.
Afinal, o Brasil foi o país que mais importou escravos da África, e foi o
último a abolir a escravidão (em 1888). Guiadas por uma visão do racismo então
aceita como científica durante a maior parte do século XIX e a primeira parte
do XX, suas elites eram obcecadas com a enorme barreira ao desenvolvimento que
sua grande população não-branca representava. Eles arranjaram meios de
contornar este aparente obstáculo, incluindo aí o subsídio à imigração européia
e o desencorajamento de imigração não-européia. Por conta da tremenda
influência de Gilberto Freyre a partir dos anos 30, os brasileiros foram
capazes de achar sua salvação através da celebração da miscigenação e da
construção ideológica da democracia racial. Entretanto, esta miscigenação era,
e continua sendo, excludente. Ironicamente, ela foi construída sobre a idéia
racista do embranquecimento, em que a branquitude tinha o maior valor e a
negritude deveria ser evitada. Infelizmente, a ideologia do branqueamento
continua forte e os brasileiros, tal como os cidadãos de muitos outros países,
estão começando a reconhecer as profundas raízes do racismo em sua cultura.
Em vez de serem cópias irrefletidas do pensamento acadêmico norte-americano, o
vivo e crescente debate acadêmico sobre raça no Brasil é independente e se
insere no contexto de uma comunidade acadêmica vibrante, sofisticada e
autônoma. Ao contrário das afirmações de Bourdieu e Wacquant, isto tem pouco ou
nada a ver com o fato de ser publicado em inglês, outra suposta base do
pensamento norte-americano, e muitos pesquisadores desta área não recebem apoio
financeiro de fundações americanas. Além de alguns artigos ocasionais, não
consigo lembrar de um só livro sobre relações raciais contemporâneas de autor
brasileiro que tenha sido publicado em inglês, desde a clássica obra de
Florestan Fernandes que foi traduzida em 1969 (Fernandes, 1969). Embora o apoio
das fundações americanas possa ser maior quando se trata de pequenos países,
com menores recursos, os acadêmicos brasileiros envolvidos no debate racial
são, em sua maioria, profissionais e estudantes de universidades com um suporte
financeiro relativamente bom e o governo brasileiro, principalmente através do
CNPq, apóia a maioria destas pesquisas. A maior parte é treinada no Brasil, mas
muitos fizeram pós-graduações em países tão diferentes como os Estados Unidos,
a França, a Holanda e a Alemanha. Muitos destes pesquisadores encontram-se ao
menos uma vez ao ano nas reuniões da Anpocs, que abriga os principais programas
de pós-graduação em Ciências Sociais e na qual há pouca paciência para
ortodoxias ou simplificações, e tampouco para o pensamento dominante nos
Estados Unidos, para o marxismo vulgar ou para um tipo de pensamento ligado à
idéia de democracia racial. Embora estudiosos norte-americanos sejam
importantes colaboradores neste debate ' e em geral eles conhecem a literatura
brasileira sobre o tema ' de forma alguma o centralizam. Isto é particularmente
verdade hoje em dia, com o crescente número de estudantes negros (que assim se
classificam) e com a desigualdade racial se tornando uma preocupação central
para muitas das questões que surgiram nas pautas de políticas sociais e
direitos humanos no Brasil. Infelizmente, problemas em relação à língua fazem
parecer o contrário para aqueles que não podem ou não têm paciência de ler em
português, como o próprio conhecimento de Bourdieu e Wacquant sobre esta
literatura demonstra. A importância que eles dão ao livro de Michael
Hanchard,Orfeu e o Poder, é mais uma prova, pois ele só foi traduzido para o
português em março deste ano.
Como responsável pelo programa, desenvolvi uma iniciativa de financiar, através
da Ford, a área da justiça racial, que pretende apontar o racismo na sociedade
brasileira por via de atividades judiciais, na mídia, na advocacia e na
pesquisa. A organização desta iniciativa inclui várias entidades da militância,
em cidades-chave, que almejam combater o racismo através de ações legais e
intervenções nas políticas públicas. Os representantes destas organizações se
encontram regularmente para discutir uma estratégia unificada de combate ao
racismo, e recentemente formaram uma rede de advogados ligados ao movimento
negro. Suas estratégias incluem sensibilizar o sistema judiciário e outras
autoridades do governo para a questão do racismo na sociedade brasileira e
indicar casos exemplares com potencial para causar impacto na mídia e na
jurisprudência.
Além de financiar estas organizações, atualmente esta iniciativa do Programa de
Direitos Humanos patrocina atividades de pesquisa em Ciências Sociais que
possam demonstrar os mecanismos de discriminação e que suplementem o trabalho
legal e de políticas públicas, incluindo pesquisas que abrangem práticas
diferenciadas de recrutamento para emprego, sentenças criminais e perseguição
policial a partir de critérios raciais, pesquisa sobre ações afirmativas, e
similaridades e diferenças nas culturas legais e nas leis antidiscriminatórias
entre Estados Unidos e Brasil, que poderão servir de base para um efetivo
intercâmbio entre operadores do direito nos dois países. O programa de Direitos
Humanos também visa fortalecer as lideranças negras, patrocinando treinamento,
tal como cursos em administração pública, campanhas eleitorais e em língua
inglesa.
Além disso, esta iniciativa pretende fortalecer os laços entre as organizações
anti-racistas e outras organizações ligadas aos direitos humanos em todo o
Brasil e em outras partes do mundo. Isto inclui o patrocínio de organizações
brasileiras para que elas possam intervir nas leis internacionais ou nos
sistemas de direitos humanos da ONU ou da OEA. Ligado a isso, o programa de
Direitos Humanos tem promovido trocas internacionais entre advogados do
movimento negro e organizações civis norte-americanas, na crença de que a longa
experiência destas últimas na luta anti-racista possa fornecer lições
importantes para seus pares brasileiros. As trocas, em grande medida, consistem
em vivas discussões, com tradutores profissionais, e que, apesar das diferenças
legais e culturais que se tornam logo visíveis, enriquecem o conhecimento e a
prática de ambos os lados. Finalmente, com o Programa de Desenvolvimento
Sustentável, esta iniciativa apóia atividades ligadas aos direitos dos índios
e, durante minha gestão, apoiou uma pesquisa sobre discriminação e etnicidade
entre japoneses, coreanos e chineses no Brasil.
Impondo a Ação Afirmativa e a Dicotomia Branco/Negro?
Bourdieu e Wacquant afirmam que "como condição para sua ajuda, a Fundação
Rockefeller exige que os grupos de pesquisa endossem os critérios norte-
americanos de ação afirmativa, que apresenta problemas insuperáveis, já que,
como temos visto, a aplicação da dicotomia branco/negro na sociedade brasileira
é, para dizer pouco, duvidosa".
Surpreendi-me ao ouvir isto, baseado no meu conhecimento sobre a Rockefeller e
outras fundações. O diretor do programa de apoio da Rockefeller na UFRJ me
assegurou que eles nunca exigiram a implementação de qualquer tipo de programa
de ação afirmativa. Mais ainda, que houve um único programa dedicado à questão
da raça financiado pela Fundação Rockefeller ao menos na última década. No
entanto, é um programa familiar a Wacquant, já que ele participou dele na
qualidade de bolsista. Os autores erroneamente atribuem à Rockefeller o apoio
ao Centro de Estudos Afro-Asiáticos ' CEAA. Durante 20 anos, a Ford tem sido a
principal financiadora do CEAA e sua biblioteca tornou-se uma fonte de
informações privilegiada sobre a questão da raça no Brasil.
A própria legalidade do programa de ação afirmativa ao estilo norte-americano
no Brasil é questionável,5mas mais importante que isso é o grande cuidado que
as fundações norte-americanas têm em financiar programas que possam ser vistos
como intromissões em assuntos internos. Afinal, as fundações norte-americanas
são convidadas dos governos locais, estão aqui com seu consentimento. Sem
dúvida, a Ford hesitou em financiar atividades ligadas à questão racial durante
muitos anos na década de 70 por conta da grande resistência por parte dos
governos militares. A Fundação Ford começou (cuidadosamente) a financiar
pesquisas sobre raça no CEAA em 1979, quando o Brasil iniciava um processo de
redemocratização. Dois anos antes, todas as atividades da Fundação Inter-
Americana no Brasil foram "suspensas" por conta de um relatório do Itamaraty
que indicava o financiamento de dois projetos que visavam apontar "a
persistência da discriminação racial".6 O governo brasileiro daquela época era
conhecido por considerar a pesquisa sobre raça e as atividades do movimento
negro como subversivas e como uma ameaça à segurança nacional. Embora não
tenhamos certeza, já que não houve nenhuma pesquisa de opinião pública, esta
parecia aceitar que a sociedade brasileira constituía uma democracia racial em
que a raça fazia pouca ou nenhuma diferença em relação às oportunidades.
Entretanto, aquela mentalidade mudou completamente nos últimos anos. O
presidente do Brasil criou um conselho para propor soluções para atenuar as
desigualdades raciais, a existência do preconceito racial e da discriminação é
quase totalmente reconhecida e há um forte apoio a políticas governamentais
especificamente raciais destinadas a promover os negros.
Embora referindo-se nominalmente à Fundação Rockefeller, Bourdieu e Wacquant
podem estar fazendo referência à "tabela de diversidade" utilizada pela
Fundação Ford no Brasil. A Ford-Brasil requer uma "tabulação da diversidade" e
uma explicação de todos os seus financiados em todos os campos de atuação. Isto
inclui mais de cem apoios por ano, dos quais menos de vinte são,
principalmente, sobre questões raciais. Esta tabulação enumera toda a equipe em
diferentes níveis, de acordo com critérios de gênero (homens/mulheres), de raça
(brancos/não-brancos), e a explicação induz os financiados a explicarem por que
eles refletem, ou não, a diversidade local com respeito a gênero e cor e o que
eles pretendem fazer para melhorar isto. Não há obrigação de alcançar qualquer
valor determinado e, até onde sei, o apoio não está condicionado a isto. Ao
contrário, esta tabulação sobre diversidade é um instrumento dos responsáveis
pelos programas para iniciarem discussões com os diretores sobre os padrões
atuais de raça e representação na sua equipe e como melhorá-la, e da relevância
de raça e gênero dentro de suas preocupações. Embora alguns financiados
valorizem mais a diversidade que outros, entre nossas centenas de financiados
não me lembro de uma única reclamação sobre sua inadequação, e menos ainda
sobre seu "efeito duvidoso".
Além disso, esta tabulação da diversidade lança questões sobre brancos e não-
brancos, e nunca sobre brancos e negros. O pessoal da Fundação Ford está
bastante consciente de que o termo não-branco inclui muitas categorias de cor e
que mesmo a distinção branco/não-branco é, muitas vezes, ambígua. Apesar disso,
nós pedimos aos financiados que preencham este item da melhor forma possível, e
temos achado que os financiados tendem a pedir aos membros da sua equipe para
relatar sua própria cor, em vez de supô-la em lugar deles. Não percebo que os
financiados sintam qualquer tipo de sanção por terem uma equipe
predominantemente branca ou masculina, na medida em que eles sejam honestos com
o responsável pelo programa e estejam fazendo esforços para recrutar não-
brancos e mulheres. Como demonstro em artigo recente, Bourdieu e Wacquant
exageram o grau de ambigüidade que seu padrão intelectual, o de Marvin Harris e
de seu assumido seguidor, Carl Degler, propõem (Telles, 2001).
Dito isto, a distinção branco/negro não é tão exterior como Bourdieu e Wacquant
afirmam. Esta distinção é constantemente usada pela mídia e pelas instituições
governamentais federais e locais, incluindo o Programa de Direitos Humanos do
Ministério da Justiça. A utilização das categorias branco e negro talvez seja
mais comum no Sudeste do país, comparada ao Nordeste, onde distinções negro/
mulato são mais freqüentes (Telles, 2000). Na verdade, o próprio clássico texto
de Florestan Fernandes financiado pela Unesco utiliza a dicotomia branco/negro
(Fernandes, 1965). Além disso, ao menos um recente estudo etnográfico demonstra
o uso freqüente da distinção branco/negro na favela estudada por Sheriff (1997)
no Rio de Janeiro, enquanto outros estudos mostram uma crescente preferência
por termos dicotômicos entre os jovens (Sansone, 1995; Schwartzman, 1999;
Telles, 2000).
Longe de impor uma concepção americana de raça, o ponto importante desta
tabulação e de sua explicação é garantir que os financiados estejam cientes de
nossas preocupações e de nossa esperança de que criem uma sensibilidade para as
questões de raça e de gênero, onde antes isso não existia. Dado o
reconhecimento da desigualdade e da discriminação na sociedade brasileira,
parece que isso não é difícil. Pode-se perguntar: e o que ocorreria sem a
presença da Fundação Ford? Talvez nada, mas é difícil saber com certeza, dada a
crescente preocupação geral em relação à inclusão, ao menos entre os
progressistas no Brasil.
A preocupação da Ford com a diversidade fora dos Estados Unidos tem sido
principalmente com uma participação equilibrada de mulheres nos grupos,
enquanto ao mesmo tempo tem sido hesitante em endossar preocupações relativas à
raça e à etnicidade fora de suas fronteiras, por razões que apresentei
anteriormente. A essência das políticas de diversidade da Ford é encontrada nos
cinco parágrafos de "A Reafirmação de uma Política da Fundação", da Carta da
Fundação Ford (1987:7). O primeiro parágrafo declara que:
Em seu trabalho pelo mundo inteiro, a Fundação Ford busca promover o
pluralismo e iguais oportunidades e acabar com a discriminação
baseada em raça, etnicidade ou gênero. Este esforço provém da
convicção de que todos os segmentos da sociedade se beneficiam do
pluralismo e de oportunidades iguais ' de que a diversidade não
somente é compatível com a excelência, mas na verdade a promove.
O parágrafo seguinte afirma que esta política deve ser desenvolvida de três
formas: 1) pelo financiamento a atividades que promovam o pluralismo e aumentem
oportunidades a grupos historicamente em desvantagem; 2) pela busca de uma
participação mais ampla destes grupos em sua própria equipe; 3) pelo estímulo à
diversidade no pessoal das organizações financiadas.
O terceiro parágrafo declara a importância da diversidade na tomada de decisões
sobre financiamento. Em sua última parte estabelece que "fora dos Estados
Unidos, é considerada a diversidade de gênero e, quando adequado, também a
diversidade étnica, racial ou de origem nacional" (ênfase minha). O quarto
parágrafo considera por que a diversidade é importante e o parágrafo final
resume, embora de forma ambígua, o compromisso da Ford com a diversidade em
locais fora dos Estados Unidos. Afirma:
esforços para alcançar o pluralismo e iguais oportunidades requerem
uma atenção continuada e firme, tanto nos Estados Unidos como em
outros países. Embora estratégias apropriadas necessariamente variem
de acordo com limites possibilidades específicos presentes nas
diversas sociedades, a Fundação está engajada em trabalhar,
juntamente com outros, para promover estes esforços e para assegurar
seu sucesso.
Numa consultoria feita em 1995 para a Ford (Telles, 1995), entrevistei
numerosos membros do pessoal da Fundação Ford e uma ampla gama de diretores de
instituições financiadas. Os dezessete financiados que foram entrevistados
incluíram tanto aqueles que tinham como os que não tinham projetos
especificamente raciais, e tanto os que tinham um bom índice de diversidade
quanto aqueles com baixos índices. Também incluíam uma variedade de projetos de
cada área da fundação: governabilidade e políticas públicas, saúde reprodutiva
e população, pobreza rural e recursos, educação e cultura, direitos e justiça
social. As instituições apoiadas incluíam universidades, pesquisadores e
organizações não-governamentais.
Quando dirigi as entrevistas, em 1995, surpreendi-me com o fato de que a
maioria ' porém não todos ' dos financiados eram sensíveis a questões sobre
discriminação racial. Isto tanto refletia uma mudança nas atitudes sobre e a
compreensão das questões raciais, comparadas à duradoura e prevalente ideologia
da democracia racial, como indicava que se tratava de uma parcela seletiva da
população, particularmente preocupada com tais questões. Concluí que ambos os
fatores eram importantes. Claramente, muitos dos financiados eram acadêmicos
proeminentes e ativistas no Brasil. Embora as questões raciais tenham estado
ausentes das pautas de ativistas e acadêmicos durante o regime militar, o
súbito interesse sobre e a sensibilidade às questões raciais entre estes
indivíduos podem ser devidos à exposição, em geral, que a classe média teve a
estes debates na mídia, indo desde debates nos jornais diários até às
telenovelas. Pode ter também refletido o constante interesse da Ford em
sensibilizar seus financiados brasileiros diante das questões raciais.
Entre os principais financiados, a Iniciativa de Diversidade da Ford era, em
geral, percebida como o equivalente ao sistema de cotas. A associação de
diversidade com o sistema de cotas parece refletir uma concepção estereotipada
de diversidade que vem dos Estados Unidos e é representada na mídia. Quando
nada, isto reflete a habilidade dos conservadores (e de suas fundações) de
enxergarem a ação afirmativa ou a diversidade a partir desta perspectiva. Os
brasileiros que entrevistei percebiam que os empregadores nos Estados Unidos,
sob o mandato da lei federal, eram instados a terem uma certa representação
estatística de diferentes grupos raciais em todos os empregos. Além disso, esta
impressão acerca da ação afirmativa era fortemente reforçada pela legislação
que requeria 30% de posições de liderança nos sindicatos e nas agremiações
políticas para as mulheres.
Concluí que o grau em que os financiados aceitavam a diversidade dependia de
sua concepção específica do que era diversidade. Se ela era entendida como um
sistema de cotas, eles se mostravam reservados; mas após uma explicação do que
significava diversidade dentro da Iniciativa da Fundação Ford, eles endossavam
o conceito geral. Ou seja, enquanto a diversidade era entendida como um
programa que buscava e preparava membros de grupos minoritários para trabalhos
melhores e oportunidades educacionais, os financiados a aceitavam, mas quando
ela era apresentada como um sistema de cotas, havia oposição. Nitidamente, a
diversidade ou a ação afirmativa podem ser amplamente definidas e incluem
qualquer coisa, desde programas nada polêmicos que ajudam os pobres e as
minorias a escreverem melhor nos colégios, até a criação de cotas para minorias
nas universidades. Os esforços da Ford para instruir seus financiados a este
respeito tem tido pouco efeito dentro da sociedade mais ampla. Apenas no ano
passado, a Ford financiou projetos que começam a publicizar formas alternativas
de se pensar sobre a ação afirmativa. Embora a equipe da Ford quisesse fazer
mais nesta área, seus relativamente escassos recursos não a têm tornado uma
força motriz, especialmente quando tem contra si um status quo que é propagado
pela poderosa mídia brasileira e fortes interesses públicos e privados.
Curiosamente, uma pesquisa realizada em 1995 pela Datafolha revelou o apoio à
ação afirmativa. Ela demonstrou que a oposição do público em geral até mesmo à
idéia de cotas não era tão forte como os autores sugeririam, ou quanto os
financiados manifestaram. Uma pesquisa nacional mostrou que quase metade dos
brasileiros (48%) apoiaria um sistema de cotas para negros nas universidades e
no mercado de trabalho (Telles, 1995). Isto incluiu 34% que apóiam totalmente
esta idéia e os 14% que a apóiam apenas em parte. Quarenta por cento discorda
completamente e 9% discorda em parte do conceito de cotas raciais (4% não
sabia). Assim, as cotas tinham um apoio maior no Brasil que nos Estados Unidos.
Observem que a idéia de cotas foi explicada aos entrevistados de modo que é
difícil que eles não tenham entendido seu significado.7
Uma pesquisa mais recente no Estado do Rio de Janeiro chegou a resultados
semelhantes.8 A Tabela_1 mostra que 51% da população acreditava que o governo
tem uma obrigação especial de melhorar suas "condições de vida", 55% acreditam
que deveria haver cotas para os negros na universidade e 57% acreditam nas
cotas em ocupações mais altas.9 Dificilmente isto se configura como uma
rejeição da ação afirmativa (Telles, 1995). O apoio à ação afirmativa encarada
como sistema de cotas era especialmente forte entre os menos educados e os mais
pobres em geral, tanto brancos quanto não-brancos, embora os não-brancos fossem
mais a favor das cotas que os brancos em todos os níveis de instrução. A
oposição às cotas era especialmente forte entre os brancos de maior grau de
instrução. Apenas 17% dos brancos com nível superior eram a favor da
intervenção governamental, 4% eram favoráveis às cotas nas universidades e
somente 6% apoiavam cotas em bons empregos. As diferenças entre brancos e não-
brancos em favor de políticas compensatórias ou cotas eram maiores entre
pessoas de nível universitário. Dezoito por cento a mais de não-brancos do que
de brancos acreditavam que o governo tem uma obrigação especial e 32% a mais
apoiavam reserva de vagas para negros nas universidades. No caso de cotas no
mercado de trabalho, a diferença também era de 18% (Telles & Bailey, 2001).
Portanto, há um forte apoio à ação afirmativa entre muitos setores da população
brasileira. O que faz com que o Brasil seja diferente dos Estados Unidos é a
diferença relativamente pequena de tal apoio entre brancos e negros. Além
disso, isto sugere uma ampla base de apoio entre pessoas de diferentes cores. A
principal barreira, e em última análise a mais importante, é a oposição por
parte da elite branca.
Em março de 1995, o então e atual presidente do Brasil criou um grupo de
trabalho subordinado ao Ministério do Trabalho para buscar formas de eliminar a
discriminação no mercado de trabalho, e em novembro daquele ano ele instituiu
um conselho multiministerial para desenvolver políticas públicas que buscassem
valorizar a população negra (Martins, 1996). Isto incluiu exortações do
presidente ao desenvolvimento de políticas de ações afirmativas que fossem
apropriadas ao Brasil (Ministério da Justiça, 1996). Apesar desse apoio do
presidente, esses grupos terminaram e o governo brasileiro, através do seu
setor Executivo, desistiu de seu apoio original em promover uma conferência
regional e, depois, uma conferência nacional como preparação para a Conferência
Mundial sobre Racismo, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância.
Tanto quanto promover a ação afirmativa no Brasil, a Ford financiou pelo menos
três projetos que examinavam formas de reduzir a desigualdade racial no Brasil.
Muitas vezes referidas como sendo "ação afirmativa", estas pesquisas visavam
examinar o potencial de políticas públicas que reduzissem a desigualdade
racial. Elas incluíam uma pesquisa empírica que analisou modelos internacionais
de algumas experiências informais no Brasil, assim como a promoção de debates e
a construção de um trabalho conceitual que formulasse idéias para a elaboração
de políticas públicas adequadas. O interesse da Ford era encontrar formas de
reduzir a desigualdade racial e combater a cultura do racismo por meio de
políticas públicas apropriadas, e não impor uma ação afirmativa ao estilo
americano. Na verdade, o maior apoio, dado à UFRJ, "os permitiria examinar
tanto as políticas públicas quanto as atividades da sociedade civil que
buscassem combater a desigualdade racial" e "estabelecer um amplo programa de
discussão e definição da política pública adequada".10 Os pesquisadores
agraciados com o apoio incluíam um largo espectro de perspectivas, incluindo os
que rejeitam políticas públicas específicas.11 Outros propunham a aceitação de
alguns aspectos da ação afirmativa americana (Guimarães, 1999), enquanto outros
ainda preferiam buscar modelos dentro da América Latina (Sansone, 1998).
Imperialistas Afro-Americanos?
Finalmente, para concluírem, Bourdieu e Wacquant fazem um comentário
particularmente curioso: "que podemos pensar destes pesquisadores americanos
que vêm para o Brasil estimular os líderes do Movimento Negro a adotarem as
táticas do movimento de direitos civis afro-americano e para denunciar a
categoria pardo (uma categoria intermediária) visando mobilizar todos os
brasileiros de ascendência africana na base de uma oposição dicotômica entre
afro-brasileiros e brancos?" Como principal defesa das organizações do
Movimento Negro, isto parece surpreendentemente ingênuo. Quem são estesexperts?
Se eles estão falando de Michael Hanchard, então com certeza entenderam mal
este autor, como John French nos mostra de forma convincente.
No entanto, parece que Bourdieu e Wacquant não estão apontando para ninguém
especificamente, mas sim para uma crença geral de que alguns afro-norte-
americanos estão ansiosos para exportar suas fórmulas e lições sobre direitos
civis e, portanto, estão a serviço do pensamento imperialista norte-americano.
Isto implicaria muita frieza ou inocência. Mesmo que tais pessoas existissem,
Bourdieu e Wacquant sugerem que suas intervenções fariam diferença e, portanto,
a mentalidade imperialista norte-americana triunfaria novamente. Durante minha
gestão na Ford, devo admitir que uma vez testemunhei algo próximo ao que
Bourdieu e Wacquant descrevem. Neste caso, um jovem estudante afro-americano
veio a mim externando suas preocupações em relação às estratégias do Movimento
Negro no Brasil; ele queria encontrar alguns dos líderes do movimento para
ensiná-los estratégias que haviam funcionado em seu (limitado) contexto de
meio-oeste americano. Ele conseguiu falar com o diretor de uma ONG do Movimento
Negro brasileiro, que nós apoiávamos, e que educadamente o fez ver a
inadequação de tais estratégias em um contexto tão distinto como o do Brasil.
Estou certo de que este intercâmbio não teve absolutamente nenhum impacto
naquela organização do Movimento Negro. Quando nada, isto os fez ainda mais
céticos a respeito da intromissão norte-americana, mas felizmente estas
experiências relativamente raras são descartadas em prol daquelas inúmeras
outras de pessoas que buscam aprender com as experiências locais.
Tal como os acadêmicos, estes líderes surpreenderiam os autores por sua
independência e inteligência. Claro que eles acompanharam com grande interesse
as estratégias de libertação negra nos Estados Unidos, mas tomaram exemplos de
lá e de outros movimentos sociais em termos de idéias, não de fórmulas, para
aproveitarem em seu próprio trabalho. Seu conhecimento coletivo se estende até
às lutas de libertação na África e no Caribe, e às lutas pelos direitos humanos
no mundo inteiro, mas estão especialmente bem informados sobre outros
movimentos sociais no Brasil, que são vistos como modelos especialmente
adequados para que desenvolvam suas próprias estratégias. Eles são um grupo
heterogêneo, educado em contextos tão diferentes quanto o movimento de crianças
de rua, a Teologia da Libertação de Leonardo Boff, a ala progressista das
igrejas católica e protestante, o Partido dos Trabalhadores ou mesmo partidos
conservadores, como o Partido da Frente Liberal ' PFL. Além disso, eles tendem
a possuir uma forte identidade nacional e evitam intromissões externas,
incluindo aquelas feitas por americanos negros que não entendem suas lutas.
O pensamento independente dos líderes do movimento negro no contexto de uma
importante comunidade ligada aos direitos civis é exemplificado por um recente
intercâmbio que presenciei. Na Conferência preparatória para a Conferência
Mundial, em Santiago, promovida em parte pelas fundações norte-americanas, três
líderes negros ' do Brasil, de Honduras e do Uruguai ' censuraram o líder da
maior organização de direitos civis americana. Os brasileiros lembraram aos
americanos que vários anos atrás esta organização havia concordado em
repreender uma companhia da indústria fonográfica americana por ter gravado uma
música com intérprete brasileiro que era muito ofensiva às mulheres negras. No
entanto, nada havia ainda sido feito. Os hondurenhos e os uruguaios os
apoiaram, observando que embora o movimento americano dos direitos civis e as
ações dos negros nos Estados Unidos tenham sido sempre um modelo importante
para eles, eles estavam incomodados com a retórica da irmandade e com o
implícito imperialismo dos negros norte-americanos contra seus companheiros do
resto do Continente. Os latino-americanos acusaram aquela e outras organizações
de direitos civis de nem mesmo reconhecê-los, que dirá trabalharem a seu favor.
Eles denunciaram seu silêncio e até mesmo o fato de apoiarem intervenções
norte-americanas na região que desproporcionalmente atingem as populações
negras. Isto incluía o pouco socorro dado às áreas duramente afetadas pelo
furacão Mitch, o financiamento pelo governo americano à guerra contra as drogas
na Colômbia e os desastres ecológicos efetuados pelas companhias americanas no
Equador e no Caribe. Em vez de reforçarem a posição dominante dos Estados
Unidos, a Ford e outras fundações pretendem fortalecer a aliança entre as
organizações negras latino-americanas para que estas representem melhor os
interesses e promovam um efetivo intercâmbio com seus pares norte-americanos
sobre as necessidades específicas dos povos de origem negra na região. Dada a
importância dos Estados Unidos na região, os líderes do movimento negro latino-
americano estão ansiosos para participar da agenda de poderosas organizações de
lutas pelos direitos civis, que eles percebem como aliados naturais, mas
insistem que isto seja feito em seus próprios termos.
Comentários Finais
Os Estados Unidos são interessantes para se entender a raça no Brasil, quanto
mais não seja, pelas possibilidades de comparação que se abrem. Eles têm sido
um referencial constante tanto para pesquisadores brasileiros como americanos,
por conta de algumas similaridades óbvias, tal como a escravização dos
africanos pelos europeus colonizadores, mas também por causa dos resultados
distintos. Felizmente, a extensão e o caráter das semelhanças e das diferenças
são informados por uma variedade de perspectivas que continuam a ser debatidas
e que interativamente enriquecem nossa compreensão sobre a questão da raça no
Brasil. Isto está ocorrendo cada vez mais, para além de línguas e fronteira
nacionais. Embora o debate acadêmico gradualmente esteja se inserindo dentro do
pensamento do Movimento Negro, o próprio Movimento tem pouca paciência para o
debate. A Fundação Ford financia o Movimento Negro no Brasil para ajudá-lo a
responder a questões prementes relativas aos direitos humanos, incluindo o
racismo, a discriminação racial e a desigualdade. Embora o Movimento Negro lute
por legitimidade, tal como outros movimentos sociais o fazem, ele também
enfrenta um grande obstáculo, porque ameaça diretamente os alicerces da nação
brasileira.
Creio que o artigo de Bourdieu e Wacquant foi especialmente infeliz, dada a
importância do primeiro dentro da academia brasileira. Apesar de sua falta de
experiência, ou mesmo de uma compreensão mínima do Brasil, o simples fato de
ser Bourdieu e de contar com uma credibilidade instantânea e de um consumo
imediato de suas idéias por ávidos e jovens cientistas sociais poderia ser
considerado imperialismo acadêmico, se eu também pudesse me permitir uma livre
interpretação do termo. Falo isso por causa de uma experiência relatada a mim
por uma acadêmica e ativista negra, que dava um curso em uma importante
universidade brasileira. Apesar de estar dando vários exemplos à sua turma,
composta somente por brancos, para convencê-la da existência da discriminação
racial no Brasil, o artigo de Bourdieu e Wacquant fez tudo vir por água abaixo.
Depois de semanas de estudo intenso sobre as relações raciais no Brasil,
baseada em suas experiências pessoais e no mundo acadêmico, um colega
conservador levou o texto a seus estudantes, e observou que ele havia sido
escrito por Pierre Bourdieu, o grande cientista social de fama internacional.
Concordo que certas idéias são especialmente sedutoras e funcionam como ameaças
insidiosas às ciências sociais, mas eu incluiria neste rol também aquelas
idéias propagadas por vários teóricos franceses proeminentes.
Notas
1.Nome com que os ciganos preferem ser chamados.
2.Aproximadamente 20% de brancos são casados com não-brancos no Brasil,
enquanto o mesmo ocorre com menos de 1% nos Estados Unidos. No entanto, esta
diferença é em grande parte, embora não inteiramente, explicada por diferenças
no tamanho da população não-branca. Ver Telles (1993).
3.Por exemplo, desde 1960 homens negros e pardos ganham entre 40 e 60% do que
ganham os homens brancos. As mulheres negras e pardas ganham cerca de 10% do
que recebem homens brancos em 1960, com aumentos desde então, até alcançarem
30% em 1996, e comparadas às mulheres brancas, os índices são de 15 para 40%
(Telles, 2000). Índices comparáveis nos Estados Unidos apontam 60 para 75% para
homens negros e 40 para 55% para mulheres negras de 1962 a 1982 (Farley, 1984).
4.Busco explicar estes aparentes paradoxos no meu próximo livro.
5.Esta é a crença legal dominante, baseada no padrão da justiça brasileira de
universalidade (isonomia). No entanto, as cotas exigidas para as mulheres nos
partidos políticos e sindicatos e as proteções especiais dadas aos deficientes
físicos são recentes ações particularistas que desafiam o pensamento legal
dominante. Um livro recente do estudioso do Direito, Joaquim Barbosa Gomes
(2001), argumenta pela existência de base constitucional para políticas
especificamente raciais para promover a população negra.
6.Correspondência com Bradford Smith, antigo responsável pelo programa da
Fundação Interamericana.
7.A questão era "Dada a discriminação passada e presente contra os negros, há
pessoas que defendem a idéia de que a única maneira de garantir a igualdade
racial é reservar uma parte das vagas nas universidades e no mercado de
trabalho para a população negra. Você concorda ou discorda desta reserva de
vagas nas universidades e no trabalho para os negros? Completamente ou em
parte?"
8.O questionário nacional de 1995 não revelou diferenças regionais
significativas sobre questões similares do parágrafo anterior. Esta pesquisa
foi financiada pela Fundação Ford a partir de uma dotação ao Centro de
Articulação das Populações Marginalizadas (CEAP) e foi conduzida pelo Centro de
Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (DataUFF).
9.Esta pesquisa foi financiada pela Fundação Ford a partir de uma dotação ao
Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAP) e foi conduzida pelo
Centro de Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (DataUFF).
10.Memorando da dotação da Fundação Ford, 5 de fevereiro de 1998.
11.Ou seja, Fry (2000).