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BrBRHUHu0101-546X2002000200001

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National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-546X
Year2002
Issue0002
Article number00001

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Esperanças de boaventuras: construções da África e africanismos na Bahia (1887- 1910)

Espoirs de Bonnesaventures: Constructions d'Afrique et Africanisme à Bahia (1887-1910) Cet article fait une analyse des constructions autour de l'Afrique qui ont parcouru la ville de Bahia, entre la fin du XIXème siècle et les premiers anées du XXème. Nous voulons y débatre des références qui ont pu donner lieu à différentes images d'Afrique dans l'État de Bahia de cette époque-là; notre analyse a comme thème central les défilés de carnaval préparés par deux clubs fondés par des descendants d'Africains: Folies d'Afrique et Embassade Africaine. Les récréations de l'Afrique et les Africains ont été importants pour la délimitation de sites socioraciaux qui, dans cet article, sont analysés en tant qu'exercices politiques de constructions d'identités, dans la période post-Abolitioniste, par la communauté des descendants d'Africains elle-même.

Mots-clés : Bahia, Afrique, carnaval, identités, Noirs.

"Eu, Esperança de São Boaventura, achando-me em meu perfeito juízo resolvi de minha livre vontade fazer o meu testamento pela seguinte forma. Declaro que sou natural da Costa D'África não sabendo minha idade e filiação por que fui uma das victimas de horrível crime que se chama escravidão e por muitos annos envergonhou este Brazil." E m 1906, passados quase vinte anos do fim da escravidão, Esperança interpretou a imprecisão acerca da sua procedência como parte de uma tragédia brasileira. Foi sabendo-se estrangeira no Brasil, cativa em Santo Amaro e sem informações sobre a sua filiação na genérica Costa d'África, que ela conheceu e compôs imagens do seu lugar de origem. Lembranças do cativeiro e Áfricas recriadas delineavam, como num caleidoscópio, a avaliação que a africana chamada Esperança, e mais ainda, da Boaventura, fez de sua condição social.1 Bem, a tragédia da escravidão não impossibilitou os africanos de conhecerem ou adotarem signos de pertencimento que, se não eram tão precisos em termos geográficos, garantiam vínculos mais firmes com a África e com os seus, dispersos nos dois lados do Atlântico. Francisca Sallé lançou mão de dois importantes recursos identitários em 1879. Disse ser natural da Costa d'África e ex-escrava do inglês Nicre, de quem comprou sua alforria. Usando o mesmo artifício de mencionar procedência e/ou o antigo proprietário, Constança Teixeira distribuiu os seus bens entre africanos de nação "gallinha".2 Francisca e Constança não estavam inaugurando nenhuma novidade ao reconhecerem a si mesmas e aos outros a partir destas referências, entretanto se pensarmos que estavam tratando das três últimas décadas do século XIX, quando havia cessado o grande tráfico e a escravidão definhava a olhos vistos, vale analisar os sentidos de denominar-se jejê, galinha, nagô e, mesmo africano.

Os africanos formavam um grupo cada vez mais reduzido em Salvador naquela época. Nas contas de Nina Rodrigues, em 1896 eles eram cerca de dois mil. Via- se "verdadeira extinção a passo rápido da colônia africana", disse ele (Rodrigues, 1988:100; Bacelar, 2001). Entretanto, a condição de estrangeiros estava longe da extinção. Estes estrangeiros sabiam bem que o fato de terem nascido na África, mesmo tendo sido trazidos ainda bem pequenos, fazia muita diferença dentro da intricada malha de hierarquias sociais na qual assentava-se a sociedade pós-escravista. Benvindo da Fonseca Galvão estava ciente desta condição ao esclarecer em seu testamento que possuía duas casas registradas em nome dos seus filhos "em razão da proibição das leis provinciais que se opunha aos africanos adquirirem bens de raiz".3 Africano era um adjetivo que realçava a condição de ex-cativo em um país que inventou engenhosas maneiras de conceder alforrias e distinguir socialmente os libertos africanos e seus descendentes a partir da cor da pele, da procedência, das conquistas pessoais e posições de prestígio.4 O debate historiográfico sobre as continuidades possíveis e rompimentos gestados pelos africanos nas Américas tem sido pontuado por um vocabulário que inclui conceitos como crioulização, africanização, transnacionalismo e diáspora negra. Os termos/conceitos em circulação revelam não apenas um intenso debate em torno dos caminhos metodológicos e teóricos, como também sugere que interrogações sejam postas em antigas certezas: a idéia de que na Bahia preservou-se uma legítima cultura africana é uma delas. Foi esta certeza que moveu importantes estudiosos como Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Ruth Landes e Arthur Ramos, dentre outros, a investigar e registrar o que lhes parecesse genuinamente africano, essencialmente autêntico: os africanismos.

O empenho deles, indiscutivelmente, foi fundamental para o que conhecemos hoje da trajetória negra brasileira. Mas, é preciso pôr interrogações, transformar em problemas as conclusões que fundamentaram (e, de certo modo, ainda fundamentam) as abordagens sobre os desdobramentos da escravidão na Bahia. A intenção de capturar reminiscências, influências e sobrevivências patrocinou estudos de um amplo repertório das manifestações e crenças da população negra, mas pouco contribui para pensarmos as dinâmicas que marcaram os lugares sociais da África, dos africanos e seus descendentes nos últimos anos do século XIX.

Sem dúvida, tão plural quanto as Áfricas que aportaram na Bahia eram aquelas inventadas no cotidiano de escravos, libertos e livres. Recriações que ganhavam nitidez no modo como foram infinitamente refeitas as distinções étnico/raciais, as formas de enfrentamento das relações escravistas, os vínculos de afetividade, as crenças religiosas, mas também num extenso leque de contos, mitos e celebrações públicas moldado por inventivas memórias da África.

O propósito deste texto é discutir as versões da África apresentadas nos desfiles carnavalescos dos primeiros anos do pós-Abolição na Bahia. Tais performances eram textos legíveis e legitimados por aqueles que estavam nas margens, e analisá-los é uma tentativa de abordar, a partir de tal ótica, o desmonte da sociedade escravista na Bahia e os arranjos culturais e políticos dos afrodescendentes em construção no período. Tenho como ponto de partida a idéia de que memórias da África então construídas e confrontadas foram relevantes nas reelaborações identitárias e redefinição de arranjos socioculturais no mundo de livres e libertos. A proposta é de nos deixarmos guiar pela indignação de Esperança da Boaventura com as conseqüências do exílio forçoso dos africanos no Brasil, assim como pelo seu auto-reconhecimento enquanto alguém que fazia parte de uma comunidade dispersa em muitos territórios geográficos e simbólicos.

1. Embaixada Africana: Quando um Rei Etíope Veio à Bahia "É devido à macacada que todos vós me ledes, vereis este anno negros e diabos, diabos e negros, negros diabos, diabos negros, pois que todos os clubes vêm do inferno ou da África." Era o que dizia um grupo de "foliões bem vestidos" na madrugada de terça-feira no carnaval de 1900.5 Pelo menos em relação a muitos clubes da época, parte desta conclusão tinha algum cabimento. Em 1908, o clube Diabos em Folia parecia se incluir na categoria de "diabos negros" ao anunciar que era formado por "12 africanos originários da Guiné".6 O número de clubes, troças e máscaras que faziam alguma menção à África no carnaval era muito maior do que os de arlequins e pierrôs.7 Os Congos da África, Nagôs em Folia, Chegados da África, Filhos D'África, Lembranças da África, Guerreiros da África... eram as atrações mais comuns na festa de momo entre 1895 e 1910.

"Fantasiar-se de africano" era o jeito mais divertido de a população de cor participar da festa.8 Certamente, quando eles assim se definiam na festa exibiam uma forma de pertencimento diferenciada daquela explicitada por Esperança da Boaventura em seu testamento. Ela, ao se reconhecer africana, marcava o seu lugar de expatriada e vítima da escravidão com o peso da proximidade da morte; eles enfatizavam e subvertiam o lugar de marginalidade que lhes cabia na sociedade do período, ao passo que atualizavam os vínculos que os mantinham como comunidade.

As Áfricas imaginadas, que ganhavam forma na cena carnavalesca, suscitavam interpretações e reações diferenciadas. De modo generalizado, os batuques e as máscaras avulsas eram os principais alvos de críticas por parte da imprensa, e mais ostensivamente coibidos pela polícia. A imprensa e a polícia, em certa medida, viam com bons olhos os grupos de afrodescendentes "fantasiados" de africanos; em relação às troças e batuques a perambular pelas ruas sem qualquer disfarce, sem nenhuma fantasia, não havia tolerância, ainda que clubes e batucadas fossem igualmente identificados às cerimônias da religião afro-brasileira que se ouvia por toda cidade, as mal faladas algazarras da gente de cor.Para a polícia, era a possibilidade de controle que fazia a diferença.

A justificativa da imprensa para a proibição aos batuques era a inadequação deles à estética carnavalesca, mas o que ficava à mostra era o medo dos ajuntamentos de negros a tocar pandeiros, beber e circular livremente pela cidade. não havia senhores a lançar mão de sanções e castigos e a polícia, sempre sob suspeição, estava longe de ser eficiente na demarcação de limites.9 Os batuques, tidos como perigosos, difíceis de serem controlados, eram africanismos como costumava qualificar a imprensa a pôr em risco a ordem e o sossego.10 Peter Fry, analisando as distinções entre os grandes clubes e os batuques, concluiu que os primeiros eram os "negros de alma branca", os outros "parecem simbolizar o negro que está mais preocupado com os valores brancos da classe dominante, ou para os quais esses valores não fazem sentido" (Fry, 1998:25). Kim Butler distinguiu o clube que utilizava "o carnaval para promover a acomodação racial nos mesmos moldes que os clubes brancos" Embaixada Africana, do que o utilizava para "contestar contra a perseguição às suas tradições religiosas" Pândegos da África. Na sua conclusão, ambos os clubes foram alternativas de integração social, que tinham na cultura a sua expressão (Butler, 1998:184).

Prefiro apostar aqui noutra perspectiva de análise da participação destes clubes na farra momesca. Proponho que não capturemos a presença deles na rua apenas a partir da lógica do seu ajuste ou não ao modelo carnavalesco de inspiração francesa. Desta forma, movo a minha curiosidade da assimilação/ resistência para as mensagens cifradas que, oportunamente, eram traduzidas no interior da própria comunidade afrodescendente. É por esse viés que procuro pensar como o passado africano estava compondo a experiência dos que herdaram estigmas e desafios escravistas na condição de liberdade.

É inegável que a assimilação subversiva do carnaval que estes clubes empreenderam foi um empecilho aos devaneios racistas em circulação na época e, portanto, representaram uma barreira aos esquemas hierárquicos herdados da escravidão. Contudo, o foco na polarização entre os que embranqueciam e os que se mantinham retintos, além de supor uma funcional articulação cultural negra contra ou a favor das idealizações brancas, deixa de lado o que me parece mais interessante: os ajustes e tensões internas nos quais a população de cor estava envolvida naqueles dias de incerteza. Ainda que eles parecessem adaptados aos olhos das "elites", uma inevitável inquietação se corporizava nas atualizações da África. É dela que quero tratar.

No mais, não se pode dizer que os grandes clubes de temáticas africanas, Embaixada Africana e Pândegos d'África, desfrutassem de unanimidade. Os periódicos oscilavam entre criticá-los, ressaltando a importância de extinguir- se toda expressão de "africanismos", ou elogiá-los pela integração "civilizada" aos festejos de momo. Entretanto, era incontestável a popularidade destes clubes. Eles atraíam o grande público ao recém-criado carnaval do fim do século XIX, na sua cruzada contra o entrudo. Ironicamente era o carnaval afro-baiano que garantia o sucesso do carnaval afrancesado.

Quando o Correio de Notícias comentou os preparativos para o carnaval de 1897 deteve-se num longo e "espirituoso" manifesto enviado pela Embaixada Africana. O texto, segundo o jornal, era uma nota de "pândega e verdadeira troça carnavalesca", pois a embaixada reclamava o ressarcimento dos "prejuízos para o reino da Zululândia [território da África do Sul] na ocasião do levantamento dos malês". A Embaixada dizia-se representante de uma patriótica colônia africana, e justificava seu manifesto com o argumento de "não haver razão de justiça" para o açoitamento de africanos em praça pública por ocasião da revolta dos malês. Para exigir do governo local uma astronômica indenização em jardas de algodão riscado, a Embaixada organizaria um préstito tendo com arautos dois feiticeiros a prevenir contra o micróbio da febre amarela, seguidos de uma banda de música formada pela "colônia africana da cidade" vestida à moda algeriana e abissínia. A cavalaria seria composta por guerreiros reais cafrer-zulos. O embaixador Manikus, acompanhado dos seus secretários Chaca e Muzilla, conclamava toda colônia a acompanhar a comitiva ao som de marimbas e instrumentos de sopro trazidos do centro da África pelo maestro Abédé.11 O manifesto da Embaixada Africana foi muito espirituoso por tratar com ambígua jocosidade um episódio que tanto havia inquietado a sociedade brasileira em 1835 (Reis, 1986). Tornando risível o que havia sido trágico, dava-se por encerrado o temor às rebeliões dos africanos. Por outro lado, o fato de a revolta de 1835 ter sido tematizada reafirmava a sua importância na memória social de uma época na qual a comunidade malê ainda contava com adeptos empenhados em guardar e manter segredos litúrgicos, como um africano que em seu testamento identificou-se da seguinte forma: "Eu, Antonio dos Santos Lima, como mulsumano (sic) que sou e em qual religião, nasci criei-me e conservo-me esperando morrer deliberei fazer meu testamento... Sou natural de Lagos, Costa D'África" e, solteiro "segundo as leis do Brazil". Ainda declarava: "é do meu gosto que após a morte o meu corpo fosse envolvido de acordo com meu rito". O seu enterro deveria ser revestido de toda modéstia como foi sua vida, mas cabia ao seu testamenteiro e sobrinho cumprir o que estava registrado em testamento e "mais ainda o que lhe recomendei em segredo".12 Nas suas pesquisas Nina Rodrigues avaliou que nos fins do século XIX "pelo menos um bom terço dos velhos africanos sobreviventes na Bahia é muçulmi ou malê, e mantém o culto perfeitamente organizado". Não era difícil, segundo ele, encontrar sacerdotes haussás e nagôs muçulmanos residindo e exercendo a sua no Pelourinho, Taboão e Carmo com reservas, ainda numa atitude de protesto ou medo às punições impostas em 1835. Ao entrevistar um nagô, então principal autoridade do culto na Bahia, Nina Rodrigues avaliou que havia nele um medo do "ridículo, do desprezo ou mesmo das violências da população crioula, que os confunde com os negros do candomblé ou feiticeiros" (Rodrigues, 1988:61).13 Tal temor não era tão infundado se lembrarmos da comitiva idealizada pela Embaixada Africana para reivindicar a indenização pelos mortos na revolta dos malês: havia dois feiticeiros de Bungueira como arautos e caberia a um "poderoso desmancha feitiço" fechar o préstito. Parece que as reservas do culto, e mesmo o fortalecimento do candomblé enquanto a "autêntica" religião negra concorriam para um certo desprestígio do Islã. O próprio Nina Rodrigues concluiu que [...] o maometismo não fez prosélitos entre os negros crioulos e mestiços. Se ainda não desapareceu de todo, circunscrito como está aos últimos africanos, o islamismo na Bahia se extinguirá com eles. É que o islamismo como o cristianismo são credos impostos aos negros, hoje ainda muito superiores à capacidade religiosa deles [...] (Rodrigues,1988:60-1) Nina lamentava a extinção de uma herança africana decorrente de um alto grau de desenvolvimento civilizatório. A revolta dos malês foi para ele uma insurreição religiosa e não "um brutal levante de senzalas, uma simples insubordinação de escravos, mas um empreendimento de homens de certo valor. Admirável a coragem, a nobre lealdade com que se portaram os mais influentes" (Rodrigues,1988:57). A admiração dele pelos africanos adeptos do islamismo fica evidente, e mais adiante, discutirei esta predileção. Por ora, vale notar que se não havia entre os negros baianos "capacidade" para compreender os ensinamentos do Islã, por certo havia aqueles a avaliar ser a revolta um episódio capaz de mobilizar festivamente adeptos de outros cultos.

A Embaixada Africana começou a aparecer na imprensa em 1895, sempre referida pela sua habilidade para atrair uma compacta massa popular, atenta, seduzida pela exibição de instrumentos e danças africanas. O tom de pilhéria dos embaixadores enchia as páginas dos jornais locais, sempre elogiosos da sua criatividade. No manifesto de 1897, enfatizou-se que "para provar que o papelório não é privilégio desta terra das palmeiras, um possante animal carregará o archivo africano, onde virão todos os documentos concernentes à missão que tem a cumprir a embaixada na Bahia". Se a oralidade estruturou política e culturalmente as sociedades africanas, a informação sobre o "papelório" que teria atravessado o Atlântico poderia ser um reforço do absurdo, do carnavalesco daquela comitiva. Por outro lado, a inabilidade da polícia para decifrar a escrita árabe em 1835 "os papéis malês" , ainda era motivo de zombaria em 1897. Afinal, achincalhar a burocracia, o "papelório", dos poderes públicos parecia render alguma diversão.

Depois de uma grande expectativa propalada pelos jornais em torno do desfile daquele ano, o destaque da Embaixada Africana não foi o levante malê. A África então trazida à cena carnavalesca tinha como personagem principal uma caricatura do rei etíope Menelik. Referido em um panfleto distribuído pelo clube como o "vitorioso negus dos negus", Menelik regularmente ocupava as páginas dos jornais locais. O Correio de Notíciasde março de 1900 publicou uma longa matéria ironizando o governo dele. O periódico o apresentava com um déspota africano excêntrico, que planejava visitar Paris. Tomando como informante o alemão Cleveland Moffet, o jornal tecia comentários divertidos sobre os meios pelos quais Menelik exercia o poder na África. Contou-se que fazia parte da sua rotina rondas diárias com a intenção de flagrar a população em qualquer pequeno delito, e que a cada domingo promovia-se um farto jantar real ao ar livre, no qual todos os generais do governo, proibidos de olharem para o soberano enquanto ele comia, se posicionavam na mesa de modo a garantir que o rei também não fosse visto pela platéia popular.14 O exótico, risível, bizarro era assim associado à imagem do poderoso soberano africano que no desfile de 1897 ressuscitava com honras festivas os mortos na revolta de 1835.

Fazendo jus à caricatura imponente e negra de Menelik no carnaval de 1897, o "seu trono era bem alto e ao abojo de um grande chapéo de sol".15 Não era bem esta imagem que os italianos derrotados em Adwa, território da Abyssinia, em 1896, tinham do rei Menelik II (note que é apenas um ano antes do desfile da Embaixada Africana com a sua representação). Na opinião de Harold G.

Marcus, Menelik se firmou como o principal obstáculo aos propósitos imperialistas europeus na África, e ao mesmo tempo investiu na expansão das fronteiras do seu próprio império com muita habilidade diplomática e perspicácia, tendo governado a Etiópia até 1913 (Marcus, 1975:2).

A vitória etíope sobre os italianos não foi apenas bélica, que admitir a derrota para homens de "raça inferior" significava pôr em risco sólidas convicções imperialistas e raciais então mediadoras das relações entre os "ocidentais" e o resto do mundo. Buscando preservá-las, os europeus passaram a descrever os etíopes como brancos, atribuindo a eles qualidades e características dos grandes impérios do ocidente. Na literatura européia, Menelik podia ser representado como um herói romântico ou um grande estadista, como na comparação de Skinner entre Menelick e Bismarck, para ele, dois brilhantes estadistas de igual inteligência (ibidem: 215).

Confrontando os europeus, o rei assegurou o domínio sobre o seu território e ameaçou as certezas de superioridade branca e européia, mas nada podia fazer em relação às manipulações de sua imagem. Como diria Mary Louise Pratt, tratava-se de um empreendimento de anticonquista, na medida em que os europeus naturalizavam as diferenças e estabeleciam semelhanças culturais a partir de seus objetivos expansionistas, elaborando e divulgando convenientes representações do outro flagrado pelas lentes de viajantes, literatos, diplomatas e jornalistas (Pratt, 1999).16 Vale aqui lembrar do alemão que, passando-se por isento observador, deu a conhecer aos leitores do Correio de Notícias as suas impressões sobre Menelik como um ridículo déspota. A ambigüidade que pairava acerca de Menelick fica ainda mais realçada se atentarmos para a existência de um jornal mensal, "noticioso, literário e crítico dedicado aos homens de cor" que tinha seu nome como título. No primeiro número esclareceu-se a homenagem do seguinte modo: Fundou-se então este jornal o qual buscou adquirir um nome que, não deveria, mas era, esquecido dos homens de cor, é esse nome o de Menelick II, o grande rei da raça preta [...].17 O Menelik foi fundado em São Paulo, no ano de 1915, portanto, dois anos depois da morte do soberano etíope e em meio à atmosfera de denúncias e reivindicações da imprensa negra na capital paulista. Sem dúvida, um contexto bem distinto da sociedade baiana do final do XIX, constatação que não esvazia a importância de pensarmos sobre os paralelismos e distinções destas apropriações da figura de Menelik. Por enquanto, três questões: qual o lugar da representação de Menelik veiculada pela imprensa baiana? A partir de quais referências ele era trazido às ruas pela Embaixada Africana? Quais as possibilidades de leitura da África suscitadas pela representação do poderoso rei etíope? Edison Carneiro informou que a Embaixada Africana teria sido fundada por Marcos Carpinteiro, um axogún aquele encarregado do sacrifício ritual dos animais a serem ofertados aos deuses afro-brasileiros um importante cargo hierárquico, de um terreiro de candomblé situado no Engenho Velho (Carneiro, 1974:122). Como vários autores ressaltaram, os vínculos entre terreiros de candomblé e agremiações carnavalescas da população de cor sempre foram muito fortes (Félix & Nery, 1993). Aqui a importância destes vínculos está no trânsito de concepções e perspectivas traçadas dentro da comunidade afrodescendente depois de extinta a escravidão. Naquela conjuntura, mais do que espaços de preservação de tradições, os terreiros de candomblé foram territórios de criação e redefinição de símbolos, a partir de uma seleção de informação sobre a África e os africanos no Brasil.18 Longe de preservarem-se sobrevivências, nas casas de cultos adequavam-se/selecionavam-se referências. Sendo axogún e carnavalesco, Marcos Carpinteiro, possivelmente, contribuiu para a exibição desta África fragmentada e inclusiva na qual cabia da revolta dos malês ao rei Menelik.

Tratava-se de uma África traçada a partir da experiência dos africanos no cativeiro, mas que a transcendia carnavalescamente e na qual passado e presente se confundiam na extravagância dos reinos e lealdade da "colônia africana".

Na busca por mais informações sobre os integrantes da Embaixada Africana recorri aos seus testamentos e inventários. Deste modo localizei Saturnino Gomes, conselheiro em 1902, um ano de intensa campanha contra a participação dos clubes "africanos".Uma concorrida disputa entre um sobrinho e dois filhos ilegítimos pela herança deste próspero comerciante de materiais de construção me permitiu conhecer um pouco da sua condição social. Sendo proprietário de uma casa denominada "O 23", provavelmente uma homenagem às lutas pela independência na Bahia, Saturnino Gomes ocupava, desde os últimos anos do século XIX, um terreno na avenida mais importante da cidade: a Sete de Setembro. As suas propriedades estavam todas localizadas nos distritos centrais de São Pedro e Vitória.

Nas primeiras décadas do século XX, época de agitadas reformas urbanas, o comerciante conseguiu acumular muitos bens. Entre eles, um piano alemão avaliado em três contos de réis, além de certos luxos como uma vitrola, 64 discos, uma mobília de sala com 23 peças e uma "novíssima" máquina de escrever. Preocupado em não ser prejudicado na partilha dos bens e manter a casa comercial em funcionamento, o sobrinho de Saturnino Gomes fez questão de inserir no inventário uma minuciosa lista de contas a serem pagas. Segundo a prestação de contas do sobrinho/inventariante o comerciante fizera grandes negócios no Rio de Janeiro, contraindo débitos que ainda não tinham sido liquidados devido às vultosas somas envolvidas. A idas e voltas para a capital federal podem ter contribuído para o empenho do comerciante na farra momesca, visto que naquela cidade os investimentos no carnaval não eram desprezíveis.19 Também compunha a diretoria outros nada afortunados, a exemplo de Esterico da Conceição, artista, registrado no inventário dos seus parcos bens como pardo, e Quintiliano Macário, também pardo e artista, que além de funcionário público era proprietário de uma rocinha com casa de morada às margens do rio Camurujipe, no Candeal Pequeno. Ambos eram moradores do distrito de Brotas.

Este englobava áreas mais distantes do centro comercial da cidade, local de antigos engenhos, e ainda era ocupado por pequenas roças e sítios para a criação de porcos e aves. Ainda que os poucos e derradeiros africanos estivessem dispersos por toda a cidade nos últimos anos do século XIX, o distrito de Brotas reunia uma boa parte deles. Gente com Cornélio de Pedroso, proprietário de um pequeno sítio num lugar chamado Pomar e vizinho de vários outros africanos.20 A recorrente e imprecisa categoria de artista não ajuda muito a descobrir do que eles se ocupavam especificamente. Podiam ser artistas os pedreiros, marceneiros, sapateiros, ferreiros, e tanto outros artífices. É provável que eles fossem os encarregados de conceber e construir os carros alegóricos. É comum encontrarmos homens de cor nestas funções na documentação do período. Em geral estavam instalados em pequenas tendas e oficinas espalhadas pelas ruas centrais da cidade, ou reunidos nos cantos de trabalhadores ainda existentes (Reis, 1993; 2000). Assim organizados, a viabilidade do ofício estava garantida, pois facilitava o contato com quem precisasse de seus serviços.

João José Reis considera a possibilidade de os cantos refletirem, no fim do XIX, a configuração de "uma identidade nagô na Bahia de então, a qual se manifestava através de rituais religiosos, inclusive, talvez de rituais feitos nos âmbitos dos cantos" (Reis, 2000:223). Não é possível afirmar que os componentes da Embaixada integrassem algum dos cantos, mas também não é absurdo imaginar que eles circulassem nestes espaços buscando quem se interessasse por seus préstimos. Construíam-se, assim, zonas de circulação das imagens da África terreiros, cantos, distritos periféricos que exibidas no carnaval ganhavam formas, polifonias e sentidos. Era nestas zonas que a "colônia africana" na Bahia era alegoricamente constituída.

No carnaval de 1898, o clube enviou à redação do Correio de Notícias um telegrama assinado por Manikus, informando a chegada de um vapor com a Embaixada e convocando a "colônia africana" para receber aos "seus ilustres representantes no caes de São João".21 O telegrama seguia informando que, para reiterar o "apreço" dos africanos da cidade aos seus patrícios recém-chegados, "mandaram fabricar na França um lindo carro de madrepérola para transportá-los". A piada devia ser óbvia: recepcionar um soberano africano com sofisticação francesa. Produtos e costumes franceses eram as grandes aspirações das elites locais e cujo contraponto às pretensões de afrancesamento estava justamente nos indesejáveis "africanismos" tão evidentes na capital baiana. E, como ficou célebre nos discursos dos viajantes, era no cais onde se podia ver estivadores, vendedoras com seus balaios e bandejas, carregadores de toda espécie de carga, moleques em pequenas compras... gente de cor a exibir trajes, vocabulário e comportamentos nada "civilizados".22 Assim, carnavalizava-se a África pondo-a em contraste com as idealizações culturais construídas a partir das sociedades européias, especialmente a francesa. Mais do que isso: a França e os baianos afrancesados.

Em novas configurações geográficas, a África mitificada de Menelick fazia fronteira com muitos lugares nas ruas da Bahia. O clube Expedição ao Transvaal foi considerado, em 1900, um dos mais freqüentados e animados. O tema: a guerra dos bôers, que aconteceu na África do Sul entre 1899 e 1902. Foi em Transvaal onde se concentrou a população bôer ou afrikâner, e também onde se descobriu, em 1886, valiosas jazidas de ouro. Na avaliação do historiador Godfrey N.

Uzoigwe, aquela foi a última grande empreitada inglesa em território africano, encerrada com a assinatura doTratado de Vereeniging que, de certo modo, reiterava a sua supremacia na África do Sul (Uzoigwe, 1985:43-67). A Expedição distribuiu um manifesto de S. M. O Poder, ironizando a investida inglesa: Eloquência é o canhão, a bala é o verbo.

[...] Os papa-bifes da África, em nome de uma fantasmagoria, a que denominam liberdade não cessam de abater e dizimar as levas de Johns [...] Deante desta afirmação aflitiva vendo começar a enfraquecer o hercúleo pulso da invicta Albion, decide pôr-me à frente da Grande Expedição ao Transvaal que ahi vedes. Nesta expedição não notareis distinção de povos. Reuni elementos de pontos os mais variados. Todos são admitidos em minhas fileiras: Hindus, Beduínos, Zulus, selvagens, bárbaros e civilisados. E ainda irei buscar gente a todas as terras, a todas as partes, a todos os cantos no Mississipe, no Peru, na Arábia.23 Nesta espécie de manifesto pacifista, os carnavalescos mostraram-se bem informados acerca das disputas políticas na África do Sul, e divulgavam uma leitura da farra carnavalesca enquanto momento de convivência entre diferentes.

Convivência, na verdade, nada pacífica, principalmente nos primeiros anos do século XX, quando a polícia assume cada vez mais o papel de regulador das formas de ocupação do espaço da rua. Em 1906, por exemplo, foram proibidos pelo chefe da segurança pública, João Santos, "as africanizações pelos grupos representando usos e costumes da Costa d'África".24 Recurso, em parte, malsucedido se observarmos que naquele mesmo ano e nos seguintes a Abyssínia de Menelik continuou a ser tema de grupos como a Tribu dos Inocentes, a declarar em seu panfleto que levaria para o carnaval não os "tistanados naturaes", mas "os temidos gênios que imperam na África, rica e cobiçada pela força de sua magia, fazendo pasmo às demais partes da orbe que presentemente tremem entregues, como vós, às loucuras imponderáveis desta festa sem par".25 Era a vitória de Menelick que continuava a ser re-significada deste outro lado do Atlântico. As guerras que envolviam a partilha da África eram rapidamente noticiadas aqui. Não me parece coincidência que os conflitos nos quais a vitória dos europeus foi mais difícil no caso dos bôers ou impossível na questão etíope , os que mais freqüentemente fossem ritualizados nas ruas da cidade. Mas, a proibição do chefe de segurança foi eficiente se notarmos que o clube Filhos da África conseguiu licença do delegado Madureira de Pinho para participar do carnaval, com a condição de obedecer à postura.26 Resta imaginar como os Filhos da África saíram às ruas sem africanizar-se. Talvez, dentro da lógica racista policial, houvesse africanismos mais aceitáveis do que aqueles de que o clube se utilizou.

Podemos agora pensar sobre a admiração de Nina Rodrigues à Embaixada Africana.

Para ele havia ali "a idéia dominante dos negros mais inteligentes, ou melhor adaptados, a celebração de uma sobrevivência, de uma tradição" (Rodrigues,1988:180). Ao contrário dos jornalistas da época, empenhados em acabar com os temíveis batuques, o estudioso das práticas africanas na Bahia estava mais atento às variações da África trazidas às ruas. Cabe lembrar da sua admiração pelos malês para entender o seu ponto de vista. Mergulhado em suas idéias racialistas, Nina Rodrigues via na mítica África apresentada pela Embaixada Africana uma redenção da barbárie. Como os europeus surpreendidos com o poderio dos etíopes, ele reconhecia a superioridade de certos povos africanos, e concluiu ser preciso distinguir [...] entre os verdadeiros negros e os povos camitas que, mais ou menos pretos, são todavia um simples ramo da raça branca e cuja alta capacidade de civilização se atestava excelentemente na antiga cultura do Egito, da Abissínia [Etiópia] e etc. (Rodrigues, 1988:269, ênfases minhas).

A performance da Embaixada Africana constituiu-se mesmo num texto polifônico.

Se havia, por parte da grande imprensa, tentativas de ridicularizar Menelik, Nina Rodrigues a lia como o reconhecimento do valor de certos africanos, pertencentes a um ramo secundário da raça branca. Não como duvidar de que a propaganda pró-embranquecimento de Menelick também cruzou o Atlântico e aportou nas aspirações racialistas de Nina Rodrigues, ainda que os propósitos do médico maranhense fossem diferentes daquelas dos viajantes ingleses. Na sua opinião, clubes como os Pândegos d' África expressavam uma imagem inadequada das sociedades africanas, a Embaixada Africana tinha o seu "motivo e personagens tomados aos povos cultos da África, egípcios, abissínios, etc." É hora de abordar porque os Pândegos d'África era o principal contraponto à África baiana desejada por Nina Rodrigues.

2. Pândegos d' África: A África "Inculta" dos Nagôs O Correio de Notícias,comentando o carnaval de 1897, assinalou que o clube Pândegos d' África havia atraído às ruas "o povo e especialmente os africanos; mas africanos de lei acompanhavam-nos entre festa".27 A Bahiao definiu como um grupo perfeitamente caracterizado, a soar instrumentos prediletos e canções africanas.28 A ênfase na africanidade do clube e do público para Manoel Querino, em 1897, se explicava pelos elementos "mouros", os instrumentos da charanga que seriam os mesmos utilizados no "feitichismo" e, principalmente, pelo acompanhamento "das africanas [que] tomadas de verdadeiro entusiasmo, cantavam, dançavam e tocavam durante todo o trajeto, numa alegria indescritível" (Querino, 1988:62-3).

Os comentários de Nina Rodrigues sobre o Pândegos d'África tiveram como objeto o desfile do clube em 1899, do qual constava três carros alegóricos: o primeiro com o rei Labossi, à margem do Zambeze, em companhia de seus ministros Auá, Oman e Abató; o segundo, com dois figurões influentes da corte Barborim e Rodá; o último representando a cabana do feiticeiro Pai Ojô e sua mulher com o caboré do feitiço, a dar sorte a tudo e a todos. Além dos carros ainda havia a charanga africana que "vinha a com seus instrumentos estridentes e impossíveis".

Sob o olhar de Nina Rodrigues, o desfile dos Pândegos d' África transformou-se num "candomblé colossal", pela "compacta multidão de negros e mestiços cantando cantigas africanas, sapateando as suas danças e vitoriando os seus ídolos ou santos que lhes eram mostrados do carro do feitiço". Uma "vingança dos negros feitichistas", alvo de tenazes investidas policiais no período, a impor com instrumentos e "canções da terra natal" o culto jeje-iorubano na celebração carnavalesca. Uma exibição da "África inculta que veio escravizada para o Brasil" (Rodrigues, 1988: 180). Quero lembrar que o médico maranhense publicou, entre 1896 e 1897, uma série de artigos sobre "as práticas mágicas" dos negros baianos, que compuseram, em 1900, o livro O Animismo Feitichista(Rodrigues, 1935).

Em suas avaliações sobre o carnaval, Nina Rodrigues não perdeu a oportunidade de mais uma vez ressaltar a predominância sudanesa na Bahia, ao afirmar que foi a África dos iorubanos, jejês e minas que sobreviveu entre a população crioula.

Teriam sido eles, e não os angolas, que tomaram da África banto os motivos e idéias dos clubes carnavalescos. No desfile dos Pândegos, a informação mais precisa foi o rio Zambeze, uma importante entrada para o interior da África oriental no período das investidas colonialistas. Infelizmente, ainda não encontrei notícias sobre o rei Labossi, mas é possível que ele tenha sido um personagem ficcional, útil na encenação de um reino africano, cujo rei cercado de ministros, referendado pelo poder de um feiticeiro, detinha o poder de modo soberano. Era esta África tão mítica quanto visível numa cidade onde os batuques perturbavam o sono e os planos das elites.

Nas informações de Edison Carneiro, o Pândegos d' África foi fundado por Bibiano Cupim, o vice-presidente do conselho diretório do clube em 1900 (Carneiro, 1947: 123). Bibiano Cupim tinha um vasto currículo: foi açougueiro, banqueiro de jogo bicho, carpinteiro (como o axúgum que fundou a Embaixada Africana), prior da ordem terceira do Rosário e membro da Sociedade Protetora dos Desvalidos (Butler, 1998:139). Tendo se declarado mestre de obras em 1933, ele herdou de sua família certo patrimônio. Foram três casas à rua Luís Gama, no distrito de Sant'Anna, e outras duas no distrito de Santo Antônio, sendo uma na Rua da Matança no Barbalho, onde deveria funcionar o seu açougue e o rentável negócio do jogo de bicho.29 Com trânsito por tantos ambientes, Bibiano Cupim se me parece um personagem importante na cena político-cutural da época.

Estendendo a sua influência por tantos espaços e ao mesmo tempo constituindo o seu lugar social a partir deles, ele sintetizava algumas formas de inserção e leituras do mundo de um homem de cor no pós-Abolição. Da banca de bicho à ordem terceira do Rosário muitas compreensões acerca das mudanças provindas da Abolição e da República estavam sendo filtradas pela população de cor.

Também havia na diretoria do clube outros senhores de alguns bens. Um deles era o preto Silvério Antônio de Carvalho, artista e dono de duas casas, seis casinhas e um terreno a Rua Nova do Queimado, em Santo Antônio.30 O outro, Juvenal Luiz Souto, era proprietário de uma casa térrea a Rua do Alvo, em Nazaré, um sobrado no distrito de Sant'Anna, onde guardava uma mobília austríaca e um piano alemão, e um terreno na Estrada das Boiadas. Este mestre em carpintaria tinha sob suas ordens vários trabalhadores manuais executando obras em diversos prédios públicos, como delegacias de polícia e o Superior Tribunal de Justiça. A sua situação assemelhava-se à de um empreiteiro ou mesmo capitão de canto. Juvenal Souto também ocupou uma vaga na Escola de Aprendizes Artífices, onde pode ter conhecido Manoel Querino que, em 1900, presidia os Pândegos d' África.31 Este, sem dúvida, foi um dos mais importantes integrantes do clube.

Manoel Querino era um personagem curioso na Bahia da época. Nascido mulato em Santo Amaro, foi tutelado por um professor, ocupou um cargo público de menor importância na Secretaria de Agricultura e fundou o liceu de artes e ofícios.

Envolvido nas grandes questões de seu tempo, foi abolicionista e republicano, usando de uma ironia que não isentou de críticas hábitos "requintados" da época.32 A Manoel Querino comumente é atribuída a pecha de imprevidente nas palavras e atitudes; um colecionador de desafetos (Querino, 1988:2). Mas, sobre ele também foi dito que "muita coisa que havia passado despercebida ao próprio Nina Rodrigues não escapou ao olhar investigador do modesto professor negro, que nos desvãos ignorados do candomblé do Gantois ou diretamente em sua residência no Matatu Grande, se rodeava de velhos africanos, pais e mães de santo" (ibidem:14). Em O Colono Negro como Fator de Civilização Brasileira ele afirma que o escravo africano era trabalhador, econômico e previdente, qualidades que os descendentes nem sempre conservavam (ibidem:35). A sua admiração pelos africanos é transparente em todos os seus textos.

Do mesmo modo que Bibiano Cupim, Manoel Querino também fez parte da Sociedade Protetora dos Desvalidos, uma associação fundada em 1832 pelo africano livre e ganhador Manoel Victor Serra. Inicialmente denominada Irmandade de Nossa Senhora da Sociedade Amparo dos Desvalidos previa, entre as suas finalidades, associar "homens de cor preta" e contribuir para a compra da alforria dos que ainda fossem cativos. Para o antropólogo Julio Braga, a sociedade era uma importante agência de prestígio e auxílio mútuo, principalmente logo após a Abolição, quando o número de recém-ingressos ultrapassou o de antigos sócios.

Manoel Querino teve alguns problemas na instituição. Uma vez demitido do quadro de sócios, entre 1892 e 1894 ele tentou ser readmitido, o tendo conseguido depois de muitos acordos com os membros do conselho (Braga, 1987). A fama de colecionador de desafetos parecia ter sentido, que a exclusão de sócios era um expediente muito incomum.

Manoel Querino e Bibiano Cupim também foram associados do Centro Operário.

Portanto, a presença de ambos à frente dos Pândegos d'África de modo algum era acidental. Ainda em 1900, na mesma nota distribuída aos jornais informando sobre o resultado da eleição para dirigentes do clube, elesdiziam que esperavam não serem taboqueados no carnaval seguinte.33 Taboquear, lograr, enganar era esta a queixa, a que a atitude dos dirigentes foi a de tornar pública o seu desagravo com os logros cometidos. Infelizmente, os Pândegos d'África não tornaram público o modo pelo qual foram enganados, mas é possível que os "africanos de lei", com seus "feitichismos", tivessem desagradado os que fossem mais críticos a tais exibições.

Por certo, as relações entre os organizadores do carnaval e o clube nem sempre eram tão harmoniosas, haja vista as insistentes proibições a tudo que pudesse ser caracterizado como africanismo; mas, como costuma ser de praxe, eram restrições que sempre dependiam de imprecisas avaliações da polícia. As ordens do chefe de polícia Domingos Guimarães, em agosto de 1885, ilustram muito bem esta atitude. Ele recomendou aos subdelegados que não consentissem candomblés em seus distritos, pois estavam cassadas todas as licenças para tal divertimento. Misteriosamente, no dia seguinte expediu uma circular informando que o Rio Vermelho estava excluído da restrição.34 O que o chefe de polícia nomeava por candomblé e os motivos da exceção ao distrito do Rio Vermelho não são conhecidos, mas o fato demonstra que as regras eram como são: sempre ao sabor do ânimo das autoridades.

Artista e pesquisador de costumes dos africanos e seus descendentes, Manoel Querino ocupava um lugar na fronteira entre o intelectual e o "colecionador de impressões", que, segundo a elite acadêmica, não utilizava os padrões de cientificidade em vigor. Mais tarde, a sua "ambígua" posição foi definida pelo termo "folclorista".

Uma designação capaz de garantir respeitabilidade a alguém que, sendo "autodidata, trabalhando com independência metodológica, sem ligações diretas com as tradições da escola baiana, deixou-se resvalar em falhas e senões que, de certo modo, tiram de alguns dos seus trabalhos o exato sabor científico"como assinalou Arthur Ramos ao prefaciar, em1938, Costumes Africanos no Brasil( Querino,1988:18). Edison Carneiro disse que as supostas falhas e senões de Manoel Querino foram equívocos levados a sério pelo próprio Arthur Ramos.

Um desses equívocos relacionava-se ao comentário de Manoel Querino ao desfile dos Pândegos d' África de 1897. Ele viu ali "a reprodução exata" de uma festa com máscaras que acontecia em Lagos. Edison Carneiro foi contundente em sua crítica a Arthur Ramos por ter ele concluído, sob influência de Manoel Querino, que "os festejos cíclicos da Costa dos Escravos parecem ter sido a influência principal no carnaval negro na Bahia" (Carneiro,1974:121). A forma como Carneiro expôs a sua crítica é muito interessante. Ele inocentou Querino: "um bom observador da vida dos negros na Bahia, mas alguém [que] não tinha boa informação acerca dos costumes originais da África", mas não poupou Ramos "que tendo qualificações de cientista", havia acreditado em tal paralelo ( Carneiro,1974:122). A imagem de mero colecionar de informações eximiu Manoel Querino da responsabilidade que cabia ao cientista Arthur Ramos.

Mas, deixando de lado o discurso científico da época, vale pensar aqui sobre a continuidade entre a tradição nagô e os Pândegos d'África que tanto irritou Edison Carneiro. A continuidade entre Lagos e Bahia, não vista como pretendida por Manoel Querino, presidente do clube, deixa à mostra uma leitura da ascendência da Bahia na genérica, mas inclusiva, nação nagô. Era como ligação estrita entre a Bahia e a tradição nagô que ele enxergava o clube, do qual ele próprio talvez fizesse parte.35 Como assinalou A Bahia,naquele ano de 1897, os Pândegos estavam "perfeitamente caracterizados", numa demonstração de que o empenho na "reprodução exata" da festa de Lagos teve algum sucesso. Tratava-se da representação de uma corte de negros fantasiados de nobres a reeditar crenças "africanas". Crítico, mas generoso, Nina Rodrigues ainda comentou que, "da parte dos diretores" do clube, podia haver "a intenção de reviver tradições" mas, "o seu sucesso popular está em constituírem eles verdadeiras festas africanas" ( Rodrigues, 1988:100).

Infelizmente não sei se entre os diretores estava Manoel Querino, mas Bibiano Cupim certamente, sim. A posição de Nina Rodrigues ao reconhecer o esforço da diretoria, e lamentar o candomblé que eles publicamente promoviam, conta sobre os seus dilemas frente à herança africana na Bahia. A visibilidade desta descendência num disfarce tão revelador trazia à cena carnavalesca uma África mitificada, mas muito possível de ser encontrada nos desvãos do Gantois, por onde andava tanto Manoel Querino quanto Nina Rodrigues e Edison Carneiro, numa procura pelas sobrevivências da(s) África(s) na Bahia. O que explica tanto as críticas quanto adesões ao desfile dos Pândegos.

J. Lorand Matory discutiu a construção da nação yoruba no Atlântico e, centra a sua abordagem nas casas "nagôs" de candomblé no Brasil. Numa crítica ao essencialismo cultural que orientou, e ainda tem orientado, as pesquisas sobre a religiosidade afro-brasileira, o autor identificou Nina Rodrigues e seus seguidores como articuladores da comprovação científica da africanidade do candomblé, e mais ainda da pureza racial e cultural dos nagôs. O autor informa que os terreiros de candomblé da Bahia foram ambientes propícios para a reificação da suposta superioridade e unidade cultural dos povos yorubas. Nas "tradicionais" casas de candomblé, informantes como Martiniano Bonfim não traziam notícias de Lagos, mas também reiteravam a continuidade entre a Bahia e o povo yorubano.36 Para J. Lorand Matory, a importância atribuída à preservação de uma cultura ancestral africana, construía aqui a nação dos nagôs, garantindo-lhes autenticidade. Neste sentido, a cultura lida como nagô na Bahia foi o resultado de uma construção transatlântica, em que a circulação entre Lagos e Bahia foi condição imprescindível (Matory, 1999).37 Extinto o tráfico, a África na Bahia não podia mais ser refeita através da chegada de contínuas levas de africanos. Mas, a sua recriação estava em curso em diversos territórios simbólicos nos quais um variado repertório de tradições estivesse disponível. Penso que o clube Nagôs em Folia, por exemplo, trazia para a rua uma interpretação sobre como se podia ser nagô na Bahia. Certamente uma interpretação filtrada por experiências da escravidão, estórias sobre o mundo africano e por "nacionalidades" em construção. Pequenos "afoxés" como Lordes Ideais, organizado pelo dogueiro e ogã do Bate Folha, José do Gudé, provavelmente trazia a público a África que se construía nos seus espaços de inserção (Carneiro,1974:121-123). Conflitos, assimilações e intercâmbios culturais foram e, continuam sendo, infinitos dentro da comunidade afrodescendente. É por conta deste movimento que a presença dos Pândegos d'África e Embaixada Africana não me parece atitudes antagônicas, mas dialógicas.

Não notícias sobre possíveis viagens de Manoel Querino a Lagos. É bem razoável que a semelhança por ele estabelecida tenha mesmo lhe ocorrido após relatos de africanos ou de comerciantes habituados a fazer a rota Bahia ' Lagos. Aliás, esta foi a conclusão de Edison Carneiro. Afinal, coube aos comerciantes, primeiramente de escravos, e depois de dendê, fumo e produtos religiosos fazer circular notícias e reinventar a África que se fazia em Lagos, um grande centro de negócios da Costa (Cunha, 1985). Nos últimos anos do século XIX, período de franca expansão do poderio inglês, Lagos era uma encruzilhada cultural, onde afro-cubanos, afro-brasileiros, africanos de mais diversas procedências e ingleses se encontravam. J. Lorand Matory informa que em 1889, uma em cada sete pessoas residentes em Lagos havia morado no Brasil ou em Cuba, e se considerarmos a afluência de pessoas do interior do continente e de outros países em busca de bons negócios, podemos imaginar como a partir de Lagos a África se espalhava pelo mundo navegável (Matory, 1999:84). Tamanha presença estrangeira continuamente impactava as leituras acerca do que era a África e os vínculos entre as populações da diáspora. Suponho que para muitos comerciantes afrodescendentes que não se afastavam da Costa, África e Lagos fossem sinônimos numa redefinação territorial e cultural da terra dos ancestrais. O que me leva a considerar que na Bahia da época dizer-se nagô fosse, no pós-Abolição, o modo mais explícito de dizer-se africano (Rodrigues, 1988: 98).

Numa infeliz viagem do patacho Aliança, em 1899 para a Costa d'África, os passageiros foram acometidos por febres fatais, tendo que regressar à Bahia. Os 60 africanos que pretendiam ser repatriados enfrentaram mais uma vez os dissabores da travessia do Atlântico, trazendo de volta mercadorias que deveriam ser entregues aos comerciantes "brasileiros" estabelecidos (Rodrigues, 1988:98). Assim que aportou na baía, após o malogro da viagem e dos negócios, vários comerciantes reclamaram a posse de seus bens.

Entre eles estava a africana Julia Maria da Conceição, negociante, com comércio estabelecido na freguesia do Passo.38 Pertenciam a ela 125 barris de fumo em rolo. Júlia devia ser bem informada, mesmo depois que cessou o tráfico, acerca da vida em Lagos, dos conflitos na África e das possibilidades de negócio.

A África ainda chegava à Bahia pelo porto. Neste ponto, pareciam concordar Embaixada Africana e os Pândegos d' África. A questão era saber se ela deveria vir na comitiva do rei Menelik ou em meio a mercadorias semelhantes às do comerciante africano José Fortunato da Cunha, que em 1889 trouxe, entre outras coisas, "três tabaques sendo um sem coro, uma caixinha de pinho com quinhentos e tantos obis, uma galinha da costa além de 60 panos da costa".39 Passado o tempo das revoltas, abolida a escravidão, a rota Bahia-África ainda ameaçava.

O medo de que a Bahia continuasse a "africanizar-se" no pós-Abolição punha em pânico grande parte da imprensa, que alentou a esperança de que os seus temores fossem amenizados com o fim do tráfico e a deportação dos que não fossem nacionais. Sob o título de África Master,A Bahia publicou em 1899 os comentários de um "chistoso" e anônimo poeta sobre um sermão proferido em língua nagô por um missionário africano na igreja da .

Traduzindo o culto para seus leitores, o autor conta que o ato foi um apelo em favor dos que viviam "como macacos nas florestas, nos buracos sem ar, sem luz, sem razão". Na sua tradução dos versos então proferidos pelo missionário, dizia-se: Vamos, unamo-nos todos, nagôs e brancos da terra, neste paiz tudo fede, neste paiz tudo berra. Abaixo a tola vaidade, um pouco de piedade! Venha da choça ou da sala, para os míseros irmãos. Caia a esmola das mãos, a voz do sangue é quem fala.

Na conclusão o autor alertava que o discurso do missionário era inócuo, porque "na terra do vatapá não mais quem entenda esse verso".40 De novo, temos aqui um chiste, uma piada com sentidos dúbios: o poeta poderia estar se referindo a uma ausência de piedade para com a "mísera" África que sobrevivia dos dois lados do oceano, assim como ao gradual desaparecimento dos que pudessem plenamente entender o discurso em nagô. Como vimos, as duas leituras eram correntes no período e tinham em comum uma forte dose de racismo.

Portanto, os discursos racialistas e a extinção dos africanos na Bahia não inquietaram apenas Nina Rodrigues e Manoel Querino. Autores anônimos e outros mais famosos, como Xavier Marques, interpretaram a seu modo as mudanças daí decorrentes.41 Enquanto comentavam o fim do êxodo africano para o Brasil, os autores releram a própria escravidão, a tirar as suas conclusões sobre os desdobramentos da abolição e da afrodescendência. Os africanos ainda se faziam presentes, fosse por uma certa nostalgia evidente em autores como Xavier Marques, fosse por um ansiado alívio pelo fim da "colônia africana" no Brasil.

Imagino que africanos como Cecília Adolfo, passados anos da Abolição, ainda incomodavam quando declaravam ser católicos, porém prestar "culto à religião africana, e por esta razão peço que o meu enterro obedeça às praxes do rito africano."42 É sobre este tipo de nostalgia e incômodo que fala Xavier Marques no seu romance O Feiticeiro,e é por esta razão que resolvi discuti-lo aqui .

3. Os Velhos Africanos e seus Malefícios A multidão de negros que se aglomeravam nas ruas em dias de momo foi relida por Xavier Marques em O Feiticeiro. No romance, uma "moça de família" Eulália angustia-se por ter recorrido aos "maléficos rituais" do candomblé para resolver seus problemas sentimentais. Em meio a suas crises de consciência e ela se conta da aproximação do carnaval, o que tornava ainda mais densa a presença do velho feiticeiro incumbido de intermediar a sua questão com os "temíveis" "ídolos do santuário africano." Nas palavras do autor: "a ironia desse carnaval acintoso golpeava-lhe a alma" (Marques, 1975:123-124). Na sua imaginação ganhava forma uma charanga selvagem [na qual]; figurantes velhos, trôpegos, medonhos, obedeciam aos movimentos de um grande penacho multicor, sacudido pela mão de agigantado africano, cuja boca disforme sorria, num arreganho canino, com a dentadura branquejante sobre o arredondado de uma carapuça vermelha...Negros e negras avançavam numa dança fantástica macabra, a rebramir como feras(ibidem: 123).

Aqui, o texto de Xavier Marques prima pelo pavoroso. O recurso de ter relegado à sofrida protagonista a tarefa de contar ao leitor as suas impressões sobre a participação negra no carnaval, permitiu ao autor contrapor o que lhe parecia ser dois universos culturais distintos, mas relacionais, numa sociedade onde tanto uma frágil mocinha mergulhada em conflitos morais, quanto um assombroso africano com seu riso canino eram personagens possíveis.O Feiticeirofoi escrito em 1890, quando os jornais locais davam ampla cobertura à ação policial nos candomblés, e ambientado em 1870, período em que a conquista da alforria era um expediente cada vez mais comum. É evidente a intenção do autor em salientar que o mundo dos africanos e de seus descendentes envolvia as vidas de pessoas que tinham valores, hábitos e aspirações muito distintas das vivenciadas por aqueles.

Ao ler O Feiticeiro,nota-se a ênfase na diferenciação dos grupos sociais que se encontravam e se distinguiam publicamente. Eram ocasiões, a exemplo de um passeio da família de um bem-sucedido comerciante do Mercado de Santa Bárbara pelo sítio do Matatu: eles depararam com uma oferenda de adeptos do candomblé ao de uma árvore. Diante do assombro da família com tal achado, o comerciante passa a questionar por que tantas ressalvas à dos negros, que os católicos também tinham suas crenças, jejuns, retiros e procissões. Noutra situação, era o pano da costa que adornava a mesa da sala de visitas do comerciante que surpreendia os personagens; noutra, era a folia de reis com colorido e animação dos ranchos dos negros. A sociedade branca desenhada por Xavier Marques definia-se pela ambigüidade. Sem isentar-se da crítica à presença dos africanos ao acentuar o incômodo dos batucagês na madrugada e da multidão de pretos nas ruas, restava sempre um tom de sedução pela mística religiosa, presteza e artimanhas da gente de cor da cidade.

Os personagens estão imersos em questões das quais se ocupavam os intelectuais da época. É a estória de um próspero comerciante que, clandestinamente, ocupa o cargo de ogã em um terreiro, de uma moça de cor, costureira, que tenta camuflar as suas origens africanas e tem sensações "estranhas" quando ouve o som dos tambores; ou um escriturário ansioso por benesses do estado, uma viúva católica temerosa dos malefícios africanos, um jovem advogado republicano, um prestigiado comendador que divide a cama com sua criada negra e, é claro, um feiticeiro africano tio Elesbão.

O tio Elesbão criado por Xavier Marques não se diferencia muito dos líderes religiosos descritos por Nina Rodrigues, Manoel Querino e Edison Carneiro.

Trata-se de um velho altivo, sempre cercado por um dedicado séqüito, e hábil em estabelecer vínculos com pessoas de privilegiada situação social. Xavier Marques deixa entrever em seu texto a mesma nostalgia experimentada por Nina Rodrigues em relação à progressiva e inevitável extinção dos africanos na Bahia, sem deixar de lado o "estado selvagem" então atribuído aos velhos e "medonhos" africanos. Quando um dos personagens, o comerciante e ogã Paulo Boto assiste a uma festa no terreiro de Elesbão, o ritual o faz pensar que "o mistério da cabala, os gestos do ritual, a beleza do culto não se pronunciavam tanto nas mestiças pardas, quanto nas puras africanas e nas suas filhas de pele azevichada" (ibidem:29). Na leitura de Xavier Marques era o africano que melhor encarnava tanto o bizarro capaz de aterrorizar moças de família, quanto a beleza dos terreiros de candomblé.

Nas suas alianças políticas, o africano Elesbão é apresentado como um monarquista "muito contente com o governo e o imperador", pois tinha assegurado que a polícia não iria mais incomodá-lo (ibidem:202). Diante dos debates em torno da questão republicana a posição do africano era clara: temia o novo governo e as mudanças. Ao contar sobre uma festa de reis no bairro da lapinha, o autor se deteve num rancho com crioulas vestidas com saias brancas a dar vivas a Pedro, imperador do Brasil. Tradição, servilidade e conservação de padrões foram adjetivos atribuídos ao velho Elesbão e sua gente. Em meio às transformações políticas e culturais do período, o africano representava o que estava em vias de ser superado. O episódio da sua morte ilustra bem esta questão. O cortejo fúnebre de Elesbão levou para as ruas: Negros africanos, cambaios, patudos, encartuchados em velhos redingotes; negras minas, gêges, nagôs e crioulas, umas de trufa branca, outras de carapinha ao sol, com largos panos de chita e panos da Costa, listrados de azul, pelos ombros abaixo, moviam-se com um bando de urubus em direitura às Portas do Carmo (ibidem:247).

Enquanto via passar o "andar banzeiro da negraria", a outrora atormentada moça branca que usufruiu os poderes daquele feiticeiro, mostrava-se feliz e indiferente a tamanho espetáculo. O feiticeiro morreu, não a incomodava mais. Superadas as dificuldades, cessava a presença do africano. A sua ausência parecia ser sentida pela costureira tão empenhada em dissimular a sua ascendência. Apenas para ela e os aguadeiros reunidos em torno do chafariz a morte do africano parecia representar uma perda.

A nebulosa e decrescente presença dos africanos não mudava apenas a vida da protagonista: na visão de Xavier Marques toda uma nova situação social se insinuava. No seu texto, ao mesmo tempo em que, paira uma certa nostalgia pelo fim dos africanos, sobressai um otimismo pelas mudanças decorrentes do fim da escravidão na sociedade baiana. Por certo, as expectativas acerca de uma sociedade onde a escravidão não existisse não eram exclusivas dos intelectuais.

Sem negligenciar o caráter progressivo da Abolição no Brasil, a completa extinção desta instituição em 1888 não passou despercebida à população de cor, fosse ela livre, liberta, cativa e/ou proprietária de escrava. As representações da África, as reações à decrescente presença dos africanos, as definições acerca das prerrogativas do trabalho livre, as formas de repressão ao repertório cultural afro-brasileiro compunham todo um complexo quadro de referências a partir do qual a numerosa população de cor construía lugares sociais e auto-representações.

Em 1876, vários homens se envolveram em uma confusão num samba no distrito de Pirajá. Tudo começou quando Cosme Ramos pediu um copo de cachaça ao dono da casa, Manoel Libório dos Santos, recebendo em troca uma "porção de petróleo". A atitude do dono da casa foi vista por dois outros homens que tocavam pandeiro. Um deles mostrou-se indignado e disse para Manoel Liborio o seguinte: isso não é coisa que se faça a um cidadão brasileiro. O comentário resultou em grande tumulto e um homicídio. Entre os envolvidos, estava um português, operário em uma olaria, dois roceiros e um servente todos, pardos ou mulatos, moradores na freguesia, exceto o português. Na maioria dos depoimentos a fala do sambista apareceu como o início da confusão, obviamente estimulada pela cachaça que temperava a farra. O argumento utilizado para marcar a impropriedade da atitude do dono da casa é, no mínimo, curioso.43 Não pretendo aqui especular sobre o que viria a ser cidadania para um grupo de trabalhadores/sambistas na década de 70 do século XIX. Mas é inegável que pertencimento e identidade eram questões que estavam em jogo naquela roda de samba. Eram as mesmas que sustentavam a participação controversa dos clubes africanizados no carnaval, e davam coerência ao texto de Xavier Marques. Em meio à falência do escravismo e construção de uma sociedade tão excludente e hierárquica, a população de cor poderia estar buscando livrar-se de marcas escravistas, mas este era um exercício que envolvia a atualização de memórias da África e da escravidão.44 A condição de estrangeiros de alguns dos sobreviventes da trágica diáspora africana, a exemplo, de Esperança da Boaventura; a participação dos clubes africanizados; a queixa quanto ao tratamento que cabia a um brasileiro, para mim fazem parte de um mesmo contínuo deslocamento entre África(s)/Brasil e escravidão/ liberdade. E, este, como sugere Ira Berlin trata-se de um movimento nem sempre na mesma direção (Berlin, 1998).

Notas 1.

Série Judiciária, Inventários, 1906/1907, Arquivo Público Municipal de Santo Amaro (doravante APMSA).

2.

Série Judiciária, Testamentos, 1876-1890, Arquivo Público Estadual da Bahia (doravante APEBA). Oliveira (1997) discute as construções dos nomes de nação no tráfico de escravos para a Bahia, considerando que tais denominações orientaram as relações entre os africanos na diáspora, assim como as transações comerciais entre Brasil e África.

3.

Oliveira (1988:40) comentou que a proibição foi decorrente das sanções impostas aos africanos após a revolta dos malês, em 1835. A autora encontrou apenas três testadores neste impedimento, o que a levou a concluir ter a lei caído em desuso; contudo, acho importante uma análise dos desdobramentos da lei em comparação aos pedidos de naturalização dos africanos.

4.

Cunha (1985) e Oliveira (1988)discutem as diversas restrições sociais impostas aos africanos libertos como medidas de controle.

5.

Correio de Notícias,28/2/1900.

6.

A Bahia,23/2/1908 7.

Cunha (2001:171) analisa que no Rio de Janeiro "quase exclusivo dos cordões eram, no entanto, títulos que remetiam a etnias e origens africanas". Ver também Vieira Filho (1995).

8.

Digo população de cor, visto a hipótese razoável de que estes grupos eram majoritariamente formados por afrodescendentes. Robert Conrad (1972: 283-285) indica que entre 1886-1887 foram matriculados apenas 1.001 escravos sexagenários. E, segundo João José Reis, se em 1857 os africanos representavam 100% dos ganhadores escravos e libertos de Salvador, em 1887, dos trabalhadores reunidos em cantos 49% eram africanos, sendo que 74% tinham mais de 60 anos (Reis, 1993:31; 2000:200-201).

9.

Sobre as preocupações e tentativas de controle da população pobre na Bahia no século XIX, ver Fraga Filho (1996).

10.

Vieira Filho (1995), discute as formas e motivos de repressão aos batuques.

11.

Correio de Notícias,27/1/1897.

12.

Sessão Judiciária, Testamentos, 1900-1910, APEBA.

13.

Querino (1988: 66-72) se referiu aos malês como um grupo de valores morais rígidos e ritos muito distinto dos demais grupos africanos.

14.

Correio de Notícias,8/3/1900.

15.

Correio de Notícias, 27/2/1897.

16.

Pratt (1999) aborda os empreendimentos colonialistas europeus no século XVIII.

Na sua pesquisa a autora apreende os relatos de viagem, diários e compêndios de história natural como fontes para entender os encontros culturais entre colonizadores e colonizados.

17.

O Menelick, 17 outubro de 1915.

18.

Para Kim Butler o candomblé caracterizou-se no período com espaço de construção de uma consciência afro descendente de valorização e preservação da cultura africana (Butler, 1998: 191). uma excelente discussão sobre esta questão em Dantas (1988).

19.

Existe uma vasta bibliografia que aborda os investimentos no carnaval carioca.

O título mais recente é o importante texto de Cunha (2001).

20.

APEBA, Sessão Judiciária, Testamentos e Inventários. Nina Rodrigues ao tratar dos negros bantus informou que "moram alguns negros austrais em pequenas roças nas vizinhanças da cidade, em Brotas, no Cabula" (1988:114). Para uma interessante discussão sobre as formas de moradias dos africanos no Rio de Janeiro ver Soares, C. E. (2001).

21.

Correio de Notícias, 18/2/1898.

22.

Esta tem sido uma discussão recorrente na historiografia baiana, para citar alguns títulos: Ferreira Filho (1998-1999), Soares, C. M. ( 2001).

23.

A Bahia,26/2/1900.

24.

A Bahia,16/2/1906.

25.

A Bahia,20/2/1906.

26.

Infelizmente não conseguir descrições do desfile deste clube.

27.

Correio de Notícias,25/2/1897.

28.

A Bahia,4/3/1897.

29.

Sessão Judiciária, Inventários e Testamentos, 1933, APEBA 30.

Idem, 1928, APEBA.

31.

Idem, 1921, APEBA.

32.

É preciso investigar com mais cuidado as filiações partidárias de Manoel Querino; em A Bahia de outrorao autor se refere ao Império e à Corte com uma evidente nostalgia.

33.

A Coisa,8/4/1900.

34.

Correspondências expedidas aos subdelegados, maço 5869, Série Polícia, APEBA 35.

Não consegui localizar ainda a composição da diretoria do clube antes de 1900, portanto não sei quando Manoel Querino passou a integrá-la.

36.

Ruth Landes (s/d) fez várias referências à influência de Martiniano sobre pesquisadores importantes como Nina Rodrigues e Edison Carneiro.

37.

Os títulos seguintes são fundamentais neste debate: Cunha (1985) e Araújo, (1998/1999: 83-110).

38.

Sessão Judiciária, Inventários e Testamentos, 1908, APEBA.

39.

Idem, 1889, APEBA.

40.

A Bahia,8/3/1899.

41.

Xavier Marques (1861-1942) foi um dos principais escritores e jornalistas baianos no fim do século XIX. David Salles, um dos sues biógrafos, fez o seguinte comentário sobre o seu trabalho: "Deve ser considerado um escritor fim-de-século, portador de heranças do romantismo, realismo e debates da poesia científica realista concomitante com as mudanças do regime econômico e social" (Marques, 1998:10).

42.

Sessão Judiciária, testamentos e inventários, 1908, APEBA.

43.

Idem, 1876, APEBA.

44.

Sobre as estratégias dos ex-escravos para livrar-se das heranças escravistas no mundo do trabalho, ver Mattos (1998).


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