Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

BrBRHUHu0101-546X2002000200002

BrBRHUHu0101-546X2002000200002

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-546X
Year2002
Issue0002
Article number00002

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil

A construção da nação brasileira está estruturada dentre outras coisas a partir do mito da democracia racial. Uma parcela expressiva da sociedade brasileira compartilha a crença de ter construído uma nação diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, por exemplo não caracterizada por conflitos raciais abertos. Além disso, imagina-se que em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulato nunca estiveram bloqueadas por princípios legais tais como os conhecidos Jim Crow e o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam e advogam a singularidade paradisíaca brasileira, isto significa dizer que o critério racial jamais foi relevante para definir as chances de qualquer pessoa no Brasil. Em outras palavras, ainda é fortemente difundida no Brasil a crença de que a cultura brasileira antecipa a possibilidade de um mundo sem raças. Numa nação imaginada como democrática na questão racial, e erigida a partir desta crença, o que significa propor ações afirmativas para a população negra? Este artigo tem, nesta pergunta, o seu eixo central.

A primeira parte terá por escopo apresentar o que entendemos como características centrais da sociedade brasileira quando se trata de relações raciais: o mito da democracia racial e o ideal de embranquecimento. De consciência dessas idéias que têm formado o Brasil torna-se inevitável conforme acreditamos colocar o problema norteador deste artigo. Na segunda parte apresentaremos as propostas de ação afirmativa; ao abordá-las, faz-se necessário uma aproximação, mesmo que rápida, com o contexto norte-americano, que nos tem servido de comparação. No terceiro e último tópico deste artigo, apresento o significado das políticas de ação afirmativa no Brasil, a saber, a rediscussão do mito da democracia racial a partir do desenvolvimento de um sentimento de pertencimento a um grupo racial e, conseqüentemente, a construção de identidades negras.

Democracia Racial e o Ideal de Embranquecimento: Desafios para a Implementação de Ações Afirmativas no Brasil A crença no mito da democracia racial é estruturante do sentimento de nacionalidade brasileiro, a ponto de operar uma rara concordância valorativa entre as diferentes camadas sociais que formam a sociedade nacional. A título de exemplo, em pesquisa realizada no Distrito Federal, acerca do perfil valorativo de brasileiros agregados a partir da renda familiar, nível de escolaridade e local de moradia, Souza (1997) constatou que entre os brasileiros que compõem a camada/classe média e os que formam a camada/classe baixa existe uma clara linha demarcatória em relação ao preconceito contra a mulher, ao pobre, ao nordestino e aos homossexuais; de tal forma que entre os primeiros essas formas de preconceito apresentam um baixo índice, enquanto entre os últimos apresentam um alto índice. A conclusão da pesquisa é que o preconceito em relação à mulher, ao pobre, ao nordestino e aos homossexuais é inversamente proporcional ao rendimento, ao grau de escolaridade e à qualidade de vida proporcionada pelo local de moradia. Porém, o interessante vem no que segue: enquanto nas referidas formas de preconceito uma nítida separação entre classe média alta e classe baixa, o mesmo não se aplica quando se investiga o preconceito racial. Em vez da separação valorativa, encontramos uma concordância entre esses dois segmentos na condenação do preconceito racial e na valorização da miscigenação. A referida pesquisa constatou que tanto entre classe média alta quanto entre a classe baixa o índice de discordância em relação às seguintes perguntas eram significativamente altos: "o negro é bom em música e esporte?'' e "alguns cientistas afirmam que os brancos são mais inteligentes que os negros" (Souza, 1997:117-143). Obviamente, a conclusão a que podemos chegar não é que não existe preconceito racial no Brasil, mas que o brasileiro tem "preconceito de não ter preconceito", como assinalou Florestan Fernandes (1972:23-26). Daí, então, a necessidade de não confundir o ato de responder a um questionário, quando freqüentemente todos os entrevistados expressam muito mais um desejo, com a prática que muitos destes entrevistados possam ter. Ou seja, é necessário estar atento à distância que existe entre a fala consciente, no caso daqueles que estão respondendo a um questionário, e a prática e a fala cotidiana que muitas vezes não são avaliadas pela consciência.

O mito da democracia racial ganhou sua elaboração acadêmica e alcançou o seu clímax por meio de Gilberto Freyre em seu Casa Grande & Senzala (1933), uma obra que viria a moldar a imagem do Brasil. Embora Freyre destaque o caráter sadomasoquista da cultura brasileira, o sadismo da casa-grande personificado no senhor de engenho e o masoquismo da senzala materializado na figura do escravo, o tom da sua obra é de otimismo em relação a um ambiente social gestado durante a fase colonial brasileira que favorece e é propício à ascensão social do mulato, tipo que tenderia a caracterizar num futuro próximo o Brasil. No mulato visualizaríamos o que Gilberto Freyre chamou de processo de equilíbrio de antagonismos, a saber, "a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes antagônicas, de cultura". O resultado desse equilíbrio de antagonismos, que se materializa, sobretudo, na figura do mulato, é que "não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos" (Freyre, 1992:52).

O mito da democracia racial não nasceu em 1933, com a publicação de Casa-Grande & Senzala, mas ganhou, através dessa obra, sistematização e status científico para os critérios de cientificidade da época. Tal mito tem o seu nascimento quando se estabelece uma ordem, pelo menos do ponto de vista do direito, livre e minimamente igualitária. Assim, tanto a Abolição quanto a proclamação da República foram condições indispensáveis para o estabelecimento do referido mito, sem esses dois acontecimentos não se poderia falar em igualdade entre brancos e negros no Brasil: "tal mito não possuiria sentido na sociedade escravocrata e senhorial [...]. Que igualdade poderia haver entre o 'senhor', o 'escravo' e o 'liberto'?" (Fernandes, 1965:199).

Além dessa condição legal, foi de suma importância para a construção do mito da democracia racial o diálogo entre abolicionistas brasileiros e norte- americanos, no século XIX, em que se identificava a sociedade brasileira como paradisíaca frente ao inferno racial que era a sociedade norte-americana: Duvido que tenha jamais existido um povo mais tiranizado, mais desavergonhadamente pisado e impiedosamente usado, do que as pessoas livres de cor destes Estados Unidos. Mesmo um país católico como o Brasil [...] não trata as suas pessoas de cor, livres ou escravas, do modo injusto, bárbaro e escandaloso como nós as tratamos [...]. A América democrática e protestante faria bem em aprender a lição de justiça e liberdade vinda do Brasil católico e despótico. (Douglas apud Azevedo, 1996:155) O mito da democracia racial apoiava-se, e ainda se apóia, na generalização de casos de ascensão social do mulato; este, nas palavras de Carl Degler, encontrara uma "saída de emergência", o que significa dizer que se desenvolveu um reconhecimento social do mestiço no Brasil. Todavia, a assimilação e reconhecimento social do mestiço ocorria à custa da depreciação dos negros. O que está por trás deste mecanismo brasileiro de ascensão social é a concordância da pessoa negra em negar sua ancestralidade africana, posto que está socialmente carregada de significado negativo. Ironicamente, dentro deste contexto da "saída de emergência", os casos de ascensão social de pessoas de cor não enriqueciam o grupo social dos negros, uma vez que as pessoas de cor que ascendiam eram encaradas como "negros de alma branca" (Fernandes, 1965).

A "saída de emergência" do mestiço é um fato que não tem analogia com o modelo de relações raciais que se desenvolveu nos Estados Unidos. A diferença entre estas duas nações não residiria na presença e na ausência de relações sexuais entre os grupos raciais, senão na classificação social. Embora se encontrem mulatos nos Estados Unidos, estes não são reconhecidos em uma categoria à parte, uma vez que o modelo de classificação racial daquele país se baseia na regra da hipodescendência.1 Por volta de 1860, por exemplo, a população negra desse país era formada por 11% de mulatos e, em 1910, esse índice correspondia a 21% (Marx, 1996:15; Skidmore,1976: 87). Do ponto de vista classificatório, portanto social, o que se tem é, por um lado, uma nação cindida em duas categorias raciais e, por outro, uma nação que reconheceu o meio-termo, logo composta de um sistema classificatório múltiplo: "a presença do mulato não apenas espalha as pessoas de cor na sociedade, mas ela literalmente borra e, portanto, suaviza a linha entre preto e o branco" (Degler, 1971:233). Ora, é inegável que o mulato tenha encontrado essa saída de emergência, daí a multiplicidade classificatória que tem caracterizado o Brasil. O problema foi identificar isso com uma ordem democrática a fazer inveja ao mundo, uma vez que, conforme se acreditava, o paraíso era aqui.

Todavia, se o paraíso era aqui, era apenas para aqueles que conseguiram ser assimilados, via miscigenação, pela sociedade brasileira, não o sendo para o negro que tinha que enfrentar os dramas da exclusão na mesma sociedade. O mito da democracia racial implicava um ideal de homogeneidade racial, o que significa que os racialmente diferentes não são bem vistos, posto que desafiam este ideal brasileiro.

O mito da democracia racial ainda vinha acompanhado da crença de que as relações raciais no Brasil teriam sido mais humanas do que as encontradas nos Estados Unidos por exemplo, posto que aqui teríamos encontrado um senhor benevolente (Harris apud Skidmore, 1976:237). Todavia, os dados do período escravista sobre mortalidade infantil, alforria e expectativa de vida têm demonstrado que o mito do senhor benevolente também não encontra correspondência com a realidade (Marx, 1996:12-3; Degler, 1976:79-88).

Ao lado do mito da democracia racial, arquitetou-se no Brasil o ideal do branqueamento como uma política nacional de promoção da imigração européia que visava suprir a escassez de mão-de-obra resultante da Abolição e modernizar o país através da atração de mão-de-obra européia (Skidmore, 1976; Santos, 1997).

A tese do branqueamento, compartilhada pela elite brasileira, era reforçada, de um lado, por uma evidente diminuição da população brasileira negra em relação à população branca devido, entre outros fatores, a uma taxa de natalidade e expectativa de vida mais baixas e, por outro lado, devido ao fato de a miscigenação produzir uma população gradualmente mais branca. Assim, segundo dados do IBGE, em 1890, havia 44% de brancos, 41,4% de mulatos e 14,6% de negros; em 1950, havia 62% de brancos, 27% de mulatos e 11% de negros (Skidmore, 1976:62; Hasenbalg, 1979:150). Apesar de toda desconfiança e dúvidas quanto às categorias branco/mulato/negro e sobre a metodologia utilizada, somos levados, pelos dados, a concluir que no referido período houve uma modificação racial do país rumo ao embranquecimento.

O ideal de embranquecimento pressupunha uma solução para o problema racial brasileiro através da gradual eliminação do negro, que seria assimilado pela população branca. Nesse processo, a mestiçagem era apenas um processo; logo, era tomada como transitória. Quanto a este aspecto, é reveladora a opinião de João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, ao apresentar um relatório intitulado "Os Métis ou Mestiços no Brasil" no I Congresso Universal de Raças, em 1911, em Londres: [...] se viram filhos de métis apresentarem, na terceira geração, todos os caracteres físicos da raça branca. [alguns] retêm uns poucos traços da sua ascendência negra por influência do atavismo [...], [mas] a influência da seleção sexual [...] tende a neutralizar a do atavismo, e remover dos descendentes dos métis todos os traços da raça negra [...] Em virtude desse processo de redução ética, é lógico esperar que no curso de mais um século os métis tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio. (apudSkidmore, 1976:83) Tanto o mito da democracia racial quanto o ideal de branqueamento ganham uma leitura popular, compartilhada pela maioria dos brasileiros por toda a extensão geográfica do país. A partir de uma rápida alusão a Benedict Anderson (1983), poderíamos dizer que a comunidade que denominamos Brasil se imagina, entre outras coisas, a partir dos referidos ideais.

Não constitui nenhuma novidade dizer que uma significativa maioria dos brasileiros reconhece-se como "misturados", assim como valorizam essa "mistura". O que ocorre quando se ressalta e valoriza essa mestiçagem é que uma confusão da "mistura racial no plano biológico com as interrelações raciais no sentido sociológico. Supondo que a primeira ocorreu sem conflito [...] sugerem que as últimas também existiram sem conflito" (Hasenbalg, 1995:358).

Quanto ao ideal de branqueamento, ele é incorporado pela população e se apresenta através de uma desvalorização da estética negra e, em contrapartida, uma valorização da estética branca. Além disso, esse ideal apresenta-se como uma tentativa de "melhorar" a raça através de casamentos mistos.

Sendo que "quando o filho do casal misto nasce branco, também se diz que o casal teve 'sorte'; quando nasce escuro, a impressão é de pesar" (Nogueira, 1985:84).

O mito da democracia racial, juntamente com o mito do senhor benevolente e a política de branqueamento desenvolvida no país teve algumas conseqüências práticas.

Primeira conseqüência: desenvolveu-se a crença de que não existem raças no Brasil, uma vez que por raça se entende agrupamentos humanos que compartilham certas características hereditárias que não são partilhadas por nenhum outro agrupamento humano, tais como cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, porte físico. Assim, a inexistência de raças no Brasil decorreria do processo de miscigenação que diluiu as supostas "essências" naturais originais das três raças que fundaram a população brasileira. Tal interpretação supõe uma essência biológica possível de ser encontrada em outras partes, mas não no Brasil. Neste sentido, imagina-se que o Brasil inaugura a possibilidade de um mundo sem raças (Gilroy, 2001:9). Este excepcionalismo faz do brasileiro orgulhoso de si mesmo, a ponto de querer ensinar lições às nações ainda marcadas pelo racismo.

Entretanto, essa recusa de reconhecer raças no Brasil é uma recusa estratégica que ocorre somente em momentos de conceder eventuais benefícios àqueles que são identificados como membros do grupo de menor status. A não separação de raças do ponto de vista biológico tampouco significa que elas não estejam separadas, do ponto de vista social, da concessão de privilégios e distribuição de punições morais, econômicas e judiciais. Neste sentido, contrariando a interpretação racial hegemônica no Brasil e respaldado nos diversos estudos realizados no campo das relações raciais, desde pelo menos os estudos da Unesco, advogamos que a raça existe, não como uma categoria biológica, mas como uma categoria social.

Segunda conseqüência: em lugar da raça, admite-se que existe no Brasil apenas uma classificação baseada na cor, que pretende ser encarada como uma mera descrição objetiva da realidade sem implicações político-econômico-sociais, tais como discriminações e preconceitos.

Aqui somos levados a desconstruir a noção de cor à luz das contribuições de Guimarães (1999). Para este autor, a cor funciona como uma imagem figurada da raça. Ao se utilizar o termo cor para classificar as pessoas reporta-se não a uma descrição objetiva da realidade, mas a uma hieraquia classificatória em que aqueles nomeados de branco são concebidos como melhores, enquanto aqueles nomeados de preto são concebidos como piores. Para que alguém possa ser classificado pela cor é necessário que a cor tenha algum significado: De fato, não nada espontaneamente visível na cor da pele, no formato do nariz, na espessura dos lábios ou dos cabelos, ou mais fácil de ser discriminado nesses traços do que em outros, como o tamanho dos pés, a altura, a cor dos olhos ou a largura dos ombros.

Tais traços têm significado no interior de uma ideologia preexistente, e apenas por causa disso funcionam como critérios e marcas classificatórias. Em suma, alguém pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto é, as pessoas têm cor apenas no interior de ideologias raciais. (Guimarães, 1999:44) Terceira conseqüência: qualquer tentativa de falar em raça negra é vista como uma imitação de idéias estrangeiras, uma vez que não existem raças no Brasil, conforme se acredita. Logo, aqueles que falam de políticas sociais para negros são acusados de racistas. A maneira brasileira de encarar o problema racial define como racista "aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem" (ibidem:57).

A partir dessa maneira de encarar a realidade, em que se define como racista aquele que separa, evitou-se, do ponto de vista oficial, reconhecer o tratamento diferenciado de brasileiros em decorrência da raça, mesmo se este reconhecimento pudesse significar uma oportunidade para a correção de desigualdades. Assim, por exemplo, o movimento social dos negros é acusado de racista, uma vez que diferencia os negros dos brancos.

Em outras palavras, a regra no que diz respeito ao enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil será uma "disposição para 'esquecer o passado' e 'deixar que as coisas se resolvam por si mesmas'" (Fernandes, 1972:25), uma vez que, conforme acreditam, não existem raças no Brasil. E, conseqüentemente, como não existem raças, não cabe falar de população negra.

Diante desta realidade social estruturada pelo mito da democracia racial e pelo ideal de branqueamento, manteve-se intacto o padrão de relações raciais brasileiro, não sendo posto em prática nenhum tipo de política que pudesse corrigir as desigualdades raciais. Isto aconteceu desta forma simplesmente porque a interpretação hegemônica acerca das relações raciais brasileira, até mesmo entre setores progressistas, não identificava nenhum problema de justiça racial. Estava vedada, portanto, a possibilidade de intervenção organizada na realidade, restando à população de cor a via da infiltração pessoal, que obviamente não possui alcance coletivo.

Assim, o mito da democracia racial e o ideal de embranquecimento deram origem a uma realidade social em que a discussão sobre a situação da população negra foi identificada como indesejável e, até mesmo, perigosa. A recusa de reconhecer a realidade da categoria raça, tanto num sentido analítico quanto de intervenção pública, fez do regime de relações raciais brasileiro um dos mais nefastos e estáveis do mundo ocidental.

Frente a este contexto em que as preocupações com as questões raciais são concebidas como falso problema, propomo-nos a analisar o significado da ação afirmativa para a população negra.

Propostas de Ação Afirmativa no Brasil Ações afirmativas são entendidas como políticas públicas que pretendem corrigir desigualdades socioeconômicas procedentes de discriminação, atual ou histórica, sofrida por algum grupo de pessoas. Para tanto, concedem-se vantagens competitivas para membros de certos grupos que vivenciam uma situação de inferioridade a fim de que, num futuro estipulado, esta situação seja revertida. Assim, as políticas de ação afirmativa buscam, por meio de um tratamento temporariamente diferenciado, promover a eqüidade entre os grupos que compõem a sociedade.

As maneiras pelas quais as políticas de ação afirmativa podem atuar são várias: desde as políticas sensíveis ao critério racial, em que a raça é um dos critérios ao lado de outros,2 até as políticas de cotas, em que se reserva um percentual de vagas para minorias políticas e culturais; neste último caso a raça passa a ser considerada um critério absoluto para a seleção da pessoa.

Embora qualifiquemos cotas e políticas sensíveis à raça apenas como tipos diferentes de ação afirmativa, aqueles que procuram tratar cotas e ações afirmativas como políticas públicas diferentes: Em primeiro lugar, um esforço, consciente, das Cortes [americanas] para separar "ação afirmativa" de "cotas". Isso porque tal equivalência criaria, sem dúvida, problemas para um senso de justiça republicano e individualista. Tal equivalência, ao contrário, tem sido usada pelos conservadores e oposicionistas da "ação afirmativa", que querem caracterizá-la como uma política redistributiva, baseada em grupos. (Guimarães, 1999:157) O debate em torno da equivalência ou não de cotas e ação afirmativa (entendida neste contexto como política sensível à raça) decorre do fato de as cotas contrariarem o princípio do mérito. Todavia, ao meu ver, esta tentativa de identificar ou separar um tipo de política do outro ocorre unicamente por razões estratégicas. Advogo que ambas são formas de ação afirmativa, porém executadas de maneira diferente, uma vez que são políticas públicas que pretendem corrigir desigualdades sociais provenientes de tratamento discriminatório no passado e/ou no presente baseados na raça.

O passo decisivo para que a discussão sobre ações afirmativas conquistasse projeção política e acadêmica, para além dos integrantes do movimento negro brasileiro, foi o reconhecimento público do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,3 na abertura do seminário Multiculturalismo e Racismo, realizado em 1996, em Brasília, de que o país era racista. Além disso, o presidente da República estimulou a discussão sobre as ações afirmativas quando, ao divulgar o Plano Nacional dos Direitos Humanos, também em 1996, incluiu como um dos seus objetivos o desenvolvimento de "ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta". E ainda foi mais claro, firmando o compromisso de desenvolver "políticas compensatórias que promovam social e economicamente a comunidade negra" (PNDH, 1996:30-1). Outra ação do Executivo foi a criação, em 1996, do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) Para a Valorização da População Negra e do Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação GTDEO. O GTI teria por objetivo desenvolver políticas para a valorização da população negra, prioritariamente nas áreas de educação, trabalho e comunicação (GTI, 1996). O GTDEO, por sua vez, teria por objetivo definir um programa de ações e propor estratégias de combate à discriminação no emprego e na ocupação, conforme os princípios da convenção 111,4 que fora assinada em 1968 (PNDH,1996). Com essas ações, parecia que pela primeira vez na história o negro deixaria de ser assunto apenas do Ministério da Cultura, e passaria a integrar o rol de preocupações de outros Ministérios, principalmente do Ministério do Trabalho.

Ao mesmo tempo em que essas medidas foram tomadas no plano Executivo, o Legislativo, na figura da então senadora Benedita da Silva e do senador Abdias do Nascimento, apresentava projetos decisivos para o desenvolvimento do debate no Brasil.5 A senadora Benedita da Silva, em 1995, apresentou o Projeto de Lei 14 que dispõe sobre a instituição de cota mínima para os setores etno-raciais, socialmente discriminados, em instituições de ensino superior. O artigo diz: Fica instituída a cota mínima de 10% (dez por cento) de vagas existentes para os setores etnorraciais socialmente discriminados em instituições de ensino superior públicas e particulares, federal, estadual e municipal. (Benedita da Silva, 1997) A justificativa que a senadora apresentou a este Projeto de Lei, que estipulava um número de vagas não representativo da população, foi a de que a garantia da cota mínima não resolveria o problema estrutural, mas criaria um precedente para minimizar a injustiça e a exclusão social.

O senador Abdias do Nascimento apresentou o Projeto de Lei 75, de 1997, que dispunha sobre medidas de ação compensatória para implementação do princípio da isonomia social do negro. Os artigos primeiro e segundo deste Projeto de Lei dizem: Todos os órgãos da administração pública direta e indireta, as empresas públicas e as sociedades de economia mista são obrigadas a manter nos seus respectivos quadros de servidores, 20% (vinte por cento) de homens negros e 20% (vinte por cento) de mulheres negras, em todos os posto de trabalho e direção" e "Toda empresa privada ou estabelecimento de serviço são obrigados a executar medidas de ação compensatória com vistas a atingir, no prazo de cinco anos, a participação de ao menos 20% (vinte por cento) de homens negros e 20% (vinte por cento) de mulheres negras em todos os níveis de seu quadro de emprego e remuneração. (Projeto de Lei, nº75) A apresentação destes projetos pelos dois parlamentares foi um reflexo da percepção e discurso político do movimento negro brasileiro desde pelo menos a criação do Movimento Negro Unificado ' MNU em 1978. A partir daquele momento as organizações negras assumiram um discurso em que se buscava mobilizar a população negra contra a discriminação e a desigualdade racial (Andrews, 1998: 302). Ao lado disso, celebrava-se a diferença a partir do discurso do "orgulho negro". Essa nova postura do movimento negro brasileiro é interpretada por vários autores como uma sintonia entre este e o "movimento negro internacional", sobretudo "os movimentos de independência na África Portuguesa e os movimentos dos direitos civis e o 'Black Power'". A partir destas experiências internacionais positivas, especialmente as políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos, "os afro-brasileiros jovens começaram a pensar se seria possível imitar suas conquistas no Brasil" (ibidem:300-1).

Assim, o seminário Multiculturalismo e Racismo e a divulgação do Plano Nacional dos Direitos Humanos, no âmbito do Governo Executivo, e a apresentação dos dois supracitados Projetos de Lei foram encarados como uma oportunidade única para uma discussão franca e pública acerca da questão racial.

Decisivo para que a discussão sobre ações afirmativas ganhasse espaço no Brasil, como ficou claro no referido seminário, foi a experiência positiva destas políticas nos Estados Unidos.

As ações afirmativas foram implementadas nos Estados Unidos na década de 60, após a declaração dos Direitos Civis de 1964. O conceito de ação afirmativa, porém, é de 1961, uma vez que estava contida na Ordem Executiva de 6/3/61, assinada pelo presidente Kennedy, que estabelecia a Comissão Presidencial sobre Igualdade no Emprego (Walters, 1995:130). Todavia, somente com o presidente Lyndon Johnson é que o drama humano do negro americano foi atacado vigorosamente. Em 1965, na Howard University, o presidente Lyndon Johnson apresentou sua justificativa para se ir além de uma política não discriminatória rumo a uma política que de fato promovesse oportunidades para os americanos negros: Você não pega uma pessoa que por anos esteve preso por correntes e a liberta, trazendo-a ao ponto de partida de uma corrida e, então, diz.

"você está livre para competir com todos os outros", e continua acreditando que foi completamente justo (Lyndon Johnson apud Bowen & Bok, 1998:6).

Logo após esse discurso, o Office of Federal Contract Compliance (OFCC) e a Equal Employment Opportunity Comission (EEOC) solicitaram às empresas que tinham contratos com o Governo Federal a elaboração de planos que incluíssem metas e cronogramas para compor uma força de trabalho que refletisse a presença de negros em relevantes áreas do mercado de trabalho (Bowen & Bok, 1998:6; Walters, 1995:130).

Nos anos seguintes, essas diretrizes foram adotadas por universidades que reconheceram que elas tinham um papel a desempenhar na educação de estudantes provenientes de minorias culturais e/ou políticas. Esses esforços em breve deram frutos: "a porcentagem de estudantes negros matriculados nas universidades classificadas como Ivy League cresceu de 2.3 em 1967 para 6.3 em 1976, enquanto a porcentagem em outras universidades prestigiadas cresceu de 1.7 para 4.8" (Bowen & Bok, 1998:7). Considerando um período de tempo maior, de 1960 a 1995, a porcentagem de estudantes negros graduados cresceu de 5,4% para 15,4%. Neste mesmo período, a porcentagem de negros matriculados em Faculdades de Direito cresceu de aproximadamente 1% em1960 para 7,5% em 1995.

Igualmente, a porcentagem de estudantes negros de medicina cresceu de 2,2% em 1964 para 8,1% em 1995 (ibidem:9-10).

Da implantação das ações afirmativas nos Estados Unidos resultou, sobretudo, ganhos em termos de representatividade dos negros em ocupações influentes e lucrativas, tais como: executivos, gerentes e administradores, médicos, advogados, engenheiros, representantes no Congresso (ibidem:10).

À luz da experiência norte-americana, não se tinha motivo para que as propostas de ação afirmativa não fossem cativantes para a militância negra brasileira.

Todavia, a diferença entre as duas nações residia no fato de que no momento de implementação das ações afirmativas nos Estados Unidos tinha-se uma clara distinção de quem era negro e quem era branco, uma vez que não tinha se constituído a "saída de emergência" do mulato como no Brasil.

Aqui, ao contrário, não temos como ponto de partida para a adoção de políticas de ação afirmativa uma clara distinção entre brancos e negros sobretudo quando está em questão a distribuição de vantagens para os últimos.

Assim, tornam-se claras as diferenças de adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil e nos Estados Unidos. Neste último, as ações afirmativas não objetivavam construir nenhuma diferença, ao contrário, procuravam alcançar uma sociedade cega às cores por meio de medidas temporárias (Kymlicka, 1989:141; Taylor, 1994:40). no Brasil, o ponto de partida é outro: parte-se de uma distinção míope de quem seja negro para se chegar a uma distinção clara.

A dificuldade classificatória no Brasil derivada da crença no mito da democracia racial, assim como da popularidade do ideal de branqueamento reside no fato de que a classificação racial no Brasil reconheceu socialmente o meio-termo, o híbrido, enquanto nos Estados Unidos, apesar de todas as atuais demandas do movimento multicultural,6 se baseia no princípio monorracial. Isto significa dizer que a classificação racial brasileira depende do contexto de sua aplicação (Silva, 1994:70; Nogueira, 1985), gerando uma dissonância entre a autoclassificação e a alterclassificação. Em termos concretos, são encontradas duas variáveis que interferem significativamente tanto na auto quanto na alterclassificação dos indivíduos: a escolaridade e o rendimento familiar.

Assim, podemos dizer que é uma verdade evidente que "não o dinheiro embranquece, como, inversamente, a pobreza escurece" (Silva, 1994). Essa ambigüidade classificatória torna-se um verdadeiro quebra-cabeça, sobretudo quando se pretende desenvolver políticas afirmativas para a população negra no Brasil, uma vez que não temos um modelo baseado em fatores de hipodescendência biológica que origem a uma sociedade birracial. Diferentemente, o peso do contexto social tem dado origem a um sistema classificatório multirracial, em que se encontra um predomínio de autoclassificações em torno das categorias branco, pardo, preto, moreno, claro, moreno-claro7 (ibidem:72).

Se no momento de definir vantagens para os brasileiros negros, assim como num momento não conflituoso, como a realização de um questionário, existem os supracitados problemas de classificação, estes problemas se dissipam quando se trata de distribuir punições simbólicas ou de fato. Todos sabem a quem se dirigem os insultos "negro safado", "negro nojento", " podia ser negro" etc., assim como a polícia também sabe quem é negro. Oliveira, interpretando dados de pesquisa do Datafolha e do MNDH (Movimento Nacional dos Direitos Humanos) chega à seguinte conclusão: [...] a cor/raça da vítima é uma das variáveis determinantes da violência policial, e o biótipo "negro" é o alvo predileto e, ao que tudo indica, de fácil identificação pela polícia. Fica evidente que os negros e seus descendentes no Brasil são assassinados pela polícia três vezes mais que os brancos, ou seja, se no plano biológico, o da mistura racial, não é fácil saber quem é negro no Brasil, no plano das relações raciais, ou sociológico, a identificação parece ser simples e, na maioria das vezes, fatal para os negros [...] ela é a categoria social de homicídio. (Oliveira, 1998:50) Assim, o que se tem percebido no Brasil é que ter sangue negro não distingue, uma vez que nossa nacionalidade se funda na idéia da miscigenação das raças.

Daí o fato de sempre se verificar um índice alto de brasileiros se reconhecendo como afrodescendentes. Todavia, se assim o são no plano biológico, não o são no plano social. Isto ocorre porque raça não é um conceito biológico, senão social. Logo, este conceito faz sentido e encontra lugar dentro de um sistema classificatório racial, que não somente opõem, mas hierarquiza as raças.

Esta confusão em torno da auto e da alterclassificação deve-se, em parte, à ausência de grupos sociais relativos a raça no Brasil. A partir disso teríamos a chave para explicar tal ambigüidade que nos caracteriza, isto é, entenderíamos porque negativamente reconhecemos quem é negro, mas positivamente não. Daí ser negro ou não, pode se tornar uma questão fluida, que depende do contexto.

Ação Afirmativa e a Construção de um Grupo Social e da Identidade Negra: Rediscutindo o Mito da Democracia Racial As discussões entre ativistas negros sobre as propostas de ação afirmativa que se seguiram à divulgação do Plano Nacional dos Direitos Humanos e dos Projetos de Leis da senadora Benedita da Silva e do senador Abdias do Nascimento, estavam intrinsecamente ligadas a um projeto de relações raciais para o país.

De uma maneira sintética podemos dizer que nesse projeto de relações raciais estava contido (a) a construção de um grupo social calcado na idéia de raça; (b) conseqüentemente, a construção de uma identidade negra a ser compartilhada pela população preta e parda brasileira, e não somente pelos militantes negros; (c) e, finalmente, a superação do mito da democracia racial.

O argumento a ser desenvolvido aqui não nega que as ações afirmativas pretendem corrigir problemas relacionados à justiça redistributiva experimentados pela população preta e parda, sobretudo no que diz respeito à desracialização da elite econômica e intelectual brasileira. Ao contrário, as ações afirmativas são concebidas como instrumentos eficazes de correção de problemas relativos à redistribuição de bens econômicos e cargos de poder a curto e médio prazo. Sem estas políticas estaremos adiando a modificação da composição da elite brasileira para as futuras gerações. Por outro lado, defender a implantação de ações afirmativas também não significa que elas não devam ser conjugadas com políticas públicas universalistas, tais como: ampliação do acesso da população brasileira em geral à educação pública, à assistência médica, ao mercado de trabalho, à habitação, enfim, ao desenvolvimento social.

Todavia, o que quero enfatizar nesta parte deste artigo é que as políticas de ação afirmativa são concebidas como um instrumento de racialização positiva das relações sociais no Brasil. Em outras palavras, as ações afirmativas são meios eficazes de correção do reconhecimento distorcido, do preconceito e da estigmatização, a saber, problemas relacionados não somente à justiça redistributiva, mas à justiça simbólica, onde o correto reconhecimento da diferença desempenha um importante papel (Fraser, 1997).

Neste sentido, a adoção de políticas públicas racializadas permite entrever a atribuição de um valor positivo à classificação social negro, por exemplo. A partir daí surge a oportunidade inédita para além da militância negra stricto sensu de um auto-reconhecimento positivo em ser negro no Brasil, isto é, cria-se a oportunidade de construir identidades negras no Brasil para além dos militantes.

Ao reconhecermos que as políticas de ação afirmativa contribuem para a ampliação do número de pessoas que compartilham a identidade negra, estamos frente a um fenômeno que contraria as bases de nossa nacionalidade, que historicamente em nome do mito da democracia racial esteve calcada em políticas oficiais avessas a qualquer tipo de racialização. Nesse sentido, as ações afirmativas são mecanismos que tornam relevantes a classificação racial no dia-a-dia através da atribuição de valores positivos à classificação racial negro.

Seria, todavia, um engano pensar que o ineditismo da adoção de políticas de ação afirmativa estaria na racialização das relações sociais no Brasil, posto que estão racializadas através, por exemplo, da alterclassificação negativa (ou racismo) direcionada à população preta e parda. Porém, o que de singular nesta situação é que o Estado, mediante suas políticas, estaria criando nos indivíduos classificados como pretos e pardos um senso de pertencimento ao grupo racial negro pela via positiva. Com isso queremos dizer que as ações afirmativas não são a causa do uso de categorias raciais ou de cor no Brasil, mas a conseqüência de atitudes negativas direcionadas à população preta e parda, que são políticas voltadas para a correção do racismo.

Se as ações afirmativas não são a causa do uso de categorias raciais no Brasil estas categorias são utilizadas, por um lado, com um sentido negativo para o preto e o pardo e, por outro lado, com um sentido positivo para o branco , elas podem, entretanto, ser pensadas como integrante de um conjunto de fatores e acontecimentos que tendem a criar um grupo social calcado na idéia de raça e, conseqüentemente, identidades negras no Brasil.8 Em 1999, em Brasília, analisei algumas entrevistas de políticos/militantes negros que acompanhavam de perto as discussões sobre as propostas de ação afirmativa (Bernardino, 1999). Esses atores políticos tinham atuado, ou ainda atuavam, no movimento negro institucionalizado: partidos políticos e entidades do movimento negro brasileiro. Nessas entrevistas procurei perceber qual era o projeto de relações raciais proposto e endossado por eles.

As idéias de grupo social e de identidade, que estão em construção por ocasião da discussão sobre políticas afirmativas, são complementares, o que significa dizer que não podemos discutir uma delas sem a outra. Essas noções são indispensáveis para se falar de um reconhecimento positivo do que vem a ser uma pessoa negra. Assim, somente a partir da constituição de um grupo social ou de um senso de pertencimento a um grupo social é que podemos falar de identidade negra no país. Todavia, tanto a construção de um grupo social quanto a construção de uma identidade não se no vácuo, senão a partir do diálogo com o outro significativo. Assim, é de suma importância o reconhecimento (Taylor, 1994). No desenvolvimento dos conceitos de grupo social, identidade e reconhecimento utilizaremos trechos das entrevistas feitas com os militantes negros, que funcionarão como subsídios empíricos para a discussão teórica.

Entendemos por grupo social uma coletividade de pessoas diferenciada de pelo menos outro grupo em decorrência de práticas culturais e modos de vida próprios. Os membros do grupo possuem uma específica afinidade uns com os outros em decorrência de experiências similares, que os fazem se reconhecer como membros do grupo em questão (cf. Young, 1990:43).

É o grupo social que dará ao ator social um senso de identidade. Por identidade compreendemos tanto "o entendimento que a pessoa tem acerca de quem ela é quanto o entendimento que o outro significativo tem sobre ela". Portanto, supomos que a construção da identidade envolve um processo dialógico tanto com os próprios negros quanto com os brasileiros autodefinidos como brancos. Assim, essa discussão sobre identidade passa pela necessidade de um correto reconhecimento. O dado é que "se a pessoa recebe um correto reconhecimento, ela terá a sua auto-estima intacta", assim como se identificará positivamente com aquilo que o outro enxergou nela. Porém, "se houver um reconhecimento distorcido ou a ausência deste, esta pessoa terá a sua auto-estima afetada, o que equivale a condenar alguém a um modo de vida reduzido". É nesse sentido que se considera o "correto reconhecimento não como uma cortesia, mas como uma necessidade humana vital" (Taylor, 1994:25).

A formação de identidades sociais tem sido encarada como um processo fluido. É exatamente essa fluidez que a noção de diálogo não nos deixa perder de vista.

Posto que por diálogo entendemos a linguagem verbal e a linguagem corporal, que podem ser expressas tanto pelas práticas formalmente políticas quanto pelas práticas culturais, sobretudo a música.9 Nesse sentido percebemos as identidades como produto da vida social, mesmo que os portadores dessas identidades as sintam como natural. Este caráter fluido das identidades não significa que elas sejam criadas e inventadas ao bel-prazer dos atores sociais.

Embora possa haver interpretações10 que fundamentam a existência de grupos e identidades raciais em fatores biológicos: cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, etc., defendemos que estes traços físicos somente têm um significado dentro de uma ideologia construída socialmente que diferencia as pessoas a partir destes traços e, conseqüentemente as hierarquiza. Assim, o que é determinante para a formação de um grupo racial e de uma identidade racial não são os fatores biológicos nem, tampouco, a experiência da subordinação em si, mas a interpretação logo o significado da subordinação social (Gilroy, 2001:237). A formação de um grupo racial e de uma identidade a partir de uma história comum, da discriminação, do insulto e da subalternidade é compartilhada por alguns dos entrevistados. Eles dizem: Essa é uma pergunta que o Movimento se faz constantemente. "Quem é negro?" e é complicadíssimo dizer quem é negro no Brasil! Mas, no geral, o que as pessoas fazem para dizer quem é negro? Primeiro, é afrodescendente [...] mas, , você vai falar o seguinte: "é, mas todos os brasileiros têm mistura", e tal; então, acabam sendo afrodescendentes, também, ? Além de afrodescendente a gente fala, olha, que tem a pigmentação de pele mais escura e tal, não tem cabelo liso. Mas, isso, não quer dizer nada. Eu acho que a definição para o Movimento Negro e, até para mim mesmo, eu acho que a definição sendo muito mais no sentido, no conceito de política mesmo, de você assumir que é negro.

Ou ainda, Eu ouço pessoas negras dizerem, muitas vezes, que jamais foram discriminadas. E o que aconteceu, na verdade, não é que elas não tenham sido discriminadas. É que elas não abraçam a discriminação como algo abrangente. O que eu quero dizer? Eu poderia passar, agora, sair daqui e passar ali na esquina, e ver uma pessoa negra ser discriminada e achar: "não é comigo". Quer dizer, entender que não é comigo; isto é equivocado na verdade. Porque ninguém discrimina uma pessoa negra porque acha que aquela pessoa negra não merece crédito; na verdade é um descrédito que se atribui a todo um segmento, a toda uma coletividade. Quando se diz: "isto é coisa de preto", não é coisa de um preto ou de outro preto, isto é coisa dos pretos e das pretas [...]. Todas as pessoas negras deste país foram discriminadas, o problema é que as pessoas não abraçam a discriminação, elas entendem que isto é algo que deva ser individualizado. Então, é óbvio que, neste sentido, muitas pessoas podem não ter tido a traumática oportunidade de serem discriminadas, se for nessa dimensão. Agora, se for na outra dimensão, de que a discriminação é algo que coloca todos os negros no mesmo barco, a coisa é diferente.

Portanto, o que é fundamental para a construção do sentimento de pertencimento a um grupo racial e de uma identidade racial não são simplesmente fatores físico-biológicos, mas uma dimensão sociopolítica, que tem como ponto de partida o reconhecimento da discriminação não como algo pessoal, mas coletivo.

A partir da reconstrução de uma história, que tem como ponto em comum a subordinação e o reconhecimento distorcido efetuado pelo outro, se teria, segundo a expectativa dos entrevistados, a possibilidade para a superação do déficit de identidade, que tem caracterizado os brasileiros de cor preta ou parda. Estes poderiam, após implementação das ações afirmativas, se identificar como negros.

Esse reconhecimento distorcido, projetado sobre os brasileiros de cor preta ou parda, tem sido historicamente absorvido por eles mesmos. Evidência maior da absorção dessa imagem negativa é a tentativa de não se identificar como negro, procurando, sempre quando possível, eufemismos de cor ou, até mesmo, se aproximar do tipo estético branco. É aqui que ironicamente deparamos com pretos e pardos, estigmatizando os demais pretos e pardos mais escuros.

A história de vida dos entrevistados é marcada por esse reconhecimento distorcido. Seja um reconhecimento distorcido efetuado pela polícia, em que se diz que a cor da pessoa é suspeita; pela vizinha, que identifica a esposa com a empregada doméstica; pelo patrão, que humilha; pelos colegas de trabalho que passam o expediente fazendo piadas; pela mídia, que apresenta o negro como criminoso ou como subalterno. Essas experiências negativas não são tomadas como casos isolados que somente alguns "privilegiados" tiveram a "traumática oportunidade" de vivenciar, mas como casos ilustrativos de um tipo de imagem projetado sobre a população de cor preta e parda.

Essas experiências negativas via de regra operam como algo que enfatiza o local que está prescrito para a população brasileira de cor preta e parda. Foi isso que, por longos anos, os livros didáticos e os programas de televisão representaram: [...] antes se fazia livros com imagens estereotipadas do negro [...]. Quais eram as imagens? Quando o negro aparecia, ele nunca tinha família. Ou ele era o mais bagunceiro ou estava sempre descalço ou era a empregada doméstica". Essas imagens eram reforçadas pela televisão: "[...] a televisão me passou a idéia de que o negro ou era o picareta ou era bandido ou, no máximo, motorista de empregada doméstica. Mas eu ficava indignado com aquilo. Eu falava: 'não acredito que a gente é isso!' Através desses típicos exemplos do contexto racial brasileiro, visualizamos uma clara identificação negativa de quem é denominado negro no Brasil. Em contrapartida, esses mesmos exemplos revelam uma enorme dificuldade para uma identificação positiva de quem é negro. Nesse sentido, as ações afirmativas são percebidas não somente como um remédio capaz de corrigir aspectos econômicos das relações raciais brasileiras, mas como um mecanismo capaz de corrigir o reconhecimento distorcido e a estigmatização que têm sido projetados sobre a população de cor preta e parda. Em outras palavras, as ações afirmativas apresentam-se como capazes de converter a conotação negativa da cor preta e parda em algo positivo, simplesmente pelo fato delas poderem associar vantagens claramente perceptíveis à identificação racial e, além disso, pelo fato de elas possibilitarem ganhos em termos de representatividade dos negros em posições influentes e lucrativas.

Portanto, as ações afirmativas efetuariam uma revalorização da identidade, uma vez que criariam condições para definições positivas de quem é negro. Essa nova representação a respeito do negro teria um efeito mimético sobre a população de cor preta e parda que opta por se classificar através de um dos eufemismos de cor ao invés de se classificar simplesmente como negro.

Eu acho que as ações afirmativas são fantásticas para te induzir a ter uma consciência racial. Ou seja, para te dizer, "olha eu também sou igual àquele!". Por que? Porque vendo um engenheiro ou um médico, ou você vendo um ministro, qualquer coisa assim, você cria a expectativa de algum dia poder ser igual a eles [...]. O que eu estou querendo dizer com isso é o seguinte: para você se reafirmar como negro é preciso que você faça parte dos estratos sociais elevados.

Torna-se evidente que as ações afirmativas são vistas não como mecanismos que mitigariam as desigualdades sociais suscetíveis de quantificação, mas como mecanismos capazes de provocar uma reviravolta identitária, descolando da cor preta e parda atributos negativos e pondo em seu lugar atributos positivos. Em outras palavras, essa reviravolta identitária significa que se parte de um reconhecimento negativo de quem é negro e se alcança um reconhecimento positivo. Isso ocorreria porque aos aspectos propriamente físicos juntar-se-iam uma reconstrução da história que ressaltasse tanto as realizações quanto as dificuldades enfrentadas pelos negros.

Essa transformação identitária esperada pela implementação de ações afirmativas traz à tona as condições para que a população negra brasileira resgate sua auto-estima. Conforme falou outro entrevistado: Outro dia eu vi passar uma moça negra, uma moça bem negra, tinta forte, ? Bem escura, com as suas tranças... Fiquei pensando: essa pessoa, algumas décadas atrás, não teria a menor maneira de exprimir a sua beleza. Teria que alisar o cabelo, tentar ser uma branca de segunda classe, que ela nunca conseguiria ser direito.

Hoje, através o episódio das ações afirmativas, existe essa possibilidade, a possibilidade de ser negro com orgulho, com a satisfação pessoal de se olhar no espelho.

Assim, o significado das ações afirmativas no contexto brasileiro de relações raciais vai além de uma perspectiva meramente econômica, significando a criação de um grupo social baseado na idéia de raça e, também a revalorização da identidade negra no Brasil, a saber, a criação da possibilidade de uma identificação positiva de quem é negro, algo que poderia ser compartilhado pelos brasileiros de cor preta e parda que estão, por ora, ao largo do movimento negro.

Esta modificação simbólica do que vem a ser negro não pode ser encarada como de segunda importância, como se justiça social em sociedades democráticas se referisse somente a aspectos redistributivos (Bernardino, 2000).

A noção de justiça social que vem se desenvolvendo contemporaneamente (Taylor, 1994; Young, 1990; Habermas; 1994; Honneth, 1996), tem dado atenção a uma correta consideração da diferença não porque se queira criar diferenças, mas simplesmente porque elas existem e, também, porque as pessoas se enxergam como diferentes.

Devido às interpretações hegemônicas (mito da democracia racial e o ideal de branqueamento), raramente reconhecemos as diferenças relativas à raça no nosso país. Entretanto, isso não quer dizer que elas não existam. Como procuramos demonstrar, todos sabemos quem são os negros no momento da distribuição de punições (identificação negativa), embora tenhamos dificuldade em identificar quem são os negros no momento dos benefícios sociais (identificação positiva).

Assim, as ações afirmativas para a população negra, conforme a expectativa dos militantes negros, atuariam como remédio frente às dificuldades de um reconhecimento positivo da diferença racial no Brasil.

As dificuldades de se implementar as ações afirmativas passam pelo fato de que tanto o mito da democracia racial quanto o ideal de embraquecimento, fortemente estabelecidos no nosso senso comum, criam barreiras para a racialização das relações sociais. Essas barreiras frente à racialização significam, por um lado, a negação do racismo como um problema brasileiro, crença que foi falseada pelo clássico trabalho de Hasenbalg (1979:197-222). Por outro lado, significam que muitas vezes a racialização é confundida com racismo, mesmo se proposta (como o episódio das ações afirmativas nos permite ver) por negros (Guimarães, 1999).

Todavia, como têm demonstrado os nossos indicadores sociais (Andrews, 1992), é a recusa em pensar na raça que tem deixado distante a possibilidade de justiça social, tanto em termos distributivos quanto em termos simbólicos, para os negros no Brasil. Enfim, como sugeriu o presidente Lyndon Jonhson, responsável pela implementação das ações afirmativas nos Estados Unidos, em 1965, "Você não pega uma pessoa que por anos esteve preso por correntes e a liberta, trazendo-a ao ponto de partida de uma corrida e, então, diz. 'você está livre para competir com todos os outros', e continua acreditando que foi completamente justo". O que o mito da democracia racial tem feito é sustentado uma atitude de neutralidade racial no momento da elaboração de políticas públicas no Brasil, fazendo pensar que com isso estamos construindo uma nação justa.

Para a realização de uma sociedade justa, teremos de construir um Estado que contemple a existência de negros no Brasil, aspecto esse não observado pela nação que se ergueu através do mito da democracia racial. Esse é um dos significados das propostas de ação afirmativa e do projeto de relações raciais que as acompanha.

Notas 1.

A regra da hipodescendência é definida por Vermeulen como uma ficção da identificação monorracial que postula que uma pessoa racialmente mista pertence ao grupo racial de menor status social. Assim, nos EUA, as pessoas com alguma quantidade de sangue africano são classificadas como negras (cf. Vermeulen, 2000).

2.

Algumas universidades americanas públicas e privadas que desenvolvem políticas de ação afirmativa baseadas na raça levam em consideração outros fatores como: pontuação do SAT (Scholastic Achievement Test), notas do high school, recomendações, qualidades pessoais, talento atlético, status socioeconômico, origem geográfica, potencial de liderança e composição da classe como um todo (cf. Bowen & Bok, 1998: xxxv) 3.

Antes do presidente Fernando Henrique Cardoso, parece-me (enfatizo esta palavra) que a única alta autoridade a reconhecer o drama humano da população negra foi o presidente Jânio Quadros, em 1961. Esta surpreendente descoberta ocorreu-me através da leitura de Carl Degler, quando este diz: "como alguns brasileiros negros apontam, Jânio Quadros, presidente do Brasil em 1961, foi a primeira alta autoridade do país a admitir as dificuldades do negro.

Sousa Dantas cita-o tendo dito: 'Desejo oferecer ao negro brasileiro as condições que nunca teve, as condições de uma integração social e econômica efetiva, para lhe dar, finalmente, o papel que é seu por direito, tendo em mente sua contribuição para a nacionalidade'" (Degler, 1976:277).

4.

A convenção 111, no artigo , estabelece seus objetivos, assim como o compromisso do país que a assinar: "Qualquer membro para o qual a presente Convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria" (Convenção 111, art. ). O GTDEO entende que essas políticas nacionais assumiriam a forma de ações afirmativas (cf. Brasil, Gênero e Raça, 1997).

5.

Após este primeiro momento de discussão e apresentação de propostas de ação afirmativa, o debate avançou bastante. Conseqüentemente, outros projetos foram apresentados e algumas políticas foram adotadas. O professor José Jorge Carvalho apresenta algumas ações afirmativas em andamento no Brasil. São elas: 1) o Ministério da Justiça, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Supremo Tribunal Federal aprovaram portaria em que prevê cotas para afrodescendentes e concedem preferência a empresas prestadoras de serviço que comprovem a adoção de ação afirmativa; 2) o Ministério da Educação criou um programa de implantação de cursinhos preparatórios para o vestibular para jovens carente, denominado Diversidade na Universidade; 3) a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) reservam 50% de suas vagas para alunos provenientes de escolas públicas e 40% de negros; 4) o Ministério das Relações Exteriores concederá 20 "bolsas-prêmio de vocação para a diplomacia" para que candidatos afrodescendentes se preparem para o concurso do Instituto Rio Branco (cf. Carvalho & Segato, 2002:18-21).

6.

Vermeulen descreve a existência e crescimento desse movimento nos Estados Unidos, que tem como principal bandeira a crítica ao modelo de classificação monorracial e a demanda de que a categoria multicultural seja incluída no censo norte-americano (cf. Vermeulen, 2000:15-18).

7.

Nelson do Valle Silva, em análise posterior das 135 auto-atribuições da histórica PNAD/1976, percebeu que 97% se concentravam nas categorias censitárias (branco, pardo, preto, amarela) e nas categorias moreno, claro e moreno-claro. Diz ele: "as categorias censitárias cobriram cerca de 57% das respostas espontâneas, que, somadas a outras três respostas tradicionais também freqüentes a saber, morena (34%), clara (3%) e morena-clara (3%) dão cerca de 97% das respostas espontâneas" (Silva, 1994:72).

8.

Entre os fatores que contribuem para a criação da identidade negra no Brasil podemos nos referir à música, ao Movimento dos Direitos Civis americano, ao Black Power, ao processo de independência das colônias portuguesas na África e ao "movimento negro internacional" (cf. Gilroy, 2000; Andrews, 1998; Hanchard, 1994).

9.

Exemplo da importância da música para a criação de identidades negras transatlântica pode ser encontrado no excelente livro de Gilroy (2001).

10.

Paul Gilroy, por exemplo, refere-se a uma perspectiva nomeada de essencialista que aborda o tema da subordinação racial dos negros norte-americano a partir de uma concepção de grupo baseada entre outros fatores na idéia de raça biológica (cf. Gilroy, 2001).


Download text