Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente
Neste texto apresento alguns tópicos relativos às religiões afro-brasileiras do
Rio Grande do Sul (RS) que contemplam ao mesmo tempo uma visão histórica e
atual, com ênfase nas suas características que mais se destacam na atualidade.
Inicio com dados historiográficos sobre o ingresso do negro escravo no RS e
sobre a estruturação do Batuque. Discorro então sobre os distintos
"lados" desta religião ao mesmo tempo em que aponto alguns aspectos
históricos e especificidades da Umbanda e da Linha Cruzada neste estado. Em
seguida, me atenho a um personagem legendário do campo afro-gaúcho, um príncipe
africano que residiu neste estado a partir de 1899 e aqui faleceu em 1935. Na
seqüência, discorro sobre três importantes características atuais do campo
religioso afro-gaúcho, a saber: a presença de "brancos" nas religiões
de matriz africana; a transnacionalização do batuque e demais religiões afro-
brasileiras para os países do Prata; e a aproximação dessas religiões no campo
político estadual e municipal, sem, porém, ocorrer o ingresso efetivo na esfera
política, como fazem, por exemplo, os evangélicos.
Os Negros e as Religiões Afro-Brasileiras no Rio Grande do Sul
Os negros africanos e seus descendentes participaram diretamente do
desenvolvimento econômico dos dois primeiros séculos da história do Rio Grande
do Sul. Segundo Beatriz Loner, "praticamente não houve profissão manual
que não tivesse representantes dessa etnia em seu desempenho, tanto no período
imperial quanto na República" (Loner, 1999:9). O mesmo, como se sabe,
ocorreu nas demais capitanias e províncias do Brasil onde, como diz Prandi, os
escravos africanos "foram sendo introduzidos [...] num fluxo que
corresponde ponto por ponto à própria história da economia brasileira"
(Prandi, 2000:52).1
O marco inaugurador do Rio Grande do Sul é a fundação do Forte de Jesus, Maria
e José, na Barra de Rio Grande, no ano de 1737, pelo brigadeiro José da Silva
Paes, em cuja tropa, formada por 260 homens, havia escravos e negros libertos.
A historiografia do Rio Grande do Sul ainda se debate em torno da questão de
saber a procedência do negro escravo trazido para este estado. Há, no entanto,
algum consenso de que essa população se dividia entre negros
"crioulos", ou seja, indivíduos nascidos no Brasil e para aqui
transferidos, "ladinos", isto é, indivíduos que já haviam trabalhado
em outras regiões do país, e africanos, aqui chegados após terem passado por
algumas regiões brasileiras, entre elas, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Santa
Catarina, e mesmo africanos que chegaram ao Rio Grande do Sul provenientes da
Argentina e do Uruguai. A título de exemplo, um levantamento realizado junto
aos Inventários da Freguesia de Pelotas, no período compreendido entre 1850 e
1880, mostrou que num universo de 1.604 escravos, 460 eram crioulos, 556
indeterminados e 590 africanos (Assumpção, 1990). Estes últimos, por sua vez,
dividiam-se em diferentes nações ou grupos tribais. Por exemplo, por ocasião
das comemorações da Abolição, desfilaram em Pelotas os "Filhos de Angola,
Mina, Benguela, Erubé, Congo e Cabinda..." (Jornal Echo do Sul, 10/6/1888
apud Loner, 1999:8).2 Seja como for, no Rio Grande do Sul "os banto vieram
em número muito superior aos sudaneses" (Correa, 1998a:66).
A introdução do escravo no RS ocorreu a partir da primeira metade do século
XVIII. Trabalhavam na agricultura, nas estâncias e, sobretudo a partir de 1780,
na produção do charque, na região de Pelotas. Segundo Correa, os negros
compunham cerca de 30% da população da Província em 1780, e 40% do total em
1814. Nesta data, os negros perfazem cerca de 51% da população de Piratini e
60% de Pelotas (ibidem:65-66). Porém, com o início da chegada dos colonos
alemães em 1824 e dos italianos em 1875, verifica-se um aumento da população
branca e uma redução na porcentagem da população negra em território gaúcho.
A produção das charqueadas executadas pelo trabalho braçal escravo em
condições bastante desfavoráveis em razão das condições climáticas,
precariedade de infra-estrutura e exigências severas ditadas pelo próprio
regime escravocrata foi de tal monta que em 1861 o charque contribuía com
37,7% do total do que o RS exportava e os couros com 37,2% do total, juntos
somando 74,9% do total da produção gaúcha para fora da Província (Assumpção,
1990). A relação entre o trabalho forçado dos negros e o desenvolvimento das
charqueadas era tal que na medida em que se aproximava a Abolição também
diminuiu o número de charqueadas. Assim, referindo-se a Pelotas, Loner lembra
que "de um total de 34 charqueadas existentes em 1878 na cidade, elas
reduziram-se a apenas 21 às vésperas da Abolição e a 18, dois anos depois"
(Loner, 2001:7), ocasionando a diminuição do charque que servia de alimento dos
escravos do sudeste e desta forma acarretando problemas no mercado de consumo
deste produto.
A estruturação do batuque no Rio Grande do Sul constitui outro tema que aguarda
um aprofundamento investigativo. Tudo indica que os primeiros terreiros foram
fundados justamente na região de Rio Grande e Pelotas. Para o historiador Marco
Antônio Lirio de Mello que fez uma ampla pesquisa nos jornais de Pelotas e
Rio Grande do século XIX a presença do batuque é atestada nesta região desde
o início do século XIX (Mello, 1995). Também Correa situa o período inicial do
batuque nesta região entre os anos de 1833 e 1859 (Correa, 1988a:69). Se assim
for, permanece a dúvida de se saber se a estruturação do batuque ocorreu
posteriormente ou paralelamente à estruturação do candomblé, uma vez que o
primeiro terreiro de candomblé teria surgido na Bahia no ano de 1830 (Jensen,
2001:2). Aliás, a mesma dúvida M. Herskovits havia levantado em 1942, por
ocasião de uma "rápida viagem" pelo Rio Grande do Sul (Herskovits,
1948).3
No entanto, a partir das décadas de 70 e 80 do mesmo século, os jornais dessa
região apresentam, com alguma regularidade, em suas páginas policiais, matérias
sobre cultos de matriz africana. De fato, nos jornais Correio Mercantil e
Jornal do Comércio, de Pelotas, bem como no jornal Gazeta Mercantil de Rio
Grande, pode-se ler notícias, infelizmente as mais recorrentes sendo de prisão
de "feiticeiros" e "feiticeiras", como esta:
Foram presas à ordem da delegacia, duas pretas feiticeiras que
atraíam grande ajuntamento de seus adeptos. Na ocasião de serem
presas, encontrou-se-lhes um santo e uma vela, instrumento de seus
trabalhos [...]". (Jornal do Comércio, Pelotas, 9/4/1878, p. 2
apud Mello, 1995:26)
Quanto ao mito fundador do batuque, há duas versões correntes: uma que afirma
ter sido o mesmo trazido para esta região por uma escrava, vinda diretamente de
Recife; e outra que não associa a um personagem, mas às etnias africanas que o
estruturaram enquanto espaço de resistência simbólica à escravidão.
Já as notícias relativas ao batuque em Porto Alegre4 datam, preferencialmente,
da segunda metade do século XIX, isto sugerindo que ou sua origem, ou, o que é
mais provável, o seu incremento pode ter ocorrido com a migração de escravos e
ex-escravos da região de Pelotas e Rio Grande para a capital. Novamente, as
principais fontes de referência são os jornais que reportam ações policiais
contra os terreiros. Lilian Schwarcz transcreve, por exemplo, reportagem do
Correio Paulistano, de 30/11/1879, intitulada "Os feiticeiros do RS
Grande Caçada". Diz a reportagem:
a polícia tomou ontem em uma casa 42 pretos livres e escravos e 11
pretos minas. A caçada deu-se às 10h30 da noite no momento em que o
preto João celebrava uma sessão de feitiçaria. Foi uma surpresa e um
desapontamento que aqueles fiéis crentes jamais perdoarão a polícia
[...]. A polícia apreendeu cabeças de galo e outros manipansos. Os
principais atores da indecente comédia foram recolhidos à cadeia e os
escravos castigados. (Schwarcz, 1989:126, ênfases minhas)
Inútil dizer que as perseguições aos terreiros não deixam de expressar um certo
medo branco diante do poder de manipulação das forças sobrenaturais por parte
dos escravos e seus descendentes. Obviamente que a perseguição era sempre
precedida de um conjunto de estigmas lançados sobre essas religiões, visando
justificar aquele procedimento.
Em Porto Alegre, a partir da segunda metade do século XIX, o maior contingente
de negros se encontrava nas cercanias da cidade, no Areal da Baronesa, na
cidade baixa, imediações da atual Rua Lima e Silva,5 e nas chamadas Colônia
Africana e "Bacia", atuais bairros Bonfim, Mont Serrat e Rio Branco.6
Estas últimas tratavam-se, em sua origem ("em torno da época da
abolição"), de uma "zona insalubre, localizada nas bordas de chácaras
e propriedades que ali existiam, de baixa valorização e de pouco interesse
imediato para seus donos, que foi sendo ocupada por escravos recém-
emancipados" (Kersting, 1998:111).7
Kersting mostra como, sobre essas áreas, foram criadas representações que as
associavam a criminalidade, vícios, perigo, e seus habitantes tidos como
membros de "classes perigosas". Por isto mesmo, essas áreas foram
deixadas a um relativo isolamento por parte das autoridades públicas e, ao
longo das décadas do século passado, foram dissolvidas mediante um processo de
"higienização urbana".8 Evidentemente que por trás desta atitude
existiam interesses imobiliários de ocupação dessas áreas da cidade para
"modernizá-las", o que começou a ocorrer ainda nas primeiras décadas
do século XX, com o processo de branqueamento da população, simultaneamente à
abertura de ruas e de construções em padrões arquitetônicos não populares. Por
exemplo, parte da Colônia Africana começa a receber iluminação elétrica em
1911, algumas ruas são asfaltadas em 1912 e neste momento prevê-se também a
construção de uma rede de esgotos. Reitero que esse processo de urbanização
consiste fundamentalmente na descaracterização como área essencialmente negra
"até se transformar em bairro saneado que se vê em 1922" (ibidem:
195). Este autor informa que a maioria dos não-negros que fixam residência na
ex-Colônia Africana são judeus, enquanto os negros são expulsos para áreas mais
periféricas e ainda desabitadas, como o bairro Mont Serrat, destino primeiro
dos exilados da Colônia Africana e onde algumas famílias conseguiram
estabelecer moradia até os dias de hoje.9
Simultaneamente a esse processo de modernização, justamente em 1912 a Colônia
Africana passa a ser um bairro chamado Rio Branco. Embora seja uma homenagem ao
Barão do Rio Branco, não deixa de ser irônico que um território anteriormente
denominado Colônia Africana, em razão da presença maciça de negros, seja
chamado de Rio Branco, caracterizando o predomínio de não-negros nesta área.
Há relatos da prática de cultos afro-brasileiros em todos os territórios negros
referidos. Relativamente à Colônia Africana, por exemplo, o primeiro sacerdote
da igreja de Nossa Senhora da Piedade, concluída e inaugurada nesta área em
1913, cônego Matias Wagner, "aponta para a presença desses cultos e para o
fraco número de católicos realmente fiéis" (ibidem:184). Assim, em seu
livro "Paróquia de N. S. da Piedade de Porto Alegre:1916-1958", o
referido cônego escreve: "Encontrei certa vez um homem que, dizendo-se
muito católico, apostólico e romano, era também dono e Pai Santo de uma casa de
batuque..." (apud Kersting, idem:186). O mesmo cônego refere também que
foi alvo de despachos de "parte daquela gente de Umbanda". Aliás, o
pároco se refere às religiões afro-brasileiras pelos nomes de batuque, umbanda
e espiritismo e, mais genericamente, pelos termos etnocêntricos e
preconceituosos de crendices, superstições e feitiçarias.
No contexto das lacunas históricas sobre as religiões afro-brasileiras no Rio
Grande do Sul figuram também dados estatísticos sobre os terreiros deste
estado. Dispomos unicamente de informações parciais sobre o número de terreiros
de batuque para Porto Alegre, durante 20 anos, de 1937 a 1952, apresentados por
Carlos Krebs (1988:16).
Tais dados constam das estatísticas oficiais do Rio Grande do Sul, tendo o
censo sobre a religião sido abandonado em 1952. Malgrado sua precariedade,
pode-se perceber um crescimento quase que anual do número de terreiros em Porto
Alegre, fato este que continua, segundo dirigentes de federações, até os dias
de hoje, onde existem, no seu conjunto, cerca de dois mil terreiros na capital
gaúcha.
O Batuque
Batuque é um termo genérico aplicado aos ritmos produzidos à base da percussão
por freqüentadores de cultos cujos elementos mitológicos, axiológicos,
lingüísticos e ritualísticos são de origem africana. O batuque é uma religião
que cultua doze orixás10 e divide-se em "lados" ou
"nações", tendo sido, historicamente, as mais importantes as
seguintes: Oyó, tida como a mais antiga do estado, mas tendo hoje aqui poucos
representantes e divulgadores; Jeje, cujo maior divulgador no Rio Grande do Sul
foi o Príncipe Custódio, sobre o qual falaremos mais abaixo; Ijexá, Cabinda e
Nagô, são outras nações de destaque neste estado. Nota-se que o Keto esteve
historicamente ausente no RS, vindo somente nos últimos anos a se integrar por
meio do candomblé.
Vejamos alguns dados disponíveis sobre as mencionadas nações neste estado:
OYÓ. Segundo a tradição local, esta nação chegou a Porto Alegre vindo da cidade
de Rio Grande. Foi cultuada no Areal da Baronesa e dali no Mont Serrat onde se
situaram as principais casas deste culto.
M. Herskovits e R. Bastide, por ocasião de suas estadas em Porto Alegre, o
primeiro em julho de 1942 e o segundo em 1944, referem-se carinhosamente à Mãe
Andrezza Ferreira da Silva, da nação Oyó que, segundo Bastide, "formara-se
com um velho babalorixá que ainda tinha à sua volta alguns africanos
nativos" (Bastide, 1959:238). Segundo Carlos Krebs, Mãe Andrezza teria
vivido de 1882 a 1951 (Krebs, 1988).
Hoje, como disse acima, trata-se de um culto praticamente em extinção, restando
algumas poucas casas no estado. Segundo Pernambuco Nogueira,
[...] o último nome da antiguidade da nação Oyó que conhecemos foi
Tim do Ogum, já falecido, e que foi o iniciador da Delsa do Ogum,
casa ainda em atividade. Além deste vamos encontrar o Antoninho da
Oxum e sua filha-de-santo a Moça da Oxum (Lídia Gonçalves da Rocha),
como nomes de projeção. Distinguiu-se entre os praticantes do Oyó a
figura de Fábio da Oxum quer pela beleza e suavidade do orixá que
recebia, quer pelo fato de ter sido um dos raros pais-de-santo que
não vivia da Religião (Nogueira, 2001b).
As especificidades da nação Oyó residiam, sobretudo, na ordem das rezas, uma
vez que chamavam primeiro os orixás masculinos e a seguir os femininos,
encerrando-se com as de Yansã (Oiá), Xangô e finalmente Oxalá, o destaque para
os dois orixás resultando do fato de serem o Rei e a Rainha de Oyó. Também era
próprio da nação Oyó os orixás conduzirem em suas bocas, ao término das
obrigações, as cabeças dos animais oferecidos em sacrifício já em estado de
decomposição; finalmente, segundo os mais antigos, no Oyó os ocutás eram
enterrados, em vez de colocados em prateleiras (ibidem).
IJEXÁ. Trata-se da nação predominante hoje no estado. Os deuses invocados são
os orixás e a língua ritualística é o iorubá. Renomados babalorixás históricos
(já falecidos) como Manoelzinho do Xapanã e Tati do Bará, ambos iniciados na
Cabinda, passaram mais tarde para o Jeje e seus descendentes ingressaram todos
no Ijexá, dizendo-se então Jeje-Ijexá.
Segundo um depoimento colhido por Norton Correa junto ao já falecido tamboreiro
Donga de Yemanjá, o Ijexá predominava nas regiões negras de Porto Alegre como o
Mont Serrat e Colônia Africana (Correa, 1998a:76).
JEJE. No dizer de Pernambuco Nogueira,
[...] foi, durante muito tempo, a Nação que predominou no Rio Grande
do Sul, em que pese o fato de jamais termos ouvido falar em voduns a
exemplo dos cultuados em São Luis do Maranhão. Sempre ouvimos dos que
se diziam jeje puros falar e invocar os orixás nagô. Dada a
complexidade dos seus toques, a morosidade dos mesmos e a dificuldade
na preparação dos tamboreiros que, inclusive, deviam usar os
oguidavis, de difícil manejo, foram adotando as rezas do Ijexá
[...]" (idem).
As figuras mais importantes desta nação foram Paulino do Oxalá Efan, que
reiniciou no Jeje o Manoelzinho do Xapanã e Tati do Bará, oriundos da Cabinda,
como disse acima. Um dos filhos de Paulino foi João Correia de Lima, Joãozinho
do Bará Agelú, morador do Mont Serrat, talvez o primeiro e um dos mais
importantes babalorixás que "exportou" o batuque para além das
fronteiras do Rio Grande do Sul em direção aos países do Prata, como veremos
abaixo. Outro importante babalorixá desta nação foi Idalino do Ogum, que
faleceu com a idade de 104 anos. Enfim, outro personagem, este mitológico, da
nação Jeje foi o famoso Príncipe Custódio de Almeida, sobre o qual falaremos a
seguir.
Vale aqui registrar que a origem do termo "jeje" é bastante
problemática. Lorand Matory, por exemplo, sintetiza uma série de autores que
tentam esclarecer o "mistério" em torno deste conceito e propõe a
hipótese de que se trata de uma construção transatlântica, ou seja, um nome
aplicado pelos comerciantes e donos de escravos alguns retornados, em suas
idas e vindas entre Brasil, Cuba e Golfo da Guiné "a todos os africanos
que eles consideraram seus parentes, apesar de ser pouco provável que esses
parentes' assim se identificassem inicialmente" (Matory, 1999:64).
CABINDA. Trata-se de uma nação Banto, originalmente de fala Kimbundo. O
cemitério é o início da nação religiosa de Cabinda, diz um pai-de-santo e
estudioso do batuque. Segundo ele,
[...] o culto aos Eguns nesta Nação é tão forte que dificilmente se
encontrará uma casa-de-religião sem que tenha o devido assentamento
de Balé (culto aos egunguns), ou Igbalé (casa dos mortos). (Ferreira,
1994:59)
Já para o babalorixá Pernambuco Nogueira, nos rituais de Cabinda que freqüentou
no Rio Grande do Sul "jamais ouvimos falar de Inkices. O que sempre foi
cultuado foi o Orixá iorubano" (Nogueira, 2001b).
Segundo consta, este culto foi trazido para o Rio Grande do Sul por um africano
conhecido por Gululu, de cujas mãos saiu a figura mais marcante do culto
Cabinda no Rio Grande do Sul: Waldemar Antônio dos Santos, do Xangô Kamucá.
Dele descenderam as famosas Mãe Maria Madalena Aurélio da Silva, de Oxum Epandá
Demun, que iniciou Romário Almeida, do Oxalá, e Henrique Cassemiro Rocha Fraga,
de Oxum Epandá Bomi, todos falecidos, e Mãe Palmira Torres dos Santos, de Exum
Epandá Olobomi, que iniciou João Cleon Melo Fonseca, do Oxalá, que é tido hoje
como o mais importante herdeiro da tradição Cabinda do estado, embora, como diz
Pernambuco Nogueira, "de sua origem mantém apenas o rótulo: o conteúdo é
todo ele Ijexá" (ibidem).
NAGÔ. No dizer de Pernambuco Nogueira, [...] é uma nação que, tendo sido a
origem do Culto no Rio Grande do Sul, hoje está praticamente extinta, restando
pouquíssimas casas" (idem). Há, em Porto Alegre, o terreiro Nova Era, do
pai Jader, que pretende ser a continuação dessa tradição longínqua no estado.
Diferentemente dos demais terreiros, neste, "a chegada dos orixás se faz
como no Candomblé (linha por linha, trabalhando e desincorporando) e a matança
é procedida com o animal no chão e não suspenso" (idem).
Ainda segundo Pernambuco Nogueira, "talvez situa-se nesta casa a semente
do culto africano plantada pelos escravos das charqueadas, desde a sua origem
em Rio Grande..." (idem).
Ao que consta, não dispomos de informações numéricas sobre a incidência dessas
nações no Rio Grande do Sul. O historiador Dante de Laytano, em pesquisa
realizada sobre o batuque em Porto Alegre, em 1951, observou que as 71 casas
por ele encontradas dividiam-se em 24 de nação Nagô, 21 Jeje, 13 Oyó, 8 Ijexá e
5 "mistos" (Laytano, s.d.:53). Na atualidade, porém, predomina no
batuque do Rio Grande do Sul o lado Ijexá, "quer pela facilidade do toque
como pela ausência de tamboreiros iniciados nos demais Cultos" (Nogueira,
2001b). Embora haja terreiros que se digam seguidores de outros lados, trata-
se, segundo o babalorixá Adalberto Pernambuco Nogueira, "apenas de rótulos
utilizados talvez para marcar a origem dos fundamentos" (
idem
).11
A Umbanda
A primeira casa de umbanda no Rio Grande do Sul foi também fundada na cidade de
Rio Grande, em 1926. Chamava-se "Reino de São Jorge" e foi fundada
pelo ferroviário Otacílio Charão.
Como em todo o Brasil, também no Rio Grande do Sul a umbanda surgiu defendendo
padrões e comportamentos aceitos socialmente. No entanto, não escapou à
repressão policial, a tal ponto, informa M. Caldas um dos maiores
intelectuais da umbanda e do espiritismo no Rio Grande do Sul, hoje falecido
que nos primeiros tempos o centro de Charão não possuía um endereço fixo,
funcionando de forma itinerante (seu endereço mudava toda semana). Também o
próprio espiritismo e o batuque se opuseram à umbanda nascente, o primeiro
desqualificando suas práticas mediúnicas, o segundo não aceitando que seus
orixás fossem invocados sem suas normas rituais, o que denuncia que estava em
jogo uma disputa de bens simbólicos (Isaia, 1997:386).
De Rio Grande, a umbanda foi trazida para Porto Alegre, em 1932, pelo capitão
da marinha Laudelino de Souza Gomes, que fundou nesta capital a Congregação
Espírita dos Franciscanos de Umbanda, existente até os dias atuais. Neste caso,
é dupla a razão do termo franciscano. Em primeiro lugar, pela sincretização
entre São Francisco de Assis e Lokô (termo yorubá), ou Irokô (termo jeje), ou
orixá tempo (Angola), isto é, a árvore gameleira branca; em segundo lugar, pelo
uso que seus membros fazem de uma espécie de bata branca, com sandália e cordão
em torno ao ventre, semelhante ao que consta na iconografia histórica atribuída
a São Francisco.
Pernambuco Nogueira esclarece que tanto Charão quanto Souza Gomes não eram
originários do Rio Grande do Sul e ambos estiveram na África por algum tempo.
No entanto, dedicaram-se quase que exclusivamente à implantação e divulgação da
Umbanda (Nogueira, 2001b). Outros importantes personagens divulgadores da
umbanda neste estado foram Norberto de Oliveira, que a introduziu no município
de Viamão; Jesina Furtado, fundadora da casa Mestre Quatro Luas; e Astrogildo
de Oliveira, fundador do Templo Rainha Yemanjá Fraternidade Ubirajara. Segundo
Pernambuco Nogueira, esta última casa possuía
[...] a peculiaridade de ter construído, nos fundos, uma miniatura de
todos os reinos em que se efetuavam os rituais, inclusive uma calunga
pequena (cemitério) para ali realizar os trabalhos sem sair do local
do Templo, preocupado com as deturpações já então existentes.
(ibidem)
Uma particularidade desses templos mencionados, e que hoje já não mais vigora,
reside no fato de que
a abertura dos trabalhos era efetuada por uma linha que hoje não mais
encontramos: a linha das Yaras que se apresentavam arrastando-se pelo
chão, como o fariam as sereias em terra seca, e promoviam a limpeza
do templo utilizando-se de água (idem).
No mais, na umbanda do Rio Grande do Sul são cultuados "caboclos",
"pretos-velhos" e "crianças" (Ibeji), aos quais não são
realizados sacrifícios de animais.12 Outrora era também cultuada a
"linha", ou "povo do oriente", hoje quase em extinção.
Segundo a representação dos umbandistas, tratavam-se de entidades bondosas,
bastante evoluídas e que transmitiam vibrações puras. Seus médiuns,
incorporados, adotavam a postura corporal e os gestos dos povos do Oriente:
chineses, indianos, árabes e ciganos. Nos trabalhos da casa de Pernambuco
Nogueira manifestavam-se duas entidades indianas: Brahmayana e Nargajuna.
Hoje o "povo cigano" foi transformado em Linha de Exu. Quanto aos
guias orientais, manifestam-se em poucas casas que trabalham com o que
denominam de Junta Médica.
A Linha Cruzada
Trata-se de uma expressão religiosa relativamente nova, iniciada, tudo indica,
na década de 1960. Constitui, porém, a que mais tem crescido neste estado,
sendo cultuada hoje em cerca de 80% dos terreiros. Segundo Norton Correa, esta
modalidade ritualística chama-se Cruzada
[...] porque, enquanto o Batuque cultua apenas orixás e a Umbanda
caboclos e pretos-velhos, a Linha Cruzada reúne-os no mesmo templo,
cultuando, alem deles, também os exus e suas mulheres míticas, as
pombagiras, provavelmente originários da Macumba do Rio de Janeiro e
São Paulo. (Correa, 1998a:48)13
Ainda segundo Correa, as principais razões para o crescimento da Linha Cruzada
seriam os seguintes: os custos dos rituais são mais baratos do que os do
batuque; o aprendizado geral é mais simples do que o do batuque; seus membros
podem reunir e somar a força mística do batuque com a da umbanda (ibidem:90).
A proliferação de terreiros cruzados tem se constituído num forte motivo de
polêmica e de acusação mútua entre os membros das religiões afro-brasileiras do
RS. Trata-se, em verdade, de um conflito em parte intergeracional, em que os
"mais velhos" na religião tendem a considerar essa inovação como uma
"deturpação" da religião dos orixás por parte dos mais jovens, ao
mesmo tempo em que expressa em parte também um conflito entre os
"conservadores" e os "modernos", as mudanças sendo
compreendidas pelos batuqueiros mais apegados à tradição como uma violação dos
fundamentos da religião.
De uma maneira geral, são extremamente precários os números acerca dos
terreiros existentes no Rio Grande do Sul, bem como a incidência de rituais
dentro das três modalidades religiosas acima referidas. Seja como for, e para
dar ao menos uma idéia de grandeza, sugiro que deva existir hoje cerca de
trinta mil terreiros em atuação14 neste estado, onde, em cerca de 80% deles são
celebrados rituais de Linha Cruzada, em 10% somente rituais de Umbanda
(caboclos e pretos velhos) e em 10% somente rituais de Batuque (nação).
Neste estado, como já assinalou Correa (1996), a estruturação das três
diferentes expressões religiosas afro-brasileiras acompanha, até certo ponto,
as mudanças que atingiram a própria estrutura da sociedade.
De fato, o batuque floresceu na segunda metade do século XIX e adaptou-se às
condições de um Rio Grande do Sul "tradicional", eminentemente agrário,
pois naquela forma religiosa a tradição regia a estrutura ritual com os orixás
formando uma grande família patriarcal. Os sacrifícios de animais não ofereciam
problemas num estado pastoril e em uma Porto Alegre onde havia ainda bairros
"rurais". As iniciações podiam ser longas, pois as relações de
trabalho eram ainda relativamente frouxas.
Já a umbanda se instalou no RS na década de 30 num quadro social em que a
implantação do capitalismo encontrava-se numa fase mais adiantada: a economia
se monetarizava, iniciava-se o processo de industrialização, já ocorria o êxodo
rural. O tempo tomava nova dimensão. As pessoas centravam suas vidas em tomo do
trabalho. A umbanda se adequou aos novos tempos: seus rituais não se
prolongavam noite adentro, não faziam uso de tambores e não realizavam
sacrifícios de animais. Dessa forma, os fiéis podiam cumprir suas obrigações
religiosas sem alterar o ritmo do cotidiano; não se prejudicava o sono dos
vizinhos e se levava em conta a diminuição dos espaços para criar os animais
que, além disso, se tornavam uma mercadoria cara.
A Linha Cruzada surgiu a partir da década de 60 numa fase de consolidação do
capitalismo com o conseqüente incremento de graves problemas, tais como
desemprego, insegurança, doenças, frustrações. Neste contexto, a Linha Cruzada
torna-se uma religião prática, pragmática, de serviço, que se especializa nas
soluções sobrenaturais daqueles problemas.
O Príncipe Custódio de Almeida
Detenho-me agora, mesmo que sucintamente, sobre um dos mais controvertidos
personagens do campo afro-gaúcho, um príncipe africano, herdeiro do trono de
Benin, que morou no Rio Grande do Sul de 1899, quando chegou à cidade de Rio
Grande, até 1935, quando faleceu em Porto Alegre.
Segundo informações colhidas por Maria Helena Nunes da Silva junto a diferentes
fontes bibliográficas, intelectuais africanos e, sobretudo, dois filhos
biológicos de Custódio este descendia da tribo pré-colonial Benis, dinastia
de Glefê, da nação Jeje, do estado de Benin, na Nigéria. Seu nome tribal era
Osuanlele Okizi Erupê, filho primogênito do Obá Ovonramwen (Silva, 1999).
Há diferentes versões sobre sua saída da terra natal. Todas, porém, estão
associadas à invasão britânica ao reino de Benin, em 1897, diante da qual não
se sabe ao certo se Osuanlele teria resistido, ou fugido, ou, então, feito um
acordo com os britânicos para deixar o país e viver no estrangeiro, onde
receberia mensalmente uma pensão do governo inglês (a mais provável). De fato,
Dionísio Almeida, filho de Custódio, relatou a Maria Helena que seu pai teria
deixado Benin em direção ao Porto de Ajudá, acompanhado por oficiais ingleses e
por parte do seu Conselho de Chefes, onde teria permanecido por cerca de dois
meses, dali embarcando para o Brasil, tendo chegado ao porto de Rio Grande em 7
de setembro de 1899, com uma comitiva formada de 48 pessoas, em sua maioria
membros do seu Conselho. Segundo aquele informante, antes de chegar a Rio
Grande Custódio teria estado em Salvador, depois no Rio de Janeiro, tendo se
estabelecido em Rio Grande por orientação dos orixás, através dos ifás.15
Custódio permaneceu nesta cidade até o dia 4 de outubro de 1900, quando se
transferiu para Pelotas, e no dia 4 de abril de 1901 veio para Porto Alegre, a
convite do então presidente do estado, Julio de Castilhos, que algumas semanas
antes o teria procurado em Pelotas como último recurso para remediar um câncer
que tomava conta de sua garganta. Como teve uma melhora temporária, teria
convidado Custódio a morar em Porto Alegre para continuar a tratá-lo nesta
cidade, o que não impediu, porém, a morte de Julio de Castilhos aos 43 anos de
idade, em 1903.
Em Porto Alegre, Custódio morou durante 35 anos na rua Lopo Gonçalves, na
cidade baixa. Mantinha-se com a pensão mensal que recebia do governo inglês,
via Banco do Brasil. Consta que se apresentava em público sempre bem vestido,
desfilava pela cidade com uma carruagem puxada por parelhas de cavalos brancos
e pretos, dedicava-se ao seu esporte preferido, o turfe, possuía um haras, era
proprietário e treinador de cavalos de corrida, nunca se casara e vivia em
situação poligâmica. "Haras" e "harem", sintetizam a vida
do Príncipe Custódio em Porto Alegre, disse-me um velho e bem informado
batuqueiro.
Consta também que a partir do seu primeiro contato para fins terapêuticos com o
presidente da Província, este e outros políticos da época, e mesmo o sucessor
de Julio de Castilhos, Borges de Medeiros, bem como Getulio Vargas, teriam
visitado o Príncipe em sua casa e este teria estado em várias oportunidades no
palácio do governo. Este é, porém, um tema controvertido, uma vez que à
primeira vista parece difícil que aqueles políticos, fervorosos positivistas,
procurassem o "feiticeiro" africano. Mas não seria ilógico pensar que
este nobre e político africano, durante os 35 anos de vida em Porto Alegre, não
pudesse ter sido socialmente contatado pelos políticos ou por membros da elite
local.
Também controvertido é o papel desempenhado por este Príncipe no que diz
respeito aos membros da sua etnia. No campo político, enquanto por um lado diz-
se que ele teria usado do seu prestígio para conquistar melhor espaço para os
negros locais e contribuído para aliviar o preconceito e a discriminação que
pesa sobre eles, por outro, recrimina-se que ele teria usado suas relações
políticas unicamente em favor dos membros da sua família, empregando-os no
serviço público, por exemplo, pouco ou nada fazendo para os negros em geral. No
campo religioso paira a mesma controvérsia. Por um lado, muitos são os pais e
as mães-de-santo de Porto Alegre que se dizem descendentes da linhagem
religiosa do Príncipe, defendendo que ele teria contribuído decididamente para
a estruturação do batuque na cidade, para o reconhecimento social do mesmo e
para diminuir as perseguições policiais; mas, por outro lado, afirma-se também
que ele não teria iniciado ninguém, pois sendo nobre não teria "posto sua
mão" em nenhum plebeu, e que teria atuado como religioso somente para as
elites e as pessoas de sua amizade e família.
Seja como for, segundo consta na sua certidão de óbito, Custódio morreu em 28
de maio de 1935, aos 104 anos, solteiro e deixando bens. Sua morte foi
noticiada nos jornais locais e seu enterro foi bastante concorrido, contando
inclusive com a participação de políticos da época.
Hoje o Príncipe Custódio constitui um mito no imaginário negro do Rio Grande
Sul e, como escreveu N. Correa, "a figura ainda hoje mais legendária que a
memória dos integrantes do Batuque guardam [...]" (Correa, 198a:77). No
entanto, quanto à sua vida e realizações, e às várias controvérsias que as
envolvem, trata-se de mais um tema à espera de pesquisadores que efetuem uma
investigação transatlântica.
Os Brancos nas Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul
O Rio Grande do Sul é uma sociedade multiétnica e pluricultural construída no
"encontro de civilizações", como diria Bastide, onde os nativos
indígenas viram seu território sendo ocupado pelos portugueses e espanhóis, aos
quais foram associados os escravos africanos e, posteriormente, os imigrantes
europeus, com destaque para os alemães e os italianos.16
Em termos gerais, hoje a composição multiétnica do Rio Grande do Sul é assim
constituída: 86,8% são brancos, 4,1% negros, 8,9% pardos e 0,2% indígenas
(PNAD, IBGE, 1999). Com estes números, o Rio Grande do Sul constitui o estado
mais "branco" do Brasil, depois de Santa Catarina.17
Ora, neste território multiétnico, malgrado a posição superior que os brancos
ocuparam em relação aos negros e aos índios, ocorreram, de alguma forma, trocas
culturais em diferentes direções, sendo uma delas a aproximação dos não-
brancos, de diferentes etnias e de diferentes camadas sociais, às religiões
afro-brasileiras.
É praticamente impossível saber quando este encontro começou a ocorrer. Tudo
indica, porém, que data ainda do século XIX, tendo aumentado nas primeiras
décadas do século XX e se consolidado a partir da segunda metade daquele
século, quando, então, há notícias de brancos que ocupam a condição de pais e
mães-de-santo. Este fenômeno, como se sabe, ocorreu em praticamente todo o
Brasil, chegando ao ponto em que hoje, em algumas regiões, como escreve Prandi,
referindo-se a São Paulo, "o Candomblé é uma religião que não pode ser
caracterizada como uma religião de negros" (Prandi & Silva, 1987:4).
Trata-se, antes, de religiões multiétnicas e universais (Prandi, 1991).
A procura de terreiros por parte dos brancos pobres geralmente está associada à
busca de solução para problemas práticos como doenças, desemprego ou
dificuldade econômica, ou problemas legais, geralmente relacionados à sua
condição desfavorável de classe. Já os brancos de maior poder aquisitivo o
fazem na busca de solução de problemas existenciais como os de sentido,
identidade, afetivos, etc. Também o caráter misterioso, exótico e fascinante da
religião dos orixás, associado à sua eficácia simbólica, contribui para a
atração de brancos.
Diga-se de passagem que as mesmas ou semelhantes razões apontadas para a
aproximação dos brancos das camadas populares aos terreiros servem também para
os negros ingressarem neles. No entanto, não se pode imaginar uma convivência
harmônica entre negros e brancos nos terreiros multiétnicos gaúchos. Ocorre
aqui uma espécie de tolerância mútua ou, como Silva e Amaral referiram para São
Paulo, uma
espécie de negociação velada onde os brancos, com dinheiro, tornam-se
necessários à própria sobrevivência do terreiro de maioria negra e,
assim, o que é visto como negativo (a entrada dos brancos no
candomblé) acaba adquirindo sinal positivo, já que a concessão é
necessária à manutenção das despesas da casa. (Silva & Amaral,
1994:17)
Em outras palavras, parece prevalecer no Rio Grande do Sul a representação
negra segundo a qual é importante a presença simultânea de brancos e de negros
nos terreiros por serem, os primeiros, detentores principalmente de capital
econômico e os segundos principalmente de capital simbólico, religioso, dado
pela tradição. Evidentemente que os atores sociais implicados no processo nem
sempre possuem esta consciência dos fatos. É mais recorrente neles a afirmação
de que "o axé não tem cor".
No entanto, há terreiros multiétnicos onde o preconceito de cor tende a se
manter. Isto se dá especialmente quando os brancos implicados na religiãodetêm
pouca consciência da origem africana desta e não realizam uma aproximação mais
efetiva com a etnia negra. Há outros terreiros multiétnicos, porém, onde até
certo ponto e por um tempo limitado parece haver uma suspensão dos preconceitos
raciais; neste caso, negros e brancos juntam-se no espaço religioso para se
divertir, rezar e fortalecer uma identidade social comum.
Os terreiros multiétnicos a que me refiro reúnem especialmente pessoas das
camadas populares. Isto porque os terreiros de camadas médias tendem a ser
predominantemente freqüentados por brancos, enquanto os terreiros de camadas
altas são freqüentados quase que exclusivamente por brancos. Em todos eles,
como mostrei em outro lugar (Oro, 1998), são reproduzidas as desigualdades
raciais encontradas na sociedade gaúcha (e brasileira).
A Expansão das Religiões Afro-Brasileiras para os Países do Prata
Um outro aspecto que sobressai no estudo do atual campo religioso afro-gaúcho
consiste na importância que ele tem para o ressurgimento e introdução das
expressões religiosas de matriz africana nos países do Prata. Com efeito, a
Argentina já teve uma história de reprodução dessas religiões até o final do
século XIX, quando os atabaques, tocados até então pela comunidade afro-
argentina, silenciaram em razão do abrupto declínio desta população.18 Já no
Uruguai, não consta ter havido uma histórica prática religiosa africana, mas
importantes expressões musicais de origem africana como o
candombe
.19 No entanto, em ambos os países, a partir da década de 60 do século passado,
verifica-se o reingresso (na Argentina) e a introdução (no Uruguai) das
religiões de matriz africana, sobretudo através do Rio Grande do Sul.
Este processo ocorreu primeiramente nas cidades platinas fronteiriças com o Rio
Grande do Sul e dali alcançaram as capitais federais. Deveu-se a iniciativas
que partiram de ambos os lados da fronteira, ou seja, de pais e mães-de-santo
brasileiros que procederam à expansão da religião para os países platinos e de
cidadãos desses países que procuraram terreiros brasileiros.
Na década de 70, o fluxo se estendeu até Porto Alegre, onde se localizava o
maior número de renomados batuqueiros que passaram a ser visitados por
argentinos e uruguaios. Estes para aqui vinham em busca de iniciação religiosa
junto a um famoso pai ou mãe-de-santo, ao mesmo tempo em que buscavam o
reconhecimento oficial da sua condição de iniciados, ou sacerdotes, junto a uma
federação local. Sem tais documentos, tinham muitas dificuldades de praticar a
religião em seus países, sobretudo na Argentina, podendo até mesmo sofrer
perseguições policiais.
O período áureo das relações religiosas internacionais platinas ocorreu na
década de 80. Em relação à Argentina deu-se sobretudo após o retorno à vida
democrática, em 1983 (Frigerio & Carozzi, 1993), enquanto no Uruguai o
crescimento do número de terreiros e o incremento das relações religiosas com o
Brasil coincidiram com o período ditatorial, que se estendeu até 1985 (Hugarte,
1993).
Na década de 90 ocorreu um arrefecimento das relações religiosas entre gaúchos
e platinos e isto se deveu, segundo o discurso dos pais e mães gaúchos, à crise
econômica que se abateu sobre aqueles países, sobretudo na Argentina, que
reduziu os investimentos das pessoas na religião, embora não tenha diminuído o
interesse pela mesma. Mas há um não-dito: o arrefecimento também se deveu à
concorrência religiosa que estão sofrendo naqueles países. Ou seja, se até o
início da década de 90 havia uma relação relativamente assimétrica, mas
aceitável, entre os pais e mães gaúchos e seus filhos platinos os primeiros
colocando-se numa posição hierárquica superior a partir deste período
estabeleceu-se uma relação conflituosa entre alguns, senão a maioria dos pais-
de-santo gaúchos (cerca de 15 pessoas), que participam do circuito religioso
platino, sobretudo argentino, e os seus colegas deste país, posto que estes
últimos passaram a disputar poder pela ocupação do espaço religioso afro-
brasileiro e pelo exercício legítimo do sacerdócio naquele país.
Apesar disto, nos dias atuais continuam as viagens de membros das religiões
afro-brasileiras nos diferentes sentidos e foram criadas verdadeiras redes
internacionais de parentesco simbólico, as quais constituem denominadores de
fronteiras sociais e simbólicas que contribuem para a construção de verdadeiras
identidades transnacionais. Ao mesmo tempo, essas redes constituem uma forma de
integração regional/internacional, legitimada religiosamente, mediatizada pelas
religiões afro-brasileiras, onde a nacionalidade e as diferenças sociais e
ideológicas não são anuladas, mas superpostas à religiosa.
Evidentemente que a construção de identidades não significa a formação de
comunidades (no sentido tradicional do termo) internacionais. Igualmente, a
integração e a formação internacionais de redes de famílias-de-santo não
significa que as relações entre os seus membros sejam harmônicas. Elas
continuam a reproduzir o ethos de rivalidade e aliança que caracteriza o campo
religioso afro-brasileiro.20
As Religiões Afro-Brasileiras no Rio Grande do Sul e suas Relações com o Poder
Político Local
Nos últimos anos, as religiões afro-brasileiras parecem ter conseguido, em
Porto Alegre, uma aproximação não alcançada até então, e em nenhum outro local
do estado, com o poder público local. É sobretudo nas gestões do PT na
prefeitura, especialmente na segunda e na atual, em que o chefe do Executivo é
Tarso Genro,21 que aquelas religiões conseguem lograr apoios e interagir
diretamente com o gabinete do Prefeito e com algumas secretarias, como da
Cultura e do Meio Ambiente, tudo isto ocorrendo, porém, não sem conflitos.22
Assim, em Porto Alegre, mediante Lei Municipal, e por intermediação da
Secretaria Municipal da Cultura e da Câmara Municipal de Porto Alegre, desde o
ano de 1996 comemora-se a Semana da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros.Os
eventos desta Semana são compostos de palestras e rituais, celebrados no Parque
da Harmonia, no centro da cidade. Iniciam-se no dia 15 de novembro com uma
sessão de Umbanda e encerram-se em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência
Negra, com uma sessão de Batuque. Nestes eventos comparecem autoridades civis,
membros das religiões afro-brasileiras, além de simpatizantes, curiosos e o
povo em geral.
Outra atividade pública semelhante a essa, e que também consta como Lei
Municipal de Porto Alegre, é a Festa da Oxum, celebrada desde 1996 em todos os
dias 8 de dezembro, na praia de Itapema, diante da imagem deste orixá erguida à
beira do Rio Guaíba. Nesta ocasião ocorre também uma sessão religiosa na praia
em homenagem à deusa das águas doces.
É digno de nota que ambas as atividades referidas, a Semana da Umbanda e a
Festa da Oxum, constam no calendário de eventos da prefeitura de Porto Alegre.
Outra iniciativa de parceria com o poder público ocorreu entre as três maiores
federações do estado (Conselho Superior da Umbanda e dos Cultos Afro-
brasileiros, Afrobras e Aliança Umbandista e Africanista do Estado) e as
Secretarias Estadual e Municipal do Meio Ambiente, ao editarem um caderno de
orientação intitulado "A Educação Ambiental e as Práticas das Religiões
Afro-Umbandistas", com o objetivo de "orientar as Casas de Religião e
funcionários do poder público municipal e estadual sobre procedimentos em
relação a cultos e colocação de trabalhos religiosos no meio ambiente".
Trata-se de um manual de aconselhamentos em relação às oferendas, tendo como
pressuposto a preservação da natureza.
As federações acima mencionadas também conseguiram, junto ao poder público
municipal e à Assembléia Legislativa do estado, o apoio financeiro e logístico
para realizar anualmente um Seminário Cultural e Teológico da Umbanda e dos
Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Rio Grande do Sul. Trata-se de um
seminário que desde a sua primeira edição, em 1996, é celebrado no salão nobre
da Assembléia Legislativa do estado e conta com palestrantes oriundos do
próprio campo religioso em questão e de pesquisadores dos mencionados cultos,
provenientes de diferentes regiões do Brasil e dos países do Prata. O seminário
tem duração de três dias e dele participam em média 400 pessoas.
Principalmente neste evento, mas também nos demais referidos, nota-se sempre a
presença de políticos, dos Executivos e Legislativos, municipal e estadual, de
distintos partidos.
Outra forma de aproximação do campo religioso afro-brasileiro com o político
ocorre através de outorga de comendasetítulos honoríficos, com que os governos
locais distinguem alguns líderes destas religiões. Assim, por exemplo, o
babalorixá Cleon (Fonseca) de Oxalá recebeu das mãos do então governador do
Estado do Rio Grande do Sul, Antônio Brito, em 30/6/1996, a medalha Negrinho do
Pastoreio, a mais alta comenda do estado. Três pais-de-santo receberam na
Câmara Municipal de Porto Alegre o título de cidadãos de Porto Alegre. São
eles: Ailton (Albuquerque) da Oxum, Jorge (Verardi) de Xangô e Adalberto
Pernambuco Nogueira o primeiro nascido em Pelotas (RS), em 3/11/1945, o
segundo em Cruz Alta (RS), em 19/10/1949, e o terceiro em Belém do Pará, em 3/
11/1928.
O último agraciado, Adalberto Pernambuco Nogueira, é presidente do Conselho
Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul (CEUCAB/
RS), e uma das maiores lideranças desta religião no estado. Devido o seu
carisma e bom trânsito na esfera pública, tem contribuído para as religiões
afro-brasileiras conquistarem maior e melhor espaço tanto no campo político
quanto no campo religioso institucional. Na área política tem participado,
enquanto representante das religiões afro-brasileiras, no Conselho Político de
Campanha da Frente Popular (formado então por cerca de 160 pessoas de destaque
das várias áreas de atuação social e profissional) por ocasião das últimas
eleições municipais de 2000, e atualmente integra o Conselho Político de
Governo da Frente Popular (formado por cerca de 300 pessoas). Igualmente, a
partir de janeiro deste ano foi escolhido como membro do Conselho Municipal de
Cultura.
Além destas atividades no meio político, Pernambuco Nogueira é o representante
mais solicitado das religiões afro-brasileiras por ocasião de celebrações
ecumênicas, ocorridas, por exemplo, por ocasião das posses do governador do
estado e do prefeito municipal, no dia do aniversário da cidade de Porto Alegre
(26 de março), no dia das Mães e na celebração de 25 de agosto, dia de São
Cristóvão, padroeiro dos motoristas.
Em tais cultos ecumênicos comparecem representantes da igreja católica, da
igreja luterana, do islamismo, do budismo, do judaísmo, do espiritismo, além
dos cultos afros.
Mas, se, de um lado todos os fatos acima mencionados revelam uma aproximação
que, como já disse, não ocorre sem tensões entre as religiões afro-
brasileiras e o poder político no Rio Grande do Sul, por outro lado, os
representantes dessas religiões não logram ingressar diretamente no campo
político mediante a condução pelo voto. Ou seja, malgrado as tentativas para
sua viabilização de parte de alguns renomados pais, não conseguiram eleger
nenhum seu representante nas Câmaras Municipais e muito menos na Assembléia
Legislativa do estado. O único precedente neste sentido data da década de 1960,
quando o umbandista Moab Caldas foi eleito para a Assembléia Legislativa do
estado, pelo PTB de Leonel Brizola e Jango Goulart, e reeleito nos anos de 1964
e 1968. Foi cassado em 1968, vindo a falecer em 1997.23 Também no ano de 1960
foram eleitos 3 prefeitos e cerca de 20 vereadores umbandistas no Rio Grande do
Sul.
Após este período não parece ter havido mais presença efetiva de membros desta
religião em cargos eletivos no Rio Grande do Sul, malgrado algumas tentativas,
como a do babalorixá Ailton Albuquerque, de Porto Alegre, que se apresentou às
eleições legislativas gaúchas nas últimas eleições de 1998 pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB). Não logrou se eleger, tendo obtido 3.425 votos,
quando o mínimo necessário situa-se em torno de dez mil, dependendo da situação
da legenda.
Nas eleições de 2000 não consta ter havido algum líder desta religião que tenha
sido eleito em algum município do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, entre os
411 candidatos a vereador para a Câmara Municipal, havia 5 representantes das
religiões afro-brasileiras, 4 pais-de-santo e 1 presidente de um famoso
terreiro. Foi, entre eles, o presidente da Federação Afrobras quem obteve o
maior número de votos, 1.994, este montante representando, porém, somente um
quarto dos votos necessários para ser eleito. Os demais candidatos obtiveram
1.668, 1.109, 451 e 421 votos, totalizando, juntos, 5.643 votos, quantia
insuficiente para eleger um único candidato.24
O discurso eleitoral veiculado pelos pais-de-santo de Porto Alegre para dentro
da "comunidade" afro-umbandista era fundamentalmente o mesmo: a
necessidade de a "religião" ter representantes no legislativo
municipal para defender os seus direitos e para mostrar sua força perante a
sociedade e, sobretudo, perante os evangélicos (pentecostais), que estão
ampliando seu espaço na política e se mostrando abertamente críticos em relação
às religiões afro-brasileiras. Ora, este discurso não produziu a eficácia
esperada pelos candidatos e, a meu ver, isto se deve, sobretudo, à própria
estrutura e ao ethos das religiões afro-brasileiras.
De fato, o modelo organizacional das religiões afro-brasileiras repousa sobre
uma variedade de federações e uma pulverização de terreiros, sendo todos ao
mesmo tempo autônomos e rivais entre si. Como não existe, no âmbito desta
religião, uma única hierarquia religiosa, um poder centralizador e aglutinador
dos centros religiosos, estes constituem-se autônomos e, por isso mesmo,
concorrentes entre si. Em conseqüência disso, reconhece o candidato a vereador
Jorge Verardi, presidente da Afrobras, "cada um procura sua própria
autopromoção". "Não temos a organização dos aleluia", disse uma
mãe-de-santo.
Ora, este ethos constituído de permanente disputa, rivalidade entre terreiros e
desqualificação do outro, torna, como reconhece R. Prandi, bastante remota a
possibilidade de união entre terreiros e grupos, mesmo em se tratando de
proveito para a religião (Prandi, 1991:163).25
Considerações Finais
Malgrado os avanços alcançados nos últimos anos pelas ciências sociais e
humanas na compreensão da história e do presente do negro e sua cultura no Rio
Grande do Sul, muita coisa ainda resta a ser investigada.
Talvez não pese hoje tão forte como há alguns anos atrás a frase escrita em
1940 pelo historiador D. de Laytano quando afirmava que "os nossos
cronistas, os historiadores de compêndios oficiais e toda a literatura gaúcha
não se ocuparam do negro senão acidental, ligeira e negligentemente"
(Laytano, 1940). No entanto, malgrado produções recentes, permanece atual a
exortação de outro historiador, Mário Maestri Filho: "a história do
escravo sulino, proto-história do proletariado gaúcho, ainda está por escrever-
se" (Maestri Filho, 1979:67). Especificamente sobre as origens do negro
gaúcho, escreveu que "não sabemos rigorosamente nada" (idem, 1993:
30), enquanto Norton Correa afirmou que "ainda não foram perfeitamente
esclarecidas as origens das populações trazidas como escravos para o Rio Grande
do Sul" (Correa, 1998a).
A explicação para a desconsideração do negro pela academia, mas não só ela,
pode residir, como salienta R. Oliven, no próprio processo de construção
política e cultural do Rio Grande do Sul, onde ocorreu um interesse massivo e
concentrado em torno da figura do gaúcho que foi elevado à condição de
"autêntico" representante desse território e do colonizador
europeu, em detrimento de outros grupos sociais aqui presentes desde o
princípio da colonização, como os negros e os índios. Estes parecem condenados
ao silêncio e ao esquecimento e comparecem no âmbito das representações de uma
forma extremamente pálida. Particularmente quanto ao negro prevalece uma
invisibilidade social e simbólica (Oliven, 1996) ao mesmo tempo em que ainda
predomina, no Rio Grande do Sul, a auto-imagem de um estado branco e moderno,
construído pelas figuras "heróicas" dos gaúchos e dos imigrantes
europeus e seus descendentes.
No contexto de exclusão do negro e sua cultura no Rio Grande do Sul figura
também o batuque, cuja história, linhagens, tradições religiosas e repressão
policial, permanecem ainda com lacunas, incógnitas e dúvidas não resolvidas,
como pudemos constatar neste trabalho.
Notas
1.
Por se tratar de um texto que pretende ser, até certo ponto, um vôo panorâmico
sobre as religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, este será,
necessariamente, superficial em alguns aspectos; porém, essa deficiência poderá
ser em parte sanada com as indicações bibliográficas respectivas para os
interessados.
2.
Ou seja, atuaram como mão-de-obra nos engenhos de açúcar de Pernambuco e
Bahia, na mineração aurífera de Minas Gerais, nos campos de fumo e cacau da
Bahia e Sergipe, no cultivo do café do Rio de Janeiro e São Paulo, no algodão
do Maranhão e Pará, nas plantações de café também cultivado no Espírito Santo,
na agricultura e pecuária do Rio Grande do Sul e na mineração de Goiás e Mato
Grosso.
3.
Sabe-se que durante algum tempo o envio para o Sul era tido como um pesado
castigo e forte ameaça aos escravos desobedientes, por parte dos patrões de
outras regiões do Brasil.
4.
De fato, ao efetuar uma comparação entre o candomblé da Bahia e o batuque o
Rio Grande do Sul, Herskovits propunha a hipótese de que a existência do
africanismo no Rio Grande do Sul resulta de um trabalho independente e
paralelo, "de idênticos impulsos culturais africanos primitivos".
Ponderava, porém, de que tal hipótese deveria ser revista com os avanços dos
estudos historiográficos "sobre a migração negra dentro do Brasil e da
procedência tribal africana dos negros importados para a parte sul do
país" (Herskovits, 1948:64).
5.
"Embora ocupada desde os meados do século XVIII por colonos açorianos,
Porto Alegre só começou a se desenhar após 1772, quando se deu a primeira
demarcação do espaço urbano e a distribuição de datas de terras para esses
açorianos. Só então a condição de ponto estratégico daquele sítio vai
transfigurar-se em funções comerciais e político-militares" (Kersting,
1998:61). A instalação de Porto Alegre como capital da província ocorre em
1773. Sua população era de 1.500 habitantes em 1780 e 12.000 em 1820.
6.
"Era uma região insalubre, fora do centro urbano, habitada por uma
população pobre, essencialmente negra, estigmatizada pelos órgãos oficiais,
pela imprensa e por tudo aquilo que era considerado sociedade na época"
(Kersting, 1998:148). A palavra "Areal" tem sentido ambíguo. Trata-se
de uma corruptela da palavra Arraial, mas também área de depósito de areia do
fluxo da foz do riacho Ipiranga com o rio Guaíba. A palavra
"Baronesa" refere-se à proprietária dessa chácara, de então, a
Baronesa do Gravataí.
7.
"Como limites mais ou menos definidos da Colônia Africana, podemos
estabelecer a Rua Ramiro Barcelos, a Avenida Protásio Alves (antigo Caminho do
Meio) até a altura da Rua Dona Leonor, seguindo pela parte alta até
aproximadamente o atual Instituto Porto Alegre (IPA), e deste até a rua Castro
Alves, descendo por essa até a Ramiro Barcelos, de onde partimos"
(Kersting, 1998:102).
8.
O número de moradores dessas áreas não é preciso. Relativamente à Colônia
Africana, era de 3.460 em 1910; 4.299 em 1912 e 5.636 em 1917. Estes números
correspondem respectivamente a 2,66%, 2,92% e 3,15% do total da população de
Porto Alegre nesses anos (Kersting, 1998:128-129).
9.
Este autor mostra como a análise dos registros de ocorrências policiais da
virada do século em relação à Colônia Africana não são superiores às de outras
áreas da cidade, mesmo o centro, considerado "civilizado" e
"moderno". Entretanto, sobre este não foram construídas
representações sociais excludentes como em relação àquele território negro da
cidade (Kersting, 1998).
10.
A expulsão se dá mediante a expansão da cidade com a conseqüente valorização
da área, que implica em aumento de impostos, impossível de ser pago por
moradores de baixa renda.
11.
São os seguintes os principais orixás cultuados no batuque: Bará, Ogum, Oiá,
Xangô, Odé (Otim), Ossanha, Obá, Xapanã, Bêdji, Oxum, Iemanjá e Oxalá. O anexo
I apresenta um conjunto de elementos vinculados a cada um desses orixás,
segundo a tradição batuqueira gaúcha.
12.
Segundo Paulo Tadeu B. Ferreira, na Nação Cabinda, por exemplo, a língua
ritualística deveria ser o Bantu (Kunbundo) e os deuses chamados de Inkices. Na
prática cultuam-se os orixás em lingua yorubana. Na Nação Jeje (Jeje), a língua
deveria ser o Ewe e os deuses os voduns. Na prática adotam o mesmo procedimento
da Cabinda, que é o mesmo do Ijexá e do Oyó (Ferreira,1997:42).
13.
O anexo_II apresenta algumas especificações das entidades acima mencionadas.
14.
O anexo_III apresenta os nomes e algumas concepções relativas às principais
entidades da Linha Cruzada praticada no Rio Grande do Sul.
15.
Este montante é aproximado, mesmo porque "terreiro" é uma categoria
ampla que reúne desde um congá familiar onde seu dono recebe clientes para
"jogar", até um espaço onde são realizados rituais de distintas
expressões religiosas afro-brasileiras no âmbito de uma comunidade religiosa
local. Seja como for, mesmo os terreiros no Rio Grande do Sul, segundo esta
última observação, podem ser considerados de tamanho pequeno ou médio, pois o
número médio de freqüentadores situa-se entre 10 e 30 pessoas, sendo reduzidos
os terreiros que reúnam num único espaço ritualístico em torno de 100 pessoas.
16.
Eis, textualmente, o depoimento de Dionísio:
"[...] o Forte de São João Batista de Ajudá era comandado por um baiano, o
qual tornou-se amigo do papai e indicou-lhe a Bahia como lugar adequado para
viver no Brasil. Isto porque José Maria só conhecia a Bahia, nada sabendo dos
outros estados brasileiros. Quando Osuanlele chegou à Bahia ele jogou novamente
seus ifás e, em resposta, obteve que ainda não era aquele lugar o escolhido. Da
Bahia ele foi para o Rio de Janeiro. Conheceu algumas pessoas que professavam a
religião africana. Bem, na Bahia ele também conheceu importantes figuras que
estavam ligadas diretamente à religião africana. Lembro que ele nos dizia que
tinha muitas coisas que ele entendia sobre a sua religião. Homenagens foram
feitas a ele" (Dionísio, 13/5/1988 apud Silva, 1999:71).
17.
De fato, os alemães desembarcaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, tendo
chegado a mais de 60.000 indivíduos até 1939. Os imigrantes italianos, por sua
vez, chegaram a partir de 1875 e a última vaga desembarcou em 1914. Neste
período, entre 70.000 e 100.000 italianos se estabeleceram no Rio Grande do
Sul.
18.
Segundo a mesma fonte, a distribuição étnica de Santa Catarina é de 91,0% de
brancos, 2,1% de pretos, 6,4% de pardos e 0,5% são índios (PNAD, IBGE, 1999).
19.
O último depoimento sobre um ritual religioso de tipo afro-americano em Buenos
Aires é de 1903 (Segato, 1991). Ainda segundo esta autora, a população negra
era de 30% em Buenos Aires no início do século passado e caiu para 2% no final
do mesmo século. As causas mais importantes do desaparecimento dessa população
foram as guerras e as pestes. É possível também que seus últimos componentes
tenham emigrado para o Sul do Brasil. Rita Segato aponta, no entanto, que o
desaparecimento do negro na Argentina foi antes ideológico, cultural e
literariamente construído, do que propriamente físico. Ou seja, na imagem que
os políticos e os intelectuais argentinos se fizeram de nação homogênea e
depurada não havia lugar para o negro (id. ibid.).
20.
Para uma análise sobre o candombe uruguaio ver Ferreira (1997).
21.
Para uma análise mais aprofundada do processo de transnacionalização das
religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul para os países platinos ver Oro
(1999).
22.
O PT está no comando da prefeitura de Porto Alegre há 12 anos, tendo sido
prefeitos Olívio Dutra (1989-1992), Tarso Genro (1993-1996), Raul Pont (1997-
2000) e Tarso Genro (2001-2004).
23.
Talvez o conflito maior resida na própria administração municipal e,
sobretudo, no interior do PT, onde vozes do partido, movidas por brios
ideológicos, se erguem em desaprovação às relações estabelecidas pelos
organismos executivos com as religiões afro-brasileiras e, mesmo, com as
religiões em geral.
24.
Diana Brown recorda que em 1960 os umbandistas também elegeram para a
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro Atila Nunes um radialista umbandista
que havia sido eleito vereador em 1958 (Brown, 1985). Maria Helena Villas-Boas
Concone e Lísias Nogueira Negrão fazem uma análise histórica dos distintos
momentos da relação da umbanda com a política e o estado, onde prevaleceu a
perseguição até o golpe de 1964 e a sua cooptação política a partir de então.
Mais especificamente analisam o envolvimento político-partidário da umbanda
paulista nas eleições de 1982 e analisam a derrota dos candidatos umbandistas
(Concone e Negrão, 1985).
25.
No entanto, não estamos emitindo nenhum juízo de valor sobre este permanente
conflito entre líderes de terreiros das religiões afro-brasileiras. Há mesmo
alguns autores, como N. Correa que, baseado em G. Simmel, levanta a hipótese de
que o conflito referido não representa algo negativo na vida social dessas
religiões, posto que ele constitui a chave para explicar a permanência
histórica e o crescimento das religiões afro-brasileiras, em razão do seu papel
também construtivo e agregador em termos sociais (Correa, 1998b).