O mercado e a norma: o Estado moderno e a intervenção pública na economia
O presente ensaio procura analisar o problema das relações entre o Estado e o
mercado, entre a democracia e o desenvolvimento, a partir da clássica
proposição segundo a qual a plena operação de uma economia de mercado requer a
existência de um Estado formalmente institucionalizado, não só para assegurar a
operação impessoal das normas vigentes, mas também para atuar distributivamente
de maneira a minimizar as inevitáveis externalidades provocadas pela
intensificação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do
mercado favorece. Aqui - além da reafirmação dessa tese em sua dimensão
estática, sincrônica - buscar-se-á também fundamentar a proposição -
sob uma perspectiva dinâmica, diacrônica do mesmo problema - de que a
expansão da operação do mercado tem levado na modernidade a uma expansão
concomitante da esfera de atuação do Estado, e que seria ainda no mínimo
precipitado pretender identificar na moda ideológica neoliberal das últimas
décadas uma reversão dessa tendência histórica. Embora seja relevante a esse
propósito lidar com processos que aparentemente têm origem sobretudo no plano
do substrato material da vida social e seus efeitos na arena política (ver
Bruno Reis, 1997, pp. 42-107), pretendo ater-me precipuamente à direção causal
inversa, num plano mais contextualizado, para discutir os efeitos que a
operação da política produz sobre a dinâmica econômica e, mais precisamente,
sobre a condução política do funcionamento da economia em sociedades modernas.
Assim, na seção 1, procuro caracterizar, de maneira breve, as relações do
mercado com alguns atributos centrais da sociedade moderna - e para isso a
exposição apóia-se fundamentalmente no tratamento dado ao tema por Max Weber.
Na seção 2, discutem-se os efeitos produzidos sobre o funcionamento do Estado
pela operação (e progressiva afirmação e preeminência) do mercado na sociedade
moderna e a lógica da expansão histórica da atuação estatal sobre diversas
esferas da vida social ao longo dos últimos séculos.
1. O lugar do mercado
A análise dos atributos e das funções do mercado ocupa, naturalmente, um lugar
proeminente no tratamento das relações entre política e economia de que nos
ocuparemos daqui por diante. Assim, num primeiro momento baseio-me em certo
fragmento de Max Weber para perseguir uma especificação de natureza sociológica
do fenômeno do mercado, com o propósito de estabelecer algumas teses
preliminares que serão cruciais à exposição subseqüente, em que procuro
discorrer brevemente sobre o clássico tema das relações do mercado com a
sociedade moderna, a democracia e o Estado moderno.
1.1 Mercado em Weber e a sociedade moderna: a socialização entre estranhos
Entre a grande quantidade de anotações pessoais que os herdeiros de Max Weber
transformaram no volume póstumo Economia e sociedade, há um pequeno fragmento
incompleto sobre o mercado (Weber, 1994, pp. 419-422), que quero tomar como
ponto de partida do presente trabalho. Pois o mercado é uma categoria que tem
sido em larga medida abandonada aos economistas, e o que habitualmente
encontramos sobre ele são polêmicas insolúveis - de forte conteúdo
doutrinário - acerca de seu comportamento dinâmico: anárquico para os
marxistas, estável ou tendente a um equilíbrio para os economistas neoclássicos
(ou mesmo "positivamente" anárquico para a escola austríaca de Hayek e Von
Mises). Raramente identificaremos na literatura a preocupação com uma apreensão
conceitual do fenômeno do mercado. De fato, talvez a operação do mercado esteja
por demais no centro das preocupações da economia moderna para que o economista
se preocupe em definir o mercado (da mesma forma, por exemplo, que a biologia e
a física não perdem muito tempo definindo a vida e a matéria, embora isso
esteja longe de ser uma empresa trivial). Talvez a tarefa pertença antes aos
sociólogos, que encontrarão no mercado uma forma de interação entre outras
possíveis e, assim, não terão como escapar à identificação de seus atributos
distintivos. Sob esse ponto de vista, o pequeno esboço de Weber presta um
serviço notável, pela densidade e riqueza analítica, atento às múltiplas
ambigüidades do fenômeno, que nos ajudam a compreender as disputas que
alimenta.
O primeiro choque que a leitura do texto weberiano provoca é a caracterização
final do mercado como uma relação comunitária (Gemeinschaft) - em que a
atitude na ação social repousa no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional)
dos participantes de pertencer ao mesmo grupo (constituir um todo) -, e não
uma relação associativa (Gesellschaft) - em que a atitude na ação social
repousa num ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados.1 Embora
afirme que o mercado é "arquétipo de toda ação societária racional", que só há
mercado onde há uma pluralidade de interessados na troca, e que a barganha é
traço imprescindível da caracterização do fenômeno específico do mercado, Weber
fala claramente de "comunidade de mercado". Mas, efetivamente, trata-se de uma
comunidade bastante sui generis:
[...] do ponto de vista sociológico, o mercado representa uma
coexistência e seqüência de relações associativas racionais, das
quais cada uma é especificamente efêmera por extinguir-se com a
entrega dos bens de troca [...]. A troca realizada constitui uma
relação associativa apenas com a parte contrária na troca (Weber,
1994, p. 419).
Cada troca é caracterizada como uma relação associativa, que se esgota no
interesse que cada uma das partes deve ter no bem trocado. Ademais, cada uma
delas constitui uma sociedade efêmera, que se extingue no ato da troca.2
Contudo, o mercado resulta ser uma comunidade constituída das trocas -
dessa miríade de "sociedades racionais, coetâneas e sucessivas", além de
efêmeras. O fato de eu pertencer ou não a um mercado - minha condição de
comprador ou vendedor potencial de mercadorias - não está sujeito a
qualquer decisão racionalmente motivada de minha parte (traço definidor da
relação associativa), mas é uma condição objetivamente compartilhada com outros
de meus concidadãos a partir de certos atributos e circunstâncias socialmente
identificáveis: pelo menos, minha posse objetiva de certos bens materiais em
princípio trocáveis (mercadorias potenciais) e o reconhecimento de meu direito
a essa posse. Se não for assim, nenhuma troca é sequer possível, pois -
sublinha Weber - toda barganha preparatória, na medida em que reconhece
tacitamente direitos recíprocos, é um ato comunitário, assim como toda troca
que utiliza dinheiro requer ou funda uma comunidade, na medida em que presume
confiança no valor coletivamente (comunitariamente?) atribuído a um objeto
destituído de valor intrínseco - a moeda.
Assim, a apreensão weberiana do conceito de "mercado" identifica nele a forma
de socialização por excelência que é simultaneamente interessada ("societária")
e solidária ("comunal"): no mercado, há um reconhecimento evidente de que todos
podem legitimamente perseguir apenas o seu próprio interesse individual, e a
forma de interação que o constitui - a troca - pode perfeitamente se
dar sem que qualquer dos participantes se preocupe por um instante sequer com o
bem-estar do outro; não obstante, não menos importante na configuração da
relação de mercado é o reconhecimento universal de que cada um é portador de
direitos que não podem em hipótese alguma ser violados - caso contrário,
não há troca, mas roubo: um crime. É por isso que Weber afirmou que o mercado é
originariamente a forma de socialização possível entre inimigos - de
maneira genérica, pode-se dizer que se tornou a forma típica de socialização
entre estranhos.3 Reconhece-se, de saída, que os dois participantes de uma
troca não precisam se importar um com o bem-estar do outro, mas, paradoxalmente
que seja, ainda assim é uma forma de relação interpessoal que preserva uma
dimensão comunal, porque ambos reconhecem tacitamente que são portadores de um
determinado elenco de direitos comuns, e esperam do outro a observância desses
direitos - pertencendo ambos, portanto, a alguma forma de comunidade.
Essa ambigüidade fundamental é patente na passagem abaixo, que não deixa de
ecoar a tese marxiana sobre o "fetichismo da mercadoria":
A comunidade de mercado como tal constitui a relação vital prática
mais impessoal que pode existir entre os homens. Não porque o mercado
implica a luta entre os interessados. Toda relação humana [...] pode
significar uma luta com a outra parte [...]. Mas porque ele é
orientado de modo especificamente objetivo, pelo interesse nos bens
de troca e nada mais (Weber, 1994, p. 420).
Não passou desapercebido a Weber, portanto, o que pode haver de repugnante no
mercado em conseqüência da frieza e da impessoalidade de sua operação. Ele
reconhece que o mercado é, efetivamente, "estranho a toda confraternização", e
que toda ética condena a prática do "mercado livre" entre irmãos. Mas é, ao
mesmo tempo, e por essa mesma razão, a única relação "formalmente pacífica"
entre estranhos. Assim, a fetichização da mercadoria e a reificação dos seres
humanos identificadas (e moralmente denunciadas) no capitalismo por Marx em
contraste com um imperativo kantiano implícito de tomar cada ser humano como um
fim em si mesmo, em Weber são consideradas mais plenamente em seu duplo
desdobramento: repugnantes no que concerne à empatia fraternal (ou ao amor
cristão) que caberia esperar entre os homens sob o ponto de vista moralmente
elevado de um projeto filosófico de emancipação humana, mas instrumentais e
eventualmente bem-vindas do ponto de vista da interação entre estranhos que se
observa rotineiramente em sociedades complexas (ou entre elas). Daí a
ambigüidade fundamental do mercado: emancipatório por autorizar a perseguição
de fins pessoais, independentemente da opinião alheia; e (o outro lado da mesma
moeda) opressivo por viabilizar, rotinizar e - por fim - legitimar a
indiferença recíproca.
Assim, talvez possamos inferir que uma sociedade crescentemente complexa -
"abstrata", na expressão de Popper (1987, pp. 189-191), que formalmente não
mais se fundamenta sobre laços pessoais estabelecidos entre seus membros -
ou é cada vez mais mercantil, ou cada vez mais violenta. Como observa Weber
(1994, p. 422), "a expansão intensa das relações de troca corre por toda parte
paralela a uma pacificação relativa". Mas essa ordem relativamente pacificada
será - de maneira também paradoxal, mas aparentemente inevitável - cada
vez mais "fria", ou impessoal.4 Sob esse ponto de vista, o advento de formas
complexas de sociedade ao longo dos últimos séculos - com a contínua
massificação e impessoalização das formas de socialização produzidas ao longo
do processo conhecido por "modernização" - acaba por conferir ao mercado
uma centralidade inusitada em formações sociais anteriores, por sua peculiar
característica, apontada por Weber, de - em virtude mesmo de sua frieza e
impessoalidade - constituir a forma possível de socialização entre
estranhos. Pois somente em sociedades bastante complexas os contatos pessoais
com "estranhos" tornam-se suficientemente freqüentes para permitir ao mercado
sobrepor-se a formas, digamos, mais cálidas e pessoais de interação. E não
apenas permitir, mas antes exigir do mercado que - apesar de todas as
conhecidas deficiências que exibe nessa tarefa - desempenhe um papel de
cimento social que jamais, em sociedades menos complexas, teria sido necessário
(ou concebível) que exercesse. É precisamente sobre o lugar do mercado na
sociedade moderna, sobretudo em sua dimensão política, que se detém a próxima
seção.
1.2 Mercado, democracia e anonimato: entre a competição e a "adscrição"
Pretendo aqui desdobrar a análise anterior, com o propósito de detalhar as
interações do fenômeno do mercado com diversos aspectos específicos da
sociedade moderna. Inicialmente, serão analisadas as relações que se pode
teoricamente estabelecer entre a forma de sociedade que resulta do processo de
modernização e o sistema mercantil de alocação de recursos e contingências
sociais diversas. Em seguida, passarei à discussão dos vínculos existentes
entre a progressiva centralidade do mercado e o processo de paulatina afirmação
do sistema democrático de governo, para, finalmente, analisar em que sentido se
pode afirmar que se complementam ou se contrapõem as operações paralelas do
mercado e do Estado.
1.2.1 Sociedade moderna e mercado
A afinidade que a análise de Weber permite identificar entre a operação do
mercado e a impessoalização (e a racionalização) das relações sociais que tem
lugar ao longo do processo de modernização social autoriza-nos a incorporar a
clássica proposição de Karl Polanyi (contra uma relativa "naturalização" da
operação do mercado, comum entre autores liberais) segundo a qual a regulação
da vida social pelo mercado depende da vigência de valores e instituições
específicos e, portanto, não pode ser considerada, em nenhum sentido,
"natural". Para Polanyi (1957, p. 43), nenhuma economia havia sido, até a
modernidade, controlada por mercados. Sem querer entrar no árduo problema de se
definir de maneira empiricamente referida o que podemos entender por uma
economia "controlada" ou não pelo mercado (tenho a impressão de que Hayek ou
Milton Friedman, por exemplo, assim como os ditos "libertários" norte-
americanos dos dias de hoje, estariam prontos a duvidar de que mesmo a economia
do século XX fosse controlada pelo mercado), cabe observar que, ao descrever
minuciosamente o processo de construção institucional que acompanhou a
afirmação da economia de mercado na Europa moderna, Polanyi, perseguindo
prioritariamente outros objetivos, deixa de se dirigir a um problema
fundamental, de natureza estritamente teórica. Ele parece não se perguntar por
que, afinal, essa estrutura - tão peculiar - desponta naquele contexto
específico. Já que nunca existira antes, caberia indagar qual a peculiaridade
da nossa época que faz emergir e disseminar-se tão vigorosamente essa estrutura
historicamente sui generis - a economia de mercado. Polanyi não se ocupa
desse problema exatamente nesses termos, mas é assim que pretendo abordá-lo
aqui.
Temerária que seja, a resposta a um problema formulado dessa maneira não tem
como evitar completamente uma estrutura interpretativa de natureza
funcionalista. Embora, no âmbito das ciências sociais, a aproximação
funcionalista seja muitas vezes descrita como eminentemente estática, cabe
observar que ela se origina na Biologia, com Charles Darwin, como uma teoria da
evolução das espécies. E que, também nas ciências sociais, desempenha papel
central naquela que é provavelmente a mais ambiciosa teorização sobre mudança
já concebida: o materialismo histórico de Karl Marx, conforme argumentou
persuasivamente G. A. Cohen (1978). De fato, é difícil conceber qualquer
teorização sobre processos de mudança social de largo alcance que deixe de
aludir - nem que seja em nome da parcimônia teórica - às condições
ideais de estabilidade ou instabilidade de determinadas configurações sociais
descritas de maneira sistêmica: assim temos a grande quantidade de estudos
sobre a passagem do "feudalismo" para o "capitalismo", da "antigüidade" para o
"feudalismo", da "sociedade aristocrática" para a "sociedade moderna", da
"atividade econômica tradicional" para o "capitalismo racional", do "laissez-
faire" para o "welfare state". É evidente que, com muita freqüência, esse
funcionalismo é metodologicamente inconsciente de si e recorre de maneira
arbitrária à postulação de necessidades funcionais que se autocumprem, sem
consideração criteriosa dos microfundamentos que poderiam ter produzido o
efeito descrito.5 Mas o quadro é distinto quando se pode postular algum
mecanismo de "seleção natural", ou mesmo de imitação deliberada. Estruturas
surgidas "aleatoriamente" (ou seja, por razões externas ao modelo) podem se
multiplicar de modo irresistível a partir dos resultados (eventualmente não-
intencionais) produzidos. É excessiva a afirmação de que fenômenos sociais não
comportam mecanismos de "filtro" como a seleção natural, e um exemplo clássico
é precisamente o mercado, que expele do sistema econômico o agente que não se
comporta de maneira maximizadora.6 A tese weberiana sobre a disseminação do
"espírito do capitalismo" a partir da relação com o trabalho que o
protestantismo ascético tendia a produzir é um exemplo clássico de recurso ao
mesmo mecanismo (Hernes, 1989, pp. 138-139 e 153-154).
Segundo a conjectura que pretendo seguir aqui, a sociedade complexa
("abstrata"), confrontada com dificuldades crescentes, no longo prazo, para se
constituir numa sociedade precipuamente "adscritiva", induzirá o preenchimento
pelo mercado da necessidade funcional de provisão relativamente rápida,
atomizada e descentralizada de alocação de recursos e informação. Fernand
Braudel (1987, pp. 40-41) já se referiu ao mercado como "o primeiro computador
posto ao serviço dos homens", embora ressaltasse que sua capacidade reguladora
é apenas parcial, não podendo abarcar a totalidade da "vida material".7 Essa
interpretação funcional, é claro, não pode explicar geneticamente o
"surgimento" do mercado (até porque, em menores dimensões, ele já existia), mas
pode perfeitamente sugerir uma explicação para a sua disseminação, a partir de
mecanismos de "filtro" (análogo à seleção natural) e de imitação.
Não deverá surpreender, portanto, a constatação de um claro trade-off histórico
entre "adscrição" (ascription) e mercado, mecanismo por excelência de
estratificação social competitiva. Observe-se, com efeito, que, mais do que uma
relação causal, a exclusão mútua entre mercado e adscrição é matéria de
definição e implicação: com adscrição, não há liberdade (autonomia) para
competir, maximizar ou mesmo, em geral, para se envolver em transações.8
Ademais, como vimos, somente em sociedades altamente complexas os contatos
pessoais com "estranhos" tornam-se suficientemente freqüentes para permitir ao
mercado sobrepor-se a modos menos formais de interação.
Podemos esboçar, assim, dois arquétipos sociais polares - certamente não
exaustivos, mas portadores de muitas de nossas referências normativas ideais.
De um lado, a solução de Platão na República, adscrição plena: para produzir a
justiça temos de nos conformar a uma ordem em que cada um reconhece o seu lugar
e se contenta, feliz, com ele, posto que designado por aquele que conhece
plenamente a verdade e a justiça. De outro, o reino do liberalismo econômico
ortodoxo, puro achievement, em que há plena mobilidade, mas ao preço do risco
do fracasso, que pode resultar na própria incapacidade de sobrevivência.9 É
seguro afirmar que jamais virá a existir sociedade alguma que reproduza
fielmente qualquer desses extremos - como ocorre com qualquer tipo ideal.
Porém, uma questão crucial se impõe a esta altura: diante da constatação do
advento de formas extremamente complexas de sociedade no bojo da modernização,
seria razoável esperar construir uma sociedade platônica, de "lugares
marcados"? Numa sociedade complexa, como já observou Douglass North,10
multiplicam-se exponencialmente situações "olsonianas", em que cada indivíduo
- virtualmente anônimo em diversas arenas, tendo em vista o número
crescente dos integrantes potenciais de grupos sociais relevantes - vê-se
estimulado a se comportar como "carona", tornando implausível a presunção de
que todos poderão introjetar as noções de dever implicadas por papéis sociais
fortemente personalizados (que supõem intensa interação face a face),
negligenciando oportunidades de recompensas tópicas individuais. E o corolário
lógico de uma sociedade cada vez mais complexa é a crescente competição interna
- especialmente se, como ressaltou Weber, o mercado é na sua origem a forma
de socialização possível entre estranhos, e um traço saliente que distingue a
moderna sociedade complexa das demais reside precisamente no fato de que se
trata de uma sociedade entre "estranhos", num grau superior a qualquer outra
forma de sociedade até hoje existente. Assim, pode-se prever que, excetuado o
cenário (sempre possível) de uma catástrofe civilizacional - por exemplo,
uma hecatombe nuclear ou ambiental - e se portanto aceitamos a sociedade
complexa como um dado da realidade com a qual doravante conviveremos, então
estamos condenados a reservar ao mercado um papel extremamente relevante na
configuração de qualquer mundo futuro que concebamos. Mesmo que admitamos que
ele nem sempre tenha exercido esse papel (como nos alerta Polanyi), ou mesmo
que reconheçamos que ele não poderá ser o único princípio organizador da
sociedade e que formas variadas de hierarquização e introjeção de valores
estarão seguramente presentes (como nos faz ver Durkheim).11 A propósito, este
é um aspecto importante de nosso problema: a afirmação aparentemente inevitável
de uma organização social mais e mais competitiva não deve nos autorizar a
esperar a abolição de toda e qualquer estratificação ou hierarquia. Pois
achievement e competição implicam e supõem hierarquia, explicitando de modo
dramático o que há de contraditório no princípio do mercado: todos devem ser
igualmente capazes de competir, e todos devem ser vistos como legítimos
competidores, mas, ao mesmo tempo, o êmulo básico da competição é a afirmação
de si, a distinção, a reprodução de desigualdades, a hierarquização.
1.2.2 Mercado e democracia
Com a imprevisibilidade típica das "sociedades comerciais" no que concerne às
possibilidades de acumulação de riqueza (logo, à multiplicação das fontes
potenciais de poder na sociedade), bem como a atomização decisória induzida
pelo princípio mercantil, impõe-se cedo ou tarde um relativo igualitarismo
político como forma de incorporar de modo rotineiro os relativamente
imprevisíveis deslocamentos das fontes de poder em uma economia de mercado.
Esse igualitarismo poderá se manifestar ou - na melhor hipótese - pelo
estabelecimento de normas constitucionais em alguma medida "democráticas", ou
então - precariamente - pela violência intermitente, típica do
pretorianismo militar, que freqüentemente tende também a ser
antitradicionalista e antiaristocrático. Mas o fato é que com as oscilações da
fortuna a que todos os atores estão idealmente submetidos numa economia de
mercado, torna-se impossível a longo prazo acomodar os interesses relevantes
num sistema de atribuição exclusivamente adscritiva e aristocrática de status
político. Caso se queira preservar um sistema como esse, será imprescindível
impor severos limites à área que se mantém aberta à competição econômica
mercantil. E, na eventualidade de expansão continuada da operação do mercado,
caso se queira evitar a instabilidade institucional recorrente, provavelmente
violenta, será imperiosa a configuração de um análogo político-institucional
- ainda que precário - da imprevisibilidade, da competição e da
agregação atomizada de preferências observadas no mercado. Na ausência da
aceitação pacífica de uma rígida hierarquia social e sua necessária
complementação na introjeção de papéis sociais hierarquicamente definidos, não
há como evitar, cedo ou tarde, a generalização da reivindicação do direito a
voz na arena política.12
Dito dessa maneira simples, contudo, esse argumento talvez dê a entender uma
trajetória suave de afirmação universal de direitos políticos igualitários,
democraticamente compartilhados por todos - quase como uma postulação de
implicação mútua entre capitalismo e democracia, a ser constatada empiricamente
em qualquer caso histórico que se analise. É evidente, porém, que a relação de
afinidade e dependência recíproca entre democracia e mercado acima postulada
não impede que o próprio processo de modernização - tanto em sua dimensão
material como em seus desdobramentos políticos - se dê de maneira
conflituosa e mesmo violenta, produzindo desdobramentos específicos em
contextos históricos variados.
Apoiados, portanto, em abundante evidência histórica de coexistência entre uma
organização capitalista da economia e regimes politicamente repressivos, muitos
autores contestarão a relação entre democracia e mercado. Um exemplo recente
dessa postura pode ser encontrado em Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992,
p. 7), que atribuem o avanço da causa democrática não ao mercado, mas antes às
próprias "contradições" do capitalismo, expressas no fortalecimento gradativo
das classes operárias e médias concomitante a um enfraquecimento da classe
proprietária de terras. Não pretendo negar que essa aproximação do problema
tenha, de fato, sua relevância empírica, servindo para descrever com maior
proximidade histórica o drama dos acontecimentos efetivamente verificados em
vários casos importantes de afirmação de regimes democráticos. Em outras
palavras, dado o grande número de regimes autoritários que já existiram no
interior do sistema capitalista e que continuarão a existir num futuro visível,
bem como a evidente resistência à democracia movida pelas classes dominantes, a
movimentação dos atores na ribalta das disputas políticas acaba fazendo com que
a "afinidade eletiva" entre democracia e mercado pareça se dar tão "em última
instância" que perderia qualquer acuidade prospectiva.
Por outro lado, esse ponto de vista desconsidera o fato de que as classes
dominantes, sobretudo nos países da periferia capitalista, costumam resistir
não apenas à democracia, mas também à operação competitiva do próprio mercado.
Tendo isso em vista, o argumento de Rueschemeyer e os Stephens parece-me antes
contornar a afinidade entre democracia e mercado, mais do que propriamente
contestá-la. Pois eles parecem não se perguntar detidamente sobre os motivos
pelos quais ocorreu em tantos lugares, durante os últimos séculos, aquele
fortalecimento das classes operárias e médias, concomitante ao enfraquecimento
da classe proprietária de terras. Com efeito, a existência de uma classe
proprietária de terras poderosa é a fonte histórica por excelência da
"adscrição" social:13 se ela se enfraquece, isso por si só já é um sintoma da
afirmação de uma sociedade mais competitiva - e, em alguma medida,
mercantil, se se trata de uma sociedade complexa. E o enfraquecimento dessa
classe aparece como condição relevante do avanço da causa democrática na
interpretação de Rueschemeyer e os Stephens.
Ademais, parece-me evidente que tanto a competição no mercado econômico como a
democracia repousam - ao menos parcialmente - sobre os mesmos
princípios de legitimidade, os mesmos postulados morais individualistas: a
afirmação de si, a busca individual da felicidade, a legitimidade de se ir à
procura de interesses próprios.14 E isso tem importância na medida em que se
pode ter constituído num trunfo relevante nas mãos dos trabalhadores em sua
luta pela democracia. Assim como slogans comunistas puderam ser apropriados
pela oposição ao regime no Leste Europeu, o liberalismo teria servido também
aos adversários da burguesia. Mas, num plano mais fundamental, há sutilezas
importantes na relação entre capitalismo e mercado, nas quais Rueschemeyer e os
Stephens não tocam, aceitando simplesmente a identificação entre um e outro.
Sob esse prisma, pode-se perguntar até que ponto tem vigência o princípio do
mercado numa sociedade em que uma oligarquia se apodera dos recursos
repressivos do Estado em proveito próprio. Por definição, não tem vigência na
esfera da política.15 E dificilmente operará na esfera econômica um princípio
competitivo de alocação de recursos, já que o poder coercitivo do Estado será
empregado para assegurar uma posição monopolística aos membros da oligarquia
- e, como diz Braudel (1987, pp. 45-50), o monopólio é o "contramercado",
usualmente desfrutado pelos "amigos do príncipe, aliados ou exploradores do
Estado".
Todavia, como já disse, não quero dar a entender que presumo um processo suave
ou historicamente linear em qualquer sentido. Se entendo que o papel central
desempenhado pelo mercado na moderna sociedade complexa induz a alguma
competição também na esfera política, isto não pode ser entendido como uma
afirmação de que o processo de constituição do Estado nacional tenha de se
pautar invariavelmente por princípios competitivos, ou democráticos. Pelo
contrário, como sublinhou Charles Tilly (1975, p. 613), originariamente a
concentração da autoridade no centro administrativo dos Estados nacionais se
deu claramente a expensas dos (parcos) direitos políticos da maioria dos
habitantes. Mas isso não exclui a hipótese de que a crescente centralidade do
princípio competitivo do mercado na estruturação das relações sociais (que,
segundo Polanyi, só se tornou realmente preponderante nos últimos dois séculos)
imponha, sim, a presença de critérios meritocráticos em princípio
universalistas na atribuição de poder pelo sistema político. A modernização
efetivamente corrói a viabilidade de qualquer critério ostensivamente
adscritivo, aristocrático, de atribuição de poder político. Não pela conversão
dos atores relevantes ao dogma das virtudes da competição, mas simplesmente
pela possibilidade inextirpável de o sucesso econômico no mercado produzir
focos de poder externos a qualquer elite previamente delimitada. Essa é de fato
a raiz da inspiração básica de Tocqueville sobre a passagem - para ele
inexorável - da sociedade aristocrática de seus antepassados para a
sociedade democrática que então se anunciava. O desafio político crucial desde
então é criar condições que permitam que a livre afirmação de interesses típica
do mercado se dê dentro de marcos globais de solidariedade tão abrangentes
quanto for possível, de maneira a se evitar tanto o contínuo perigo hobbesiano
de fragmentação social e confrontação belicosa daqueles interesses individuais,
como o chauvinismo paroquial e nacionalista - que, nos momentos iniciais do
processo de constituição do Estado nacional, parece se mostrar inevitável.16
1.2.3 O mercado contra o Estado?
Sob esse prisma, podemos analisar por um novo ângulo os claros limites da
contraposição entre a extensão do poder do Estado e a franca operação do
mercado (comum entre liberais ortodoxos, defensores do "Estado mínimo"), ao
mesmo tempo em que podemos identificar o sentido específico em que essa
contraposição se torna compreensível. Já nos referimos à elaboração weberiana,
em que o mercado aparece como uma forma paradoxal de relação comunitária,
composta por uma vertiginosa proliferação de relações associativas efêmeras, e
como essa dimensão comunal se expressa no reconhecimento mútuo de direitos
compartilhados, para além do qual cessa toda confraternização entre os
participantes na troca. Se é assim, a proteção a direitos individuais é
condição indispensável para a simples existência da troca - e, como é
evidente, só haverá proteção adequada desses direitos numa sociedade complexa
onde houver Estado em condições de impor de maneira eficaz a vigência das
normas envolvidas. É certo que a garantia da atuação dessas normas não se pode
dar de maneira estritamente coercitiva, e tanto Robert Putnam (1993), numa
linha empírico-indutiva, como Robert Axelrod (1984), num plano experimental, e
Michael Taylor (1976, 1987), num plano formal-dedutivo, argumentaram de maneira
persuasiva em favor da importância de um ambiente em que recompensas e punições
recíprocas sejam exercidas de modo rotineiro e disseminado, de maneira a
induzir comportamentos cooperativos "espontâneos" a partir da expectativa de
retaliação dos demais ao comportamento desviante.17 Evidentemente, um ambiente
semelhante favorece o desempenho eficaz das instituições, pois simplesmente
desonera o Estado de parcela importante do custo de fiscalização (e repressão)
em que necessariamente incorre. Se o Estado pode contar com a adesão da
população às normas vigentes, de maneira não só a cumpri-las rotineiramente,
mas também a punir os recalcitrantes - ou ao menos denunciá-los às
autoridades competentes -, então é lícito esperar um desempenho mais
eficiente das instituições políticas. Mas o Estado permanece sendo o fiador em
última instância de qualquer norma legal, escrita ou consuetudinária, vigente
numa coletividade política - e tem não apenas a faculdade, mas mesmo o
dever de, quando necessário, recorrer à coerção física para assegurar-se da
observância dessas normas. E não há motivo para se presumir que as normas
necessárias à operação rotineira do mercado sejam apenas as destinadas à
proteção da propriedade privada e da integridade física dos participantes. Como
mostra Abram De Swaan (1988, pp. 1-12), saúde e educação, por exemplo, podem
ser bens tão públicos quanto a segurança. Epidemias podem, em princípio,
devastar uma economia, sem permitir às pessoas que se defendam "privadamente";
em outro plano, o componente "comunal" da interação mercantil requererá a
devida socialização dos agentes, sob pena de inviabilizar o mecanismo de
trocas. Ademais, como já observaram diversos autores, estratégias que podem ser
individualmente racionais para os agentes no mercado levam freqüentemente (na
ausência de constrangimentos externos ao estrito interesse imediato dos agentes
envolvidos na competição) ao colapso econômico materializado nas crises de
superprodução, ou então simplesmente ao "fechamento" do mercado por intermédio
de privilégios corporativos e barreiras diversas à livre movimentação do
capital e - sobretudo - da mão-de-obra.18 Cabe, a propósito, sublinhar
o paradoxo de que o mercado abandona o estado de concorrência perfeita a partir
do momento em que os atores passam a agir racionalmente em função de seus
interesses e tentam construir - usando em proveito próprio os diferenciais
de poder que o resultado mesmo da competição no mercado lhes confere -
monopólios ou oligopólios que lhes garantam vantagens estratégicas em sua
competição com os demais agentes no mercado. Segue-se a conclusão de que,
excluída uma ação normalizadora externa, um mercado em concorrência perfeita é
logicamente incompatível, no longo prazo, com a suposição de agentes
maximizadores se apenas admitimos no modelo um comportamento propriamente
estratégico, e não estritamente paramétrico.19 Enfim, somente existe a operação
plena do mercado onde há livre perseguição de interesses particulares sob a
égide de normas e costumes muito específicos, e onde o Estado - pelo
adequado funcionamento de suas instituições - é capaz de comparecer como
fiador eficaz dessas normas junto ao público e de coordenar as expectativas
recíprocas numa direção que se possa dizer coletivamente desejável.
Há, decerto, muita controvérsia sobre temas afins a este. Num trabalho célebre,
Ronald Coase (1960) argumenta em favor da tese de que, na ausência de custos de
transação, negociações diretas entre os interessados lidarão com deseconomias
externas de maneira mais eficiente que a regulação por terceiros (tipicamente,
governos). Em última análise, ele afirma que, na ausência de custos de
transação, as externalidades tal como definidas pelos cânones da economia do
bem-estar simplesmente não existem.20 Pareceria mesmo dispensável entrar no
mérito do resultado de Coase, pois admite-se comumente que os custos de
transação crescem com a complexidade da economia (North, 1994, p. 10), o que
faz com que no contexto relevante eles sejam positivos, e elevados. Restaria,
porém, a conclusão segundo a qual toda redução de custos de transação seria
estritamente desejável, por reduzir externalidades e aproximar-nos de alocações
socialmente ótimas de recursos. Todavia, Farrell (1987) e McKelvey e Page
(1999), ao buscarem formalizar o chamado "teorema de Coase", ajudaram a
explicitar outras premissas necessárias ao resultado encontrado - o que
incluiu uma suposição forte de simetria informacional. Assim como a ausência de
custos de transação, a simetria informacional também torna o resultado de Coase
tão menos plausível quanto mais complexa for a sociedade, e o esforço desmedido
por reduzir custos de transação pode mesmo agravar as assimetrias provavelmente
existentes. Em trabalho de menor visibilidade, Avinash Dixit e Mancur Olson
(1996) levantaram outro aspecto, relativo à desconsideração de problemas de
ação coletiva. Eles mostraram que a consideração apressada do argumento de
Coase pode conduzir a conclusões excessivamente otimistas ("panglossianas"),
por não levar em conta problemas de ação coletiva - crescentemente
importantes à medida em que aumenta o número de atores envolvidos, e por
motivos "inteiramente alheios à relação entre números [de atores] e custos de
transação" (Idem, 1996, p. 10).
Impõe-se reconhecer, nesse ponto do argumento, a lógica férrea da emergência e
da atuação dos grupos de interesse a partir da garantia dos direitos civis. A
presença desses grupos é parte indissociável da vida democrática, fruto da
simples possibilidade de livre encaminhamento de demandas ao Estado. E, se
admitimos a possibilidade de problemas de ação coletiva nos termos
estabelecidos por Mancur Olson (1965, 1982), a organização de grupos de
interesses e lobbies tenderia a emergir até mesmo independentemente da
percepção de qualquer instabilidade ou falta de proteção social no livre
funcionamento do mercado, bastando, ao contrário, a mera constatação de que
determinados interesses coletivos privados poderiam ser mais bem atendidos
mediante uma atuação organizada e que a provisão de incentivos seletivos
garantisse a transformação de grupos latentes em coalizões distributivas,
abrindo assim a cada membro do grupo de interesse a possibilidade de
apropriação de uma fatia maior do produto global da economia. Isso, por sua
vez, explicita o caráter um tanto estéril, em termos práticos, da proposição do
mesmo Olson (1982), de que um mercado sem grupos de pressão seria mais
eficiente: um mercado nesses moldes simplesmente jamais existirá, uma vez que o
poder coercitivo exclusivo do Estado tem de continuar existindo - até para
a garantia do processo de trocas sob a égide do mercado - e sua mera
existência estimula a formação de lobbies. E quanto mais lobbies houver, mais
grupos serão obrigados a formar o seu próprio lobby para não se tornarem as
principais vítimas do processo. Usando a terminologia da teoria dos jogos,
trata-se de um "dilema do prisioneiro", onde todos estariam melhor sem lobbies,
mas, ao mesmo tempo, todos são obrigados a se defender dos lobbies dos outros
com o seu próprio lobby (Bruno Reis, 1994, p. 115). Portanto, a meta da
cooperação universal em assuntos distributivos é individualmente inatingível e
individualmente instável. Se todas as organizações estiverem atuando de modo
predatório, uma atuação cooperativa isolada seria suicídio; se, por outro lado,
todas estiverem cooperando, a organização que resolver ser agressiva poderá
auferir lucros extraordinários. A presença de grupos de pressão deve ser
tomada, portanto, como um fenômeno inseparável da própria natureza da
democracia moderna.21
Mas, para além da complementaridade recíproca entre Estado e mercado, eu dizia
- no início desta seção - que se pode também depreender daqui a raiz da
contraposição simplificadora entre Estado e mercado, e delimitar a problemática
específica a que se reporta. Argumentei em outro trabalho (Bruno Reis, 1997,
pp. 58-66) em favor da tese weberiana clássica de que a provisão da necessária
"coordenação de expectativas" numa sociedade complexa - onde os
tradicionais mecanismos "face-a-face" de controle social tornam-se inviáveis
- impõe a burocratização das relações sociais. Igualmente incontornável,
porém, se apresenta a expansão do papel do mercado como um paradoxal
disciplinador "automático" da conduta social numa sociedade "de estranhos"
("abstrata", diria Popper), como é em larga medida a moderna sociedade
complexa. Isso produz uma simbiose peculiar entre o Estado e o mercado, uma
complementaridade recíproca entre competição e burocracia que faz uma depender
da outra para sua plena operação. Assim, se o mercado depende da aceitação
incondicional da vigência de determinadas normas impessoais para a regulação da
competição de modo a impedir que esta degenere em conflito, também é verdade
que a plena vigência da impessoalidade característica de um regime
administrativo burocrático requererá competição em algum nível, ainda que se
reconheça - como Weber - que ela é perfeitamente compatível com formas
autoritárias de governo.22 De qualquer maneira, mesmo sendo a existência da
economia de mercado dependente da organização concomitante de um ordenamento
administrativo burocrático, persiste a delimitação possível entre aquilo que é
hierarquicamente estabelecido de maneira diretamente burocrática, de um lado, e
o conjunto de atividades que são, por assim dizer, "deixadas" para a regulação
automática da competição mercantil - o que produz nos autores liberais a
visão do mercado como "ordem espontânea" e os induz à defesa do "Estado
mínimo". Entretanto, dada a relativa ineficácia da sanção moral numa sociedade
complexa, a modernidade parece presa de uma opção inescapável: onde as normas
vigentes não produzirem alguma regulação competitiva mercantil da coexistência,
haverá apenas a plena regulação hierárquica, tipicamente burocrática e de
alcance relativamente limitado - ou, então, o conflito puro e simples e a
prevalência violenta dos mais poderosos.23
2. Explicitando o dilema: o mercado como Dr. Frankenstein (ou, de como o Estado
vem a agir)
Já qualifiquei em outro trabalho como esquizofrênica a aspiração liberal de
conter dentro de limites mínimos o mesmo aparato administrativo encarregado de
zelar pela observância do mais extenso leque de direitos individuais jamais
proposto na história da humanidade (Bruno Reis, 1997, pp. 50-58). Dada a
formidável dimensão mesmo de sua tarefa mínima, a capacidade de intervenção
sobre a vida social com que o Estado moderno tem de se prover necessariamente
superará, em muito, a de qualquer outra formação política que o tenha
antecedido. De fato, ao admitir com freqüência que o Estado é um mal, ainda que
um mal necessário, o liberalismo vê-se diante da tarefa irrecusável de conter
dentro de limites "mínimos" esse mesmo Leviatã, cuja existência legitima. Mas
isso não nos autoriza a imaginar que o Estado liberal possa estar menos
presente na vida dos cidadãos que qualquer Estado despótico pré-moderno. Pelo
contrário, pode-se argumentar que a natureza mesma das tarefas que os próprios
princípios liberais lhe outorgam obriga o Estado liberal a exercer maior
controle e maior vigilância que seus antecessores sobre os atos dos cidadãos,
ainda que o governante esteja, simultaneamente, mais constrangido por normas
legais do que em outras formações políticas.24
Mas, para além de considerações doutrinárias, o problema da contenção do Estado
torna-se insolúvel ex ante a partir do momento em que se constata que, tendo a
necessidade de se financiar com recursos materiais extraídos de poupanças
privadas para o cumprimento mesmo de uma pauta "mínima" (digamos, a garantia
policial da propriedade privada), o Estado não pode evitar completamente
interferir na vida econômica da coletividade que o sustenta, uma vez que, como
existem infinitas maneiras de se gerar riqueza em uma sociedade, logo haverá
variados modos de se cobrarem impostos e - como eles evidentemente não são
neutros no plano distributivo - alguma arbitrariedade estará
necessariamente envolvida na estipulação da norma tributária, que resultará do
jogo natural de pressões e contrapressões, próprio da arena política. Ao deter,
para o adequado cumprimento de sua obrigação mínima de manter a segurança da
coletividade, o monopólio do uso legítimo dos instrumentos de coerção física
dentro de determinado território, o Estado deverá estar em condições de impor
(em nome da própria conservação da ordem e da lealdade de determinados setores
da sociedade) compensações que eventualmente contemplem de maneiras variadas
qualquer grupo que se julgue de algum modo prejudicado pelas normas existentes
- grupos esses que, por definição, terão pleno direito de vocalizar e
defender seus interesses junto ao Estado. Em que pese o formato extremamente
simplificado que o argumento assume aqui, é plausível supor que mecanismos
semelhantes tenham ajudado a produzir a enorme distância entre o Estado liberal
efetivamente existente e o "Estado mínimo" dos sonhos dos liberais mais
dogmáticos. É uma distância análoga àquela que separa o "socialismo real" (a
hipertrofia do Estado) dos mais dourados sonhos socialistas (a extinção dele),
ainda que talvez não tão grande quanto ela.25
Não fosse pelo livro de Abram De Swaan (1988), talvez a formulação mais
instrutiva da evolução histórica desse problema se encontrasse ainda, sem
paralelo, nas conferências proferidas em 1949 por T. H. Marshall (1965) em
Cambridge. Marshall explora determinadas ambigüidades contidas na idéia de
cidadania que abrem algumas fendas na formulação estritamente liberal da
questão, por onde se pode depreender certa lógica conducente à iniciativa
governamental na formulação de políticas sociais. O traço mais conhecido desse
texto é a célebre divisão da cidadania em três dimensões típicas: direitos
civis, direitos políticos e direitos sociais (Idem, pp. 78-79). Os direitos
civis são basicamente aqueles necessários à liberdade individual, caros à
tradição liberal. Com origem na afirmação da liberdade religiosa e da
tolerância, incluem a liberdade de consciência, de opinião e de expressão, bem
como o direito de propriedade e os direitos processuais penais, como a
presunção de inocência até prova em contrário, o julgamento por júri popular
etc. Já os direitos políticos dizem respeito à participação no exercício do
poder político, sobretudo o direito de votar e o de ser votado. Finalmente, os
direitos sociais, segundo Marshall, englobam um feixe de direitos relacionados
a níveis mínimos de bem-estar e de segurança econômica, além de uma vida
civilizada de acordo com os padrões culturalmente prevalecentes na sociedade.
Incluem os sistemas públicos de educação e de saúde, bem como toda legislação
trabalhista e os diversos serviços de assistência social. Num esquema que ficou
famoso e que, apesar da simplificação evidente, não está muito distante da
realidade, pelo menos no que toca ao caso britânico, Marshall (Idem, pp. 81-86)
fez corresponder a afirmação institucional das três dimensões da cidadania aos
três últimos séculos: direitos civis no século XVIII, políticos no XIX e
sociais no século XX.
É bastante óbvia a tensão embutida na convivência dessas três formas de
liberdade, especialmente no que diz respeito à afirmação simultânea dos
direitos civis e dos direitos sociais. Seria fácil ilustrá-la pela maneira como
uma lei trabalhista, por exemplo, interfere na liberdade de agentes privados em
acertar como queiram um contrato de trabalho. Como lembra o próprio Marshall
(Idem, pp. 86-87), a decadência do controle dos salários pelo governo britânico
no século XVIII está relacionada, entre outras coisas, à aplicação dos direitos
civis na esfera econômica. Trata-se da liberdade de se trabalhar onde se
queira, segundo um contrato livremente firmado pelas partes diretamente
envolvidas. Ao final do século XVIII, a idéia que hoje temos da cidadania
estava dividida: o que hoje chamamos direitos sociais - associados à
regulamentação, à proteção de determinados grupos no interior da sociedade
- era considerado "velho", um resquício de costumes herdados das
corporações de ofícios e das guildas medievais; os direitos civis, por sua vez
- a legítima afirmação de interesses individuais de cidadãos livres -,
eram o "novo". Ao longo de todo o século XIX, a existência de proteção social,
em vez de ser um requisito da cidadania, era, ao contrário, incompatível com
ela. Aquele que necessitasse de proteção não poderia ser considerado um
cidadão, e até 1918 os eventuais beneficiários da Poor Law britânica perdiam
qualquer direito político que porventura possuíssem. Os Factory Acts, por sua
vez, embora tenham melhorado as condições de trabalho dos operários, somente se
aplicavam a mulheres e crianças, em respeito à condição de cidadãos dos homens
adultos, que não poderiam sofrer uma violência contra sua liberdade de
estabelecer e cumprir um contrato de trabalho. Tanto que, lembra Marshall
(Idem, p. 89), "campeões dos direitos das mulheres foram rápidos em detectar o
insulto implícito. As mulheres eram protegidas porque não eram cidadãs".
Em princípio, a expansão de direitos civis igualmente acessíveis a todos,
decorrente da afirmação da visão liberal da cidadania, não deveria entrar em
conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; ao contrário, segundo
Marshall (Idem, pp. 95-96), era necessária à sua manutenção. Isso porque, como
foi dito, o núcleo da idéia de cidadania à época de afirmação do capitalismo
estava contido nos direitos civis. E isto os tornava, além de imprescindíveis à
própria instauração de uma economia competitiva de mercado, talvez a única
fonte de legitimação das crescentes desigualdades econômicas produzidas durante
todo o primeiro século da Revolução Industrial - que podiam aparecer,
assim, ainda que de maneira inaceitavelmente cruel, como um preço a ser pago
pela conquista da liberdade. Não chega a ser surpreendente, portanto, que date
dessa época a denúncia do liberalismo como "ideologia da burguesia". Sendo,
todavia, os direitos sociais modernos em boa medida uma subversão dos direitos
civis caros à tradição liberal,26 resta explicar o fato de que, bem ou mal,
eles acabaram incorporados à coleção de direitos englobados pela moderna noção
de cidadania, lado a lado com os mesmos - anteriormente incompatíveis -
direitos civis.
A expansão dos direitos políticos na direção do sufrágio universal constitui
uma primeira linha de explicação possível. A partir do momento em que há
sufrágio eleitoral de qualquer espécie para o preenchimento do comando do
governo, a questão de se determinar a extensão precisa do eleitorado passa a
ser uma pergunta aberta, em princípio, a inúmeras respostas, e - o que é
mais importante - a resposta eventualmente dada a essa pergunta pode
interferir de maneira decisiva no resultado da disputa.27 Com isso, os governos
passavam a ter um forte incentivo a tomar a iniciativa de expandir por conta
própria o sufrágio, buscando beneficiar-se eleitoralmente disso, antes que a
oposição, uma vez no poder, o fizesse. O sufrágio não-universal é um arranjo
instável, transitório, pelo menos num contexto em que se afirma
concomitantemente a universalização dos direitos civis. Daí explicar-se a
relativa rapidez (aproximadamente um século) com que se passou da instauração
regular do sufrágio no Ocidente para a generalização do sufrágio universal.28
Uma vez incorporados ao sufrágio, os novos setores do eleitorado estão em
condições muito melhores para dirigir pleitos ao governo. E este, por sua vez
- detendo, com vistas à segurança de todos, o monopólio do uso legítimo da
força -, pode, se quiser ou julgar conveniente, atender a esses pleitos,
ainda mais que sua ação estaria agora legitimada por uma suposta "vontade
popular". Confirmando os piores pesadelos dos liberais mais ortodoxos, a aurora
do século XX iria restaurar o espectro da "tirania da maioria" que o
liberalismo elitista posterior à Revolução Francesa se esforçara por banir. As
conseqüências trágicas dessa percepção não tardaram em se fazer sentir, e têm
sido arduamente combatidas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mediante
certa "intolerância com os intolerantes" que busca evitar, na prática, uma
possibilidade que, desgraçadamente, não pode ser excluída por completo com
instrumentos legais: o "suicídio da democracia", em que o eleitorado escolhe
ser governado despoticamente.29
A partir do início do século XX, portanto, generaliza-se a intervenção
governamental nas disputas na indústria, o que traz como contrapartida natural
a intervenção, fragmentada que seja, das corporações no funcionamento do
governo. Pois decisões tomadas a partir de um processo de co-participação
intensa das diversas partes interessadas têm maiores possibilidades de serem
coletivamente respeitadas e acatadas. E a elitista democracia burguesa do
século XIX começa lentamente a se mover, impulsionada pela expansão paulatina
da participação das massas na arena política, na direção do Estado de bem-estar
social típico das nações mais industrializadas da segunda metade do século XX.
Em parte, um motor provável subjacente a esse movimento terá sido a constatação
de que, como nos lembra Marshall (1965, p. 123), a generalização do respeito
aos direitos da cidadania traz consigo maior propensão da população a arcar com
os deveres da cidadania.30 E aquele Estado burguês que então se instalava em
toda a Europa vinha tendo sua autoridade fortemente contestada - sobretudo
no continente, é verdade - desde meados do século XIX, principalmente a
partir da conclamação revolucionária contra ele dirigida pelo movimento
operário.
A circunstância em que se iniciara o século XIX - com a derrocada dos
antigos regimes ante os novos valores liberais somada à degradação flagrante
das condições de vida nos centros urbanos - terá seguramente desempenhado
um papel importante na disseminação de uma atitude contestadora perante a nova
ordem industrial e, mesmo, na sobrevivência do sonho revolucionário. Pois o
século já se iniciara trazendo na ordem do dia o sonho da instauração
revolucionária de uma nova sociedade. Desde a Revolução Francesa essa promessa
se renovava de maneira dramática no palco das disputas políticas e na
imaginação dos cidadãos mais afeitos a uma esteticização romântica da política.
E essa promessa era continuamente frustrada pelos malogros parciais ou totais
das sucessivas rebeliões, bem como pelas assustadoras condições de vida de
grande parte da população da época. O sonho democrático parecia se instalar sob
o signo de uma gigantesca fraude. Mas a revolução, por outro lado, parecia uma
realidade palpável, pois ainda ecoavam os trovões da Revolução Francesa,
cabeças coroadas haviam rolado, e toda a Europa permaneceu por décadas
politicamente convulsionada.31 A indignação com o mundo que estava diante de
seus olhos, somada a uma boa dose de wishful thinking, levou os revolucionários
de então a imaginarem iminente o colapso de uma ordem socioeconômica que apenas
começava a se instalar. Tudo isso ajuda a explicar como a bandeira da liberdade
se viu progressivamente substituída pela bandeira da justiça social nos
projetos dos reformadores sociais (que, atentos à tensão existente entre ambas,
parecem não se dar conta de sua complementaridade recíproca), e como os
direitos civis se vêem relegados à categoria de preconceitos burgueses por uma
parcela relevante dos atores políticos desde aquela época até o colapso do
"socialismo real" em 1989. Diante dessa contestação frontal à sua legitimidade,
os governos desde então se vêem diante da conveniência de responder a esse
desafio de modo positivo, incorporando, tanto política como materialmente, as
camadas sociais antes mantidas à margem do sistema. Vê-se aí como a própria
lógica deflagrada pela universalização dos direitos civis termina por redundar,
não obstante as tensões admitidas, na aberta reivindicação popular e posterior
chancela estatal dos direitos sociais. Esse é o preço da universalização dos
direitos civis numa sociedade desigual. É por isso que Ralf Dahrendorf (1992,
pp. 49-52) irá dizer que "a sociedade civil não é um jogo privado [...] à parte
das instituições do governo, muito menos contra elas". Ao contrário, as
prerrogativas da cidadania são efetivas "somente se há estruturas de poder que
as sustentem". A cidadania, prossegue ele, acaba sendo "o único status
legalmente impositivo que restou". Mas esse status impositivo é ao mesmo tempo
irrecusável, pois se a livre operação do mercado reproduz continuamente
desigualdades, a operação estável da democracia terá conseqüentemente de
requerer - como nos lembram Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992, p. 41)
- "uma separação institucional razoavelmente forte - o termo técnico é
diferenciação - entre o reino da política e o sistema geral de
desigualdades na sociedade". O que significa dizer que requererá, em alguma
medida, uma ação oficial contínua, voltada para a permanente reafirmação
institucional da igualdade de status necessária tanto à operação democrática do
regime político como à operação eficiente do mercado econômico. Não é por acaso
que o liberalismo econômico ortodoxo é freqüentemente acusado de flertar com o
autoritarismo político, como se deu nos casos do regime de Pinochet, no Chile,
e do Extremo Oriente nos anos de 1970-1980.32
Quase quarenta anos mais tarde, a análise de Abram De Swaan detalha e
complementa a contribuição de Marshall, incorporando ao tratamento do tema
elementos da teoria olsoniana da ação coletiva. O problema de que se ocupa De
Swaan - análogo ao de Marshall, mas formulado de acordo com as ênfases e as
preocupações típicas do individualismo metodológico - é explicitar a
maneira pela qual questões como saúde, educação e pobreza se transformaram,
durante os últimos séculos, em assuntos coletivos, dos quais se espera que a
autoridade pública venha a se ocupar rotineiramente. Na introdução a seu
estudo, De Swaan (1988, p. 2) enuncia a questão que pretende resolver: "Como e
por que as pessoas vieram a desenvolver arranjos coletivos, nacionais e
compulsórios para lidar com deficiências e adversidades que pareciam afetá-las
separadamente e clamar por remédios individuais?"
Sua resposta apóia-se sobre dois pilares. O primeiro remete à sociologia
política de Norbert Elias e sua postulação - filha direta da sociologia
clássica dos tempos de Durkheim e Weber - de uma contínua extensão e
intensificação, ao longo do tempo, das "cadeias de interdependência humana". O
segundo, de natureza mais formal, enfoca os efeitos das externalidades
provocadas por essa crescente interdependência, que forçarão os atores a se
ocuparem publicamente de males "alheios" (De Swaan, 1988, pp. 2-3).
Diferentemente do que se teria passado, por exemplo, no contexto medieval, em
que - segundo De Swaan - os pobres representavam sobretudo a
possibilidade de riscos e benefícios individuais para aqueles socialmente
estabelecidos (basicamente, o risco de violência pessoal ou contra a
propriedade individual, assim como um possível servidor pessoalmente leal no
trabalho ou na guerra), em tempos modernos as ameaças e os benefícios
potenciais provindos dos desfavorecidos afetam os ricos sobretudo
coletivamente, pois são ameaça à ordem pública, à harmonia das relações de
trabalho e mesmo à saúde pública, ao mesmo tempo em que se constituem parte de
um exército coletivo, impessoal, de potenciais trabalhadores, recrutas,
consumidores e eleitores.33 A conseqüência imediata desse fenômeno reside em
que se de um lado o senhor medieval podia (aliás, tinha de) lidar
individualmente com as ameaças e as oportunidades representadas pelos "seus"
pobres - seja assegurando contra eles sua proteção pessoal, seja
conquistando-lhes a lealdade pessoal -, do outro lado a proteção contra os
perigos oferecidos pelos deserdados de hoje, assim como a possibilidade de se
beneficiar deles, se apresentam ao moderno burguês como um problema de ação
coletiva tal como sistematizado por Olson (1965). Ou seja, se ao aristocrata
medieval não era deixada escolha senão lidar ele mesmo, privadamente, com os
riscos e as oportunidades oferecidos, ao burguês moderno é, em princípio,
possível comportar-se como um "carona" em relação a esse problema. Se outros se
encarregarem de treinar e disciplinar a força de trabalho, cooptar
politicamente as massas etc., ele se beneficiará do resultado independentemente
de seu próprio esforço. Se, por exemplo, esforços coletivos organizados se
encarregam das condições sanitárias em que vivem os pobres num centro urbano,
toda a população estará livre de uma possível epidemia mortal, tendo ou não
contribuído para a tarefa; igualmente, se uma máfia privada impõe a ordem,
todos desfrutarão da "segurança" proporcionada, independentemente de terem
contribuído ou não para o "policiamento". O resultado previsível é que esses
esforços não serão viabilizados, a não ser que se institua uma contribuição
compulsória para a sua realização, normalmente na forma de impostos, mas
eventualmente também como um serviço obrigatório (não é por acaso que toda
máfia pratica extorsão).
Para De Swaan, o welfare é o análogo moderno da caridade medieval. Se os
habitantes do castelo, periódica e espontaneamente, exerciam em interesse
próprio, num ritual festivo qualquer, a sagrada virtude da caridade, em tempos
modernos a impessoalidade que paradoxalmente se dissemina nas relações sociais
em conjunto com a intensificação das "cadeias de interdependência humana"
impede que o sistema continue a funcionar apoiado em contribuições espontâneas.
Mas, de qualquer maneira, a ordem normativa se impõe, agora apoiada sobre
contribuições compulsórias determinadas em normas impessoais burocraticamente
implementadas. Pois, na ausência dessa coordenação impositiva, o cenário seria
fatalmente de radical instabilidade e imprevisibilidade. Também aqui, no
trabalho de De Swaan, temos um argumento de natureza funcionalista, em que a
"coordenação de expectativas" desempenha o papel de variável homeostática
central. Mas, em vez de tomá-la por assegurada, como um funcionalista mais
entusiasmado tenderia a fazer, De Swaan se indaga sobre suas condições de
obtenção, e o faz seguindo uma metodologia individualista, apoiada em recursos
analíticos típicos da teoria da escolha racional. Tanto que De Swaan (1988, p.
8) reconhece que a incerteza quanto à possibilidade de adversidades, por si só,
não nos conduziria à compulsoriedade da contribuição, mas antes a alguma forma
de associação de seguro voluntário apoiado num cálculo probabilístico de risco
pessoal. O fator decisivo a tornar inevitável a contribuição compulsória é a
multiplicação das externalidades enfrentadas a partir da intensificação dos
laços de interdependência no interior da sociedade moderna, urbana.
Observe-se como, tanto em Marshall como em De Swaan, vemos operar diferentes
mecanismos pelos quais o processo de afirmação de interesses termina por
desenvolver-se na direção de uma ampliação paralela dos marcos de solidariedade
institucionalmente prescritos na sociedade, tal como se dá na definição de
desenvolvimento político elaborada por Fábio W. Reis (2000a, pp. 123-160). Em
Marshall, vemos a livre perseguição do interesse privado, chancelada pelos
direitos civis, resultar, por sua própria dinâmica, em iniciativas
redistributivas contidas nos direitos sociais, ou seja, numa expansão dos
marcos de solidariedade em que opera a sociedade. Em De Swaan, um irresistível
processo de crescente interdependência recíproca induz a que o interesse
individual de cada um seja melhor atendido com a coletivização compulsória do
combate a uma série de externalidades geradas por problemas em princípio
individuais. Com efeito, parece que a livre busca da realização do interesse
individual por todos requererá a mitigação de diferenças sociais extremas
porventura existentes.34 Nesse sentido, a história do Ocidente nos últimos
séculos tal como a descrevem Marshall e De Swaan ilustra, a despeito de todas
as suas idas e vindas, um caso inequívoco de progressivo "desenvolvimento
político" aparentemente ainda em curso no processo de institucionalização de
blocos regionais internacionais, que prossegue o percurso de ampliação dos
marcos de "solidariedade" - não obstante as pressões a que se encontram
submetidas presentemente as possibilidades de implementação eficaz dos direitos
sociais.
Todavia, é claro que não podemos tomar a identificação desse caso de
desenvolvimento historicamente observado e transformá-lo numa proposição ao
mesmo tempo histórica e teórica que afirmaria sua existência necessária, ou que
o desenvolvimento observado até aqui prosseguirá inexoravelmente o seu curso
rumo a uma aproximação do estádio "pós-ideológico" tal como delineado por Fábio
W. Reis (2000a, p. 150).35 Ademais, mesmo quando se observa esse percurso, a
linha evolutiva geral pode comportar tantas e tão profundas oscilações de
alcance histórico mais curto que ela com freqüência se torna praticamente
imperceptível no curso de uma vida humana - e isto, é claro, tem grave
relevância moral. Assim, o período coberto por Marshall e De Swaan assistiu a
restaurações monárquicas, golpes de Estado autoritários, processos violentos de
decomposição ou fragmentação de Estados, políticas oficiais de segregação de
diversas naturezas, guerras internacionais em escala sem precedentes etc.
Contemporaneamente, lidamos - apesar do que há de positivo, sob o ponto de
vista de um internacionalismo humanista, no processo de internacionalização
política observado na formação de blocos regionais internacionais - com os
riscos envolvidos no recente processo de desregulamentação econômica no plano
infranacional, que freqüentemente tem resultado em certo desmantelamento do
conjunto de normas que compõem os direitos sociais. De um ponto de vista como o
de De Swaan, esse movimento só pode significar uma oscilação temporária na
tendência geral de coletivização - agora no plano internacional - de
assuntos que hoje nos pareceriam estritamente afeitos a agendas políticas
domésticas. Pois, dado o processo inexorável de intensificação da
interdependência humana, claramente reafirmado e aprofundado pela globalização
em voga, diversas externalidades não tardariam a se fazer sentir, tais como
crescente pressão migratória internacional, aumento da turbulência política
doméstica nos países centrais etc., impondo novas soluções coletivas de
natureza compulsória - mais regulamentação, portanto.36 O problema é que
"oscilações" como essa podem abarcar gerações inteiras, e sua profundidade é
imprevisível ex ante. Até onde as chamadas externalidades podem ir antes de se
encontrar uma solução consensual para elas (ou melhor, antes que se torne
racional para cada ator relevante aderir a uma solução institucional para elas)
é uma questão em aberto, e, assim, longos períodos de grave turbulência
política são sempre uma possibilidade.37
A situação nos dias de hoje torna-se particularmente delicada a partir do
momento em que se constata que - assim como se teria dado no processo de
coletivização dos problemas sociais segundo a descrição de De Swaan - a
última onda de internacionalização de mercados coloca cada país diante de um
problema de ação coletiva perfeitamente análogo àquele com que se depararam as
diversas burguesias nacionais há aproximadamente um século. Apanhado em um
trade-off entre proteção social e competitividade comercial, cada governo se vê
aparentemente diante do dilema entre desmantelar - ainda que de forma
parcial - o sistema nacional de seguridade social para manter algum
dinamismo econômico à custa do aumento das desigualdades internas, ou então
preservar as conquistas sociais anteriores em nome da preservação da paz social
interna, mas à custa de certo comprometimento do dinamismo econômico e de um
aumento expressivo do desemprego, que certamente acabarão por comprometer, em
alguma medida, aquela mesma paz social que se buscava preservar (Esping-
Andersen, 1995). Disso resulta que, enquanto não se impuser uma solução que
seja legalmente compulsória para todos os países, e que inclua a previsão de
sanções rapidamente aplicáveis, e eficazes, para os países que a transgredirem,
todos serão induzidos a se comportar de modo agressivo no mercado
internacional, comprometendo conquistas sociais anteriores.38 Dado, porém, o
papel central desempenhado pelos direitos sociais - conforme se pode
inferir da interpretação de Marshall - na universalização do pleno
exercício dos direitos civis em sociedades marcadas (hoje como ontem) por
fortes desigualdades internas, parece imprevisível o efeito desse
desmantelamento da legislação social sobre a legitimidade futura do arcabouço
institucional das democracias contemporâneas. Pois, se a institucionalização
democrática se baseia num compromisso um tanto frágil, apoiado na crença de que
a observância de determinados procedimentos políticos universalistas resultará
de algum modo no benefício de todos (Bruno Reis, 1997, pp. 66-71), então a
questão da sobrevivência material dos pactuantes deve estar encaminhada (e,
depois da experiência do welfare state, esperar-se-á certamente uma
sobrevivência material não menos que "confortável"). Se se dissemina a
percepção de que o sistema político simplesmente se torna injusto, deixando de
promover alguns valores socialmente compartilhados, então todo o aparato
institucional democrático se tornará particularmente vulnerável a eventuais
"ataques carismáticos".39 E o problema contemporâneo revela-se muito mais grave
do que o de séculos passados, descrito por Marshall e De Swaan, a partir do
momento em que se constata que os indispensáveis mecanismos institucionais de
normalização de condutas num plano internacional se encontram num estádio de
desenvolvimento muito inferior àquele em que se encontravam os diversos Estados
nacionais há, digamos, um século atrás - e, mesmo ali, o processo de
incorporação não deixou de ser acidentado e traumático.
3. Notas finais: democracia, modernidade e mercado
As fontes de legitimidade da democracia moderna colocam-na, portanto, numa
posição delicada, em que suas perspectivas de estabilidade passam a depender de
uma combinação razoavelmente complexa de fatores. Em primeiro lugar, a adesão a
princípios democráticos requer o abandono progressivo de fins substantivos a
serem perseguidos pelo sistema político, em favor de uma valorização crescente
de determinados procedimentos a serem seguidos. No limite, esses procedimentos
apóiam-se em formas específicas de tratamento entre as pessoas tomadas
individualmente, pessoas essas cujo bem-estar (definido de maneiras variadas
por cada uma delas) se torna o grande fim legítimo a ser buscado, o que é
consistente com a máxima kantiana que obriga a todos a tomarem cada ser humano
como "um fim em si mesmo". Todavia, temos claramente um problema aqui quando
constatamos que desses procedimentos, dessas formas de tratamento, as pessoas
evidentemente esperam resultados específicos para as suas vidas, nem sempre
compatíveis uns com os outros. Pois, na sociedade moderna, liberal, o fim a ser
coletivamente perseguido não mais pode consistir em um feito coletivo, mas sim
numa certa liberdade - desfrutada individualmente - para buscarmos o
fim que pessoalmente nos aprouver, contanto que ele não inclua o uso direto de
violência sobre terceiros. O problema reside em que - como nos diria De
Swaan - não há maneira de o sistema se assegurar a priori contra as
"externalidades" que a livre busca da felicidade por cada um necessariamente
produzirá sobre as chances de realização da felicidade de outros. Disso resulta
a sensação, compartilhada por tantos em nosso tempo, de estarmos no interior de
uma imensa e insensível engrenagem, um enorme moedor de carne. É evidente que,
na ausência de algum controle externo (e talvez mesmo na presença dele), a pura
operação dessa engrenagem impessoal reproduz inevitavelmente desigualdades de
todo tipo, que impedem mesmo a genuína competição por não permitir
concretamente a necessária "igualdade de oportunidades" para todos. A
disseminação da idéia de que vivemos em uma sociedade que "não se importa com
as pessoas" subverte o desafio básico do Iluminismo, que inspira toda a
modernidade (tomar cada um como um fim em si mesmo), e pode provocar graves
crises de legitimidade e autoridade do sistema, pondo em permanente risco a
própria sobrevivência da democracia.40
A sociedade moderna tem diante de si o desafio complexo de equilibrar-se
perante esse problema. Ela tem de permitir a cada um buscar a própria
felicidade segundo uma compreensão pessoal do que seja essa felicidade,
impondo, de um lado, uma feroz competição entre as pessoas (na medida em que
contesta a legitimidade de critérios adscritivos de estratificação), mas ao
mesmo tempo vê-se obrigada a intervir continuamente nessa competição (de certa
maneira desvirtuando, sim, seus resultados, como se queixam os liberais mais
ortodoxos) de forma a assegurar níveis mínimos de igualdade de oportunidades
entre os cidadãos, abaixo dos quais a competição mesma perderia toda a
credibilidade entre os contendores, induzindo-os ou à acomodação cínica que não
hesita um segundo em burlar as regras da competição em proveito próprio quando
a ocasião se apresenta, ou à contestação frontal da legitimidade do sistema (ou
mesmo - o que não é raro - a ambas). Com efeito, o poder público tem a
atribuição complexa e paradoxal de interferir continuamente na operação do
mercado para de fato refundar permanentemente o próprio mercado, ao mantê-lo em
um estado tão próximo quanto possível da "concorrência perfeita" e amparar
minimamente os casos de insucesso, dada a tendência concentradora que resulta
da livre interação dos agentes econômicos no mercado. Na ausência de
interferência externa, essa tendência cristalizaria relações econômicas
originariamente mercantis em relações coercitivas adscritivamente definidas, a
partir do uso irrestrito - por alguns poucos - do poder econômico que
resultaria de seu sucesso inicial na competição mercantil.
NOTAS
1 Para uma exposição sumária dos significados de "relação comunitária" e
"relação associativa", ver Weber (1994, pp. 25-27), que elabora esse tema a
partir da distinção original de Ferdinand Tönnies entre Gemeinschaft e
Gesellschaft.
2 De fato, a "troca estritamente racional referente a fins e livremente
pactuada no mercado: um compromisso momentâneo entre interesses opostos, porém
complementares" é para Weber (1994, p. 25, grifos do autor) um dos três tipos
puros de relação associativa, em conjunto com a "união livremente pactuada e
puramente orientada por determinados fins", e a "união de correligionários,
racionalmente motivada com vista a determinados valores".
3 Na formulação de Hayek (1967, p. 168), a primeira troca efetuada entre
membros de duas tribos distintas marca o início da passagem da organização
tribal "para a ordem espontânea da Sociedade Aberta" (tradução minha), pois é o
primeiro ato que atende a propósitos recíprocos sem atender a nenhum propósito
comum.
4 Talvez precisamente por reação a esse processo é que se explique a longa
persistência do romantismo como movimento culturalmente relevante durante toda
a modernidade, "talvez o mais importante movimento cultural ocidental do
período moderno", como diz Edward Tiryakian (1992, pp. 84-85), que o identifica
como exemplo de um processo de "reencantamento", paralelo ao "desencantamento"
identificado por Weber, e alimentado mesmo por este último.
5 Um veemente ataque à legitimidade do recurso ao funcionalismo em ciências
sociais, que denuncia com propriedade seus abusos mais comuns, pode ser
encontrado em Jon Elster (1989a). Uma convincente defesa do recurso ao
funcionalismo, tomados os devidos cuidados, encontra-se, porém, em G. A. Cohen
(1990).
6 Para uma apresentação rápida de meus pontos de vista sobre a controvérsia em
torno do funcionalismo nas ciências sociais e, contra a posição defendida por
Elster, sobre a fecundidade potencial de sua utilização conjunta com o aparato
analítico da "escolha racional", ver Bruno Reis (1997, pp. 18-28). Sou grato a
um dos pareceristas anônimos da RBCS por me fazer ver a necessidade de me
estender um pouco mais sobre esse ponto.
7 O conceito de "vida material" tem um significado peculiar em Braudel (1987,
pp. 13-14), que o expôs da seguinte maneira: "Parti do cotidiano, daquilo que,
na vida, se encarrega de nós sem que o saibamos sequer: o hábito - melhor,
a rotina - mil gestos que florescem, se concluem por si mesmos e em face
dos quais ninguém tem que tomar uma decisão, que se passam, na verdade, fora de
nossa plena consciência. Creio que a humanidade está pela metade enterrada no
cotidiano. Inumeráveis gestos herdados, acumulados a esmo, repetidos
infinitamente até chegarem a nós, ajudam-nos a viver, aprisionam-nos, decidem
por nós ao longo da existência. São incitações, pulsões, modelos, modos ou
obrigações de agir que, por vezes, e mais freqüentemente do que se supõe,
remontam ao mais remoto fundo dos tempos. Muito antigo e sempre vivo, um
passado multissecular desemboca no tempo presente como o Amazonas projeta no
Atlântico a massa enorme de suas águas agitadas. Foi tudo isso que tentei
captar sob o nome cômodo - mas inexato, como todas as palavras de
significação excessivamente ampla - de vida material. Bem entendido, trata-
se de uma parte apenas da vida ativa dos homens, tão profundamente inventores
quanto rotineiros". Em trabalho anterior, Braudel (1995, p. 12) completa: "
[...] uma zona de opacidade, muitas vezes difícil de observar por falta de
documentação histórica suficiente, se estende sob o mercado: é a atividade
elementar de base que se encontra por toda a parte e cujo volume é simplesmente
fantástico. À falta de termo melhor, designei essa zona espessa, rente ao chão,
de vida material ou civilização material".
8 Devo a Fábio W. Reis a advertência para este ponto.
9 Era certamente com base numa contraposição análoga a essa que Hayek costumava
qualificar o socialismo como "uma nostalgia da sociedade arcaica, da
solidariedade tribal" (Sorman, 1989, p. 192).
10 North (1990, p. 93, apud Putnam, 1993, p. 178) vê o comportamento
"oportunista" como uma estratégia crescentemente compensadora, à medida que a
sociedade se torna mais complexa.
11 Contraposta ao otimismo de Herbert Spencer quanto à capacidade integradora
do mercado, a posição de Durkheim parte da constatação da corrosão inevitável
da solidariedade mecânica na sociedade moderna, mas, diferentemente da fé
liberal no mercado, para ele a solidariedade orgânica não seria capaz de prover
sozinha uma integração totalmente espontânea dos interesses individuais.
Mecanismos impessoais como o mercado não bastam. Não podem ser os únicos
mecanismos de integração, ou melhor, não se pode pretender que a integração
seja totalmente espontânea, não regulada normativamente. De onde decorre a
preocupação durkheimiana acerca do caráter "anômico" das sociedades modernas
(McCarthy, 1991, p. 121).
12 É evidente o parentesco existente entre esse argumento e a teoria pluralista
da democracia, que talvez encontre sua formulação mais acabada em Robert Dahl
(1971). Na visão de Dahl, é crucial para a democracia que nenhum grupo social
isoladamente tenha acesso exclusivo a qualquer recurso de poder - visão
esta que, como lembra Fernando Limongi (1997, p. 19), é tributária direta de
Montesquieu, Madison e Tocqueville. Com efeito, é exatamente este o argumento
subjacente à visão de Tocqueville sobre um presumível movimento inexorável do
mundo contemporâneo rumo à "sociedade democrática". Logo na introdução de "A
democracia na América" (1979, p. 185), ele o enuncia, em seu estilo: "Desde que
os cidadãos começaram a possuir a terra através de modalidades estranhas à
propriedade feudal, e quando a riqueza mobiliária, tornando-se conhecida, pôde,
por sua vez, proporcionar influência e dar poder, não se fizeram descobertas
nas artes, não se introduziram mais aperfeiçoamentos no comércio e na
indústria, sem criar número equivalente de elementos novos de igualdade entre
os homens".
13 De acordo com o trabalho etnológico de Stanley Udy (1959, apud F. W. Reis,
2000a, pp. 231-233), a adscrição viria junto com o sedentarismo acarretado pela
agricultura, em contraste com o que se daria comumente em sociedades tribais de
caçadores, em geral nômades, nas quais "o problema da utilização ótima dos
recursos materiais e humanos se coloca com agudeza", o que faria com que
prevalecessem formas de organização do trabalho que "tendem a caracterizar-se
por traços tais como especificidade quanto à divisão do trabalho [e] ênfase no
desempenho ao invés de em qualidades 'adscritivas'". Ao contrário, a sociedade
camponesa de agricultura sedentária poderia arcar com um declínio da eficiência
que presumivelmente resulta do predomínio de formas adscritivas de organização
do trabalho, em virtude da segurança econômica comparativamente maior,
propiciada pela atividade agrícola sedentária.
14 Para uma afirmação bastante conhecida da tese de que a democracia repousa
sobre um ponto de vista moralmente individualista ("uma concepção
individualista da sociedade"), pode-se recorrer a Norberto Bobbio (1986, p.
22).
15 E, portanto, não opera o "mercado político" tal como definido por Fábio W.
Reis (2000a, esp. pp. 131-153).
16 Para uma exposição da dialética entre solidariedade e interesses, referida à
operação de um critério normativo de avaliação do cumprimento da "função
política" em qualquer sociedade, ver Fábio W. Reis (2000a, pp. 123-160).
17 Para uma apresentação bastante sucinta desses argumentos, ver Bruno Reis
(1997, esp. pp. 90-94), onde descrevo o argumento de Putnam sobre a relação
entre comunidade cívica e desempenho institucional como uma corroboração
empírica da solução cooperativa espontânea de Taylor e Axelrod para o dilema do
prisioneiro. A solução de Taylor é quase idêntica à de Axelrod, exceto pelo
fato de Axelrod se ater a jogos entre dois atores. A bem da precisão, portanto,
o argumento de Putnam seria mais propriamente uma corroboração de Taylor do que
de Axelrod.
18 Ver, por exemplo, Claus Offe (1989, pp. 78-80). Já Marx e Engels haviam se
referido a regulamentações legais tanto do trabalho quanto de mecanismos do
mercado como formas de "proteger os capitalistas de si próprios". Na Ideologia
alemã (apud Jon Elster, 1989b, p. 148), eles se referem explicitamente - e
com um vocabulário muito pouco "politicamente correto" para os padrões de hoje
- ao problema da "carona": "A atitude do burguês para com as instituições
de seu regime é a mesma do judeu para com a lei; ele a evita quando isso é
possível em cada caso individual, mas quer que todos os outros a observem".
19 Acompanho aqui a definição que Thomas Schelling oferece logo na primeira
página de The strategy of conflict (1963, p. 3): "O termo 'estratégia' é
tomado, aqui, da teoria dos jogos, que distingue entre jogos de destreza, jogos
de azar e jogos de estratégia, sendo estes últimos aqueles em que a melhor
linha de ação para cada jogador depende do que outros jogadores fazem. O termo
pretende concentrar-se na interdependência das decisões dos adversários e nas
suas expectativas sobre o comportamento de cada um dos demais. Este não é o uso
militar da expressão.".
20 Para uma apresentação um tanto anedótica, mas bastante clara (e simpática),
do "teorema de Coase", ver George Stigler (1991, pp. 79-85).
21 Não há espaço no âmbito deste ensaio para desenvolver plenamente esse ponto,
mas a teoria de Douglass North (1990) sobre mudança institucional (que -
tributária de Coase - baseia-se fundamentalmente em arranjos estabelecidos
no plano das interações individuais, que obedeceriam a um imperativo coletivo
de eficiência), também parte de premissas fortes, de conseqüências analogamente
"panglossianas". Jack Knight (1992), ao conceber as instituições políticas como
subprodutos de conflitos distributivos e apoiar-se em modelos de barganha com
assimetria de recursos, gerou resultados mais indeterminados (equilíbrios não
necessariamente eficientes) e reclama haver produzido uma teoria mais
abrangente, que teria as demais como casos especiais, resultados possíveis sob
condições específicas. Agradeço a um parecerista anônimo da RBCS por chamar
minha atenção para a omissão desse tema em uma versão anterior do trabalho, e a
James Johnson pela esclarecedora interlocução na matéria.
22 Os maiores sistemas burocráticos existentes na história, mesmo que
completamente desprovidos de qualquer conteúdo democrático tal como se
compreende hoje, envolviam sempre algum importante componente competitivo (ou
meritocrático), seja na admissão a seus quadros - como parece ter sido o
caso durante séculos na China (Spence, 1995, p. 63) e no Japão (Evans, 1992,
pp. 152-154) -, seja internamente, na competição pelos postos de comando
- como aparentemente se deu na União Soviética durante a maior parte de sua
existência.
23 Habermas pretende em sua obra rejeitar precisamente esse dilema, mas não sou
persuadido de que sua solução seja bem-sucedida. Para uma crítica extensa da
posição de Habermas, remeto o leitor a Fábio W. Reis (2000b, pp. 23-101,
particularmente pp. 68-89, dedicadas à discussão da ação estratégica). Ver
também Thomas McCarthy (1991, esp. pp. 122-124).
24 Esse duplo movimento é apenas parcialmente captado pela distinção
estabelecida por Michael Mann (1992, pp. 168-173), entre o "poder despótico"
(decrescente) e "poder infra-estrutural" (crescente) do Estado.
25 Esse argumento certamente pode ser exposto em termos analiticamente mais
precisos, e é o que fazem Adam Przeworski e Fernando Limongi (1993, pp. 176-
177): "O mercado é um sistema no qual recursos limitados são alocados para usos
alternativos por meio de decisões descentralizadas. No entanto, no capitalismo,
a propriedade é institucionalmente separada da autoridade: os indivíduos são ao
mesmo tempo agentes no mercado e cidadãos. Portanto, existem dois mecanismos
pelos quais os recursos podem ser alocados e distribuídos entre os agentes
econômicos: o mercado e o Estado. O mercado é o mecanismo pelo qual os
indivíduos votam a favor de uma alocação com os recursos que possuem, e esses
recursos são sempre distribuídos desigualmente; o Estado é um sistema que aloca
recursos que não possui, sendo os direitos distribuídos diferentemente do
mercado. Segue-se que a alocação de recursos que os indivíduos preferem
enquanto cidadãos, em geral, não coincide com a que eles obtêm via mercado".
Esse mesmo argumento aparece também em Adam Przeworski e Michael Wallerstein
(1989, p. 256). Ao final, apoiados em Zhiyuan Cui (1992), Przeworski e Limongi
(1993, p. 189), completam: "[...] se os mercados são incompletos e a informação
imperfeita, a economia só pode funcionar se o Estado proteger os investidores
(responsabilidade limitada dos acionistas), as empresas (lei das falências) e
os depositantes (sistema bancário com dois tipos de bancos, um deles obrigado a
fazer seguro dos depósitos). Mas esse tipo de envolvimento do Estado
inevitavelmente introduz uma restrição orçamentária leve (soft budget
constraint). O Estado não pode simultaneamente proteger os agentes privados e
não atender às suas reivindicações, mesmo quando estas decorrem de risco moral
(moral hazard)."
26 Como diz o próprio Marshall (1965, p. 122), "os direitos sociais em sua
forma moderna implicam uma invasão do contrato pelo status".
27 Como apontou E. E. Schattschneider (1960, cap. II), a clivagem e a
abrangência da disputa são parâmetros decisivos na determinação do resultado de
um conflito político qualquer. E, no cap. VI, ele não deixa de atribuir à
dinâmica do conflito político a extensão progressiva do direito de voto.
28 Além disso, como lembra Fábio W. Reis (2000a, p. 184), "o Estado, através de
sua ação no plano social, tem de ser ele mesmo o agente produtor, no limite, da
própria capacidade de reivindicação - ou o agente produtor de condições
propícias ou tendentes a um mercado político no sentido positivo da expressão
[...], incluindo de maneira destacada os requisitos da própria dimensão civil
da cidadania".
29 A intolerância contra os intolerantes foi enfaticamente defendida por Karl
Popper (1987, pp. 289-290) como ingrediente indispensável de uma proteção
eficaz às instituições democráticas. É claro que persiste nessa estratégia a
dificuldade insanável da caracterização unilateral da intolerância alheia.
30 Lembremo-nos aqui da dupla dimensão da cidadania assinalada por George
Armstrong Kelly (1979, apud F. W. Reis, 2000a, pp. 217-219): ao mesmo tempo
"civil" (no que toca à proteção de prerrogativas individuais contra
intromissões injustificadas, provenientes sobretudo do Estado) e "cívica"
(naquilo que concerne à observância obrigatória de normas compulsórias).
31 François Furet (1989, pp. 61-64), ao chamar atenção para a ambigüidade
fundamental do conceito de revolução em Marx ("ao mesmo tempo essencial e
obscuro", pois não se sabe se a revolução revela ou cria uma nova sociedade,
uma vez que ela "ora inclui, ora exclui o conceito da necessidade histórica"),
destaca a obsessão da cultura política européia pelo exemplo da Revolução
Francesa em particular, e da revolução em geral, como "a figura principal -
e necessária - da transformação histórica moderna".
32 Brian Barry (1985, pp. 315-317) ironiza aqueles que, comprometidos
primariamente com a idéia do livre funcionamento do mercado, se vêem diante do
problema de obter uma aprovação democrática da população para que se mantenham
de mãos atadas governos eleitos também democraticamente. Não é à toa, segundo
ele, que países autoritários como Hong Kong, Taiwan e Coréia do Sul se tornam
freqüentemente as "meninas dos olhos" de tais economistas.
33 Wanderley Guilherme dos Santos (1993, pp. 22-23) também se refere à
imposição compulsória do consumo de um "mal público" aos empresários pela
crescente organização operária. A peculiaridade do argumento de De Swaan
decorre, porém, do fato de que ali a dinâmica da interdependência entre ricos e
pobres na sociedade moderna configura um problema de ação coletiva
independentemente da organização dos atores diretamente envolvidos.
34 Em corroboração a esta interpretação podemos evocar quase toda a literatura
sobre welfare state e social-democracia, que tradicionalmente os interpreta
como uma "resposta do capitalismo" às reivindicações operárias e ao sucesso que
a ideologia socialista experimentava até meados do século XX. Esse argumento
encontra talvez sua melhor formulação em Adam Przeworski (1989), que evita
escrupulosamente "teleologias objetivas" e apóia a descrição desse processo
sobre opções racionais feitas pelos diversos atores envolvidos, inclusive -
e, talvez, principalmente - os operários.
35 Para Karl Popper (1991, pp. 112-124), uma proposição pode ser ou teórica ou
histórica, mas nunca ambas ao mesmo tempo. Assim pode-se afirmar que o mundo
evoluiu numa certa direção (proposição histórica); podem-se também produzir
hipóteses explicativas - potencialmente generalizáveis - daqueles
acontecimentos (proposições teóricas), que poderão ou não tornar plausíveis
certas previsões futuras sobre o mundo; mas não se pode simplesmente postular,
sem mais, que o mundo se move numa determinada direção (proposição ao mesmo
tempo teórica e histórica).
36 Menciono aqui a turbulência política nos países centrais não por entender
que ela não se daria nos países periféricos (muito pelo contrário), mas sim
porque - conforme o argumento de De Swaan - a eventual turbulência
política nestes só produziria efeitos na direção de uma coletivização
compulsória do problema (ou seja, uma regulamentação internacional qualquer
destinada a lidar com ele) na medida em que produzisse externalidades patentes
sobre os países centrais. De maneira idêntica, no plano doméstico, a questão
social só começou a se tornar um problema coletivo quando a miséria dos pobres
passou a criar transtornos para a vida dos ricos.
37 Um diagnóstico menos pessimista se poderia extrair de Steven Vogel (1996),
para quem o recente processo de reforma regulatória nos países industriais
avançados tem consistido mais de uma re-regulamentação que de uma
desregulamentação - mesmo no plano doméstico.
38 Sobre a drástica - e irreversível - redução dos graus de liberdade
dos Estados nacionais na condução de suas políticas macroeconômicas, resultante
da quase completa integração mundial dos mercados de investimento levada a cabo
desde os anos de 1970, ver Fritz Scharpf (1991, pp. 256-275). Para agravar o
quadro, Scharpf ainda manifesta forte ceticismo quanto às possibilidades de
instauração, num futuro visível, de mecanismos internacionais de controle
institucional de processos econômicos.
39 Conforme o enuncia S. N. Eisenstadt (1968, p. 69), apoiado no esquema
parsoniano: "Um sistema institucional nunca é inteiramente 'homogêneo' no
sentido de ser inteiramente aceito ou aceito no mesmo grau por todos aqueles
que nele participam, e essas orientações diferentes para com as esferas
simbólicas centrais podem todas se tornar focos de conflito e de mudança
institucional potencial". O que faz com que todo sistema institucional seja, em
maior ou menor medida, vulnerável a um eventual "ataque" carismático, conforme
se avalie em cada momento o seu desempenho no cumprimento dessa "missão" -
ou, mais precisamente, na realização de valores socialmente predominantes.
40 Não obstante, apesar de inúmeros exemplos em contrário freqüentemente
expostos na imprensa, não há motivo para crer que as pessoas na sociedade
moderna se importem menos umas com as outras do que aquelas que tenham vivido
em qualquer outra formação social. Afinal, nenhuma outra sociedade se importou
tanto com o reconhecimento da legitimidade do interesse de cada indivíduo no
plano de sua autojustificação formal, nem construiu tantas instituições e
costumes destinadas a protegê-los. Aparentemente, o que ocorre hoje é que,
expandindo dramaticamente o número de pessoas com que de algum modo interagimos
no cotidiano, a sociedade moderna terá aumentado a incerteza em que nos movemos
no interior da multidão, talvez também no que diz respeito à segurança de cada
um, mas sobretudo quanto à própria eficácia ou necessidade do gesto individual,
o que conduz muitas vezes a episódios deprimentes como o da vítima de homicídio
cujos gritos são ouvidos por dezenas sem que nada seja feito para ajudá-la, nem
mesmo avisar à polícia. De fato, Avinash Dixit e Mancur Olson (1996, pp. 10-13)
demonstram formalmente que "quando os números são grandes o bastante, a
racionalidade individual muitas vezes faz com que resultados coletivamente
racionais sejam menos prováveis" (tradução minha).