Bourdieu e o fenômeno estético: ganhos e limites de seu conceito de campo
literário
Se a importância de um intelectual pode ser aferida através da influência que
ele exerce num certo espaço de debates, então a posição do sociólogo francês
Pierre Bourdieu, falecido ao início de 2002, é realmente privilegiada. Segundo
os registros do Social sciences citation index, ele foi, recorrentemente, um
dos autores mais citados da área de ciências sociais nos últimos anos, gerando
uma verdadeira escola de pensamento. Com produção diversificada, abrangendo
temas que vão desde a moda até seu amplo estudo sobre A miséria no mundo, a
repercussão dos trabalhos de Bourdieu é de fato considerável. Dentro da vasta
produção do autor, um feixe de questões ocupa um lugar de destaque: a sua
sociologia dos campos, e é precisamente um aspecto determinado deste feixe que
será objeto do artigo que se segue.
Mais especificamente, estaremos interessados em discutir as características
daquilo que Bourdieu nomeia como o campo literário (conceito cuja definição
mais minudente será feita logo adiante): espaço social que reúne diferentes
grupos de literatos, romancistas e poetas, que mantêm relações determinadas
entre si e também com o campo do poder. Analisando esta vertente do pensamento
de Bourdieu, tentaremos mostrar que sua peculiar aproximação às obras
produzidas pelo campo literário acaba por colocar em evidência alguns aspectos
ainda pouco examinados de sua própria teoria geral dos campos, donde a
relevância de se proceder a tal discussão.
Adiantando parte da argumentação a ser aqui desenvolvida, o presente artigo
sustenta uma hipótese dupla: num primeiro momento, reconheceremos, com
Bourdieu, a fecundidade de sua proposta de análise, que ilumina nas obras
literárias uma série de relações que, de outra maneira, permaneceriam
invisíveis. Acompanhando o autor, concordamos com a necessidade de se romper
com uma certa representação ingênua do fenômeno estético (em particular, do
texto literário), que subscreve ainda hoje uma teoria do gênio criador movido
por causas simplesmente inexplicáveis.
Já num segundo momento do artigo, mas agora distanciando-nos de Bourdieu, será
desenvolvido o argumento de que, em que pese a produtividade de sua abordagem,
ela muitas vezes desconsidera a dimensão propriamente singular do fenômeno
estético, equiparando-o a outras dimensões da experiência humana que a rigor
são bastante heterogêneas. Daí a necessidade de algum outro tipo de apreciação
suplementar que consiga manter uma relação mais afirmativa com a singularidade
do fenômeno estético e do texto literário. Relação que reconheça inclusive que
este último possui o que outros autores conceituam como um excesso de
significação: capacidade de ultrapassar o estrito momento histórico em que foi
produzido rumo a uma dimensão temporal mais ampla.
Ao final do artigo, recorreremos também, como exemplo de contraste, aos ensaios
de Walter Benjamin sobre o poeta francês Charles Baudelaire. A escolha de
Benjamin não foi arbitrária, ela se deveu ao fato de este filósofo alemão ter
estudado um período histórico próximo ao analisado por Bourdieu (a produção
literária na Paris do Segundo Império), com ênfase na obra de Baudelaire, autor
também abordado por Bourdieu em seu livro As regras da arte. Não obstante esta
proximidade do objeto empírico, veremos que as conclusões apresentadas pelos
dois autores são tão distintas que merecem uma problematização mais detalhada.
Na verdade, o leitor observará que as conseqüências do que está aqui em jogo
não se referem apenas ao debate envolvendo literatos de renome do século XIX.
Bem mais do que isso, avulta em importância uma questão conceitual de fundo,
que diz respeito a um certo modo de aproximação ao texto literário (e, em
última instância, à capacidade de ação consciente dos sujeitos).Modo este que
se presentifica, devido à enorme influência de Bourdieu não apenas na Europa
mas também no Brasil, inclusive em setores importantes da crítica sociológica
em nosso país. Por exemplo: a matriz subjacente a certas controvérsias sobre o
estudo sociológico de nossa intelectualidade (embora não seja exatamente este o
tema do presente artigo) tem sua origem última na própria teoria dos campos de
Bourdieu, razão suplementar para um olhar atento sobre ela.
* * *
Iniciemos, então, com a referida teoria dos campos; bem conhecida do público
leitor em ciências sociais, ela certamente não necessita ser aqui reproduzida
em detalhes. Apenas como registro de seus traços mais essenciais, recordemos a
sintética definição que o próprio Bourdieu nos apresenta de seu cerne no texto
Questões de sociologia. Ali, ele define campos como
[...] espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas
propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser
analisadas independentemente das características de seus ocupantes
[...]. Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo
da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis
de funcionamento invariantes (Bourdieu, 1983, p. 89, grifos do
autor).
Assim, um campo é um espaço social onde seus participantes se engajam em
relações recíprocas no transcurso de suas atividades, e a passagem citada nos
esclarece que campos muito diferentes entre si (como o da política, o da
religião etc.) apresentam propriedades comuns que permitem que se possa falar
em leis características deles. Quanto ao ganho cognitivo que tal teoria
oferece, ele pode ser visto como uma tentativa de evidenciar que ali onde
pensávamos que havia um sujeito livre, agindo de acordo com sua vontade mais
imediata, na verdade o que existe é um espaço de forças estruturado que molda a
capacidade de ação e de decisão de quem dele participa. É, pois, contra uma
certa concepção de autonomia do sujeito que Bourdieu se insurge de modo
enfático. E, ao longo de seu trajeto intelectual, ele elegeu sucessivos objetos
onde seria possível detectar a vigência de uma subjacente rede de relações
coagindo os sujeitos: a educação, a moda, a televisão, a produção intelectual e
artística de uma época etc.
No que diz respeito ao campo literário, tema aqui em foco, embora um primeiro
contato com ele possa sugerir uma infinita casuística de querelas e tomadas de
posições contraditórias entre seus membros, o que o desenvolvimento da análise
sociológica evidencia é que "este universo aparentemente anárquico e de bom
grado libertário [...] é o lugar de uma espécie de balé bem ordenado no qual os
indivíduos e os grupos desenham suas figuras" (1996, p. 133).
A tarefa que Bourdieu se propõe é algo como proceder à decifração das regras
que comandam a coreografia deste balé. E ele faz isso de maneira persuasiva,
demostrando que as oscilações nas tomadas de posição dos artistas e literatos
correspondem às metamorfoses do relacionamento existente entre os artistas e o
campo econômico e político. Esta demonstração explicita as condições sociais de
possibilidade de emergência destes grupos, o que finda por invalidar uma teoria
romântica do artista como gênio, que produziria unicamente em função de sua
inspiração. Tomando como estudo de caso o campo literário da França de meados
do século XIX, Bourdieu identifica um verdadeiro microcosmo tripartido, cujos
participantes estavam postos em simultâneas relações de concorrência e
solidariedade entre si, que repercutiam em sua produção literária. Assim,
especialmente a partir de Napoleão III, teríamos os defensores de uma arte
social, que entendiam que a elaboração artística deveria expressar os conflitos
presentes na sociedade (como a questão das desigualdades, da miséria etc.),
coexistindo com os defensores da arte pela arte, cujo investimento maior era
feito nas questões da linguagem artística, que secundarizavam os conteúdos
abordados em nome de uma pesquisa sempre renovada da linguagem. Finalmente,
haveria aqueles literatos que endereçavam sua produção diretamente ao mercado
(os artistas burgueses), que produziam obras de consumo imediato, com bom
retorno financeiro, mas desprovidas de maiores preocupações substantivas ou
formais (1974, pp.192-193).
Bourdieu se interessa em particular pelos defensores da arte pela arte, que
geraram nomes mundialmente célebres (como Gustav Flaubert e Charles
Baudelaire), marcos na literatura universal. E ele nos mostra de forma
provocativa que havia subjacentes determinações de classe operando nas tomadas
de posição, em aparência puramente estéticas, dos diferentes participantes
deste campo. Pois enquanto os defensores da arte social eram, na maior parte
das vezes, indivíduos oriundos de classes médias e até populares, já os
defensores da arte pela arte vinham de camadas mais abastadas da sociedade
francesa, que podiam esperar por um grande tempo o reconhecimento material e
simbólico de seu trabalho: "Era preciso ser burguês e dispor, portanto, dos
recursos necessários a fim de poder resistir à solicitação direta da demanda e
esperar pelas remunerações materiais e simbólicas necessariamente adiadas"
(Bourdieu, 1974, p. 200, grifos do autor).
A ênfase de seus membros nos temas sobretudo formais teria também o efeito de,
no limite, apagar as marcas sociais e históricas que pudessem vincular a obra a
um certo contexto. (É por aí que se explicaria o desejo de Flaubert de escrever
um "livro sobre o nada, um livro sem vínculos exteriores".) Estaríamos então
diante de um projeto de autonomia acalantado pelos intelectuais e artistas, que
ansiavam por um reconhecimento de seu valor peculiar, supostamente irredutível
ao mercado e ao cotidiano de uma sociedade já mercantilizada em suas demais
esferas. Daí Bourdieu referir-se a eles como a "fração dominada da classe
dominante" (1974, p. 192), que mantinha relações ambivalentes com o poder, ora
desprezando os "burgueses" ' na verdade sua clientela em potencial ', mas ao
mesmo tempo desejando um reconhecimento público que podia demorar enormemente.
Para fundamentar esta hipótese, Bourdieu nos apresenta pronunciamentos
realmente extremos de alguns dos defensores da arte pela arte, que colocam em
evidência uma visão de mundo onde marcas de um pertencimento de classe se
manifestam com força. Com efeito, podemos surpreender autênticas pérolas do
pensamento conservador, presentes mesmo naqueles que se apresentavam como
inovadores radicais. Ouçamos, por exemplo, qual é a premissa, no entendimento
de E. Goncourt, para se ser um "homem de talento": "Talvez seja um preconceito,
mas acredito que é preciso ser um homem de bem e um burguês honrado para ser um
homem de talento. Julgo a partir de Flaubert e de nós [...]" (apud Bourdieu,
1974, p. 195).
Quanto ao próprio Flaubert ' o chefe da escola ', suas preferências elitistas
são claramente exteriorizadas em suas cartas: "Acreditais que se a França, em
lugar de ser governada pela multidão, estivesse em poder dos mandarins, nós
estaríamos assim? Em lugar de haver desejado esclarecer as classes baixas,
teria sido melhor tratar de instruir as altas" (Idem, p. 194).
Como a realidade política francesa estava muito distante dos desejos do
romancista, a alternativa encontrada por ele era assim proclamada: "Eu me enfio
em meu buraco e, mesmo que o mundo desabe, eu não saio do lugar. A ação [...]
me parece cada vez mais antipática" (Idem, p. 196).
Estes depoimentos de escritores tão relevantes acerca de seu posicionamento no
mundo social e político fornecem a Bourdieu a oportunidade de aplicar a eles o
seu conceito de habitus, entendido como o conjunto das disposições
inconscientes que estariam presentes em diferentes sujeitos, levando-se em
conta ' o que é decisivo ' que tais disposições seriam o resultado da
interiorização de complexas estruturas objetivas presentes numa sociedade
(1974, p. 201). Ora, condições sociais distintas produzem nos sujeitos
disposições distintas e, conseqüentemente, habitus de classe: grupos
identificáveis de subjetividades que, partilhando certas características em
comum, se articulam por esta via indireta com as diferenciadas posições
objetivas das classes sociais.
No que toca aos defensores da arte pela arte, Bourdieu sustenta que havia uma
afinidade estrutural entre certas posições disponíveis no campo literário e
aqueles indivíduos em condições de ocupá-las. Dito de outro modo: o que para o
literato, de seu ponto de vista subjetivo, se assemelha sobretudo a uma vocação
inquestionável, produto de um talento pessoal e intransferível, seria
visualizado com maior clareza pela análise sociológica quando confrontado com
aquelas disponibilidades existentes num certo momento histórico, que demandam
ser ocupadas por alguns sujeitos ' e apenas por alguns ' compatíveis com elas.
O habitus desempenha portanto a função de uma estrutura intermediária, que
realiza a mediação entre as chamadas condições objetivas de funcionamento de
uma sociedade (a existência de um mercado, que pressupõe a divisão entre
trabalho material e intelectual, o estágio em que se encontram as relações
entre as classes sociais e a esfera política etc.) e as aptidões subjetivas dos
membros desta sociedade, vividas algo ingenuamente por estes últimos como
talentos inatos.
Inicialmente, as pesquisas de Bourdieu sobre o campo literário francês da
segunda metade do século XIX foram apresentadas em seus escritos da década de
1970 (em "Le temps modernes" e em "Scolies"1). Anos mais tarde, ele amplia e
sistematiza suas concepções em As regras da arte, texto fundamental para todo
leitor que se interesse por estética. Nele, é realizado um comentário bastante
original sobre A educação sentimental, romance de Gustav Flaubert que, no
entendimento do sociólogo, não teria sido analisado da forma mais apropriada
até o presente momento.
Discutindo este romance, a tese mais geral de Bourdieu é a de que
[...] a estrutura da obra, que uma leitura estritamente interna traz
à luz, ou seja, a estrutura do espaço social no qual transcorrem as
aventuras de Frédéric [personagem central de A educação sentimental],
é também a estrutura do espaço social no qual seu próprio autor
estava situado (1996, p. 17).
Dessa forma, existiria um paralelismo ' a ser posto em evidência pela análise
sociológica ' entre o texto literário e o espaço social em que ele foi
produzido. Para comprovar essa hipótese central, Bourdieu afirma que as
desventuras do jovem protagonista de A educação sentimental, Frédéric,
expressam as tensões que marcam um membro do proprietariado que, tendo
dificuldades em assumir a herança de sua família, oscila entre espaços sociais
distintos (o personagem circula entre os salões de empresários mas também nas
reuniões dos literatos intelectualizados).
Resta Frédéric. Herdeiro que não quer tornar-se o que é, ou seja, um
burguês, ele oscila entre estratégias mutuamente exclusivas e, à
força de recusar os possíveis que lhe são oferecidos [...] acaba por
comprometer todas as suas possibilidades de reprodução (Idem, p. 33).
Como vemos, a análise empreendida por Bourdieu tem um salutar efeito
desmistificador de ruptura com a "relação encantada" que uma certa crítica
literária mantém com o fenômeno estético. Para os que subscrevem uma teoria da
criação literária movida por uma espécie de inefável (e esta crença é ainda
hoje bastante difundida, basta ver os enunciados de um filósofo tão relevante
como H. G. Gadamer, citado logo ao início de As regras da arte pelo próprio
Bourdieu), a leitura de seus textos é um antídoto eficaz. Pois eles nos
apresentam de forma contundente os personagens literários se debatendo no
interior de subjacentes estruturas sociais, que possuem uma inteligibilidade
própria, a ser desvendada pela análise literária de cunho sociológico.
* * *
Porém, percorrido este trajeto, que é certamente instrutivo, diríamos que uma
importante questão não foi abordada pela sociologia bourdieusiana, e é
precisamente dela que nos ocuparemos a partir de agora. Referimo-nos à
possibilidade de a obra literária exceder sua determinação sociológica
originária e vir a se constituir como força geradora de sentido, ultrapassando
o contexto imediato em que foi produzida. Quando isso ocorre, ela consegue
operar sobre a mundanidade que a gerou a transfiguração estética ' trabalho
próprio da expressão artística ', demandando uma apreensão singularizada que
acolha esta inovação trazida pela própria obra. Examinemos novamente, mas agora
levando em conta esta ressalva, aquela passagem anteriormente citada, que
apresenta ao leitor a hipótese central de Bourdieu sobre A educação
sentimental:
[...] a estrutura da obra, que uma leitura estritamente interna traz
à luz, ou seja, a estrutura do espaço social no qual transcorrem as
aventuras de Fréderic, é também a estrutura do espaço social no qual
seu próprio autor estava situado (1996, p. 17).
Ora, o que está ausente em passagens como esta é a possibilidade de a obra (o
romance, o poema, a novela) ultrapassar a homologia com o espaço social em que
foi produzida e gerar o seu próprio espaço estético, que mesmo lançando raízes
profundas no convívio dos homens, não deve ser assimilado a este último de
forma tão direta. A possibilidade de a obra literária exceder o campo literário
no qual foi produzida e gerar como que círculos concêntricos que se expandem ao
longo do tempo pode ser demonstrada de várias maneiras, como veremos a seguir.
Inicialmente, talvez caiba prosaicamente recordar que no Brasil, na cidade do
Rio de Janeiro, no ano de 2002 foram encenadas simultaneamente nada menos do
que oito peças de Shakespeare, escritas originalmente na Inglaterra do século
XVII. E, é duro dizer, a sociologia dos campos de Bourdieu, tão fértil sob
outros aspectos, tem muito pouco a dizer acerca das possíveis razões que
expliquem a perenidade desta dramaturgia que nos convida, tantos séculos
depois, a refletirmos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Com efeito, o que o
exemplo de um Shakespeare nos mostra com clareza é que a estrutura da obra '
para usarmos a expressão de Bourdieu ', nem sempre é apenas "a estrutura do
espaço social no qual seu próprio autor estava situado", pois ela pode
ultrapassar este último (o espaço social do autor) rumo à sua própria
existência singular como fenômeno estético.
Mais do que isso: se permanecêssemos apenas na estrutura do espaço social do
autor como chave explicativa da obra, teríamos enormes dificuldades em entender
sua recepção em sociedades e tempos históricos muito distintos daqueles nos
quais a obra foi originalmente produzida. Afirmar isso não significa acreditar
numa espécie de inefável que estaria presente no texto literário (como parece
ser o caso de um H. G. Gadamer, justamente criticado por Bourdieu); significa,
apenas, atentar para a necessidade de uma sintonia mais fina com determinadas
manifestações estéticas, a fim de reconhecer a potência nelas presente.
Ao invés de reconhecer esta riqueza da obra, Bourdieu opta recorrentemente por
caracterizá-la apenas através das marcas de seu meio social mais próximo. Mesmo
na abordagem de A educação sentimental (o comentário mais minudente feito por
Bourdieu sobre um texto literário) esta tendência se manifesta com freqüência.
Tomemos como exemplo a análise do relacionamento entre os personagens Frédéric
e seu amigo Deslauriers. Ali onde vários intérpretes detectaram um conjunto
complexo de sentimentos contraditórios, afetos ambivalentes, tensões psíquicas
permeadas por relações de classe, Bourdieu parece se satisfazer apenas com esta
última determinação. Assim, ele afirma de forma taxativa: "A relação entre
Frédéric e Deslauriers desenha a oposição entre aqueles que herdam e aqueles
que herdam apenas a aspiração a possuir, ou seja, entre burguês e pequeno-
burguês". E, mais adiante: "O princípio da relação singular entre os dois
amigos está inscrito na relação entre a burguesia e a pequena burguesia" (1996,
pp. 29-30).
Obviamente, não se trata de negar a presença de fortes determinações de classe
no interior do relacionamento entre estes dois personagens; o que convém
questionar é apenas a implícita suposição de que o texto literário se esgota
nesta dimensão, como se ele não apresentasse outras possibilidades de
aproximação. Por outro lado, é fato que, quando se trata de analisar A educação
sentimental, as teses de Bourdieu muitas vezes se revelam fecundas, talvez em
função de uma percepção muito aguda do próprio Flaubert sobre os
constrangimentos sociais existentes para os intelectuais: a rigor, este é um
tema flaubertiano. (Aliás, esta última constatação nos leva inclusive a uma
relativização acerca do citado projeto do romancista de escrever um "livro
sobre nada, sem vínculos exteriores", pois o que a análise de Bourdieu
demonstra ' ainda que sem o reconhecer explicitamente ' é que a prática
literária de Flaubert situa-se bem além do que ele declarava publicamente ou em
correspondência!)
Todavia, a situação muda bastante de figura quando vamos analisar aqueles
autores que elegem outros temas como seus motivos centrais; pense-se por
exemplo nas obras de um James Joyce ou de uma Virginia Woolf. Nelas, o que está
em jogo é sobretudo um denso trabalho metalingüístico, em que a experiência de
uma introspecção radicalizada dos personagens ' diferentemente do que ocorre em
Flaubert ' vai para um primeiro plano muito evidente da narrativa. Sabemos que
a própria possibilidade de tal introspecção só é dada em determinadas
sociedades e a partir de um certo momento histórico; porém, apenas constatar
isso seria trivial para o exercício da crítica literária. Em casos como estes,
a proposta de investigação de Bourdieu teria muito pouco a nos dizer, a não ser
que escolhêssemos como fonte de análise não os romances destes autores, mas
suas declarações públicas como cidadãos (mais adiante veremos que, com algumas
exceções, foi exatamente este o tipo de fonte documental majoritariamente
utilizado por Bourdieu em sua análise dos defensores da arte pela arte).
Se nos indagarmos pelas razões que levaram nosso autor a proceder desta forma,
talvez a principal delas seja uma aposta muito reiterada naquele suposto
paralelismo entre a obra literária e as posições que seus autores ocupam no
campo artístico e literário. Isto pode ser comprovado mesmo num momento mais
avançado de As regras da arte quando, referindo-se ao fato de os artistas e
literatos oriundos de um determinado extrato social terem preenchido posições
correspondentes no campo intelectual e artístico, Bourdieu sustenta que: "Às
diferentes posições [...] correspondem tomadas de posição homólogas, obras
literárias ou artísticas evidentemente, mas também atos e discursos políticos,
manifestos ou polêmicas etc." (1996, pp. 261-262, grifos do autor).
De novo aqui, salta aos olhos o fato de que esta homologia sustentada pelo
autor deixa em segundo plano a transfiguração estética operada pelo texto
literário. Pois este último ruma para aquilo que um filósofo como Maurice
Merleau-Ponty (1964, pp. 62-63) chamaria de o excesso de significação, oferta
de sentido que a obra densa ' intelectual ou artística ' nos faz. Quando isso
ocorre, torna-se possível presenciar o caráter propriamente produtivo da obra
de arte, sua capacidade de expressar o que estava apenas latente na própria
experiência histórica. Para este tipo de obra, seminal, talvez se inverta o
raciocínio que implicitamente supõe que "o contexto explica a obra", pois
existe também a obra que nos interpela e nos ensina, evidenciando aquilo que,
sem o seu concurso, simplesmente não existiria. Neste caso, diríamos que é ela,
a obra, quem nos analisa, e é preciso ter acuidade para registrar a
singularidade deste evento.
A bem da verdade, há que se reconhecer que em algumas (poucas) passagens de As
regras da arte o próprio Bourdieu chega próximo do tema do excesso de
significação da obra. Pensamos especialmente naquele momento do texto em que
ele afirma que é preciso diferenciar "entre as obras que são o puro produto de
um meio e de um mercado e aquelas que devem produzir seu mercado e podem mesmo
contribuir para transformar seu meio, graças ao trabalho de libertação do qual
são produto [...]" (Bourdieu, 1996, p. 124).
Se esse eixo argumentativo fosse desenvolvido até as suas últimas
conseqüências, provavelmente ele chegaria à tematização das características
peculiares da transfiguração estética, fazendo-nos pensar, por exemplo, na
precisa afirmação do artista plástico Paul Klee (2001): "A arte não reproduz o
visível, mas torna visível". O problema é que considerações como as
anteriormente citadas são minoritárias no texto de Bourdieu (que não cita
Klee...): na verdade, o sociólogo prefere se comprazer em enunciar repetidas
vezes que a obra está como que contida no espaço de possibilidades que o campo
oferece.
* * *
Em suma, o que está em jogo aqui é a complexa relação entre categorias
particulares e categorias universais que a manifestação artística encena de
modo muito expressivo. A contribuição de Bourdieu nos mostra de forma eloqüente
que aqueles que acreditam que a manifestação artística expressa uma
universalidade inquestionada incorrem num procedimento ingênuo, que consiste em
tomar por atemporais fenômenos que na verdade respondem a injunções históricas
muito precisas. É nesse âmbito que a elaboração de Bourdieu incide; é por aí
que seu trabalho teórico avulta em importância e produz sentido. Isso posto,
porém, resta intacta uma importante questão: como explicar a permanência ' e a
contínua reatualização ' de certas obras que ultrapassam em muito aquele campo
no qual foram originalmente produzidas? A lúcida recusa de um universal
abstrato não deve nos fazer cair na polaridade simétrica e oposta: a fixação na
particularidade de cada obra, tomada como única e irrepetível.
É com esta difícil questão que a teoria estética se debate há literalmente
séculos, e ela demanda uma articulação precisa entre categorias singulares,
históricas (como aquelas que Bourdieu nos apresenta com inegável competência) e
categorias mais gerais, que dizem respeito aos fundamentos mesmo da experiência
estética. Se a obra de arte vem ao mundo marcada por uma particularidade que a
gerou (um "campo"), talvez o índice distintivo da boa obra seja aquele que
permite que ela ultrapasse esta sua origem rumo a uma dimensão mais universal.
E é precisamente neste ponto em que a concepção de Bourdieu merece ser cotejada
com a de outros autores.
Nem de longe pretendendo aqui uma abordagem exaustiva da questão, mencionemos
apenas que na história da filosofia, pensadores como I. Kant e G. W. Hegel se
debruçaram sobre as marcas distintivas da experiência estética. Assim é que,
respondendo à essencial pergunta: "por que cria o homem obras de arte?", este
último filósofo teorizou longamente sobre o esforço humano de passagem do em si
ao para si, que traz consigo uma dimensão da consciência da maior relevância,
pois é por esta via que se obtém um alargamento da experiência que de outra
forma seria impossível (Hegel, 1974, pp. 117-120). Bem sabemos que a ambição
universalizante de Hegel recebeu certeiras críticas ao longo do século XX;
porém, o fato é que presencia-se hoje uma revalorização de algumas de suas
intuições seminais, despojadas dos elementos anacrônicos de seu sistema (basta
lembrar da sofisticada abordagem psicanalítica do filósofo esloveno Slavoj
Zizek que, em seu livro O mais sublime dos histéricos, recupera em contexto
teórico diferenciado algumas das contribuições de Hegel).
Destarte, autores com orientação conceitual bem distinta do idealismo alemão '
reconhecendo a relevância da questão que se pergunta por que, afinal, os homens
criam obras de arte ' reconstruíram esta dialética em quadro conceitual
diferenciado. Donde a hipótese de que a expressão artística é bem-sucedida
quando consegue uma expansão da consciência de seus produtores e receptores,
originando a percepção de seu pertencimento ao próprio gênero humano (cf.
Lukács, 1966). Assim, a obra expressiva seria aquela que nos permite
transcender nosso cotidiano mais limitado, iluminando dimensões essenciais de
uma humanidade em devir. Estaríamos diante então, não de uma condição humana
abstrata, mas sobretudo da possibilidade de universalização de uma certa
experiência, que pode ser partilhada, ainda que com óbvias diferenças, não
apenas pelos gregos da Antigüidade, ou por Shakespeare (continuamente
reencenados mesmo nos dias de hoje), mas também por nós, homens contemporâneos.
Desenvolver este tema nos levaria muito distante do objeto aqui em foco, mas
que fique pelo menos anotada esta carência de um enfrentamento mais
substantivo, por parte de Bourdieu, dos fundamentos sobre os quais se baseia o
fenômeno estético.
Aliás, no que tange ao trajeto intelectual do mestre francês, os primeiros
artigos que ele escreve sobre teoria estética ' bastante anteriores ao livro As
regras da arte ' contêm, a nosso ver, uma concepção exageradamente determinista
da práxis estética e literária. Com o passar do tempo, e com o amadurecimento
que costuma acompanhar a produção de um autor, Bourdieu consegue atingir um
patamar mais alto em sua reflexão, consignado precisamente em seu As regras da
arte. (Esta abertura de perspectiva a que nos referimos já foi registrada ' mas
no que diz respeito a outros níveis da teoria do sociólogo ' por alguns
estudiosos de seu pensamento; dentre eles, podemos citar Catherine Paradeise
(1981), em seu comentário sobre Le sens pratique2.)
Contudo, mesmo nesta fase posterior de Bourdieu, é possível detectar a
coexistência de eixos argumentativos diferenciados: um que praticamente
identifica a obra literária ao campo a que pertence seu criador (o passo
seguinte da análise consistindo em fazer afirmações sobre a obra que, a rigor,
se aplicam melhor ao seu autor como cidadão). O outro nível de argumentação
corresponde às aquisições posteriores de Bourdieu, onde cabe não só aquela
passagem citada de As regras da arte (que lucidamente distingue as obras que se
esgotam no mercado daquelas que geram o seu próprio campo), como também uma
consistente análise do estilo de Flaubert, criação singularizada do romancista,
trabalho sobre a linguagem que lhe permite ' e a seu leitor ' uma "experiência
intensificada do real" (1996, p. 129).
Entretanto, mesmo neste momento mais elaborado da reflexão bourdieusiana,
aquela matriz conceitual anterior, mais "dura", persiste como estrutura de base
sobre a qual se ergue, às vezes de modo contraditório, sua teoria estética.
Como exemplo desta persistência, mencionemos ainda uma outra passagem muito
significativa para as teses aqui em jogo, aquela onde são discutidos os efeitos
da perda de raridade da obra de arte.
Neste passo de As regras da arte, Bourdieu sustenta que, tal como ocorre com as
mercadorias destinadas ao consumo simbólico ostentatório (perfumes, roupas de
grandes costureiros etc.), também a obra de arte perde sua eficácia simbólica
quando é muito difundida. Para fundamentar esta afirmação, ele compara as peças
musicais de Albinoni, Vivaldi e Chopin, supostamente desvalorizadas pelo efeito
de uma excessiva divulgação, com o destino da clientela dos perfumes de Carven,
composta por "mulheres elegantes mas envelhecidas que permanecem apegadas aos
perfumes chiques de sua juventude e de mulheres mais jovens mas menos
abastadas" (1996, p. 288).
A comparação é particularmente infeliz. Primeiro porque a equiparação imediata
de uma peça musical com uma mercadoria acaba por desconsiderar exatamente
aquilo que é mais singular na obra de arte: a transfiguração estética que ela
realiza e que lhe permite atravessar um percurso histórico de longa duração. E,
depois, mesmo se aceitássemos os termos desta comparação, sua validade seria
questionável também por uma outra via. Poucos compositores eruditos são mais
executados do que J. S. Bach, mas nem por esta "perda de raridade", para
usarmos os termos de Bourdieu, o músico alemão perdeu o seu valor distintivo:
permanece, ao contrário, como um vértice de valor para os mais exigentes
apreciadores de música. Também na literatura poderíamos reiterar o exemplo de
Shakespeare como autor continuamente encenado, adaptado, transposto para o
cinema, mas que nem por isso viu diminuído seu valor (ao contrário dos perfumes
de Carven...). Razões análogas a esta permitiram que Jeannine Verdès-Leroux,
talvez a crítica mais ácida de Bourdieu, injustamente afirmasse que sua teoria
estética não consegue ultrapassar um misto de "determinismo, finalismo e
tautologia" (Verdès-Leroux, 1998, p. 170).
Conviria indagar por que motivo um sociólogo que tinha um acentuado interesse
por filosofia ' como nos mostra Chauviré (1995) ' reservou um espaço tão
pequeno em sua análise para a singularidade estética, dimensão sem dúvida
essencial para um aprofundamento neste campo da experiência humana. Talvez a
resposta para esta questão possa ser encontrada nas afinidades de Bourdieu com
o pensamento estruturalista (amplamente hegemônico na época em que ele publica
seus primeiros trabalhos), que determinam várias das características de sua
sociologia dos campos. Pois é um motivo desenvolvido pelo estruturalismo aquele
que afirma incessantemente que as tomadas de posição dos agentes sociais devem
ser vistas sobretudo como o efeito de uma estrutura que os sobredetermina. A
crítica a esta suposição é hoje bem conhecida em ciências sociais: ela esvazia
a capacidade de ação dos sujeitos, que comparecem na teoria desprovidos de seu
poder de interagir com as determinações oriundas das estruturas sociais.
(Curioso é notar que a capacidade de ação consciente dos sujeitos foi
exemplificada pela própria ação política de Bourdieu ao final de sua vida, em
sua militância intensa e aberta contra o neoliberalismo; lamentamos apenas que
tal capacidade não tenha sido devidamente teorizada nos textos do autor aqui em
foco!)
Lateralmente, observe-se também que não é apenas na reflexão sobre estética que
se pode detectar esta característica homogeneizadora da teoria dos campos de
Bourdieu. Em sua análise, bem mais recente, que versa Sobre a televisão, nosso
autor desenvolve o tema das subjacentes relações de semelhança que estariam
presentes entre os membros do que ele nomeia como o campo jornalístico,
afirmando que "[...] pequenas diferenças às quais, subjetivamente, os
diferentes jornalistas atribuem tanta importância mascaram as enormes
semelhanças" (1997, p. 32). O texto prossegue sustentando a existência de
análogas relações de proximidade, de pertencimento a um campo, entre o jornal
Le monde diplomatique e a emissora TF1 (Idem, p. 58). Mas ora, também aqui a
operação de Bourdieu realiza uma considerável homogeneização de diferenças. Le
monde diplomatique é um jornal que não apenas dá espaço mas incentiva
movimentos de oposição à lógica econômica ditada pelas grandes corporações
internacionais (movimentos nos quais, reiteramos, o próprio Bourdieu
desenvolveu uma atividade política muito lúcida a partir da década de 1990). Ao
passo que a TF1 prossegue em sua programação de consumo mais imediato e
bastante comprometida com uma visão de mundo conservadora. De resto, há que se
convir que uma análise sociológica onde cabem manifestações jornalísticas tão
distintas termina por fazer passar uma peneira com "furos muito largos" sobre
os fenômenos que pretende estudar.
Também o exame daquele outro conceito fundamental da sociologia bourdieusiana,
o de habitus, nos evidenciará esta afinidade mais profunda (mesmo que negada
pelo autor...) com o pensamento estruturalista. Vejamos sua própria formulação
do que seja o habitus:
O habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o
produto da interiorização das estruturas objetivas e que, enquanto
lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação,
do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a produzir
práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às
estruturas objetivas (Bourdieu, 1974, pp. 201-202).
Vale destacar que esta passagem praticamente faz com que as "estruturas
objetivas" recubram todas as possibilidades de ação dos sujeitos (inclusive de
seu futuro). Uma determinação desta ordem ' que chega mesmo a se constituir
como um determinismo fechado ', quando transposta para o campo literário,
gerará aqueles efeitos comentados pouco acima: a análise bourdieusiana do texto
literário finda por subsumi-lo inteiramente a seu contexto. A esta matriz
estruturalista, somou-se também uma certa peculiaridade na escolha de Bourdieu
de suas fontes de pesquisa. Pois, quando se examina os diferentes documentos
nos quais ela foi baseada, verifica-se que, com a exceção da já citada análise
de A educação sentimental, houve um predomínio muito claro na correspondência
dos literatos, bem como em suas declarações públicas, e nos artigos que
escreviam para os periódicos da época.
A eleição preferencial deste tipo de fonte deixa em segundo plano uma análise
mais desenvolta da obra literária propriamente dita, expressão singular da
experiência estética. Na verdade, os documentos majoritariamente utilizados por
Bourdieu põem em primeiro plano o artista como cidadão: ou seja, alguém que
habita a polis e expressa uma série de considerações, sem dúvida marcadas por
um pertencimento classista, sobre a vida de seu tempo. Mesmo quando se leva em
conta o texto literário a que Bourdieu dedica mais atenção, o romance A
educação sentimental, é possível observar que trata-se de uma análise bastante
sintética em comparação com o enorme número de páginas dedicadas pelo sociólogo
às condições sociais que possibilitaram a emergência de um certo tipo de
artista.
Ocorre que as conclusões válidas para o literato como cidadão podem se revelar
no mínimo parciais para a obra que ele produz. Destarte, um literato que assume
posições politicamente conservadoras pode deixar como legado artístico uma obra
que, em sua dimensão estética, não se deixa recobrir por tais posições, pois
elas foram metamorfoseadas pelo trabalho peculiar da criação literária. Assim,
quando Bourdieu insiste na declaração de Baudelaire de que "O 2 de dezembro
fisicamente me despolitizou. Não há mais idéias gerais" (apud Bourdieu, 1996,
p. 76), tal afirmação pode servir sem dúvida para o cidadão Baudelaire ' de
fato desiludido com os rumos tomados pela política francesa da segunda metade
do século XIX. Todavia, tudo muda de figura quando se procede a uma análise da
lírica baudelairiana que, não obstante as declarações de seu autor, permanece
atravessada, como veremos, por uma penetrante visão histórica e política do
momento em que foi engendrada. Aliás, a referência a Baudelaire nos dará a
oportunidade de brevemente cotejar a análise de Bourdieu com a de um outro
pensador que também se ocupou do fenômeno estético.
* * * *
Referimo-nos a Walter Benjamin, que dedicou parte expressiva de sua elaboração
teórica ao estudo de um período histórico próximo ao analisado por Bourdieu: a
França de meados do século XIX. Vale lembrar que Benjamin foi tradutor de
Baudelaire para o alemão, tendo um interesse tão acentuado em seus poemas que
dedicou longos ensaios a eles. Curioso é notar, porém, que o leitor que
disponha apenas do conceito bourdieusiano de campo intelectual e artístico,
quando se debruçar sobre os densos textos de Benjamin se encontrará numa
situação no mínimo desconcertante. Isso porque o Baudelaire que emerge destes
ensaios é bastante diferente daquele que comparece na análise de Bourdieu: é um
poeta cujo potencial contestatório ' mesmo após o "2 de dezembro" ' é enorme.
Trata-se de alguém que, mesmo expressando um tipo bastante parcial de
consciência histórica, ainda assim reteve traços essenciais do período.
Entre outros temas, Benjamin recupera a questão da raiva, do ímpeto
revolucionário que estava presente nos poemas de Baudelaire, e faz uma analogia
deste sentimento com as enormes tensões sociais não resolvidas do período:
"Essa raivosa ira ' la rogne ', esse rancor havia sido a estrutura psíquica que
alimentara meio século de lutas de barricadas nos conspiradores profissionais
de Paris" (Benjamin, 1985, p. 47). A leitura dos longos ensaios do filósofo
alemão, como "A Paris do Segundo Império em Baudelaire" ou "Sobre alguns temas
em Baudelaire", nos mostra a lírica do poeta expressando o pathos dos numerosos
excluídos pela reação conservadora que se seguiu aos movimentos contestatórios
de 1848. Recordemos que nas Flores do Mal ' sua obra máxima ' existem poemas
que tratam dos velhos, das prostitutas, mendigos, enfim daqueles tipos que
estavam até então proscritos de uma certa concepção de poesia. Ainda que ' e
esta ressalva é fundamental ' a percepção consciente do próprio Baudelaire
sobre o período apresente contradições (e inclusive marcas conservadoras, o que
pode ser atestado pelos seus artigos de opinião e por sua correspondência), o
fato é que sua obra propriamente poética termina por expressar bem mais do que
o cidadão Baudelaire teria a dizer sobre a Paris do Segundo Império.
O resultado desta recuperação, por parte de W. Benjamin, do pathos peculiar ali
existente faz com que os poemas baudelairianos ingressem no texto do filósofo
como um momento constitutivo da argumentação, e não apenas como um objeto a ser
abordado a partir de um ponto de vista alheio ao próprio poema. Apenas a título
de ilustração, mencionemos a instigante hipótese benjaminiana de que é o tema
da grande metrópoleo motivo de fundo que subjaz à lírica de Flores do mal,
fornecendo-lhe o estofo histórico e social do qual a obra retira sua força.
Para demonstrar tal hipótese, Benjamin nos apresenta aqueles momentos em que o
poeta registra as enormes modificações que estavam ocorrendo na experiência e
na sensibilidade do habitante da grande cidade. Particularmente feliz nesta
análise é a sua incorporação do poema baudelairiano "À une passante", que
descreve o atordoamento do poeta ("crispado como um extravagante") por uma
mulher que passa próximo a ele para logo se perder na multidão ao seu redor.
Benjamin comenta que "O êxtase do citadino é um amor não já à primeira vista, e
sim à última" (1980, p. 38): a moça desaparece no meio da multidão anônima, e o
poeta intui que provavelmente nunca mais a verá. A partir deste motivo, são
desenvolvidas considerações acerca de uma nova subjetividade que estava se
formando naquele momento, que se caracterizava pela transitoriedade das
relações pessoais, pela falta de referências estáveis, o que repercute na
constituição de uma estrutura psíquica singular. E o filósofo nos mostra que os
poemas de Baudelaire são um testemunho eloqüente desta condição: é a vivência
do choc, dos eventos fragmentados ' conforme o atesta também o poema sobre o
jogo de azar, "Le jeu" ', que geram a incapacidade de se formar um sentido mais
consistente acerca do transcurso da experiência. Não se tratando de postular o
retorno a um momento histórico já superado, o que Benjamin faz é perquirir
pelos signos da emergência de uma nova época, captada de forma poética (ainda
que com os traços da lírica "maldita") em Flores do mal.
Lembremos ainda que o projeto mais geral que anima Benjamin é o de dar relevo
àquelas vozes que foram silenciadas por um certo discurso vitorioso, fazer a
chamada história a contrapelo, que se opõe ao registro oficial encontrado numa
interpretação consoante aos interesses dominantes de uma época. Neste
empreendimento, a obra literária desempenha um papel fundamental na ruptura da
imagem consagrada de uma certa configuração histórica. É por isto que, ao invés
de apenas ilustrar uma hipótese previamente constituída, ela (a obra) ingressa
nos ensaios benjaminianos como um momento mesmo, precioso e insubstituível, da
argumentação. Fato que nos faz pensar na produtividade da obra de arte, sua
força expressiva que lhe permite iluminar uma certa constelação temporal. É
certo que Benjamin registra em vários momentos as ambigüidades do homem
Baudelaire, seu comprometimento com o sistema econômico e social que ele mesmo
denuncia, mas isso não deve nos fazer perder de vista a força expressiva de
seus poemas, testemunho de uma época que, metaforicamente, ainda hoje nos envia
os sinais de suas tensões, ultrapassando seu contexto imediato e chegando até
nós.
Voltando agora, e por fim, ao conceito bourdieusiano de campo intelectual e
literário, reiteramos que o objetivo aqui não foi o de esvaziar sua
importância, mas apenas cotejá-lo com outros estilos de crítica literária. Até
porque, conforme já mencionado ao início deste artigo, trata-se de um conceito
inegavelmente fecundo, que detecta relações de força que, sem o seu auxílio,
permaneceriam simplesmente desconhecidas: nosso olhar ganha em abrangência
quando nos damos conta, seguindo os passos de Bourdieu, de que existem
subjacentes relações de reciprocidade e de oposição comandando as tomadas de
posição dos literatos. O que se tentou fazer aqui foi apenas uma discussão
sobre alguns limites no uso deste conceito, principalmente quando se trata de
abordar aqueles artistas ou literatos que geraram uma obra muito potente, que
transborda do campo constituindo uma forma de expressão que não apresenta
solução de plena continuidade com o até então existente.
Talvez o grande desafio para os cientistas sociais que não desejem ser acusados
de praticar um "reducionismo sociológico" (acusação infelizmente muito
freqüente nos círculos filosóficos...) seja precisamente elaborar uma análise
que consiga captar a força da obra literária. Quando se consegue isto, esta
última ingressa no texto sociológico não apenas como ilustração de um argumento
já constituído, mas com a sua potência significativa, naquilo que tem de mais
essencial e que a diferencia de um mero espelhamento de uma realidade já
existente. Momento necessário neste empreendimento é a acolhida de
interpretações distintas sobre o mesmo fenômeno. Dito de outro modo: no que
tange aos autores aqui abordados, nem de longe propomos que se faça uma escolha
(empobrecedora) entre P. Bourdieu e W. Benjamin. Aliás, concordando neste
particular com o primeiro autor, lembremos que "não se pode fazer a ciência
avançar [...] a não ser à condição de fazer com que teorias opostas se
comuniquem" (Bourdieu, 1983, p. 20).
NOTAS
1 Recorremos aqui à cuidadosa tradução brasileira destes artigos, feita por
Sergio Miceli. (cf Bourdieu, 1974).
2 Em nosso país, embora reconhecendo a riqueza da teoria bourdieusiana dos
campos, Renato Ortiz já havia detectado também o risco de "uma perspetiva
imobilista do processo de reprodução" (Ortiz, 1994, p. 29).