Estado e mercado: a OMC e a constituição (incerta) de uma ordem econômica
global
Introdução
"A reunião entrou em colapso". A informação foi transmitida aos jornalistas
pelo diplomata queniano George Ogwar pouco depois das 15 horas. Ele não estava
enganado. Minutos mais tarde, em sua condição de presidente dos trabalhos, o
chanceler mexicano, Luís Ernesto Derbez, dava por encerrada a Conferência
Ministerial de Cancún, por avaliar que o impasse produzido em torno dos
chamados "temas de Cingapura (investimentos, política de concorrência, compras
governamentais e facilitação de comércio) não seria superado em tempo hábil.
Acolhido com manifestações ruidosas de regozijo pelos ativistas de movimentos
alternativos e organizações não governamentais que se encontravam na sala de
imprensa do Centro de Convenções da cidade, esse desfecho suscitou reações
discrepantes nos protagonistas da história que se fazia naquela hora. "Cancún
fracassou. O que ocorreu aqui é um grave problema para a OMC (Organização
Mundial do Comércio) e, ao mesmo tempo, uma oportunidade perdida para todos",
afirmou Pascal Lamy, comissário de Comércio da União Européia que nos dias
anteriores esteve na berlinda pela defesa da política de subsídios agrícolas da
União Européia e pela insistência em negociar os referidos temas de Cingapura.
Em sua opinião a OMC, com os seus 148 membros e suas regras decisórias, estava
se convertendo em uma "organização medieval".
Não menos acerba foi a reação do representante comercial dos Estados Unidos. Na
conferência de imprensa que deu logo depois de anunciado o fracasso da cúpula,
Robert B. Zoellick afirmou que "a lição mais importante de Cancún" é que "o
consenso útil entre 148 países requer a disposição séria para concentrar-se no
trabalho e não na retórica [...]". Ele reconheceu que a agricultura havia sido
o tema mais "crítico da reunião, mas atribuiu o fracasso da mesma aos países em
desenvolvimento, por sua recusa a discutir novas regras para reduzir os
"obstáculos ao comércio".1
Cerca de uma semana depois, Zoellick voltaria a expressar esses juízos, agora
de forma mais articulada, em artigo de grande repercussão publicado no
Financial Times: "Os Estados Unidos não vão esperar". Sob esse título, o
representante comercial da Casa Branca dava sua versão dos acontecimentos e
fazia carga pesada contra os países em desenvolvimento, com menção especial
para o Brasil.
Importantes países em desenvolvimento de nível médio empregaram a
retórica da resistência como tática para pressionar os países
desenvolvidos e, ao mesmo tempo, desviar a atenção de suas próprias
barreiras comerciais. Depois que os Estados Unidos pressionaram a
União Européia a desenvolver um sistema agrícola capaz de efetuar
cortes de subsídios agrícolas e tarifas muito superiores aos
alcançados na última negociação do comércio global, pedimos que o
Brasil e outras potências agrícolas trabalhassem conosco. O Brasil
recusou-se, voltando-se em vez disso para a Índia, que nunca apoiou a
abertura de mercados, como que para enfatizar a divisão norte-sul, e
não a reforma agrícola global (Zoelick, 2003).
Ao externar esse ponto de vista, o alto funcionário norte-americano a um só
tempo exercia pressão adicional sobre um interlocutor importante, que
surpreendeu pela renitência na "má conduta", e expressava um sentimento
generalizado nos círculos dirigentes de seu próprio país.2
O contraste com as avaliações que emanavam dos representantes dos países
interpelados não podia ser mais gritante. Vale lembrar como o ministro Celso
Amorim, alvo principal do mau humor do representante comercial dos Estados
Unidos, caracterizou o episódio vivido em Cancún:
Independentemente das análises que venham a ser feitas sobre a
reunião de Cancún, pode-se afirmar, desde já, que ela marca um ponto
de inflexão na dinâmica interna da Organização onde,
tradicionalmente, o que era decidido pelas grandes potências
comerciais era visto como o consenso inevitável. Graças a um esforço
conjunto de 22 países em desenvolvimento, coordenados pelo Brasil, do
qual participaram países grandes e pequenos de três continentes, as
postulações da maior parte da humanidade não puderam ser ignoradas.
Apesar da ausência de resultados imediatos, vejo a reunião de Cancún
menos como um fim do que como o começo de uma nova etapa na vida da
OMC, em que as negociações se processarão de maneira mais equilibrada
e menos unilateral.3
Do outro lado do globo, opinião semelhante era manifestada por Arun Jaitley,
ministro do Comércio e Indústria da Índia, que chefiou a delegação de seu país
na Conferência de Cancún. Em suas palavras, "a Índia não cedeu em nenhuma
questão na Ministerial da OMC, e o fato de que tenha trazido para o centro do
palco as preocupações dos países em desenvolvimento refletiu o sucesso da
conferência". Em sua avaliação, o fator mais importante no desempenho da
diplomacia indiana no conclave foi a "o apoio unânime da opinião nacional à
posição geral adotada pelo governo depois de amplas consultas, antes da
Ministerial, com partidos políticos, sindicatos, associações da indústria e
outras partes interessadas".4
Em sua avaliação calorosa dos resultados obtidos em Cancún o ministro era
secundado pela direção da Confederação Indiana das Indústrias, que, pela voz de
seu presidente, Anand Mahindra, não economizava adjetivos:
Cancún representa um divisor de águas nas negociações comerciais.
Elas nunca mais serão mais as mesmas. Os países em desenvolvimento
agora são uma força reconhecida. A Índia, liderada pelo Ministro do
Comércio, foi uma das principais responsáveis pela união de muitos
países em torno de uma plataforma comum.5
O fracasso da quinta Conferência Ministerial não constitui uma experiência nova
na curta história da OMC. Antes dela houve o fiasco de Seattle, que trouxe o
movimento anti-globalização definitivamente para as manchetes dos jornais em
todo o mundo. E se incluirmos o acervo do GATT (General Agreement on Tariffs
and Trade) em nosso balanço, vamos constatar que os impasses nas conferências
ministeriais da organização são mais comuns do que poderíamos imaginar pela
simples leitura da cobertura da imprensa. No entanto, alguns elementos dão ao
episódio de Cancún um significado especial:
1. Como observaram prontamente os melhores analistas, a conferência de Cancún
foi palco de uma inédita movimentação entre países em desenvolvimento, que
lograram fortalecer suas respectivas posições negociadoras ao exibirem um nível
notável de mobilização e ao se reforçarem mutuamente por intermédio de um
conjunto muito diversificado de alianças. Algumas delas foram criadas ainda no
início da década, na fase preparatória para a Conferência de Doha. Esse é o
caso do Grupo Africano, do Grupo de Países da África e do Caribe Pacífico, do
Grupo dos Países Menos Desenvolvidos, do grupo conhecido como Economias
Pequenas e Vulneráveis e do Grupo dos Países Afins (Like Minded Group). Outras
tinham formação mais recente e fizeram seu débutno balneário mexicano ' caso do
Grupo 20, constituído em torno da aliança estabelecida alguns meses antes pelo
Brasil, Índia e África do Sul (cf. Narlikar e Tussie, 2003).
2. Essas alianças tinham a seguinte particularidade: nenhuma delas estava
centrada em um único tema. Pelo contrário, assumiam características de bloco '
coalizões relativamente estáveis que modulam suas agendas em função das
ocorrências que marcam os processos de negociação nos quais estão envolvidas.
Ademais, entre elas havia um considerável grau de interseção, devido à
sobreposição freqüente dos múltiplos vínculos de boa parte de seus membros.
Estava ressuscitada, assim, no sistema multilateral de comércio internacional,
a clivagem Norte-Sul que parecia ter sido sepultada na Rodada Uruguai, na
segunda metade da década de 1980.
3. A despeito das flutuações, essas alianças estavam centradas em alguns temas
críticos, entre os quais cabe ressaltar o velho tema da agricultura e os
chamados temas de "Cingapura". Por razões distintas, em seu conjunto eles
representam um enorme desafio para a OMC. Podemos vislumbrar a natureza e o
alcance do repto quando levamos em conta que, na questão agrícola ' introduzida
na agenda do GATT na Rodada Tóquio, nos idos dos anos de 1970 ' uma fração
significativa dos países membros invoca o princípio do tratamento especial e
diferenciado reservado aos mais fracos e reclama isenção para seus produtos
estratégicos, sem provocar por isso o veto de aliados, que são grande
exportadores agrícolas.
4. Mais do que em qualquer outro momento, a conferência de Cancún trouxe à
baila a questão dos procedimentos. Há, na OMC, uma tensão estrutural entre a
regra majoritária inscrita em seus estatutos e o peso extremamente desigual de
seus membros, o qual se faz sentir vigorosamente nos processos reais de tomada
de decisão. Essa contradição se expressa por um conjunto de procedimentos
informais e pela aquiescência geral aos resultados obtidos por esses canais.
Essa disposição faltou em Cancún, e na ausência dela é a própria natureza da
instituição que foi posta em debate (cf. Kwa, 2002).
Embora propositalmente sumário, esse relato contém elementos suficientes para
justificar a questão genérica com a qual abrimos o presente estudo: levando em
consideração o fato de que a atual rodada de negociações comerciais é a
primeira a se realizar nos quadros da OMC e a primeira desde o final da Guerra
Fria; considerando ainda que seu lançamento ocorreu em um período de incerteza
econômica (crises financeiras no final da década de 1990, recessão na economia
norte-americana, quebra de confiança provocada pelos escândalos corporativos) e
em um momento de crise nas relações internacionais, quando as reverberações do
atentado terrorista de 11 de setembro eram extremamente fortes (a conferência
ministerial de Doha ocorreu em novembro de 2001), que significado atribuir às
tensões expressas no decurso desta rodada?
O problema de fundo
Como entender as tensões afloradas no decurso da rodada Doha? Que significado
atribuir ao fracasso da conferência de Cancún? Antes de abordar essas questões,
convém fazer uma pausa para refletir sobre a natureza do desafio intelectual
que elas representam e sobre as ferramentas mais adequadas para lidar com ele.
Tratando-se de perguntas relativas a fenômenos inscritos no sistema
multilateral de comércio, uma alternativa óbvia seria tomar, como referência
para o exercício proposto, a vasta literatura existente no campo das Relações
Internacionais sobre o tema dos "regimes". Vários motivos, contudo, nos levam a
evitar esse expediente. O principal deles pode ser exposto de maneira breve por
meio de um comentário sobre a definição canônica sugerida na obra coletiva
organizada por Stephen Krasner:
Os regimes podem ser definidos como conjuntos de princípios, normas,
regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou
explícitos, em torno dos quais as expectativas do ator convergem em
uma área determinada das relações internacionais (Krasner, 1989).
O debate em torno do tema dos regimes internacionais é conhecido; não vamos
revisá-lo. Diremos apenas que ele gira em torno dos dois elementos combinados
nessa definição: 1) a natureza, a efetividade ou a função dos regimes em sua
condição genérica de regimes, vale dizer, como instituições ' nessa linha, a
produção teórica sobre o tema dissolve-se na literatura mais ampla sobre a
emergência e o papel das normas sociais; 2) aspecto que nos interessa mais de
perto ' aquilo que faz desses regimes mais do que simples regimes, precisamente
regimes "internacionais".
Mesmo nos melhores textos sobre o assunto, nem sempre essa distinção é
observada: os autores tendem a passar de um aspecto a outro sem se darem conta,
aparentemente, de que estão a falar de coisas distintas. Podemos observar essa
ocorrência na pena, ou melhor, nas teclas, de um autor tão sofisticado quanto
Oran Young. No artigo que publicou na coletânea antes referida, Young examina a
diferença entre os regimes internacionais com base em uma classificação em
termos de três tipos de "ordem" ' "espontânea", "negociada", e "imposta".
Ordens espontâneas são aquelas que, produzidas embora pelo agir humano, não
resultam da coordenação consciente entre os participantes, dispensam a
aceitação explícita dos agentes e são altamente resistentes a esforços
concertados para moldá-las. Ordens negociadas caracterizam-se pelo fato de
envolverem esforços conscientes visando à produção de acordos sobre suas
determinações principais, consentimento explícito por parte dos agentes
concernidos, e à expressão formal de seus resultados. Ordens impostas são
criadas deliberadamente pelo poder dominante, ou por uma coalizão de
dominantes, dispensados o consentimento explícito dos atores subordinados e a
expressão formal de suas regras.
Young tem o cuidado de indicar que essas formas não são excludentes e que
tendem a se combinar no processo empírico de formação dos regimes
internacionais. Como "tipos", elas selecionam e exageram certos traços das
instituições historicamente existentes, combinando-os em representações
estilizadas que, por isso mesmo, nos ajudam a compreender as articulações
observadas na realidade. Com essa ressalva, podemos fazer uso deles na
caracterização dos objetos. É o que o autor faz na seguinte passagem:
Nesta discussão sobre a dinâmica do regime internacional, convém
diferenciar dois tipos de ordens impostas. A hegemonia aberta ocorre
quando o ator dominante cria arranjos institucionais, aberta e
explicitamente, e obriga os atores mais fracos a se conformarem com
eles. As estruturas feudais clássicas, assim como muitos dos grandes
sistemas imperiais exemplificam esse padrão (Young, 1989, p. 100).
Ele faz referência, igualmente, a inúmeros regimes internacionais que podem ser
descritos apropriadamente como "ordens negociadas". Curioso é que, ao falar da
"ordem espontânea", seus exemplos são o "mercado" e a "linguagem". Em momento
algum ele se detém para indagar se, em um universo dotado de número
relativamente reduzido de unidades com pesos respectivos tão diferentes, como o
sistema internacional, a idéia de "ordem espontânea", mesmo teoricamente, faz
sentido. O único caso mencionado de ordem espontânea nessa esfera é o regime
que regulou por muito tempo a pesca internacional, até o momento em que foi
formalizado por um contrato "constitucional" em 1958, data de celebração da
Convenção de Genebra sobre a Plataforma Continental (Idem, p. 102). Em outros
termos, um "regime" que, ao ser incorporado à lógica da coordenação entre
Estados, deixou de ser um caso ilustrativo da "ordem espontânea".
Princípios e normas, regra e procedimentos são ubíquos porque os indivíduos e
os grupos dependem deles para coordenar suas ações em contextos em que a busca
de interesses estreitamente definidos conduz a resultados insatisfatórios. Ao
universo denotativo recortado por essa proposição, o conceito de "regime
internacional" apõe duas restrições: as normas em questão não são difusas, ou
de alcance generalizado, elas têm como foco problemas que emergem tipicamente
em áreas funcionalmente diferenciadas. E não em quaisquer áreas: apenas
naquelas que se situam no âmbito das "relações internacionais".
Relações inter-nacionais. Importa frisar este termo, porque implícita nele está
a idéia crucial de que os regimes se afiguram como aspectos de um sistema mais
amplo, o qual ' como os próprios regimes ' envolve princípios, normas e
procedimentos próprios, bastando pensar na força da norma da imunidade e no
lugar reservado a ela na instituição da diplomacia para se dar conta disso.
Esse universo inclusivo ' o sistema internacional ' tem como princípio
constitutivo básico o princípio da soberania.
Ora, a questão que os temas incorporados na agenda do GATT/OMC nas duas últimas
décadas suscita não diz respeito exclusivamente aos princípios e às normas
prevalentes nesta ou naquela "área de problemas", neste ou naquele regime.
Assim como outros desenvolvimentos recentes ' a entronização da democracia
representativa como modelo político de validade universal e sua conversão em
"quase-direito" subjetivo de todos os habitantes da Terra (Velasco e Cruz,
2004) e a criação do Tribunal Penal Internacional, por exemplo ', esses temas
põem em questão o relacionamento entre os novos regimes emergentes e os
princípios estruturantes da ordem internacional.
Se é assim, a literatura que toma Estados e sistema internacional como "dados"
não parece ser a mais útil. Essas noções deverão reaparecer, forçosamente, na
análise ' e ainda teremos muito a aprender com os estudos substantivos sobre o
regime multilateral de comércio internacional. Devemos, contudo, partir de
outro lugar.
Esse "lugar", vamos encontrá-lo na idéia corrente segundo a qual a integração
da economia capitalista em escala planetária atingiu um patamar tão elevado que
devemos concebê-la como uma "economia global". Admitida para efeito de
raciocínio esta premissa, o problema de fundo com que nos defrontamos é o de
como entender o processo político de criação de instituições adequadas a uma
tal economia. E se considerarmos que, antes mesmo de sua plena configuração
como economia capitalista, a atividade de seus personagens principais já era
"internacional", julgamos justificada a decisão de abordá-la em uma perspectiva
histórica de longo prazo.
Excurso histórico: Estado, direito e capitalismo
Ao final do capítulo "A economia e as diversas ordens", que abre a segunda
parte da obra Economia e sociedadena edição organizada por Johannes
Winckelmann,6 deparamos com a seguinte observação:
[ ] a aceleração moderna da atividade econômica reclama um direito de
funcionamento rápido e seguro, garantido por uma força coativa da
mais alta eficácia, e, sobretudo, a economia moderna destruiu por sua
pecualiaridade as demais associações que eram portadoras de direito
e, portanto, garantida do mesmo. Esta é a obra do desenvolvimento do
mercado [ ] a estensão do mercado [ ], em virtude de suas
conseqüências imanentes, favorece o monopólio e a regulamentação da
força coativa "legítima" por meio de um instituto coativo universal,
destruindo todas as estruturas coativas particulares, que descansam,
na maioria das vezes, em monopólios econômicos, estamentais ou de
outra classe (Weber, 1977, p. 272).
Comprimidos nessa passagem estão vários séculos de história legal. Na linha do
tempo que ela descreve encontramos, em uma de suas extremidades, a Europa do
alto medievo, época em que a diminuição da ameaça dos povos "bárbaros" (mouros
e vikings), a multiplicação de contatos humanos propiciada pelas Cruzadas e a
reabertura das rotas com o Oriente permitiram o reflorescimento do comércio e
da vida urbana. No outro extremo, a moderna economia capitalista, tal como a
conheceram Max Weber e seus contemporâneos. Voltando nossos olhos para a
primeira delas, podemos observar a lenta emergência de um direito novo, que
aprende com as instituições nunca de todo olvidadas do direito romano, mas dele
se separa radicalmente pela intenção que o anima e pela natureza dos
dispositivos a que dá forma. Esse direito é produzido pela atividade
codificadora das corporações de mercadores, sobretudo aquelas radicadas nas
cidades italianas mais prósperas, que trabalham sobre material normativo
diverso sob a orientação desta regra de ouro: boa é a fórmula jurídica que dá
segurança aos contratos e acelera o ritmo dos negócios.
As fontes do ius mercatorum eram os estatutos das corporações
mercantis, o costume mercantil e a jurisprudência da "cúria" dos
comerciantes. Nos estatutos confluíam vários materiais normativos: 1)
o juramento dos comerciantes; 2) as deliberações do conselho formado
por comerciantes antigos, e 3) os princípios consolidados pelo
costume e pela jurisprudência. Ao mesmo tempo, uma magistratura de
comerciantes, chamados estatutários, ocupava-se da compilação e
atualização dos estatutos. O costume nascia da constante prática
contratual dos comerciantes: a modalidade contratual que consideravam
vantajosa se convertia em direito; as cláusulas contratuais se
transformavam, uma vez generalizadas, no conteúdo legal do contrato.
Por último, os comerciantes, designados pela corporação, compunham os
tribunais que decidiam as controvérsias contratuais (Galgano, 1981,
p. 48).
Mesmo não tendo sido criação original sua, devemos ao pragmatismo desses
mercadores a difusão de alguns instrumentos jurídicos na ausência dos quais
seria impossível imaginar o dinamismo da economia moderna. Entre estes, cabe
citar a letra de câmbio, que deixa de funcionar como simples documento que
prova o depósito para assumir as características de uma ordem de pagamento a
terceiros, e a nota promissória, promessa de pagamento emitida pelo devedor, a
ser cumprida no prazo convencionado, gerando um direito que o credor pode
transferir a terceiros. Negociabilidade: aí reside o elemento inovador do
instituto. Sem ela a importância da nota promissória como instrumento de
crédito seria muito reduzida. Mas, a negociabilidade não é um atributo
intrínseco desse tipo de documento, ela deriva da norma jurídica que reconhece
o direito do portador do título avalizado, sempre que de boa fé, contra toda
pretensão de prioridade que possa ser manifestada por outros indivíduos. Não há
nada de evidente nessa norma, e até bem entrado no século XIX ela foi rejeitada
pelos tribunais em vários lugares (cf. Horowitz, 1977, pp. 212 ss.).
A menção à cláusula restritiva da boa fé remete-nos a outro aspecto da produção
normativa dos mercadores de então. Não era apenas no desenho de novas formas de
contrato que a comunidade de mercadores inovava. No afã de produzir soluções
expeditas para os problemas que surgiam cotidianamente na prática do comércio,
esse direito pressupunha a boa fé para levar a efeito sua tarefa de
simplificação drástica das regras de evidência e dos procedimentos judiciais.
Esse aspecto é bem salientado pelo autor de um trabalho clássico sobre o tema,
que, ao resumir as características distintivas desse direito enumera, entre
outras, as seguintes:
1. Embora uma obrigação solene, assumida em documento notarial, tivesse em
geral precedência a um documento assinado manualmente, essa regra não se
aplicava aos mercadores. A razão alegada para isso era o fato de que entre os
mercadores a boa fé consistia um valor supremo, e não reforçado pelo atestado
notarial.
2. Admitia-se o testemunho oral para contradizer um documento escrito, onde a
soma em disputa fosse superior a 100 libras, embora o testemunho isolado da
parte interessada fosse insuficiente.
3. A propriedade da coisa vendida passava ao comprador na ausência da entrega.
As associações verbais eram suficientes. Embora houvesse ordenanças locais na
França, que exigiam contratos escritos para esse fim, foi apenas com a
Ordenança Real de março de 1673 que essa regra se tornou geral.
4. Sendo universal entre os mercadores o costume de escriturar suas operações,
tanto sob a forma de diários como de livros-mestres, essas peças eram
admissíveis como prova adequada de regularidade em favor de seus donos (Bewes,
1923, 19 ss.).
Tendo como berço os centros comerciais mais importantes ' Florença, Gênova,
Milão, Veneza, Lyon ', o direito mercantil medieval irradia-se por toda Europa
pelo mimetismo das comunidades menos desenvolvidas, que tomam estatutos
daquelas cidades como modelos para seus próprios estatutos. Cristalização dos
usos e costumes originados em uma atividade desenvolvida em redes com malhas
longas, que transcendiam de muito as fronteiras do universo cristão, ele era,
já em sua origem, transnacional.
Em outro plano, esse direito, feito por e para os mercadores ' ius mercatorum
ou lex mercatoria na linguagem culta dos juristas da época ', tinha duas
características, uma interna e outra externa, que importa registrar.
O elemento intrínseco é dado por seu caráter estamental. "Direito dos
mercadores", ele repousa em um suposto particularista: seus dispositivos
aplicam-se a todas as transações que tenham um comerciante, em sua qualidade de
comerciante, como parte ' suas relações extra-mercantis (relações de família,
de sucessão, relações patrimoniais de caráter imobiliário etc.) continuavam
sendo regidas pelo direito comum da terra. A qualificação não altera a essência
do suposto. Com ele, a comunidade dos mercadores proclama a sua pretensão de
regular seus próprios negócios, bem como suas relações com a sociedade
circundante.
A característica extrínseca é que ele coexistia nessa sociedade com vários
outros direitos e com eles competia: o direito canônico, o direito feudal, o
direito régio ' alimentado permanentemente pelo trabalho dos "legistas", que
mobilizavam em favor da autoridade real o patrimônio inestimável do direito
romano (Tigar e Levy, 1978, pp. 23-63).
Na luta pela afirmação de suas normas próprias e pela aceitação da natureza
executória das decisões de suas cortes, os mercadores valiam-se de recursos de
poder que detinham.
[...] o não comerciante ou estrangeiro que renunciasse à jurisdição
mercantil perdia no futuro o direito de invocar a seu favor o ius
mercatorum e a jurisdição mercantil, e em algumas cidades ficava
incapacitado para realizar qualquer tipo de comércio com membros da
corporação mercantil (Galgano, 1981, p. 48).
Mas não podiam contar apenas com suas forças. Eles buscavam o favor dos
"senhores" e dos reis, de quem obtinham, freqüentemente, proteção e franquias
pela promessa de incremento nas rendas do tesouro que a atividade aplicada de
comerciantes e artesãos envolvia.E convém esclarecer, para evitar o risco de um
mal entendido: franquia nesse contexto nada tem a ver com a idéia de liberdade
como ausência de constrangimento externo à realização da vontade do indivíduo.
Ela tem conteúdos substantivos bem determinados, convertendo-se em sinônimo de
privilégio. Como os concedidos às feiras, que além de garantia adicional para a
sanção dos julgados de seus tribunais próprios, eram favorecidas por
disposições tais como a que vedava o comércio fora de seus limites (Bewew,
1923, pp. 89-90, 105).
Nascidos nos "poros da sociedade feudal", esses corpos estranhos ampliaram seus
espaços nela, desempenhando um papel de importância crescente nos conflitos que
a dinamizavam, e culminariam por transformá-la em seus alicerces. Mas esta já é
outra história.
No outro extremo de nossa linha, vemos um quadro muito diferente. Aqui,
divididos em um sem-número de categorias ' empresários, investidores;
industriais, banqueiros, comerciantes; atacadistas, varejistas ', os sucedâneos
daqueles mercadores operam sob o império de uma lei que se deseja abstrata e
universal. No ordenamento jurídico que ela conforma, o direito comercial surge
como parte do direito privado, mas este ' como o direito público ' é um direito
do Estado, que o produz e o administra por intermédio de instituições
especializadas ' o Legislativo e o Judiciário. Nos termos desse direito, o
"homem de negócios" perde sua especificidade, dissolvendo-se na categoria
abstrata de indivíduo portador de direitos: cidadão. Em suas lides diárias, ele
opera, ao contrário de seus ancestrais do medievo, no contexto de um sistema
jurídico "objetivo", posto que referido, não à pessoa do comerciante, mas aos
"atos de comércio", definidos pela lei, pouco importando a origem social de
quem os efetue. Naturalmente, esse sistema não desconhece a existência de
segmentos da sociedade cuja atividade profissional é a realização de atos desse
tipo, e para os mesmos ele reserva um conjunto de regras específicas. Mas esse
fato não o transforma em um direito corporativo, pois, em contraste com o que
ocorria no passado, quando os mercadores constituíam uma classe rigidamente
fechada, o exercício do comércio sendo uma prerrogativa dos inscritos na
corporação, agora a condição de comerciante está aberta a todos os
interessados, desde que disponham de recursos (materiais e sociais) e tirocínio
para se estabelecer duradouramente nessa posição.
Decerto, a forma universal e abstrata encobre nesse direito um outro
particularismo. Nutrindo-se do material normativo que emana permanentemente das
práticas desenvolvidas no campo que pretende regular ' o "mundo dos negócios"
', o direito comercial preserva na forma e na substância de seus dispositivos o
espírito que animava a velha lex mercatoria. Dos princípios que caracterizam o
direito comercial ' afirma um especialista no ramo ',
[...] ressalta, em primeiro lugar, a onerosidade. Em geral, as
operações comerciais são onerosas, não admitindo o direito mercantil
operações a título gratuito [...]. Há igualmente a questão das
provas: sendo o direito mercantil um direito dinâmico, para
justamente poder acompanhar a intensidade da vida comercial necessita
de meios de prova rápidos e destituídos das formalidades que em geral
revestem as provas do direito civil [...]. Também o direito comercial
se caracteriza pela boa fé em que, sem formalismo, são considerados
justos os atos praticados por quem ignorava que o dolo ou a má fé os
viciava. Esse princípio da boa fé a imperar sobre os atos comerciais
dá maior rapidez às operações mercantis e maior segurança aos que
delas participam (Martins, 1990, p. 34).
Direito não mais de mercadores, mas de uma sociedade na qual o móvel que
impelia a estes ganhou indiscutida preponderância, o particularismo do direito
comercial reside em sua tendência a subordinar, ao imperativo da acumulação,
qualquer outro objetivo.7
A adaptação do direito mercantil aos requerimentos da economia capitalista
moderna se deu de forma diferente segundo os países. Em todos eles a tendência
foi muito forte no século XIX de sistematizar a legislação sobre a matéria em
códigos de comércio. Na Europa, dois modelos competiam: o francês e o alemão.
Eles serviram de base para a elaboração de códigos nessa e nas mais diversas
regiões do mundo (no Brasil ' assim como em Portugal, Rússia, Japão, entre
outros países, prevaleceu a versão alemã) (Braithwait e Drahos, 2000, p. 49).
Mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde a tradição do common law era
poderosa, o impulso em direção à codificação se fazia sentir e dava origem a
códigos parciais ' a lei de Letra de Câmbio inglesa, de 1882, a lei federal de
Instrumentos Negociáveis, nos Estados Unidos, em 1896, por exemplo. Neste
último país, o movimento referido traduz-se também em ampliação da jurisdição
federal nesse campo, mantido até então sob a competência das cortes estaduais
(Fiedman, 1985, pp. 532-553). Histórias nacionais e tradições distintas;
diferentes caminhos, direitos diversos. Em todos, porém, a conjugação de três
vetores ' centralização, unificação, racionalização ' definia uma mesma
dinâmica básica.
Direitos nacionais e uma economia internacional com graus crescentes de
integração. Esse quadro sinótico dos marcos institucionais do capitalismo na
dobra do século XX ficaria incompleto se não incluísse três outras referências.
A primeira diz respeito aos mecanismos de coordenação setorial, estabelecidos
por intermédio de associações empresariais de diferentes países, ou impostos
diretamente ao conjunto do setor pela firma dominante ' ou por uma coalizão
delas. Disseminados pelos mais variados segmentos da atividade econômica, em
algumas delas esses arranjos surgiram mais cedo e desfrutaram de maior
estabilidade. O caso do transporte marítimo internacional é ilustrativo. Na
década de 1870, o desenvolvimento do navio a vapor e a abertura do canal de
Suez tiveram forte impacto na organização do setor, que passou a enfrentar
graves problemas de capacidade ociosa e de concorrência predatória sob a forma
de guerra de preços. A resposta não tardou muito. Já em meados da década
realizava-se a primeira de uma longa série de conferências da marinha mercante,
com objetivo de estabelecer padrões, fixar taxas e traçar rotas que seriam
partilhadas entre os participantes.
As conferências de marinha mercante são compostas de linhas de
navegação independentes que entram em acordos secretos para
estabelecer taxas e usualmente para dividir mercados em rotas
determinadas; freqüentemente elas se empenham em acordos de
repartição de rendas [...]. Uma estratégia comum utilizada pelas
conferências para manter a lealdade dos armadores aos navios da
conferência é o uso de arranjos restritivos ou contratos de lealdade.
Os contratos de lealdade incluem geralmente a promessa dos armadores
de fornecer cargueiros às linhas da conferência e promessas das
linhas da conferência de dar descontos e taxas mais baratas aos
armadores, tudo isso com base na justificativa de que tais
procedimentos reduzem o risco, promovem a regularidade do serviço e
reduzem os custos (Zacher e Sutton, 1996, p. 68).
No final do século XIX, o transporte marítimo internacional era dominado por
alianças internacionais cujo núcleo era formado por armadores, bancos
comerciais e firmas seguradoras (Gold apud Cuttler, 1981, p. 306). Em 1897 os
esforços de coordenação nesse setor levaram à criação do Comitê Marítimo
Internacional, organização privada composta por especialistas em direito
marítimo, inspirados pelo objetivo comum de promover a unificação das leis e
das práticas nesse campo de atividade. Do trabalho desse organismo resultou a
adoção de vinte convenções, que cobriam temas tais como responsabilidade dos
armadores, colisões marítimas, segurança naval, seguro marítimo e arbitragem
marítima internacional, entre outros. Em outros setores, a coordenação
internacional foi assegurada pela constituição de organismos que punham em
relação firmas e agências governamentais de diferentes países, com a cobertura
de seus respectivos governos. Esse é o caso da União Telegráfica Internacional,
fundada em 1865, da União Postal Universal, de 1874, da União Radiotelegráfica,
fundada em 1906, por exemplo.8 Seja como for, estruturados em torno de
organizações públicas ou de arranjos, mais ou menos formalizados, de caráter
privado, os mecanismos internacionais de coordenação constituíam um aspecto
saliente do perfil institucional da economia capitalista naquele período.
A segunda referência concerne à importância do direito internacional privado na
viabilização dos fluxos característicos de uma tal economia. Com efeito, dada a
heterogeneidade dos sistemas jurídicos nacionais, a movimentação internacional
de bens e de pessoas seria obstada se os referidos sistemas não estivessem
dotados de normas destinadas a responder a perguntas do seguinte tipo: como
ajuizar da validade e da exeqüibilidade de títulos de crédito firmados no
exterior? Como lidar com os efeitos da falência de uma empresa internacional,
decretada pela autoridade judicial do país onde tem sede, sobre suas filiais
estabelecidas em território doméstico? Que norma aplicar na atribuição de
prioridades entre reivindicações concorrentes de direito? No trato com questões
dessa ordem, o direito privado internacional aciona normas de origens diversas
' legislativa, doutrinária, ou jurisprudencial; interna ou internacional ' e de
natureza distinta. Em geral essas normas são indiretas: elas indicam que
elementos do direito interno aplicar ao caso em consideração. Outras, porém,
são diretas, materiais, e informam a sentença que soluciona o conflito. No
âmbito do direito comercial, muitas dessas normas, em ambas as categorias,
provêm de tratados e convenções internacionais. As primeiras resultam de
convenções que estabelecem normas de conexão indicadoras das leis aplicáveis,
isto é, que unificam regras de solução do conflito de leis; as segundas, de
convenções que uniformizam instituições jurídicas de alcance internacional,
como a compra-e-venda, os títulos de crédito, os transportes, as comunicações e
a propriedade intelectual.9Tendo adquirido contornos definidos em meados do
século XIX, o direito internacional privado foi polarizado desde os seus
começos pelo embate entre nacionalistas, ciosos da supremacia da lei interna, e
cosmopolitas alimentados pela noção pré-figurativa de uma comunidade jurídica
do gênero humano (cf. Halpérin, 1999). No presente, essa última visão vem
ganhando força, e no campo que nos interessa mais diretamente alimenta os
esforços de organizações tais como a Uncitral (United Nations Commission on
International Trade Law) e o Unidroit (Institut International pour
l'Unification du Droit), que vêm se dedicando com afinco à tarefa de
uniformizar as leis nacionais de comércio guiadas pelo sonho de um código
comercial único para todo o mundo. A distância que as separa de seus
precursores no século XIX é grande. Não importa. Tanto ontem como hoje o
direito internacional privado é um elemento constitutivo da economia e da
sociedade, e já naquela época dava alguns passos nessa direção.
Chegamos, enfim, à terceira referência. O direito internacional privado foi
permanentemente alimentado, como vimos, por normas estabelecidas em convenções.
Muitas delas incluíam o reconhecimento do instituto da arbitragem. Mecanismo
privado de resolução de controvérsias com máxima economia de tempo e de custos,
a arbitragem repousa na disposição expressa das partes envolvidas de submeter
disputas atuais ou potenciais à decisão de um tribunal de sua escolha comum.
Compostos por um ou mais árbitros, esses tribunais observam normas e
procedimentos, que variam no tempo e no espaço, mas que se assemelham por
derivarem dos princípios gerais que caracterizam esse instrumento. Entre eles,
podemos destacar: a) especialização dos árbitros na matéria em causa; b)
eleição da lei aplicável ' ampla autonomia das partes interessadas na decisão
sobre as normas jurídicas que deverão ser usadas na solução da disputa; c)
caráter terminativo do laudo arbitral ' as decisões do árbitro são definitivas
e obrigatórias para as partes; d) livre escolha do local da arbitragem,
facultada a decisão por territórios neutros; e) privacidade e confidencialidade
(cf. Etcheverry, 1998). Potência militar e econômica dominante, dona da maior
frota mercante, centro comercial mais importante e maior mercado de seguros do
mundo, no século XIX a Inglaterra fornecia o idioma em que os contratos
internacionais de comércio eram redigidos e o direito pelo qual as pendências
suscitadas tendiam a ser resolvidas. É que a essa altura Londres se
transformara também em sede de arbitragem preferida. Para esse resultado,
vários desenvolvimentos legais contribuíram. Primeiramente, houve a disposição
crescente dos tribunais ingleses de reconhecer o compromisso arbitral e de
fazer executar os laudos deles decorrentes. Depois veio a transposição desse
entendimento para a lei escrita, com a lei de arbitragem de 1889,que daria
ensejo, três anos mais tarde, ao estabelecimento da Câmara de Arbitragem de
Londres (London Chamber of Arbitration), agora conhecida como a Corte de
Arbitragem Internacional de Londres ' LCIA, (Law, 1988, p. 212).
No século passado ' com ímpeto cada vez maior depois da Segunda Guerra Mundial
' a arbitragem internacional se desenvolveu muito, tendo se transformado hoje
em um mercado de serviços diversificado e bastante competitivo. Marcos
importantes nesse processo foram o Protocolo de Genebra sobre Cláusulas
Arbitrais, de 1923, a Convenção de Genebra sobre a execução de sentenças
arbitrais, de 1927, e a Convenção de Nova York sobre o mesmo tema, de 1958, que
inverte o ônus da prova, atribuindo-o à parte que pretenda resistir ao
reconhecimento ou à execução do laudo arbitral. Alguns autores chegam a ver na
jurisprudência das cortes arbitrais uma nova lex mercatoria, ordem jurídica
diferente e autônoma, fundamento de um direito comercial futuro inteiramente
globalizado. Voltaremos ao tema em outra parte deste estudo; por ora, basta
registrar que, embora menos difundida ' na realidade, objeto de forte
controvérsia ', a arbitragem internacional era um elemento importante no
contexto dos negócios internacionais no período em consideração.
Direito corporativo da comunidade de mercadores, na Idade Média; direito
positivo de caráter estatal, no capitalismo da era vitoriana. Entre um ponto e
outro, uma cena curiosa. Nela observamos o dueto entre um poder real, cioso de
seu monopólio dos meios de coerção, e mercadores reconhecidos em seu ser
coletivo, como corporação, mas convertidos em agentes do poder público.
A classe mercantil deixa de ser artífice de seu próprio direito. O
direito mercantil experimenta uma dupla transformação: era direito de
classe e se converte em direito do Estado; era direito universal e se
converte em direito nacional. Suas fontes são as leis do Estado
vigentes nos limites nacionais [...]. A jurisdição mercantil passa
[...] das antigas magistraturas mercantis, no seio das corporações,
aos tribunais do Estado, concebidos, entretanto, como tribunais
especiais: os magistrados, eleitos por uma assembléia de
comerciantes, são, não obstante, nomeados pelo rei e investidos de
poder soberano (Galgano, 1981, p. 68).
É no hibridismo próprio a esse ambiente que vão surgir as primeiras leis
orgânicas sobre a matéria (as ordenanças francesas sobre o comércio, de 1673, e
sobre a marinha, de 1681), e é nele também que se assistirá ao nascimento de
uma instituição destinada a desempenhar papel de máximo relevo na história do
capitalismo: a "sociedade anônima", matriz da qual vai se desenvolver mais
tarde a moderna sociedade anônima por ações.
Com essas indicações telegráficas queremos evocar o período histórico de
formação do Estado territorial e de vigências das políticas mercantilistas.
Mencioná-lo pareceu necessário, porque por esse meio podemos introduzir a
contra-face do processo que vem nos ocupando nestas páginas, a saber, a
centralização extraordinária de poder que pôs fim ao longo ciclo de conflitos
militares, verdadeira guerra civil européia, desencadeada no início do século
XVI pelo desafio às estruturas de autoridade vigentes lançado pelo
protestantismo.
O processo de centralização dos meios de coerção na Coroa e de consolidação
territorial conseqüente começa bem antes; e são razoavelmente conhecidos os
fatores que o impulsionam, embora sua combinação exata seja motivo de viva
controvérsia (cf. Tilly, 1975, 1994; Poggi, 1990; Giddens, 1987; Mann, 1986).
Não vamos nos deter no assunto. Para efeitos do argumento que estamos esboçando
aqui, basta chamar a atenção para três aspectos: 1) a importância decisiva da
pacificação interna para a expansão do capitalismo; 2) o caráter internacional
do pacto que assegurou a estabilização das relações políticas em cada unidade
territorial; e 3) a centralidade nesse processo do princípio da soberania.
A idéia dessa relação constitutiva entre pacificação interna e reconhecimento
recíproco, pelos poderes territoriais concorrentes, de sua condição comum como
entes juridicamente iguais e independentes, que se expressa no conceito de
soberania, é formulada com clareza por Giddens:
A soberania do Estado-nacional não precede o desenvolvimento do
sistema europeu de Estados [...]. Pelo contrário, o desenvolvimento
da soberania do Estado depende, desde seu início, de um conjunto de
relações reflexivamente monitoradas entre os Estados [...]. As
"relações internacionais" não são conexões formadas entre Estados
preestabelecidos, que poderiam manter seu poder soberano sem as
mesmas: elas são a base sobre a qual o Estado-nacional existe
(Giddens, 1987, pp. 263-264).
A adoção do modelo de "livre-mercado" no século XIX se fez em estrita
observância desse princípio. Nesse período, assistimos, na Europa (e também nos
Estados Unidos) a um esforço concentrado de reforma visando à adequação dos
marcos institucionais internos ao dinamismo da economia capitalista moderna.
Por toda parte, os países despojavam-se de restrições corporativas
multisseculares, redefiniam mais ou menos sutilmente direitos consagrados de
propriedade e forjavam novos entes jurídicos. A sociedade anônima é um deles.
Entes dotados de personalidade jurídica própria e de sucessão perpétua, as
sociedades anônimas eram conhecidas desde o século XVII, tendo servido de
modelo para as sociedades holandesas de exploração ultramarina das quais a
Companhia das Índias Ocidentais é a mais conhecida. Até meados do século XIX,
porém, além de raras, essas instituições tinham caráter semi-oficial. Vistas
como expressão de um privilégio, justificável apenas por razões de interesse
coletivo, sua criação dependia, em toda parte, de autorização expressa do poder
público. Esse quadro começa a mudar, em 1856, com a promulgação, na Inglaterra,
da lei que facultava o estabelecimento de companhias incorporadas por simples
registro. Aberto o precedente, outros países rapidamente tomaram o mesmo
caminho. O trecho citado a seguir ajuda-nos a entender-lhes os motivos:
[...] elas [as companhias inglesas] podiam manter seus
estabelecimentos na França, porque a lei de 30 de maio de 1857,
votada para as sociedades belgas, permitia que o mesmo favor fosse
acordado, por decreto imperial, a todos os outros países. O tratado
de 30 de abril de 1862 havia estendido essa concessão à Inglaterra.
Então, as companhias inglesas livremente formadas seriam livres entre
nós, enquanto as sociedades anônimas francesas não podiam ser criadas
sem autorização? Era preciso encontrar um compromisso (Ripert, 1951,
p. 61).
Como nos relata Ripert, o compromisso foi buscado mediante a criação, em 1863,
de um novo tipo de sociedade ' de responsabilidade limitada ', uma imitação da
Private Company Limited inglesa. Mas a tentativa não foi bem-sucedida. Ante o
clamor que crescia no mundo dos negócios e nos círculos intelectuais a ele
vinculados, em 24 de julho de 1867 foi aprovado o projeto de lei do governo que
dispensava de autorização prévia a formação de sociedades anônimas na França. A
partir daí, a novidade se difunde celeremente. Seguindo com algum atraso as
pegadas da França, o Brasil acolhe a inovação com decreto imperial, n° 3.150,
de 3 de outubro de 1882.
Mas esta é apenas uma parte da história. Tendo conhecido longo período de
fechamento, que se estendeu por um bom tempo depois de terminadas as guerras
napoleônicas, a partir de 1850 as principais economias européias começam a
derrubar os obstáculos que embaraçavam o intercâmbio com os seus parceiros
comerciais mais importantes. Como indica David Landes, o processo de
liberalização compreendeu três movimentos conjugados: 1) a remoção ou a redução
de taxas cobradas sobre o tráfico em vias fluviais, como o Danúbio, o Reno, o
Elba; 2) a simplificação do sistema cambial; e 3) uma série de tratados
comerciais que reduziram substancialmente as barreiras tarifárias entre as
principais nações industriais da Europa ' Inglaterra-França, 1860; França-
Bélgica, 1861; França-Prússia, 1862; Prússia-Bélgica, 1863 e 1865; Prússia-
Inglaterra, 1865; Prússia-Itália, 1865, entre outros (Landes, 1969, p. 200).
Com efeitos multiplicados pela operação da cláusula da nação-mais-favorecida
neles incluída, esses tratados criaram um regime de comércio internacional
extremamente aberto, o qual, associado ao sistema monetário e cambial do padrão
ouro e à ampla liberdade de circulação de indivíduos, constituía um dos
elementos centrais da Grande Transformação de que nos falava Karl Polanyi.
Esse amplo movimento de reformas foi impulsionado por alguns fatores gerais.
Entre eles, cabe citar a prolongada atmosfera de paz produzida pelo Concerto
Europeu, o dinamismo derivado da difusão da revolução industrial aos países do
continente, o encurtamento das distâncias proporcionado pela invenção do
telégrafo sem fio e por um meio de transporte revolucionário: a ferrovia. Mas a
adoção das medidas concretas que o alimentavam se deu em circunstâncias que
variavam muito de um país a outro. Nesse, como em outros domínios, a Inglaterra
havia tomado a dianteira com a campanha pela revogação da Lei de trigo, que
projetou os nomes de Cobden e de Bright ' expoentes do laissez-faire ' no
espaço público inglês e nos meios "cultivados" de todo o mundo. A essa altura,
o livre-câmbio convertera-se no emblema de um movimento ideológico
transnacional poderoso. Sua influência pode ser intuída quando levamos em conta
o fato de que o tratado de livre comércio celebrado pela Inglaterra e a França
em 1860 leva o nome de Cobden e Chevalier, dois de seus paladinos.
Kindleberger sintetiza nestes termos as conclusões do estudo que fez sobre as
mudanças operadas nesse período:
O fato de que Luis Napoleão e Bismarck tenham usado tratados
comerciais para fins de política exterior sugere que o livre comércio
era valorado em si mesmo e que medidas em seu favor granjeariam
apoio. Vistos nesta perspectiva, os países da Europa não deveriam ser
considerados economias independentes, cujas reações a vários
fenômenos podem ser adequadamente comparadas, mas antes uma entidade
singular que se move em direção ao livre comércio por razões
ideológicas ou doutrinárias. Manchester e os economistas políticos
ingleses persuadiram a Grã-Bretanha, que persuadiu a Europa ' com
preceitos e exemplo (Kindleberger, 1978).
Devemos enfatizar a última sentença desse juízo. "By precepts and example".
Embora, nesse momento, fosse detentora de indiscutível supremacia econômica e
militar ' naval, mais especificamente ', a Inglaterra estava à testa de um
sistema multipolar, regido pela lógica do equilíbrio de poder. A consideração
mais cuidadosa dos fatos da política internacional nessa quadra histórica e o
exame dos indicadores comumente empregados na aferição das relações de poder
entre grandes potências levam-nos a rejeitar a suposição presente nos ensaios
de periodização do sistema internacional em termos de "ciclos de hegemonia" e a
concordar com o juízo de Michael Mann, segundo o qual
A Grã-Bretanha era apenas a potência líder, que fixava as regras
internacionais em negociação com as outras potências. A Grã-Bretanha
não era tão poderosa quanto afirmam os teóricos da hegemonia. O
Ocidente era hegemônico no mundo, mas era ainda uma civilização com
estrutura de poder multipolar (Mann, 1993, p. 266).
A sabedoria da política britânica consistia em evitar o surgimento em
território continental de uma potência suficientemente forte para ameaçar a sua
posição como primus inter pares nesse sistema ' e de não avançar além desses
limites. Mesmo se quisesse, a Inglaterra não teria meios para induzir as
grandes nações européias a adotar políticas comerciais de sua preferência, se
essas nações não definissem como de seu interesse tais políticas.
Mudança institucional em uma economia que se globaliza
Embora muito condensada, a apresentação que acabamos de fazer contém os
elementos comparativos de que necessitamos para refletir sobre a regulação da
econômica internacional ' mais precisamente, sobre a questão de como se dá o
processo de mudança nas instituições que articulam a economia nesse mundo tão
diferente que habitamos hoje.
Tomemos, para iniciar, a maneira como o tema da mudança institucional é tratado
por um autor influente como Douglas North, que dedicou ao mesmo uma de suas
obras mais significativas. Julgamos não cometer nenhuma violência ao afirmar
que o argumento central do livro Institutions, institutional change, and
economic performance pode ser resumido assim:
1. As instituições econômicas mudam ao longo do tempo como resultado de ações
desencadeadas por agentes individuais ' empresários econômicos ou políticos '
em reação aos incentivos emanados da infra-estrutura institucional na qual
operam.
2. Os principais determinantes da mudança institucional são a alteração dos
preços relativos e, em permanente interação com esse fator, a mudança nos
gostos, ou nas preferências. Mas não só. Os movimentos de preços chegam até nós
por meio de esquemas mentais, que determinam a percepção que temos deles e
nossa maneira de interpretá-los. Este o terceiro fator de mudança: as idéias,
os conceitos, os quadros cognitivos e normativos que medeiam nossa relação com
a realidade.
3. A mudança institucional é basicamente incremental: ela se verifica à margem,
como resultado agregado da ação descentralizada dos agentes. Dada uma variação
de preços e/ou de preferências, surge um desequilíbrio parcial no mercado
correspondente, o qual é corrigido por meio de readaptações nos termos dos
contratos firmados entre particulares. Mas as regras formais da estrutura
institucional que valida os contratos e assegura o cumprimento de seus termos
não podem ser alteradas dessa forma. Para mudá-las é preciso algo mais: o
desencadeamento de ações concertadas voltadas a esse fim.
4. A mudança institucional ocorre quando os incentivos para agir nesse sentido
superam os custos antecipados. Em última instância, a mudança das instituições
formais resulta dos cálculos maximizantes dos indivíduos. A partir daí, o que
decide o curso do processo ' se a mudança vai se produzir, e com que alcance '
é o poder de barganha das partes envolvidas (os que têm a ganhar e os que têm a
perder com a mesma).
5. Mudanças institucionais podem ser causadas por acontecimentos traumáticos,
como conquistas, revoluções, ou grandes catástrofes naturais, e afigurar-se
como grandes rupturas. Mas o impacto da quebra das regras formais costuma ser
bem menor do que se imagina, pois as normas culturais se alteram muito mais
lentamente do que os preços ou as regras formais. A situação de desequilíbrio
criada pelas transformações dramáticas será corrigida no decurso do tempo,
mediante acomodações sucessivas ' em ambas as direções ', cujo resultado tende
a ser, tipicamente, uma sociedade muito menos distinta.
6. A relação entre instituições e atores é interativa. O arcabouço
institucional determina em grande medida a estrutura de incentivos que
prevalece em uma determinada sociedade. Buscando tirar o maior proveito
possível das oportunidades que o contexto institucional lhes oferece, os
agentes individuais e coletivos desenvolvem conhecimentos e habilidades que
refletem essa estrutura, e são desigualmente recompensados segundo o grau em
que são bem-sucedidos. Essa relação simbiótica é compatível com a mobilização
de energias para a introdução de mudanças marginais, mas ' no tocante aos
atores mais bem situados, ao menos ' exclui qualquer disposição para mudanças
radicais. Daí a persistência das organizações socioeconômicas falidas.
Reproduzimos aqui, com algumas modificações, a apresentação que fizemos do
argumento de North em outro lugar (Velasco e Cruz, 2003). Nesse texto,
criticamos o determinismo contido em seu esquema ' a passagem direta entre
poder de barganha e resultados dos embates pela definição/redefinição de regras
' e sua abstração excessiva, que o leva a deixar do lado de fora esse elemento
fundamental para a inteligência dos processos reais de mudança institucional, a
saber, a pluralidade das ordens jurídicas nacionais e as relações assimétricas
prevalentes entre elas. No que vem a seguir, vamos retomar a segunda dessas
observações críticas, porque ela nos conduz ao cerne do problema que nos ocupa
neste ensaio.
Integração espacial das relações econômicas no contexto de um sistema político
territorialmente fragmentado: este o substrato da economia internacional. Em um
quadro assim, diversos como possam ser em sua origem, os processos de mudança
institucional confluem para e se resolvem todos no âmbito dos sistemas
decisórios nacionais. É nos marcos desses sistemas que regras formais são
alteradas ou abolidas, e outras tomam o seu lugar.
Contudo, o fato de ter como espaços privilegiados os sistemas decisórios
nacionais não significa que o processo de gestação de normas nessa economia
esteja contido no interior das fronteiras que delimitam seus respectivos
territórios. Como vimos, muitas das instituições que tipificaram o capitalismo
liberal na era vitoriana foram implantadas de maneira quase simultânea em
diversas partes do globo. Como as breves referências históricas feitas neste
artigo sugerem, elas se devem à ação conjugada de alguns fatores, entre os
quais caberia destacar:
a) Mimetismo ' busca mais ou menos sistemática, mais ou menos autônoma, de
modelos institucionais ajustados aos fins perseguidos pelas elites de uma
determinada sociedade. O caso mais extremado nessa linha talvez seja o Japão de
Meiji. Forçado a abrir seus portos ao comércio internacional, em 1854, pela
presença ameaçadora em seu litoral dos navios de guerra sob as ordens do
comandante Perry, pouco tempo depois o Japão se lançava em um intenso programa
de reformas, cujo mote foi a ocidentalização. Comitivas viajavam às principais
capitais do mundo para observar em primeira mão o funcionamento de instituições
econômicas e políticas, a fim de que os dirigentes pudessem escolher dentre
elas, com conhecimento de causa, as que mais facilmente se adaptariam às
condições de sua sociedade. Em outras circunstâncias, e em outra medida, este
foi também o modelo adotado no fim do século XVIII pela jovem república norte-
americana, modelo que encontrou expressão lapidar na imagem do juiz Jesse Root
para quem a justiça norte-americana deveria operar como uma "colméia
republicana", cujas abelhas colhem o néctar de inúmeras flores mas produzem um
mel de sabor todo próprio (cf. Fiedman, 1985, p. 111). A consideração desse
aspecto nos leva a adicionar às duas que mencionamos acima, mais uma observação
crítica ao esquema de North. Neste, o vetor da mudança parte da sociedade e
chega ao Estado. Contudo, quando entendemos este último, não como um sistema
fechado, mas como elemento de um sistema ' o sistema interestatal ' fica fácil
constatar o caráter limitado daquela representação. Como unidades desse
sistema, os Estados são induzidos a emular os padrões organizacionais dos
Estados mais exitosos. Ora, ao fazer isso eles adotam normas e políticas que
estão em dissonância com os padrões dominantes nas sociedades correspondentes.
Nesse sentido, mais do que responder a pressões sociais por mudanças, os
Estados agem propositadamente com o fim de transformar suas respectivas
sociedades. Encontramos aqui a problemática do Estado desenvolvimentista. E
falaríamos, então, em isomorfismo mimético, para retomar a noção exposta por
DiMaggio e Powell (1991).
b) Introdução em um contexto nacional dado de inovações institucionais
induzidas pela presença neste de agentes econômicos oriundos de outras
sociedades e organizados de acordo com as leis nelas vigorantes. Tocamos aqui
em um lugar comum na literatura sobre investimento estrangeiro: o papel da
empresa internacional na difusão de pacotes tecnológicos e na propagação de
normas e padrões operacionais mais dinâmicos na economia dos países
hospedeiros. Mas o elemento que desejamos salientar é mais sutil e, ao mesmo
tempo, mais profundo: ele diz respeito às mudanças legais condicionadas por
essas empresas em virtude de sua simples presença. No breve relato que fizemos,
esse elemento transparece na influência que as sociedades anônimas inglesas
tiveram na criação do ambiente que levaria à reforma da legislação societária
na França. Obstada a mudança, os grupos empresariais franceses estariam em
franca desvantagem vis-à-vis os concorrentes britânicos com atuação em seu
mercado interno. Nesse plano, também, a emulação desencadeia o processo que
leva à mudança. Mas agora ele opera na relação entre os capitais; a relação
destes com o Estado é de outra natureza.
c) Em conexão estreita com os dois itens precedentes, o processo de difusão de
normas ao longo das relações assimétricas estabelecidas entre o centro
metropolitano e sua periferia. Aqui, vamos nos deparar com duas situações
distintas. De um lado, casos em que a mudança se opera mediante a combinação de
incentivos e sanções de natureza político-econômica, sob direção das elites
locais. Em diferentes situações históricas, quando decidem promover seus
interesses por meio da exploração das oportunidades que a inserção mais
profunda na economia capitalista mundial lhes oferece, essas elites passam a se
defrontar com exigências cujo cumprimento depende de sua capacidade de mudar,
em maior ou menor medida, a face de suas respectivas sociedades. Novos quadros
materiais; novas instituições; usos e costumes, normas e valores renovados. Em
todos esses planos, a ação transformadora de tais elites e dos grupos sociais a
elas associados passa pela incorporação em grande escala de recursos oriundos
dos centros mais avançados. Deles provêm, em medida variável, os capitais
mobilizados para a montagem da infra-estrutura de transporte e de comunicações
requerida pelos "novos tempos" e para a edificação de um ambiente urbano
condizente com os padrões, agora mais elevados, de "vida civilizada". Deles
provêm as normas de consumo e o estilo de vida a que esses grupos sociais
passam a aspirar. Deles vêm ainda os padrões de política e modelos jurídicos a
serem implantados. Esta a situação referida pelos teóricos da dependência
décadas atrás. A outra situação típica consiste na imposição das instituições
econômicas do centro dominante a sociedades mantidas sob controle direto deste
nas diferentes figuras assumidas pelo elo colonial. Foi nessa condição que se
deu a incorporação da África e de boa parte da Ásia na economia capitalista
moderna.10 Não deixa de ser irônico o fato de que hoje a Ásia apareça como novo
centro mundial de acumulação, passível de ameaçar em futuro não muito distante
a supremacia econômica dos Estados Unidos.
d) Ações mais ou menos concertadas, porém convergentes, de grupos cuja
identidade se define em termos culturais. Tocamos nesse elemento ao mencionar o
papel importante desempenhado, em meados do século XIX, pela pregação dos
arautos do livre-comércio, e devemos registrar agora a enorme influência em
nosso tempo de seus sucedâneos, os ideólogos neoliberais. No presente, como no
passado, esses grupos e movimentos estruturam-se em redes que atravessam as
fronteiras dos Estados, constituindo-se em elementos dinâmicos do que pode ser
tido como uma "sociedade civil internacional". Hoje, como ontem, eles dividem
esse espaço com outras correntes de opinião, que tendem também a se estruturar
internacionalmente, e mantêm com elas relações mais ou menos intensas de
rivalidade. Em grande medida, o debate sobre políticas e estatutos legais em
cada país é travado com base em conceitos e idéias que circulam nesse espaço.
Não caberia introduzir aqui a questão, que tem sido tão discutida hoje, sobre o
papel das idéias na explicação dos fatos sociais. Mas é à influência delas que
Kindleberger alude ao sugerir que tomemos a Europa da segunda metade do século
XIX com uma unidade.
e) Busca de soluções efetivas para resolver problemas que dependiam da
coordenação entre grupos de interesses e Estados. Reencontramos aqui o problema
das organizações e dos regimes, que afloramos no início deste texto, e
retomamos sob outro ângulo ao falar dos cartéis internacionais.
Com tudo isso, a centralidade do Estado permanece como o elemento distintivo do
processo de mudança no contexto de uma economia internacional. Permeáveis,
porosos, miméticos, é por meio dos diferentes sistemas estatais que as normas
econômicas se afirmam como direito positivo, normas erga omnes, universalmente
vinculantes, e não restritas em sua efetividade ao círculo dos interessados e
seus dependentes. Essa característica, como vimos, não é incompatível com a
convergência. Mas confere grau mais ou menos elevado de contingência a ela.
Alteradas as circunstâncias que levaram às decisões geradoras desse estado de
coisas, nada garante que as diferentes "unidades de decisão" do sistema irão
responder da mesma forma aos novos estímulos provenientes do ambiente comum que
as envolve. É o que aconteceu no último quartel do século XIX, e acentuadamente
no entre-guerras. No primeiro desses períodos, a crise internacional levou
alguns países à adoção de políticas protecionistas, assentadas internamente no
estabelecimento de alianças às vezes muito sólidas entre forças políticas e
sociais. A referência inescapável aqui é à Alemanha bismarckiana e à aliança
entre a pequena nobreza junker e os industriais do aço. Em outros, o ajuste às
novas condições foi buscado por meio da reiteração das velhas pautas, a
despeito das pressões em contrário, e ainda que ao preço de alguns ajustes não
desprezíveis (caso da Inglaterra). Em condições incomparavelmente mais
dramáticas, no segundo período a busca de soluções nacionais para os problemas
gerados pela crise econômica internacional levaria a trajetórias muito mais
discrepantes e a uma polarização ideológica sem paralelo.11
No contexto de uma economia integrada sobreposta a um sistema territorialmente
fracionado de autoridade política, a mudança institucional envolve processos
que atravessam fronteiras. Mas os Estados nacionais continuam como instâncias
estruturantes: é no quadro definido por eles e pelas relações mútuas que
estabelecem entre si ' cuja expressão jurídica é dada pelas fórmulas do direito
internacional ' que a ordem espontânea ou negociada dos outros elementos se
desenvolve.
No caso de uma economia plenamente globalizada essa condição não se verifica.
Logo veremos por quê. Mas antes disso convém explicar melhor o que, em nosso
entender, caracteriza uma tal economia.
Quando falamos em "economia global" referimo-nos a um tipo ideal12 definido
pela conjugação dos seguintes traços: 1) supressão dos obstáculos físicos e
institucionais que insulam as economias nacionais, sob o efeito dos avanços
revolucionários nas tecnologias de transporte e comunicação, bem como de
reformas legais que asseguram a livre circulação, em escala global, de
capitais, bens, serviços e indivíduos, garantindo-lhes ainda, em toda parte,
proteção contra todo tipo de tratamento discriminatório por parte do poder
público. Persistem na economia global as diferenças decorrentes de
particularismos lingüísticos e culturais, mas ficam drasticamente reduzidos os
custos de transação envolvidos nas relações econômicas que se multiplicam
exponencialmente em todos os níveis, daí derivando, 2) a unificação dos
mercados ' de capitais, produtos e serviços ', que passam a se integrar em um
espaço econômico do tamanho do globo, povoado por grandes empresas
transnacionais, isto é, que cortaram os antigos vínculos com seus países de
origem. Tal espaço não é indiferenciado. Nele continuam a operar fatores
econômicos e sociais conducentes à especialização das atividades econômicas no
plano funcional (características técnicas e organizacionais dos processos de
produção) e espacial (dotação de recursos naturais, aglomeração de pessoal
qualificado, existência ou não redes sociais facilitadoras de soluções para
problemas de coordenação), levando ao surgimento ' ou possibilitando a
continuidade ' de diferentes "sistemas sociais de produção" (cf. Hollingsworth,
1998), cuja persistência dependerá do grau de maleabilidade, da capacidade de
adaptação a mudanças que puderem demonstrar, pois 3) na economia global o
sistema econômico ganha autonomia extraordinária e impõe globalmente sua lógica
e seus movimentos, contra as demandas e imperativos que provêm do domínio da
política e do mundo da vida ' esfera onde a comunicação alimenta as relações
sociais e as identidades individuais são definidas. Em uma economia assim, na
qual as cadeias de interdependência se estendem ao máximo e se entrecruzam numa
infinidade de pontos, que rompeu todo e qualquer laço com a moralidade
tradicional, em que a impessoalidade é a norma e as trocas, no fundamental, são
efetuadas entre estranhos, a incerteza e o risco envolvidos na interação com o
outro seriam magnificados ao limite do inaceitável se não fossem contidos pela
efetividade da norma jurídica. Assim, 5) esta economia supõe o desenvolvimento
de um direito igualmente global, com a garantia coativa do poder político.13
Esse último ponto requer um comentário, porque parece estar em franca
dissonância com teses muito difundidas sobre a globalização. Com efeito, é um
lugar comum na literatura sobre o tema a idéia de que a globalização tem como
corolário a crise do Estado, que sofre com ela perdas pesadas em sua capacidade
de regular as atividades econômicas e de desenvolver políticas. No limite, o
Estado se esvaziaria, subsistindo de forma residual, sujeito passivo das forças
incontroláveis dos mercados globais. Nesse contexto, assistiríamos a um
processo de encolhimento e de fragmentação do direito doméstico e a uma
privatização acentuada do direito no âmbito da "economia-mundo". Esse processo
seria alimentado, de um lado, pela intensa atividade normativa a que se
entregam as empresas transnacionais visando a assegurar seus padrões próprios
de operação e a garantir a integração entre as múltiplas áreas em que atuam, e,
de outro lado, pela jurisprudência das cortes privadas chamadas a resolver as
disputas que surgem permanentemente entre essas empresas ' os tribunais de
arbitragem e a nova lex mercatoria por eles produzida (cf., por exemplo, Faria,
1999).
Existe nessa representação algo do mito da separação entre Estado e sociedade,
caro aos doutrinadores do laissez-faire que Walter Lippman, em sua condição de
liberal esclarecido, desmontava com observações desse tipo:
O título de propriedade é uma construção da lei. Os instrumentos são
contratos legais. As empresas são criaturas legais. É falso, por
isso, pensar nelas como coisas de algum modo existentes fora da lei,
e perguntar então se é permissível "interferir" nelas. [...] A
propriedade de qualquer espécie, os contratos de qualquer espécie, as
empresas de qualquer espécie, só existem porque há certos direitos e
imunidades que podem ser garantidos, uma vez tendo sido legalmente
estabelecidos, invocando-se a autoridade do Estado. Falar em deixar
as coisas a si mesmas é, por isso mesmo, usar uma expressão sem
sentido e enganosa (Lippman, 1961, p. 234).
Tomando o cuidado de colocar provisoriamente entre parêntese o termo Estado,
podemos inserir essa observação no contexto da discussão que estamos travando.
Com efeito, a economia internacional constitui-se como um entrelaçamento
infinitamente complexo de relações jurídicas. É verdade que as empresas, as
corporações, geram normas quando fixam padrões de organização interna e quando
estabelecem relações contratuais umas com as outras. Mas elas próprias são
"criaturas legais", e nem a regularidade de suas práticas, nem a segurança de
seus contratos seriam imagináveis em um mundo que não estivesse dotado de
normas legais sustentadas em sua efetividade pela possibilidade de recurso ao
aparato coativo do poder público.
Não é preciso avançar na indagação sobre a maneira como essa exigência poderia
vir a ser atendida na situação idealizada que estamos a considerar aqui.
Admitida a existência nela das unidades políticas que denominamos Estados,
aquele resultado poderia ser alcançado por diversas vias ' tratados
internacionais, aplicação extraterritorial da lei, harmonização ', mas, em
qualquer desses casos, presenciaríamos a instauração de um ordenamento legal
cuja jurisdição teria o tamanho do mundo.
Admitida a existência de unidades políticas que denominamos Estados, dissemos.
Mas não seriam mais Estados no sentido próprio do termo. Em uma economia assim,
os Estados nacionais se dissolvem, em sua qualidade de centros de poder
independentes, ainda que subsistam como realidades administrativas mais ou
menos relevantes. No limite, poderiam ser tratados como equivalentes funcionais
de províncias de um sistema imperial, ou de entidades subnacionais de uma
organização federativa. Nessa qualidade, continuam a exercer funções
importantes, em seu triplo papel de agências normativas, reguladoras e
provedoras de serviços. Mas a legalidade que produzem é subordinada: inscreve-
se como elemento particular da ordem jurídica inclusiva.
Em uma configuração, sob tantos aspectos, sumamente complexa como essa, o
processo de mudança institucional adquire uma forma, curiosamente, mais
simples. Isso porque estão ausentes dela todas as complicações criadas pela
pluralidade dos sistemas decisórios independentes. Em um quadro assim não cabe
falar em relações internacionais, nem em política externa. Ao serem processados
pelo sistema público de tomada de decisões, os problemas que surgem no
intercurso econômico e social se traduzem em questões de política interior. Cai
por terra, portanto, a segunda observação crítica que dirigimos a Douglas
North. Em uma economia plenamente globalizada a mudança das instituições
formais seria determinada ' numa das pontas da cadeia causal ' pelo movimento
dos preços e dos padrões de gosto, e ' na outra ' pela distribuição de poder
entre os agentes. Ficaria de pé a objeção ao determinismo de seu esquema. Mas
este é um outro assunto.
Ao falar da forma que assume a mudança institucional na economia globalizada
estamos cientes de que entramos no terreno da ficção. A economia global, tal
como definida, não existe. É um tipo ideal, uma obra da imaginação. Mas é mais
do que isso: é também um vetor a indicar o que fazer, um modelo normativo
implícito. Abraçado com graus variáveis de consciência por seus aderentes, a
presença desse modelo se manifesta de mil formas no debate público, no discurso
de intelectuais e tecnocratas, em documentos de organizações internacionais e
em exposições de motivo que acompanham medidas de política pública. Nesse
sentido, ele não interpela ninguém em particular. A difusão desse modelo é
universal, mas seu alvo privilegiado são os grupos estrategicamente situados,
com meios para traduzir seus pontos de vista em políticas de Estado.
E não poderia ser de outra maneira. Pois os Estados ' alguns Estados ' estão na
origem de muitas das iniciativas que produziram o contexto geral em que esse
modelo se torna plausível, e depende dos Estados a criação das condições para
que avanços em direção a ele sejam possíveis.
A construção do sistema multilateral de comércio no pós-guerra é uma evidência
da primeira afirmativa; outra é o esforço continuado de alguns Estados no
sentido de garantir ' pelo uso da coerção direta, ou por meio de acordos
internacionais ' os direitos de propriedade de capitais sediados em seu
território quando investidos em territórios sob a jurisdição de outros Estados
(cf. Silva, 2003). A segunda afirmativa pode ser justificada com uma breve
referência à enorme expansão da arbitragem internacional nas últimas quatro
décadas, fenômeno que muitos autores interpretam como uma nova lex mercatoria,
núcleo do direito global em formação.
Tal juízo, como se poderia imaginar, é controverso. A opinião dos especialistas
divide-se entre a perspectiva autonomista ' que sustenta a independência do
direito produzido pela atividade contratual das empresas e pelo labor dos
árbitros ' e a perspectiva positivista, que mantém, apesar de tudo, o primado
do direito estatal. Mas não é preciso entrar no debate. Para nossos propósitos
basta esclarecer um ponto em particular. Como vimos, um dos atributos
fundamentais do instituto da arbitragem é a liberdade que ele reserva às partes
na escolha do direito nacional a que o contrato estará referido e que será
usado no julgamento das eventuais controvérsias que ele venha a suscitar. Na
ausência de manifestação explícita a esse respeito, cabe aos árbitros dispor
sobre a matéria, o que eles fazem com a ajuda de doutrinas extraídas da
tradição do direito internacional privado. Munidos desses recursos, eles
decidem se vão aplicar no exame da pendência o direito deste ou daquele país.
Mas podem decidir ainda que o melhor a fazer é aplicar o direito comercial
internacional. Vale dizer, o conjunto de princípios e normas que compõem o
quadro não codificado da lex mercatoria. Em qualquer dos casos, porém, a sanção
de seus julgados depende do reconhecimento dos mesmos pelas autoridades
judiciais do país em que a sentença será executada. A freqüência em que isso
vem ocorrendo em todas partes do mundo não é resultado de mudança na inclinação
subjetiva dos juízes em cada país, mas produto de alterações no direito
doméstico e de convenções internacionais.
A constituição de uma economia plenamente globalizada, com o seu complemento
obrigado ' a criação de um ordenamento jurídico igualmente global ', depende,
pois, da disposição dos Estados nacionais de abrir mão de poderes que foram
tradicionalmente entendidos como atributos essenciais aos mesmos como unidades
soberanas do sistema internacional.
Trata-se, portanto, de um processo genuinamente constitucional. Mas um processo
muito peculiar, posto que:
1. É parcelado, fragmentado em um sem-número de decisões, de todo afastada a
possibilidade de uma grande assembléia de nações que decidiria da nova
arquitetura jurídica do mundo. Por isso mesmo,
2. é diferido ' impossível dizer exatamente quando começou, e somente no futuro
os historiadores poderão julgar quando se concluiu, na hipótese duvidosa de que
ele chegue ao final.
3. Envolve atores coletivos de natureza diversa ' públicos e privados (Estados,
organizações intergovernamentais, grupos e associações empresariais,
organizações não-governamentais, movimentos sociais e correntes de opinião) ' e
com pesos muito diferentes. As relações entre eles são contingentes; vale
dizer, não dão lugar a blocos duradouros e coerentes. Mas não são aleatórias:
apesar das variações observáveis ao longo do tempo e na passagem de uma a outra
questão, é possível constatar a existência de certos padrões de alinhamentos,
que tornam possível a identificação de campos diferenciados no espaço mais
amplo onde o processo transcorre.
4. Desenvolve-se em arenas distintas, em cada uma das quais o processo envolve
subconjuntos diversos de atores, move-se sob o efeito de condicionamentos
específicos, avança em ritmos e direções que lhes são próprias.
5. Depende, em cada uma dessas instâncias, do resultado de negociações
delicadas. Nessas negociações conta, antes de tudo, o poder relativo das
partes. Mas não só isso. Na disputa pela afirmação de seus interesses e na
defesa das soluções institucionais a eles mais adequadas, em cada caso em
particular, os atores envolvidos invocam princípios mais ou menos amplamente
aceitos, que funcionam como tópos, pontos de apoio firmes a partir dos quais os
argumentos podem ser formulados e defendidos com maior ou menor eficácia. "Não
discriminação", "soberania", "reciprocidade", "transparência", são alguns
desses princípios. Mas eles não são harmônicos, freqüentemente se acomodam com
dificuldade, e não raro são de todo contraditórios. O fato de serem admitidos
em bloco como balizamento torna o debate possível e dá ao mesmo forma
estruturada. Ainda que muitos desses princípios sejam rejeitados liminarmente
por alguns, os atores que assim o fazem tendem a se posicionar à margem. A
diferença entre os ocupantes das posições centrais no debate é marcada, não
pela impugnação desse ou daquele princípio, mas pela forma diversa de
hierarquizá-los.
6. Reserva a uma categoria de atores coletivos um papel de todo especial. Esses
atores são os Estados. Eles não são apenas diferentes dos demais: em sua dupla
condição de atores' quando, com base no monopólio da representação política que
detêm, negociam diretamente acordos uns com os outros, ou quando interagem em
organizações internacionais ' e de arenas decisórias ' quando se trata de
formular as normas do direito doméstico e de definir as posições negociadoras
em fóruns internacionais ', os Estados estão no centro de todo o processo, que
é por eles articulado.
7. Expressa, por isso mesmo, as profundas assimetrias que marcam o sistema
internacional.
Esse processo está em curso, e a OMC é uma das arenas mais importantes entre as
muitas em que ele se desenvolve.
Do GATT à OMC: direito transnacional em expansão e conflito político
Normas globais para uma economia que se globaliza. Essa, a idéia reguladora que
parecia informar os trabalhos na rodada Uruguai do GATT. Aberta em 1986, ao
cabo de quatro anos de viva controvérsia, a previsão era a de que no final da
década ela estaria concluída. As dificuldades de avançar satisfatoriamente no
terreno pedregoso da negociação agrícola prolongaram-na por vários anos ainda.
Mas a rodada Uruguai chegou a termo, e seu resultado já foi definido como uma
verdadeira reforma constitucional.
Uma referência rápida a dois de seus elementos é o bastante para confirmar o
acerto dessa avaliação. A primeira, sobre o acordo alcançado na área de
propriedade intelectual. Seus dispositivos envolvem, não apenas padrões gerais
a serem observados pelas legislações nacionais, mas também disposições
detalhadas sobre os procedimentos que deverão ser aplicados para sancionar
direitos individuais (e corporativos) de propriedade. Esse traço exemplifica um
fenômeno geral: o deslocamento do foco do regime de comércio, cujas
disciplinas, mais do que limitar as práticas restritivas dos governo, passam a
regular positivamente políticas nacionais (cf. Ostry, 2002).
A segunda, sobre a criação da OMC, com o mecanismo judicial de que ela é
dotada. O GATT também dispunha de um mecanismo institucional de resolução de
disputas, mas sua importância ficava extremamente reduzida pela exigência de
consenso que devia ser atendida para que o mesmo fosse acionado. Como o país
responsável em situação irregular podia bloquear a abertura de painéis, o
funcionamento do sistema favorecia muito a busca de soluções negociadas por
meio de barganhas, onde falava mais alto, evidentemente, a voz do mais forte.
Esses incentivos não desapareceram de todo na OMC ' a fase de consulta e
mediação continua sendo o primeiro estágio no processo de resolução de
controvérsias. Mas agora a possibilidade de bloquear um painel não mais existe.
Ultrapassado um limite fixo de tempo (60 dias), se as partes não tiverem
resolvido a pendência, o Organismo de Resolução de Controvérsias (Dispute
Settlement Body) pode solicitar o estabelecimento de um painel, o que se dá
automaticamente. Concluído o trabalho dos árbitros, que devem observar
igualmente prazos predeterminados, se a parte perdedora considerar inaceitável
o seu veredicto ela pode impetrar um recurso junto a uma corte permanente de
apelação, que dará a palavra final. Caso as recomendações não sejam
implementadas, depois de esgotadas as tentativas de acordo sobre compensações
devidas, a parte demandante pode pedir autorização para retaliar (cf. Hoeckman,
e Kostecki, 1995, p. 47). Como a diferença entre geração e interpretação de
normas é sabidamente fluida, a operação desse mecanismo tem resultado em um
processo de produção legal que já há algum tempo vem sendo objeto de estudo
como um aspecto relevante do processo mais amplo de judicialização das relações
econômicas internacionais.14
Organização intergovernamental, estruturada com base no princípio da soberania
' refletido na regra que assegura voto igual a todos seus membros ', a OMC está
programaticamente voltada para a produção de normas destinadas a limitar a
capacidade dos Estados de regular a atividade econômica e implementar políticas
de desenvolvimento de acordo com os seus próprios critérios.
A OMC tornou-se o foco principal de um amplo processo de regulação da
atividade econômica global freqüentemente denominado "reforma
regulatória" [...]. Ninguém com um mínimo de experiência sobre o modo
de operação dos organismos públicos pode duvidar de que a reforma
regulatória é muito desejável [...]. Entretanto, a predominância da
OMC nesse processo cria sérios riscos. A OMC apóia-se em obrigações
de acesso a mercado, cuja tendência é tratar as diferenças
regulatórias como obstáculos indesejáveis. Assim, suas "disciplinas"
[...] tendem a requerer a remoção dos regulamentos nacionais
existentes e a criar restrições significativas para os processos
regulatórios nacionais (Picciotto, 2003, p. 385).
Reforma constitucional, pois. Mas incompleta. Com efeito, o balanço das
realizações da rodada Uruguai acusava ganhos limitados em várias áreas ' como
"serviços" e "medidas comerciais relacionadas a investimentos", por exemplo ' e
áreas inteiramente descobertas ' caso, entre outros, de compras governamentais.
Não surpreende, pois, que a disposição de manter o ímpeto reformista tenha
sobrevivido a ela. E que continuasse a gerar viva controvérsia, como a que se
acendeu na reunião ministerial de Cingapura, em 1996, e terminou na decisão
salomônica de criar grupos de trabalho com a missão de estudar quatro novos
temas ("investimentos", "política de concorrência", "compras governamentais" e
"facilitação de comércio"), com vistas à sua incorporação eventual na agenda de
negociações de uma futura rodada. Havia ainda a intenção proclamada de trazer
para o fórum da OMC os temas sensíveis dos direitos trabalhistas e da proteção
ambiental ' o que provocava, na maior parte dos países em desenvolvimento,
Brasil incluso, reações indignadas.
Apesar das resistências localizadas, em meados dos anos de 1990, o roteiro
parecia estar traçado. O que se discutia não era se, mas quando: mais cedo, ou
mais tarde, a agenda globalização seria cumprida. Nos últimos anos da década
passada, porém, dois eventos abalaram as certezas e aconselharam a adoção de
uma atitude mais sóbria.
Um deles foi a seqüência estonteante de crises cambiais e bancárias que varreu
a Ásia entre 1997, passou pela Rússia em meados do ano seguinte, bateu no
Brasil em setembro e atingiu o centro nervoso do sistema com a insolvência da
firma de capital de risco Long-Term Capital Management, forçando a autoridade
monetária norte-americana a organizar uma operação urgente e nada ortodoxa de
resgate. A volatilidade dos mercados financeiros não era uma novidade no
capitalismo fin de siècle. Antes dos episódios que mencionamos houve os ataques
especulativos que levaram à desvalorização da lira e da libra esterlina, em
1992, e depois, o colapso do peso mexicano, no final de 1994. Mas a impressão
causada por esses acontecimentos foi passageira: vencido o susto, os agentes
voltaram à sua rotina e continuaram a operar com tranqüilidade. O choque
produzido pela débâcle das economias asiáticas foi de outra ordem. Não apenas
pela reação em cadeia que desencadeou, mas também por ter atingido países que
até dias antes eram apresentados pelos donos do saber e do dinheiro como casos
exemplares de economias saudáveis. Por ambos os motivos, as crises desse
período abriram um debate áspero sobre o papel das instituições multilaterais
(em especial, do FMI), e, em termos mais amplos, sobre a arquitetura do sistema
financeiro internacional.
O outro evento foi o fracasso estrepitoso da conferência ministerial da OMC,
que se realizou em novembro de 1999, na cidade de Seattle. Ele ficará na
história por seu aspecto espetacular: as manifestações de protesto, que
mobilizaram mais de 70 mil pessoas, perturbaram significativamente os trabalhos
dos negociadores e garantiram ao chamado movimento antiglobalização, em todo o
mundo, um espaço reservado nas manchetes dos jornais. A partir desse momento,
não havia mais como desconhecer a presença de atores sociais ' de algumas ONGs,
em particular ' nos processos de negociação de acordos econômicos. Eles vieram
para ficar.
Mas não foram os responsáveis pelo impasse em Seattle, nem representam o
aspecto mais importante do que se passou naquele local. Prejudicada por erros
bisonhos de condução, o malogro da conferência se deveu, fundamentalmente, às
discordâncias profundas que dividiam seus participantes oficiais. Diferenças
entre as posições defendidas pelos Estados Unidos e pela União Européia na
questão agrícola ' o que estava longe de constituir uma novidade '; diferenças
entre ambos e os países em desenvolvimento, que sustentavam seus pontos de
vista com firmeza e preparo insuspeitados (cf. Odell, 2002; Howse, 2002; Ostry,
2002). A essa altura, a tensão, referida no início deste artigo, entre a regra
majoritária que prevalece na OMC e o peso muito desigual de seus membros já era
visível. Em Doha e, sobretudo, em Cancun ela se manifestou de forma mais
contundente.
Como dissemos, essa tensão é estrutural. Mas, ela é exacerbada por uma
circunstância que não passou desapercebida aos analistas mais finos. A OMC é
uma organização de fronteiras móveis. Sua competência abrange o comércio
internacional e temas a ele relacionados, isto é, outros tipos de medidas
suscetíveis de traduzir-se em tratamento discriminatório contra os produtores
externos. Ora, como economia e sociedade formam, em conjunto, um sistema de
elementos interdependentes, em princípio, os mais diferentes temas podem ser
trazidos para a jurisdição da OMC. Foi assim em sua pré-história: a inclusão de
"novos temas" ' "serviços", "propriedade intelectual" e "medidas de
investimento relacionadas ao comércio". Continua sendo assim no presente, como
já vimos, com a disputa acirrada em torno da inclusão na rodada Doha dos "temas
de Cingapura". Pois bem, na medida em que expande sua jurisdição e passa a
legislar sobre matérias tradicionalmente situadas na esfera da política
doméstica, a importância da OMC cresce exponencialmente no cálculo dos mais
diversos atores (estatais e não estatais), que fazem o possível para atuar em
seu âmbito com máxima efetividade. A contrapartida desse movimento é que a OMC
tende a absorver os conflitos multidimensionais, superpostos e cruzados, em que
esses atores se encontram lançados.
A dinâmica que associa ampliação do papel regulador e aumento da demanda por
decisões vinculantes sobre questões controversas é conhecida, e resulta com
freqüência em fortalecimento da instituição que é objeto da mesma. Essa
proposição sintetiza uma parte não desprezível do processo que conduz à
constituição dos Estados nacionais modernos. Mas, aí reside o problema. Os
Estados são entes caracterizados pelo controle exercido sobre territórios '
vale dizer, sobre as populações que os habitam. Dessa condição decorre um
conjunto de conseqüências que há mais de dois mil anos tem sido a seiva do
pensamento político. Porque as relações entre o Estado e os grupos sobre os
quais o seu poder é exercido são duradouras, elas podem se traduzir em vínculos
subjetivos de pertencimento e alimentar sentimentos fortes ' de adesão ou
rechaço. Aludimos, por aí, ao tema da legitimidade.
Ora, a OMC é uma entidade abstrata. É difícil imaginá-la como objeto de
identificação para quem quer que seja. Na medida em que passa a internalizar
conflitos em dose crescente, ela tende a enfrentar problemas de legitimidade
cada vez mais graves... e não tem meios para enfrentá-los.
Mas, não poderia vir a adquiri-los? Essa é a questão que vem sendo debatida por
atores políticos e analistas de diferentes áreas. As posições divergem, em um
espectro que vai da proposta de constitucionalização de direitos econômicos por
meio da articulação dos regimes de direitos humanos e de comércio
internacional, até a defesa de um claro estreitamento da agenda da organização.
Não seria o caso no espaço restrito deste artigo examiná-lo de perto. Mas a
simples menção ao debate nos permite enunciar a proposição que se segue: seja
qual for a direção da mudança nesse domínio, a produção de normas econômicas
internacionais tende a se dar no futuro mediante um processo cada vez mais
politizado.
Será tanto mais assim quanto maior for a redistribuição de poder operada no
âmbito da economia internacional, e quanto mais graves forem os problemas por
ela enfrentados.
Convém indicar, por "problemas" estou entendendo aqui dois aspectos combinados:
a ocorrência de desequilíbrios e distorções que se traduzam em resultados tidos
por negativos sob diferentes pontos de vista (perda de dinamismo, queda
generalizada no ritmo de crescimento, tendência pronunciada à concentração
regional, agravamento de tensões sociais, impacto deletério sobre o meio
ambiente, por exemplo) e a percepção socialmente validada das conexões causais
envolvidas nesses fenômenos. Insistir sobre este segundo aspecto é importante,
porque ele põe em realce o papel ativo dos Estados, das ONGS e dos movimentos
sociais no processo político que define um conjunto de fenômenos como item da
agenda de "problemas" para os quais soluções hábeis devem ser encontradas. Isso
depende da capacidade que tenham os atores de mobilizar recursos materiais e
simbólicos para a promoção de seus respectivos pontos de vista. Há, portanto,
uma relação íntima entre esses dois fatores.
Há boas razões para acreditar que os processos em curso, em ambos os planos,
venham a reforçar a aludida tendência à politização das negociações econômicas
internacionais. O que suscita, naturalmente, a pergunta sobre as perspectivas
futuras da OMC. Mas, esta é uma questão que transcende os limites do presente
artigo. Com ela, saímos do domínio da análise e ingressamos no terreno da
estratégia, em que a vontade ' uma vontade, contra outras vontades ' dirige a
inteligência na definição de fins e na busca de soluções factíveis para
problemas práticos.
Notas
1 "Cumbre de Cancún", La Jornada, 15/9/2003.
2 "Senador dos EUA: Brasil levou Cancún ao fracasso". O Estado de S. Paulo, 18/
9/2003; "Setor privado dos EUA vê Brasil nos anos 70", Folha de S. Paulo, 13/9/
2004.
3 Discurso do ministro de Estado das Relações Exteriores, embaixador Celso
Amorim, por ocasião do Dia do Diplomata (Brasília, 18/9/2003, www.mre.gov).
4 "India didn't yeld on any issue", The Economic Times, 16/9/2003.
5 "CII lauds the role of developing countries at Cancún", The Economic Times,
16/9/2003.
6 Para uma análise do processo de produção dessa obra e um comentário crítico
sobre a edição citada, ver Mommsen (2000).
7 Elaborada em outros termos, esta é a tese exposta por Galgano no livro que
tomamos como uma das referências básicas para a elaboração desta parte. É
também uma síntese "heróica" da história detalhada que encontramos no trabalho
grandioso de Morton Horowitz (1977).
8 Sobre esse movimento geral, ver Murphy (1994). Para uma apresentação crítica
dessa obra, ver Velasco e Cruz (2000).
9 Para essa caracterização sumária, utilizamos o livro de Jacob Dolinger
(2003).
10 A esse respeito, ver Fieldhouse (1973), Clarence-Smith (1999) e Rothermund
(1986).
11 O contraste entre os dois períodos ' e destes com as respostas à crise da
década de 1970 ' é o tema central justamente do livro aclamado de Gourevitch
(1987).
12 Inspiramo-nos aqui no procedimento adotado por Hirst e Thompson em seu
conhecido livro sobre a globalização, embora deles nos afastemos na descrição
do tipo (cf. Hirst e Thompson, 1996).
13 Coincidimos, neste ponto, com a conclusão do autor de um estudo muito
instigante sobre as relações entre direito e globalização. Cf. Wiener (1999).
14 Cf. os artigos reunidos por Judith Goldstein, Miles Kahler, Robert O.
Keohane e Anne-Marie Slaughter no número temático sobre esse tema da revista
International Organization, 54 (3), 2000.