O viés majoritário na política comparada: responsabilização, desenho
institucional e qualidade democrática
Quanto maior o número de jogadores com poder
de veto em um sistema político, mais difícil será
reduzir a pobreza e a desigualdade por meio de
um sistema amplo de bem-estar social.
STEPAN (2004)
Introdução
A questão da qualidade da democracia ressurgiu com grande interesse na
literatura de ciência política contemporânea (Diamond e Morlino 2005; O'
Donnell, Cullell e Iazetta, 2004). O debate se rejuvenesceu a partir do avanço
considerável ocorrido na pesquisa empírica sobre o desenho institucional e seus
impactos sobre dimensões relevantes das democracias contemporâneas. Dentre
estas, destaca-se a capacidade de responsabilização (accountability) de
governantes pelos eleitores ou, de forma mais ampla, o potencial de
responsabilização existente em distintos arranjos institucionais.1 O
conhecimento sobre os efeitos de arranjos institucionais distintos sobre a
capacidade dos cidadãos de punir ou premiar ampliou-se consideravelmente a
partir de contribuições informadas por modelos principal-agente (principal-
agent) e de pontos de veto (veto playersou veto points analysis). Não obstante
a capacidade preditiva desses modelos ser persuasiva, o mesmo não pode ser
afirmado sobre o juízo normativo que muitos analistas fazem com base nos
achados das pesquisas empíricas. Raras contribuições efetivamente problematizam
as implicações normativas dos achados da pesquisa empírica, e aparentemente
muito poucas contribuições centrais da literatura comparada consideram os
pressupostos normativos da pesquisa empírica. Neste artigo, discuto essa
literatura, assinalando seu viés majoritário.2 Esse viés manifesta-se de duas
formas principais. Em primeiro lugar, pela redução da discussão da qualidade da
democracia à questão da responsabilização (accountability) ' conceito que está
enraizado profundamente no ideal normativo majoritário. Em segundo, pela
assunção cada vez mais freqüente na área de política comparada de que a
concentração de autoridade política é precondição para o exercício da
responsabilização.
Contra Madison?
As tendências que identifico no debate contemporâneo fariam estremecer Madison
' o teórico político mais instigante no tratamento das questões de desenho
institucional. Suas receitas de reforma institucional ' ou mais acertadamente
de terapia constitucional ' assentam-se no reconhecimento de que o poder
político deve ser fragmentado devido ao potencial de tirania associado à
ambição humana. Como afirmou enfaticamente "se os homens fossem anjos, não
seria necessário haver governos. Se os homens fossem governados por anjos,
dispensar-se-iam os controles internos e externos" (Madison, 1982 [1788], The
Federalist 51, p. 337). Será que os achados empíricos da pesquisa comparada em
ciência política ' parte da qual afirma que a dispersão de poder produz
ineficiência política e efeitos redistributivos perversos ' devem nos levar a
reconsiderar todo o edifício conceitual do ideal madisoniano de checks and
balances?
A capacidade ou o potencial de responsabilização de um arranjo político-
institucional converteu-se em parâmetro cada vez mais privilegiado no debate
sobre o desenho constitucional. Esse fenômeno traduz um processo mais amplo
pelo qual a responsabilização adquiriu grande centralidade não só no léxico das
ciências sociais, mas também na mídia. É significativo que, no final de 2004,
no sitede buscas Google, o número de referências à responsabilização
(accountability) tenha alcançado a notável marca de 115 milhões de registros.
Responsabilização efetivamente tornou-se a dimensão privilegiada no debate
sobre a boa governança. Novos construtos informados por esse conceito foram
propostos para a análise de domínios distintos das sociedades democráticas
'Estado, mercado e sociedade civil (Goodin, 2003). Outros valores normativos '
como, por exemplo, a congruência entre políticas de governos e cidadãos, a
representatividade ou a inclusividade ' têm recebido muito menos atenção nas
discussões sobre desenho institucional. Embora a responsabilização seja uma das
dimensões centrais da democracia representativa seu statusconceitual nas duas
últimas duas décadas é surpreendente.
Essa situação contrasta marcadamente com o statusdo conceito no período
anterior. Em livro clássico escrito em meados da década de 1960, que se
constitui seguramente na mais instigante discussão sobre representação na
ciência política contemporânea, Pitkin (1967, cap. 3) desenvolve uma crítica
devastadora da visão da representação política como responsabilização. Na
realidade, foi essa a visão que prevaleceu após o intenso debate ocorrido
durante o período formativo dos governos representativos modernos (Manin,
1995). A idéia de que os representantes devem ser responsabilizados pelo seu
desempenho em executar instruções dos seus eleitores foi rejeitada em favor do
conceito de representação como "agir em nome de outros". Mas ela perdura, como
será discutido a seguir, na avaliação de cientistas políticos norte-americanos
sobre seus país e em parte importante da literatura de política comparada. O
mais grave, no entanto, é seu uso ' marcado por inconsistência ' na avaliação
da qualidade das democracias de corte proporcionalista.
O controle de governos e a prevenção da tirania são peças fundamentais do
conceito moderno de democracia. Daí a necessidade de controles externos. O
desenho constitucional, prevendo separação de poderes e estabelecendo
bicameralismo, revisão judicial e federalismo, representa um esforço para
assegurar um compromisso madisoniano entre o poder de maiorias e o poder de
minorias (Dahl, 1956, p. 4). O paradoxo é que quanto mais o poder é fragmentado
menor será a clareza de responsabilidade e, conseqüentemente, mais limitada a
capacidade dos cidadãos controlar os governos.O foco recente sobre
responsabilização nas discussões a respeito do desenho institucional inscreve-
se em uma preocupação mais ampla com a questão da eficiência. Todavia, esse
esforço analítico é inteiramente inútil, porque não faz sentido aplicar um
conceito estreito de responsabilização para se avaliar a qualidade da
governança em países que exibem um desenho constitucional proporcionalista ou
consociativo (Lijphart, 1984; Powell, 2000). Neste artigo apresento uma
discussão sobre os nexos entre desenho institucional e responsabilização, e
identifico os supostos normativos subjacentes a distintas análises destes nexos
na literatura comparada. O potencial de responsabilização varia amplamente em
função dos arranjos institucionais ' ou, mais acertadamente, do desenho
constitucional de um país. No entanto, como argumento ao longo deste artigo, a
responsabilização não é a única dimensão relevante, nem tampouco os achados
empíricos das análises substantivas em política comparada comportam apenas um
único juízo normativo.
A atual agenda de pesquisas na política comparada está marcada por questões
normativas não explicitadas. Uma dessas questões é seguramente o viés normativo
majoritário. Tal viés se manifesta especificamente nas contribuições baseadas
em modelo de veto players, cujo suposto fundamental é que quanto menor o número
de veto players, tanto melhor será a boa governança. O objetivo de se revisitar
aqui a discussão de modelos majoritários versusproporcionalistas não é de
apresentar mais uma defesa de Lijphart em face de seus críticos ou, ao
contrário, de criticá-lo. Ambos os propósitos já foram objeto de analises
instigantes por Roller (2005) e MacGann (2006). Pretendo desenvolver uma
critica original sobre o viés majoritário da política comparada,
particularmente seu suposto de que a concentração de autoridade política (e
seus correlatos ' clareza de responsabilidade, "identificabilidade" pré-
eleitoral, entre outros conceitos) é precondição para a boa governança. Quatro
considerações de natureza empírica serviram de motivação básica para este
artigo. Em primeiro lugar o hiato cada vez maior entre a prática constitucional
das democracias e os supostos normativos das visões majoritárias. Nas últimas
duas décadas vem ocorrendo uma "revolução constitucional" sinalizada pela
expansão global do Poder Judiciário (Tate e Valinder, 1995) e pela rápida
difusão da prática de controle da constitucionalidade das leis por cortes
especiais ou ordinárias (Hirschl, 2004). Dessa forma, o Poder Judiciário tem se
constituído cada vez mais em veto player,3 e mesmo países com desenho
majoritário ' onde o Judiciário é pouco mais que um ramo especializado da
burocracia ' têm crescentemente adotado tal prática. Em segundo lugar, a
linguagem pública das democracias contemporâneas cada vez mais recorre à
proteção de direitos como valor normativo, e tem recorrido a dispositivos cada
vez mais freqüentes para a proteção de minorias e de direitos humanos. Essa
judicialização crescente dos direitos, essa linguagem tem como contrapartida
institucional a criação de pontos de veto antimajoritários no sistema político.
Em terceiro lugar, as democracias contemporâneas são cada vez mais
heterogêneas, social e etnicamente, mas as propostas de desenhos institucionais
derivadas da política comparada pressupõem sociedades homogêneas. Assume-se que
quanto maior a congruência na preferência dos cidadãos, tanto maior as
precondições para a concentração de autoridade política e, conseqüentemente,
maiores as possibilidades de eficiência na ação de governo. A boa governança,
segundo a visão prevalecente na política comparada, é alcançada pela adoção de
desenhos institucionais que maximizem a clareza de responsabilidade e a
capacidade de produzir decisões que tenham "resolutividade". Esses exemplos
representam mecanismos para a expressão de vetos de minorias, os quais
introduzem ou robustecem elementos proporcionalistas nas democracias avançadas.
Finalmente, o processo amplo de descentralização que caracterizou as
democracias desde pelo menos a década de 1980 representa outro mecanismo pelo
qual ocorreu a fragmentação de autoridade política. Esses quatro
desenvolvimentos sugerem efetivamente uma disjunção entre, de um lado, os
achados e as propostas de desenho institucional derivados da literatura de
política comparada e, de outro, as práticas institucionais e as transformações
ocorridas nas democracias avançadas.
Política comparada e teoria política normativa
As contribuições recentes, na área de política comparada, sobre o funcionamento
dos sistemas políticos democráticos têm iluminado aspectos centrais a respeito
dos efeitos das instituições. Embora sejam apresentadas como teorias livres de
considerações normativas, elas contêm pressupostos dessa natureza. Todavia,
como já assinalado, esses pressupostos são freqüentemente ignorados e suas
implicações normativas, desconsideradas. Este fato para muitos não deveria
causar estranheza, uma vez que poderiam apenas expressar a divisão de trabalho
cada vez maior entre pesquisadores empiricamente orientados e analistas de
teoria política. Tal disjunção é, no entanto, problemática nos trabalhos sobre
as chamadas novas democracias, nos quais a questão da reforma institucional
está com freqüência relacionada aos achados das pesquisas empíricas. As
democracias são muitas vezes avaliadas em termos da eficiência política, isto
é, no sentido de produzir resultados tangíveis para a população, e também em
termos da capacidade em agregar interesses e produzir decisões consistentes de
natureza pública (Diamond e Morlino, 2005).
No caso das novas democracias, a conclusão típica na política comparada na
década de 1980 era de que tais bens tangíveis não são produzidos em virtude, '
dentre outros fatores, da persistência do clientelismo. Por influência da
abordagem neo-institucional, as análises correntes agregaram a este diagnóstico
a questão do desenho constitucional. A análise desenvolvida por Tsebelis (2002)
sobre veto playerstem-se constituído em uma das mais influentes no campo da
ciência política comparada. É fundamentalmente positiva e busca explicar
padrões de produção legislativa, bem como os determinantes da estabilidade e da
mudança em políticas públicas. Inegavelmente, a análise formal de veto
playerscontribuiu de forma expressiva para o entendimento das formas por meio
das quais variáveis institucionais afetam a capacidade dos governos em aprovar
proposições legislativas e produziu muitas hipóteses testáveis no campo da
política comparada. As contribuições de Haggard e McCubbins (2001) refinaram
este ponto e utilizaram um conceito similar ' de número efetivo de pontos de
veto ' em várias áreas setoriais, que foi adotado em diversos estudos de caso.
Cox e McCubbins (2001) propõem um marco analítico geral para estudar a
separação de poderes ' dos quais o presidencialismo é uma variante ' e a
separação de objetivos. Este último conceito está ancorado na proposição
madisoniana segundo a qual, ao se desenhar instituições, a "ambição deverá ser
contraposta à ambição" (Madison, 1982 [1788], The Federalist 51, p. 337).
A separação de objetivos é ortogonal à separação de poderes, porque ela pode
ocorrer com ou sem separação de poderes. Essa tipologia sugere dois trade
offsimportantes. O primeiro refere-se àquilo que os autores denominam
"resolutividade" (resoluteness) versus"decisividade" (decisiveness). Em um
sistema em que o número efetivo de atores com capacidade de veto é grande, a
mudança de política é difícil, mas a credibilidade e, conseqüentemente, a
estabilidade da política será alta. Em outras palavras, um sistema com maior
decisividade, detendo uma grande capacidade de fazer ou implementar mudanças,
necessariamente será menos resoluto, mas terá menos capacidade de manter o
status quo. Um sistema mais resoluto deve necessariamente ser menos capaz de
produzir decisões, e dessa forma apresentar menos decisividade. Dois cenários
patológicos são identificados: paralisia decisória e instabilidade de
políticas. O segundo trade offrefere-se à orientação pública ou privada
(private-regardedness) da política que, por sua vez, é produto de arranjos
institucionais diferentes. Para Cox e McCubbins, quanto maior o número efetivo
de atores com capacidade de veto, tanto mais orientada privadamente será a
política. De forma inversa, quanto menor o número efetivo de atores com
capacidade de veto, tanto maiores as chances de as políticas assumirem a forma
de bens públicos. Argumentos semelhantes são apresentados por Mesquita et al.
(2003), para quem o tamanho da coalizão vencedora é um determinante decisivo
para que as políticas assumam a forma de bens públicos. Contrariamente,
mecanismos institucionais que reduzem o tamanho da coalizão vencedora ' como,
por exemplo, a representação proporcional ' criam incentivos para a provisão de
bens privados.
De uma perspectiva normativa, as implicações desses achados da política
comparada são que atores com capacidade de veto (e que incluem, por exemplo,
cortes constitucionais e governos subnacionais) têm efeitos perversos. Cox e
McCubbins sustentam que
[ ] várias contribuições da pesquisa comparativa argumentam que
dividir ou separar o poder ' criando-se pontos de veto na estrutura
do Estado ' pode levar a uma falta de capacidade decisória. Quando
governos divididos surgem, como freqüentemente tem acontecido nos
Estados Unidos ou na América Latina, tem-se assinalado que uma
síndrome de efeitos maléficos se instala (2001, p. 29).
Entre tais efeitos estão os conflitos interinstitucionais, unilateralismo,
formas diversas de obstrução, comportamentos rentistas e oportunistas,
clientelismo e deficitsorçamentários (as implicações mais gerais desses achados
serão discutidas nas seções subseqüentes).
Naquilo que se convencionou chamar de filosofia pública americana, há uma
tradição enraizada de considerar os checks and balancesuma salvaguarda contra a
tirania. Como Dahl assinala,
[ ] a despeito de seus defeitos de lógica, definição e utilidade
científica, a ideologia madisoniana tornar-se-á muito provavelmente
um dos mais prevalentes e arraigados de todos os estilos de
pensamento que se poderia rotular de americano (1956, p. 30).4
No entanto, a agenda da chamada ciência política positiva tem sido marcada há
várias décadas por uma preocupação com os efeitos negativos da separação de
poderes. Períodos prolongados de governos divididos nos Estados Unidos levaram
duas gerações de pesquisadores a se debruçar sobre suas conseqüências para a
formação de políticas, no que muitos conceitos foram propostos a partir de
análise formal e/ou empírica.5 A agenda de pesquisa da ciência política norte-
americana passou então a valorizar fortemente a idéia de "decisividade" de
governos. Esse atributo está associado fundamentalmente a governos de partido
único que contam tipicamente com uma maioria relativa de eleitores e/ou de
cadeiras no Legislativo, e que deles recebem um mandato para executar mudanças.
A responsabilização seria alcançada pela alternância no poder de partidos
responsáveis. Como assinala Powell,
[ ] a idéia de mandatos para formular políticas tem tido muito apelo
para os cientistas políticos americanos, os quais tem se frustrado
com a fraqueza de seus partidos políticos e a difusão geral de poder
no seu governo (2000, pp. 69-70).
A agenda da política comparada é marcada, assim, pela agenda política ordinária
nos Estados Unidos. O famoso relatório que postula o governo de partidos
políticos responsáveis, preparado por um comitê ad hocda Associação Americana
de Ciência Política e liderado por E. E. Schattsneider (American Political
Science Association Committee on Political Parties, 1950) é a peça canônica
dessa visão, tendo marcado fortemente a disciplina na sua avaliação sobre a
qualidade da democracia. O apelo normativo era, portanto, relativo à
concentração de autoridade política, neste caso em partidos responsáveis que
pudessem ser responsabilizados nas urnas pelo seu desempenho. Recentemente,
este apelo normativo foi reiterado por Sundquist e Fiorina. Sundquist (1992, p.
12) reconstituindo o debate norte-americano sobre os efeitos perversos do
desenho institucional de separação de poderes desde Woodrow. Sundquist assinala
que "as expressões stalematee deadlock' ou em sua última variante,gridlock, são
o tema recorrente na crítica do reformadores". Fiorina, por sua vez, afirma que
"o federalismo, a separação de poderes, checks and balances' as instituições
fundamentais dos Estados Unidos ' operam para inibir a coerência e obscurecer a
responsabilidade na ação dos governos" (2002, p. 521).
Enquanto a linha de pesquisa referida anteriormente é fundamentalmente
positiva, muitos dos analistas envolvidos não o são.6 Strom (2003) é um dos
analistas que tem cuidado na apresentação de suas conclusões, assinalando a
presença de trade offsnormativos. Strom argumenta que os sistemas de separação
de poderes são superiores em termos de transparência dos governos e em
controlar o risco moral (moral hazard) dos representantes e dos governos, ao
passo que os regimes parlamentaristas, em particular os modelos tipo
Westminster, o são no controle dos problemas resultantes de seleção adversa
(adverse selection) na escolha de candidatos. Isso ocorre porque neste último
caso os partidos políticos têm mais incentivos para exercer maior controle no
recrutamento. Em conclusão, a "democracia parlamentarista é mais eficiente, mas
lhe falta freqüentemente transparência" (Strom, 2003, p. 56). Partidos mais
fortes e institucionalizados incorrem em um maior ônus político nos casos de
desvios de representantes, embora tenham fortes desincentivos a exercer um
controle horizontal sobre o Executivo. Por sua vez, os sistemas de separação de
poderes apresentam incentivos para gerar uma maior transparência, porque há
competição entre os agentes (presidentes e Legislativo) em responder às
demandas dos seus "principais" ou mandatários. Esses trade offsentre tipos de
perdas de delegação (agency losses) devem ser avaliados em função de valores
normativos e da natureza da sociedade (Strom, 2003, p. 97; Persson, Roland e
Tabellini, 1997).
Como assinalado, poucos analistas seguem Strom na explicitação das questões
normativas envolvidas e oferecem suas conclusões de forma acrítica.7 O programa
de pesquisa de Stepan sobre democracia e desenho institucional comparado é
bastante exemplar nesse sentido, e neste artigo recorrerei aos seus textos como
ilustração do argumento principal. Stepan (2001) é bastante crítico do
funcionamento de várias democracias federalistas porque restringem a vontade
majoritária de seus cidadãos (demos-constraining, em sua terminologia).
Utilizando um índice de desigualdade na representação para medir este fenômeno,
Stepan critica a alocação de poder sobre a decisão e implementação de políticas
públicas a entidades subnacionais. Por outro lado, argumenta que "o princípio
de igual representação dos estados na câmara alta não é democraticamente
necessário" (democratically necessary) (1999, p. 25). Esse tipo de argumentação
está fortemente deslocado da prática democrática em muitos países ' e também
dos debates que são travados na teoria democrática '; ele reflete o tom
majoritário que caracteriza hoje parte da área de política comparada.8 A
pesquisa empírica realizada atualmente sobre a América Latina tem se debruçado
sobre os fatores institucionais que comprometem a governabilidade política na
região.9 Como resultado destas características, muitos países teriam
supostamente dificuldades em garantir o surgimento de coalizões estáveis e
implementar o mandato concedido pelos eleitores. Brasil, Equador e Argentina
são descritos como casos extremos de sistemas políticos fragmentados devido à
existência de muitos pontos de veto (Ames, 2002b; Levitsky e Murillo, 2005).
Para Ames (2002a), o Brasil é uma democracia bloqueada.10 Um sistema partidário
fragmentado produz coalizões pós-eleitorais voláteis, as quais não garantem uma
base de sustentação estável para o Executivo. Parlamentares demandam políticas
clientelistas para suas bases, produzindo um quadro de "balcanização" do
Estado. Ames conclui que a qualidade da democracia é baixa devido ao fato de
que os governos não podem ser responsabilizados dada a existência de muitos
atores de veto. Patologias do desenho institucional ' representação
proporcional com lista aberta, federalismo, presidencialismo e revisão judicial
', portanto, são responsáveis pela baixa capacidade de responsabilização. Como
será discutido mais adiante, estes são atributos essenciais de desenhos
constitucionais proporcionalistas. Como já assinalado, esse argumento fora
aplicado para a análise do sistema político norte-americano. A visão
prevalecente na ciência política norte-americana é que o sistema está fadado à
paralisia, e a extensão desse argumento à América Latina é um passo.
Diagnósticos de ineficiência política ou patologias institucionais são muitas
vezes baseados em conceitos e instrumentos ancorados em valores normativos que
são inconsistentes com a arquitetura constitucional de um país. Mais
importante: tais diagnósticos informam propostas de reforma política. As
conclusões normativas desses diagnósticos estão marcadas por um viés
majoritário, e por subsumirem outros valores normativos e ignorarem a
constituição social de um país devem ser vistas com suspeita.
Modelos majoritários e proporcionalistas: supostos normativos
A responsabilização ocupa lugar privilegiado no quadro conceitual do
majoritarismo como modelo ideal de desenho institucional, mas não no
proporcionalista. Isso decorre do papel que as eleições ocupam na estrutura
conceitual desses dois modelos. Nos governos representativos modernos, o
momento estruturante do contrato entre cidadãos e representantes consiste nas
eleições. Mas as expectativas em torno delas são distintas nos dois modelos
normativos, como discutido de forma sistemática a seguir.
O confronto entre as bases normativas dos modelos normativos majoritários e
proporcionalistas não é uma questão nova na ciência política. Muitas dos
debates iniciais sobre a representação proporcional ilustram bem esta
assertiva. Nos debates atuais sobre o multiculturalismo, há uma reatualização
das vantagens e desvantagens relativas do majoritarismo como princípio
político. A crítica multiculturalista persegue, na realidade, uma linha de
argumentação de que ele falha em garantir a diversidade de valores na
sociedade. Como o objeto deste artigo são os nexos entre desenho institucional
e responsabilização, muitos aspectos do confronto entre os dois modelos não
serão explorados. O trabalho pioneiro de Liphart explora as características
institucionais dos modelos majoritário ou de Westminster e o contrasta com o
modelo consensual ou consociativo.11 Vale enfatizar primeiramente que o
majoritarismo como regra da maioria é um princípio democrático básico e,
portanto, constitutivo da democracia. Ele permite distinguir entre democracias
e não-democracias. Não é necessário reiterar neste ponto que, como tal, ele
está presente em ambos os modelos.
O ponto básico distintivo dos modelos proporcionais é que seu ideal normativo
está encapsulado na idéia de que as preferências do maior número de pessoas
devem estar refletidas no processo político. Em outras palavras, o governo deve
ser responsivo não a uma maioria, mas ao maior número de pessoas possível
(Lijphart, 1984, p. 4). O requisito da maioria é considerado apenas como um
requisito mínimo. A visão proporcionalista afirma que as regras institucionais
devem promover a participação e o alargamento das maiorias. Em contraste, no
ideal majoritário buscase assegurar que a vontade da maioria prevaleça sobre
minorias. Nesse sentido, o majoritarismo representa um ideal e não apenas a
regra eleitoral ou de método de agregação de interesses. Como Shugart (2001)
assinala, mesmo no sentido eleitoral mais restrito, o termo é ambíguo. A
assunção implícita é que o sistema representa uma maioria de votantes, mas, na
prática, este princípio é violado, porque nos sistemas majoritários o que se
requer é uma maioria relativa de cadeiras parlamentares. De fato, os dados
revelam que as maiorias parlamentares em governos de partido único são
tipicamente baseadas nas maiores minorias, freqüentemente no intervalo entre
38% e 45% (Idem, p. 30).
Powell (2000) recorre a uma terminologia similar em sua análise dos sistemas
majoritários e proporcionalistas. No entanto, ele está fundamentalmente
interessado na distinção normativa entre os dois e como a variação no desenho
institucional influencia o potencial de responsabilização eleitoral (electoral
accountability). Para este autor, no ideal majoritário a concentração de poder
em poucos agentes é um pré-requisito para o exercício do controle pelos
cidadãos. Isso se deve fundamentalmente ao fato de que a concentração de poder
é necessária para garantir clareza de responsabilidades. O objeto d
responsabilização nesse modelo são os tomadores de decisões autoritativas que
ocupam posições no governo (em contraste, por exemplo, com agentes que não
ocuparão posições no governo, mas que agirão no sentido de barganhar as
políticas que afetam suas bases. Em outras palavras, que agirão no melhor
interesse dos seus representantes). De forma distinta, a dispersão de poder
implica que o policymakingé resultado de barganha pós-eleitoral no âmbito da
coalizão vencedora. A responsabilidade difusa resultante dificulta o voto
retrospectivo voltado para a responsabilização. A visão majoritária supõe o
objetivo de controledemocrático ex poste não de influênciasobre o processo
decisório, como é o caso da visão proporcionalista. Ela também está associada à
idéia de representação como investidura de um mandato. Os cidadãos exercem
controle ao aprovar propostas de futuros candidatos ao governo durante o
processo eleitoral. Durante as eleições, tais candidatos recebem um mandato
para implementar as preferências dos eleitores.
Duas visões do processo eleitoral podem ser identificadas, considerando-se a
dimensão temporal da orientação do eleitor. Na primeira, os cidadãos votam com
base no desempenho dos governantes, punindo ou premiando com um voto
retrospectivo. Numa visão complementar, o controle é exercido ao se investir os
candidatos de um mandato pelo voto prospectivo. A despeito do contraste entre
as dimensões temporais da avaliação, a rigor, ambas as descrições do mecanismo
eleitoral ' a de responsabilização pelo desempenho e a de mandato ' são
consistentes com o ideal majoritário, embora a idéia de mandato reflita mais
claramente o ideal majoritário em sua formulação originária, (pré-rikeriana).
Ambas exigem concentração de autoridade política para sua efetivação plena. A
primeira delas é majoritária e está canonicamente exposta por Riker (1983).
Nela, o papel do eleitorado é de apenas exercer um "veto popular" a governantes
com mau desempenho. Como argumenta Riker, ela é consistente com a teoria da
escolha social (social choice theory), na medida em que não se identifica nas
eleições nenhuma possibilidade de expressão de interesses gerais (que segundo a
teoria seriam impossíveis de serem revelados por quaisquer mecanismos de
agregação de preferências individuais). Como será discutido adiante, salta aos
olhos que esta concepção apenas faz sentido em um contexto institucional
específico.
No ideal proporcionalista, a representação e as eleições são concebidas de
forma marcadamente distinta. A dispersão de autoridade política é vista como
precondição para a representação efetiva de interesses sociais variados. O
objetivo básico é aumentar a influência dos cidadãos sobre os governos. Porque
o poder é fragmentado, a representação assume a forma de representação
autorizadacomo veículo para a expressão dos interesses do eleitorado no
processo de governo. De forma diversa do ideal majoritário, o eleitorado não
premia ou pune ocupantes de cargos públicos por seu desempenho. Pelo contrário,
eles são eleitos na expectativa de agir no melhor interesse de parcelas do
eleitorado, não sendo responsabilizados pelos resultados que produziram como
governo, mas pela sua capacidade de influenciar os governos, mesmo estando fora
deles. Os representantes são delegados ou agentes dos cidadãos, os quais
acreditam que aqueles agiriam como eles próprios (Pitkin, 1967; Manin,
Przeworski e Stokes, 1999). O ideal de fragmentação da autoridade política
assume que os cidadãos têm preferências heterogêneas e que o ideal democrático
se realiza quando essa heterogeneidade se reflete na tomada de decisões
públicas.
Distinções mais finas podem ser traçadas entre os dois ideais normativos. Em
primeiro lugar, a visão de dispersão do poder confere grande importância para
as minorias. Ao atribuir um papel importante à oposição no processo de governo,
espera-se que os interesses de muitos grupos sejam representados, e não apenas
a maioria que governa. Em segundo lugar, uma esfera de discrição e autonomia é
esperada do representante. De forma contrária, na visão majoritarista espera-se
que os representantes executem instruções dos eleitores e sejam
responsabilizados por estes. Essas concepções de representação política,
portanto, estão subjacentes aos ideais normativos discutidos acima. O ideal de
concentração de poder pressupõe uma concepção de responsabilização
(accountability view) na terminologia de Pitkin, na qual nenhuma autonomia é
esperada do representante. Para esta autora, "a concepção de representação como
responsabilização (accountability view) é uma hipótese prática ou empírica
disfarçada de concepção teórica" (1967, p. 55). Defendendo uma visão de
representação que pressupõe agir substantivamente em nome de outrem, Pitkin
argumenta que "a concepção de representação como responsabilização
(accountability view) não nos diz nada sobre o que acontece durante a
representação, sobre como um representante deveria agir, ou o que se espera que
ele faça, ou como julgar se ele representou bem ou mal" (Idem, p. 58).
Vale registrar, no entanto, que na concepção de responsabilização informando
visões majoritárias pré-schumpeterianas freqüentemente se assumia que os
interesses coletivos dos cidadãos existem e podem ser identificados. As
questões associadas à agregação de interesses individuais em uma função de bem-
estar social (ciclicidade de preferências, existência de maiorias distintas
segundo a matéria em discussão, entre outros) não eram problematizadas. Nas
discussões dedesenho institucional correntes na literatura de política
comparada, há uma visão implícita de que os cidadãos sancionam ou recompensam
incumbentes, sem que se faça nenhum juízo normativo sobre a existência de
interesse público ou coletivo. A democracia é entendida como um mecanismo
competitivo schumpeteriano por meio do qual elites adquirem ou não o suporte do
eleitorado para propostas de políticas. A concepção de representação como
responsabilização, portanto, não requer a noção de interesse coletivo.
Para que as eleições cumpram o papel de instrumentos da democracia, é
necessário que os incentivos associados ao voto retrospectivo e usados pelo
eleitorado sejam internalizados (Powell, 2000; McDonald e Budge, 2005). Em
outras palavras, espera-se que os incumbentes, antecipando a possibilidade de
sanção, alinhem seu comportamento com as preferências do eleitorado. A teoria
da escolha social iluminou os problemas de identificação de um pacote de
políticas que refletissem as preferências dos eleitores. Independentemente da
congruência entre este pacote e as preferências sociais, o processo tem início
na mobilização do eleitorado pelas elites políticas. Os partidos cumprem papel
fundamental nesse processo ao permitir a escolha de "tipos políticos" pelos
cidadãos. Como mecanismo de redução dos custos de transação, os partidos
fornecem um "marca" para os eleitores. Ao selecionar potenciais representantes,
o eleitorado confere um mandato com base em expectativas de resultados de
políticas. Por outro lado, quando selecionam incumbentes, os eleitores
responsabilizamnos pelo seu desempenho. Tudo que precisam saber para afastar os
incumbentes de baixo desempenho é quem é o responsável, e isso depende da
clareza de responsabilidade, e para que ela esteja assegurada dois pré-
requisitos essenciais são necessários. Primeiro, a identificabilidade12 de
governos futuros, na expressão de Powell (2002) ' os cidadãos devem ter
condições de identificar, no momento das eleições, quem formará o governo. Se
eles não esperam que seu voto afetará a formação do governo, eles não têm
nenhum incentivo para votar estrategicamente. Segundo, o partido ou a coalizão
vencedora deverá formar o governo e implementar as políticas anunciadas em seu
programa. Se as regras constitucionais em um sistema impõem a necessidade do
partido ou da coalizão se engajar em barganha pós-eleitoral ou em interagir com
outros atores institucionais com capacidade de veto, o impacto do comportamento
do eleitor será fortemente afetado.
Enquanto a responsabilização (voto retrospectivo) e os mandatos são
fundamentais para o modelo majoritário, o princípio constitutivo do modelo
proporcionalista é da inclusividade no processo de governo. Nele,
responsabilização, em sentido restrito, e mandatos não cumprem papel algum ' o
que está efetivamente em jogo é a congruência representacional entre interesses
sociais e exercício do poder político. A representação proporcional torna
possível para os governos a tradução, em termos de políticas de governo, da
diversidade de interesses sociais segundo cada questão ou dimensão específica
da política. Como Powell e Vanberg (2000) demonstraram, os sistemas
proporcionais asseguram mais congruência representacional do que os modelos
majoritários.13. Em outras palavras, as políticas públicas em sistemas
proporcionais mantêm uma maior consistência com as preferências do eleitor
mediano. Na introdução deste artigo, referime a esta congruência como um valor
democrático crucial que, no entanto, não é considerado de forma adequada pelas
concepções majoritárias de responsabilização (Powell, 2005). A insistência na
questão da clareza de responsabilidade como precondição para a existência de
governos "responsabilizáveis" leva grande parte da literatura de política
comparada a desconsiderá-la como valor normativo importante, e como um
mecanismo indireto de accountability. A congruência representacional expressa
um mecanismo macrossocial de responsabilização, uma vez que permite o
alinhamento de preferências ' não, como costuma acontecer, entre a "maior
minoria" e o governo, mas entre o governo e o conjunto dos representantes ' o
eleitor mediano.14
Escolhas constitucionais e modelos de democracia
A pesquisa neo-institucionalista recente tem insistido que as instituições são
endógenas ' ou seja, são escolhidas por atores participantes do jogo político
pelas suas conseqüências redistributivas ' ou podem ser também, não raro,
resultados não antecipados de escolhas randômicas ou emulativas. É razoável
supor que na maior parte dos casos elas representam escolhas que refletem o
equilíbrio entre jogadores.15 Quaisquer avaliações sobre a qualidade da
democracia em um determinado país deve considerar em que medida arranjos
institucionais poderiam funcionar dadas as preferências sociais e sua
distribuição. Este ponto é freqüentemente desconsiderado na literatura de
política comparada. Suas conseqüências para a análise normativa são
previsíveis. E quando esse problema se articula com o viés majoritário desta
última, a análise torna-se bastante problemática.
Dois tipos de regras institucionais são fundamentais para se entender a visão
normativa que informa os desenhos constitucionais: as regras que governam a
representação e as que especificam o processo decisório. As regras eleitorais
são decisivas na determinação de como as maiorias legislativas são formadas '
parte essencial do desenho majoritário ' e do grau de inclusividade do sistema
de representação ' algo que, por sua vez, é fundamental para a concepção
proporcionalista. Por outro lado, as regras constitucionais definem também o
grau de concentração dos poderes em relação às decisões de política. Como
demonstra Lijphart (1984, 1999), nos países com desenho constitucional
majoritário há forte concentração desses poderes.
Como discutido na ampla literatura sobre o assunto, as regras eleitorais são
preditores importantes do número efetivo de partidos e do limiar eleitoral (a
parcela de votos para um partido político obter representação). A análise
empírica revela que via de regra as maiorias legislativas são manufaturadas
pelos sistemas eleitorais. Os governos majoritários de partido único são raras,
e freqüentemente o que se observa são maiorias relativas. As regras
constitucionais, dessa forma, expressam um trade offentre representação ou
inclusividade e governabilidade. Regras inclusivas como as vigentes em sistemas
proporcionais multinominais, de elevada magnitude dos distritos e baixos
limiares para a representação, permitem uma maior inclusividade de
representação e levam ao multipartidarismo. Por sua vez, essa participação
ampliada produz ceteris paribusmais custos políticos de transação. Em
contrapartida, as regras típicas de sistemas majoritários ' distrito uninominal
e formula first past the post' implicam em menos representação de minorias ou
grupos, embora produzam mais eficiência governativa pela maior facilidade de
formação de maiorias.
O desenho constitucional implica também um trade offentre arranjos que permitem
a escolha de um futuro governoantes de eleições ou de partidospredominantes
depois de eleições (Shugart, 2001, p. 29). Esse trade offconsiste
fundamentalmente numa escolha entre identificabilidade e clareza de
responsabilidade, de um lado, e representatividade e congruência
representacional, de outro. Com a inclusividade maximizada, os cidadãos
defrontam-se com uma ampla gama de partidos em dimensões relevantes distintas,
mas, em compensação, como os governos provavelmente só serão formados em
processos de barganha pós-eleitoral, a identificabilidade dos governantes
futuros fica comprometida (Idem, pp. 29-30). Ao oferecer aos eleitores uma
escolha clara sobre alternativas para o futuro governo, os desenhos
majoritários permitem maior identificabilidade no sistema eleitoral,
possibilitando, assim, que o eleitor faça uma escolha.16 Como assinalado
anteriormente, a identificabilidade é um dos pré-requisitos do modelo de
responsabilização típica do majoritarismo. Ela produz clareza de
responsabilidade, possibilitando que cidadãos sancionem ou recompensem os
governos conforme seu desempenho.17
A maior clareza de responsabilidade, todavia, tem um custo. Sistemas
majoritários do tipo Westminster exibem um déficit democrático produzido pelo
fato de que as maiorias, na realidade, são as "maiores minorias", sem mencionar
os casos de "ganhador errado", que ocorrem quando as regras eleitorais
manufaturam maiorias legislativas para partidos que não obtiveram uma maioria
de votos. Afora essas patologias extremas, sistemas com poucos pontos de veto
concentram poderes de agenda no Executivo e, portanto, são mais suscetíveis de
apresentar desvios entre as políticas do governo e as preferências dos
cidadãos. Em sistemas majoritários, os gabinetes utilizam seu poder de agenda
para aprovar políticas incongruentes com as preferências do eleitor mediano.
Isto ocorre sobretudo em situações estratégicas em que o "ponto de reversão" da
política ' ou seja o status quo' é rejeitado pelo eleitor mediano (Strom, 2003,
pp. 81-83).
As regras que disciplinam o processo de aprovação e implementação de políticas
especificam como o poder de propor e aprovar políticas está distribuído entre o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário (a separação horizontal de poderes),
entre os níveis de governo (separação vertical de poderes), como também no
interior do Legislativo. Sistemas políticos de desenho tipicamente majoritário
têm regras que incentivam a formação de governos majoritários, têm governos
unificados (parlamentarismo), são unitários e não têm revisão judicial. Na
arena legislativa, pouco ou nenhum poder é conferido à oposição, e as comissões
legislativas são fracas.18 Por outro lado, os governos controlam a agenda
legislativa, e as regras restringem os poderes de emendamento das comissões
(Doering, 1995).
Por sua vez, os sistemas políticos de desenho proporcionalistas apresentam
legislativos descentralizados e muitas vezes bicamerais, comissões legislativas
fortes, e garantem um papel ativo à oposição, reservando-lhe a presidência de
comissões, e assim por diante. Nesses sistemas, os governos subnacionais são
fortes em virtude da prevalência do federalismo. O controle da
constitucionalidade das leis ocupa um lugar importante nos sistemas
proporcionais. Mecanismos consociativos também são freqüentemente introduzidos
e incluem atores sociais e institucionais variados (interesses organizados do
trabalho e capital ou governadores). Em adição aos citados, eles se
caracterizam por instituições antimajoritárias, tais como agências reguladoras
independentes, constituições escritas e bancos centrais também independentes.
Há mecanismos robustos de inércia constitucional ' exigências de ratificação,
seqüência (propositura em uma legislatura e aprovação em outra) e supermaiorias
para emendamento. Destes, o atributo mais explicitamente antimajoritário é o
requisito de supermaiorias. Pelo alto grau de autonomia e discricionariedade
previsto para o Judiciário, as agências reguladoras e os bancos centrais, a
delegação legislativa implícita viola claramente o principio básico do modelo
de responsabilização majoritário.19
Qualidade da democracia e escolha constitucional
Quando muitos pontos recebem guarida constitucional, o resultado é
profundamente antidemocráticoporque essas questões não podem ser
decididas por maiorias normais(Stepan, 1999, p. 29, grifo meu).
Neste ponto, é possível retomar a discussão anterior sobre escolhas
constitucionais, concentração e dispersão de autoridade política e, por fim,
qualidade da democracia. Porque o número de pontos de veto nos sistemas ou
modelos proporcionalistas é elevado, a decisividade ' a capacidade de chegar a
decisões e aprová-las ' fica comprometida e a resolutividade (capacidade de
manter uma decisão tomada), enfraquecida. Cox e McCubbins analisam este dilema
da seguinte forma:
Sistemas políticos que combinam divisões institucionais da autoridade
sobre a tomada de decisão com divisões de objetivos ou tenderão para
indecisividade ou estarão propensos a pulverizar a política pública,
ou farão ambas as coisas. As divisões institucionais de poder podem
ser resultado da adoção do presidencialismo, do bicameralismo, do
federalismo, do controle da constitucionalidade das leis, e assim por
diante. Divisões políticas de poder, por sua vez, podem decorrer da
diversidade inerente de opinião numa nação ou dos incentivos dados
pelo sistema eleitoral para agregar esses interesses em poucas ou
muitas organizações políticas. Alguns sistemas eleitorais encorajam a
formação de poucos partidos hierárquicos, cujos líderes internalizem
os custos e os benefícios das políticas públicas, tais como afetam
parcelas amplas da população. Outros sistemas, por sua vez, levam à
criação ou de um número elevado de partidos ou de partidos
descentralizados (facciosos ou atomizados) (2001, p. 46).
Alguns autores examinaram o nível de responsabilização existente em uma
sociedade a partir da existência ou não de checksinstitucionais externos e
pontos de veto. Przeworski (2001) critica o argumento de que nas democracias
latino-americanas não há controle sobre os executivos. Contrastando o número de
pontos de veto no Brasil e no Reino Unido, ele conclui que, por eles serem mais
numerosos no Brasil, não se pode utilizar o conceito de democracia delegativa e
a noção de responsabilização horizontal (horizontal accountability). O'Donnel
argumenta que as instituições de checks and balancessão frágeis na América
Latina e sustenta que a consolidação da democracia é enfraquecida pela ausência
de controle sobre os executivos na região ' e em outra partes do mundo. A
crítica de Przeworski, na realidade, incide sobre um ponto equivocado, porque
com efeito o argumento de O'Donnell se dirige às razões (segundo ele
predominantemente de natureza histórica ou sociológica e não institucional)
para a falta de efetividade dos controles. No entanto, sua crítica exibe o
mesmo reducionismo na avaliação das democracias com um foco exclusivo sobre as
questões de accountability.
Uma crítica mais apurada foi apresentada por Moreno, Crisp e Shugart (2003),
argumentando que a eficiência do controle é determinada fundamentalmente pela
qualidade da cadeia de delegação entre cidadãos, como mandatários ou
"principais", e políticos, como seus agentes. Ancorados nesse tipo de modelo,
eles afirmam que a responsabilização é sobretudo um ato de delegação. Os
incentivos para tornar os agentes políticos responsabilizáveis pelos seus atos
e para punir desvios são moldados pela cadeia de delegação, que assume formas
distintas segundo a natureza do regime. Como os chefes dos executivos nomeiam
os membros do judiciário e de outras instituições similares, como ombusdman,
procuradores gerais, entre outros, que devem ser ratificados pelo Legislativo,
os cidadãos, como eleitores, estão envolvidos indiretamente na cadeia de
delegação. Em sistemas com separação de poderes, a cadeia da delegação até o
Executivo é direta em virtude da independência de origem do mandato e da
sobrevivência política do Executivo e do Legislativo. Dessa forma, o eleitorado
tem dois agentes (três se o congresso é bicameral) que transacionam entre si.
Pelo fato de os checks and balancesserem essencialmente uma relação entre
iguais, os autores concluem que não há delegação envolvida na relação entre
esses dois agentes. Ademais, essa relação ' denominada troca horizontal
(horizontal exchange) e não responsabilização horizontal (horizontal
accountability) ' não envolve sanções, a não ser no raro caso de impedimento de
executivos pelo Legislativo. É por isso que eles rejeitam o conceito de
responsabilização horizontal como um oxímoro (Idem, p. 80). Conclusão correta,
ao meu ver, e também consistente com uma visão de representação como
responsabilização.
A questão de fundo, portanto, para Moreno, Crisp e Shugart é que a
responsabilização horizontal é função da qualidade da responsabilização
vertical entre eleitores e seus representantes. Se essa relação vertical é
deficiente, então a horizontal será necessariamente afetada. Das patologias
criadas pelas distintas configurações de regras eleitorais e sistemas
partidários, esse autores deduzem as insuficiências potenciais do que denominam
troca horizontal. Sistemas centrados nos candidatos, como os com regras
eleitorais que incentivam a competição intrapartidária entre candidatos (voto
preferencial, voto proporcional de lista aberta), enfraquecem essa conexão
porque os representantes tenderão a beneficiar os interesses específicos de
suas bases em detrimento de questões programáticas de maior alcance. Da mesma
forma ' e no pólo oposto ', sistemas muito centralizados, em que a seleção de
candidatos está monopolizada nas mãos de líderes, os representantes serão
responsivos às preferências daqueles, e não às dos eleitores. A natureza da
troca horizontal entre os diferentes poderes e agências autônomas depende ainda
de dois fatores adicionais. Esses atores institucionais devem ter poderes que
se sobrepõem e são interdependentes (overlapping powers) (isto é, sua interação
é necessária para a aprovação de leis ou para o exercício do governo) e devem
estar ocupados por agentes com "ambição distintas e opostas". Se este não for o
caso, quando, por exemplo, a maioria dos representantes está essencialmente
interessada em patronagem e apropriação de rendas, não tendo, assim, incentivo
para selecionar agentes públicos para as agências autônomas (inclusive o
Judiciário) que possam exercer efetivamente controle sobre tais desvios, a
troca horizontal degenera e se converte em conluio. Por outro lado, se os
poderes não tiverem poderes sobrepostos, essa troca assume a forma de meros
alarmes de incêndio e não de controle e sanção. A conclusão normativa mais
geral dessa análise é que ceteris paribusos países que adotam a representação
proporcional com voto preferencial ou com forte descolamento entre lideranças
partidárias e eleitores apresentarão baixa capacidade de responsabilização. A
análise, no entanto, deixa entrever a possibilidade de desenhos
proporcionalistas em que tais desviam não ocorram.
Embora a literatura sobre pontos de veto traga contribuições importantes para o
nosso conhecimento substantivo em política comparada, as conclusões normativas
que muitos comparativistas chegam são inconsistentes. Como assinalado, o
suposto normativo implícito é que quanto menos atores com poder de veto, tanto
mais eficiente será o sistema político. Mesmo quando não utilizam esse
instrumental teórico, muitos comparativistas chegam a conclusões similares a
respeito de instituições que são pilares dos checks and balances, tais como as
cortes constitucionais, um constitucionalismo robusto e o federalismo. Stepan,
mais uma vez, ilustra esse argumento. Seu majoritarismo se expressa de forma
clara na afirmação na epígrafe desta seção sobre constitucionalismo e suas
supostas implicações profundamente antidemocráticas(Stepan, 1999, p. 29). Esse
viés é ainda mais evidente nas discussões sobre responsabilização.
A literatura sobre democratização e reformas está repleta de exemplos que
enfatizam este ponto. O caso brasileiro, em particular, é freqüentemente citado
como exemplo de patologia institucional. É curioso que na literatura sobre as
novas democracias se observa um duplo viés. Não só majoritário, mas também de
critérios supra-institucionais, resultantes da própria situação de
subdesenvolvimento econômico, do clientelismo e do patrimonialismo, em análises
em que a direção da causalidade não pode ser bem estabelecida. As supostas
singularidades dessas democracias em termos de pontos de veto contrastam com os
achados da literatura sobre democracias avançadas, o que revela que há juízos
normativos não explicitados (cf. Przeworski, 2001). Contrastemos as afirmações
de Ames com a análise de Powell. Ames faz a seguinte questão: "Por que as
propostas presidenciais tão raramente emergem incólumes do Congresso?" (2002b,
p. 185). E conclui em tom negativo que as "propostas que sobrevivem ao processo
legislativo emergem desfiguradas por concessões substantivas e transferências
clientelistas". (Idem, p. 213). Powell, por sua vez, analisa positivamente o
fato de que "na Alemanha os governos têm sucesso na aprovação de
aproximadamente 85% dos projetos que propõem ao Bundstag, mas eles são com
muita freqüência emendados e alterados das formas mais variadas para refletir
interesses setoriais (specialized)" (2000, p. 63). Conclusões igualmente
negativas ' com um viés majoritário ' também são apresentadas a respeito da
Dinamarca, onde os governos minoritários com extensas coalizões são a regra, e
não a exceção, ou como os Países Baixos, que a despeito de suas exuberantes
qualidades democráticas, estão no final do rankingdos países com menor clareza
de responsabilidade e responsabilização eleitoral (cf. Powell, 2000), ou em
termos de incongruência entre prática de governo e plataformas eleitorais (cf.
Klingeman, Hofferbert e Budge, 1994; Strom, 2003).
Comissões congressuais fortes devem ser interpretadas como pontos de veto ou
mecanismos que asseguram que as políticas possam se alinhar com as preferências
do eleitor mediano? O viés majoritário manifesta-se no suposto de que propostas
de política tais como apresentadas pelos policymakersdo governo são
necessariamente melhores, por causa do mandato que lhes foi investido, do que
suas versões emendadas. Do ponto de vista da responsabilização, emendas
representam mecanismos que difundem responsabilidades. Muitos pontos de veto,
na realidade, representam soluções institucionais para problemas sociais. Em
sociedades etnicamente divididas, as instituições do bicameralismo e do
federalismo representam garantias de melhor governança, e não o contrário. O
mesmo vale ceteris paribuspara instituições judiciais. No ideal majoritário, a
democracia concretiza-se plenamente pela autorização de propostas, sua
implementação e o veto popular ao mau desempenho. A popularidade dessa visão
decorre de sua similaridade com mecanismos contratuais no mercado e,
conseqüentemente, da possibilidade do tratamento com o instrumental formal de
modelos do tipo principal-agente, os quais se mostram muito úteis, mas seus
limites devem ser compreendidos. Nesses modelos, a questão central reside em
como criar uma estrutura de incentivos que possibilite a minimização de "perdas
de agência" (agency losses) entre cidadãos e representantes.
Tipos de sociedade e arranjos institucionais
A literatura de política comparada, discutida de forma bastante seletiva nas
seções anteriores, chega a duas conclusões essenciais. A primeira é que os
países com desenho institucional de autoridade política dispersa são inferiores
aos de autoridade política concentrada em sua capacidade de alcançar objetivos
coletivos nacionais, assim como em termos do controle social dos governos. A
despeito do antídoto produzido pela contribuição seminal de Lijphart, tal
conclusão reproduz o juízo crítico feito pelos cientistas políticos norte-
americanos no pós-guerra a respeito de seu próprio país e ao arrebatamento ante
as instituições políticas britânicas. A questão básica é que os sistemas
proporcionalistas têm baixa capacidade de produzir decisões rápidas e efetivas.
A literatura de política comparada voltada para as novas democracias chegam a
conclusões semelhantes. Entre os objetivos coletivos minados pela existência de
muitos pontos de veto estão a redução da pobreza e as reformas econômicas. Na
epígrafe deste artigo, cito Stepan, que corrobora essa idéia. Mainwaring chegou
a conclusões similares em uma análise do caso brasileiro:
[ ] estas dificuldades [em promover as reformas econômicas] ilustram
de forma extremada os problemas que podem surgir a partir de uma
combinação institucional que promove a dispersão de poder entre
partidos, estados, regiões em uma democracia jovem, em que se exige
um Executivo ágil (1997, p. 109).
As dificuldades de responsabilização também se potencializariam, segundo muitos
autores, em ambientes institucionais marcados pela multiplicidade de pontos de
veto.
Segunda conclusão importante é que ceteris paribussociedades homogêneas
implicam em sistemas políticos mais eficientes. O grau de homogeneidade social
mantém uma alta correlação com o grau de separação de propósitos ou objetivos.
Em conseqüência, quanto mais heterogênea as sociedades, menos eficientes seus
governos. Em outras palavras, diversidade de preferências, ou, no pior cenário
possível, quanto mais polarizadas as preferências, tanto menos "decisivo" será
o sistema político. Essas sugestões indicam que as expectativas de Madison, de
que quanto mais extensos, numerosos e diversificados os interesses em um
eleitorado, tanto menor os riscos que uma facção tiranize as outras, devem ser
postas de ponta cabeça. Dois importantes expoentes da política comparada ' Cox
e McCubbins ' são uns dos poucos que fazem referência a essa questão, mas suas
conclusões são auspiciosas: "na medida em que uma sociedade se torna mais
heterogênea, se o sistema político tiver um número pequeno de pontos de veto,
os riscos de desigualdade e de sub-representação aumentarão" ( 2001, p. 63).
As sociedades não são variáveis de escolha para os cidadãos ou arquitetos
constitucionais. Pelo contrário, sua heterogeneidade ou homogeneidade devem ser
tomadas como historicamente dadas, ao menos dentro de um horizonte temporal
razoável. Os desenhadores de instituições devem buscar a maximização de outros
valores e objetivos como, por exemplo, legitimidade, na ausência dos quais a
sociedade pode, hobbesianamente falando, degenerar em guerra de todos contra
todos. A legitimidade, por sua vez, terá forte impacto sobre a eficiência
política (decisividade e resolutividade). Em sociedades multiculturais, com
grande extensão territorial ou muito polarizadas, desenhos institucionais
proporcionalistas são o único arranjo viável, para dizer o mínimo. Os achados
da política comparada têm conseqüências normativas importantes, mas exigem,
para se transformarem em propostas efetivas de reforma institucional, a
consideração das sociedades para as quais se destinam. Em um mundo cada vez
mais globalizado, essas considerações tornam-se a fortiorimais persuasivas. Não
há regras universais de desenho institucional, porque elas são contingentes às
sociedades para as quais se destinam.
Uma consideração de ordem mais hipotética pode também ser avançada aqui. A
pesquisa empírica está fundamentalmente preocupada com o poder explicativo e
preditivo de seus achados. E se eles nos levassem a concluir que as
conseqüências dos vários mecanismos de controle da autoridade política tivessem
efeitos perversos em termos redistributivos, em termos de capacidade resolutiva
e eficiência governamental? Parte significativa da experiência institucional
dos países com modelos proporcionalistas teria sido um acidente ou erro
histórico? Esse cenário é improvável por duas importantes razões. Antes de tudo
é preciso dizer que não foi analisada aqui, apenas citada en passantquando
cabível, a pesquisa empírica que chega a conclusões distintas daquelas que vêm
sendo apresentadas, uma vez que o foco deste artigo recai sobre a literatura
que discute o viés majoritário. Contudo, vale lembrar que não há consenso sobre
os efeitos de desenhos institucionais ' primeira razão. Em segundo lugar, há
motivos conceituais robustos para acreditar que o edifício conceitual
madisoniano se sustenta e não desmoronará por causa de uma geração de trabalhos
empíricos. O ponto enfatizado ao longo deste artigo não é a validade dos
achados da literatura política. Pelo contrário, quero chamar atenção para a
inconsistência de se utilizar parâmetros majoritários ' sobretudo o conceito de
responsabilização ' para a avaliação da qualidade da democracia em modelo
proporcionalistas, pois eles buscam basicamente maximizar valores normativos
distintos. O conceito normativo central do proporcionalismo é a participação
ampliada na atividade governativa, e para isso se confere um papel à oposição.
Em um nível menos global, este ideal se manifesta em maior "eficiência da
representação", para usar a expressão de Strom (2003), obtida pela congruência
entre políticas de governo e preferências do eleitor mediano.
Conclusão
Neste trabalho argumento que a literatura de política comparada apresenta um
viés normativo e que suas propostas de terapia institucional estão marcadas por
juízos normativos não-explicitados. Este viés se manifesta mais claramente na
literatura sobre as chamadas novas democracias do que na sobre as velhas
democracias, possivelmente devido ao influente trabalho de Lijphart. A questão
fundamental, na realidade, pode vir a ser empírica. Se a questão for colocada
em termos de quais são as conseqüências sobre a governabilidade de conjunto xde
instituições específicas, então a resposta pode vir a ser empírica, mas com
implicações normativas importantes. O problema de fundo, no entanto, é
estabelecer qual é a variável dependente que deve ser uma proxy importante de
qualidade da democracia. Trata-se da concentração ou dispersão de poder? O
potencial de responsabilização política de um conjunto de regras? A
concentração promove uma maior identificabilidade de futuros governos e clareza
de responsabilidade; portanto, mais responsabilização no sentido de capacidade
de sanção ou recompensa por desempenho. No entanto, como discutido amplamente
ao longo do artigo, a responsabilização pode ser avaliada em termos de
congruência representacional e grau de desvio de preferências do eleitor
mediano.
A literatura de política comparada é bastante inconsistente ao examinar modelos
proporcionalistas com parâmetros supostamente universais ' tais como o que
Pitkin denominou criticamente de accountability viewda representação. Cabe
assinalar, por fim, que as fontes de ineficiência política ou governabilidade
não são exclusivamente institucionais. A qualidade da governança vai depender
tanto das regras institucionais adotadas como da distribuição de preferências
(e de maneira ainda mais forte, da distribuição de renda). Como assinalado por
Goodin (1997), do ponto de vista ideal a democracia não deveria ter nenhuma
minoria persistente. Onde elas existem, a regra da maioria implica em opressão
persistente. A análise positiva na ciência política pode informar propostas de
terapia institucional, mas elas nunca serão universais.
A reflexão apresentada neste artigo pressupõe que a escolha constitucional em
um momento fundante na história de um determinado país reflita, de fato, uma
escolha social não arbitrária (objeto de emulação ou imposição externa). Ou
seja, pressupõe-se que as instituições sejam endógenas ' isto é, escolhidas por
atores participantes do jogo político pelas suas conseqüências redistributivas,
refletindo um equilíbrio, no sentido microeconômico do termo. Se isto é
verdade, então tal escolha seria ótima ou possivelmente subótima. No entanto,
dadas as limitações cognitivasdos atores, as conseqüências distributivas (ou em
termos de eficiência alocativa) não são plenamente conhecidas ex ante. O ideal
normativo madisoniano de checks and balancese separação de poderes poderia,
como assinalado, vir a se revelar como um ideal político naive' uma miragem
coletiva de proporções históricas.
Notas
1 Traduzimos o termo accountabilitycomo usado na literatura anglo-saxônica para
o português como "responsabilização".
2 Utilizo o conceito de desenho majoritário como sinônimo de modelo majoritário
(Lijphart, 1984), conforme seu uso em Powell (2000). Da mesma forma uso os
termos modelos ou desenho proporcionalista, de maneira intercambiável, para
designar modelo consociativo ou democracia de consenso, também utlizado por
Lijphart.
3 Ver a crescente literatura a esse respeito, Alivizatos (1995) e Andrews e
Montinola (2004).
4 Dahl critica Madison porque acredita que a maioria de suas afirmações não se
sustenta empiricamente. Por outro lado, ele argumenta que a resiliência
histórica do madisonianismo se deve ao papel que cumpriu ao longo da história.
"Durante a elaboração da constituição, o estilo madisoniano de argumentação
fornecia uma ideologia protetora, persuasiva e satisfatória para as minorias
detentoras de riqueza, statuse poder, as quais temiam seus inimigos mais
ardorosos ' os artesãos e agricultores de menor riqueza, statuse poder, os
quais julgavam constituir a maioria popular'. Hoje, no entanto, parece
provável que por razões explicáveis historicamente um número preponderante de
americanos ativos acreditam ser eles próprios, pelo menos parte do tempo,
membros de uma ou mais minorias ' minorias, no entanto, cujos objetivos podem
ser ameaçados se a autoridade constitucional constituída fosse legalmente
ilimitada" (1956, p. 30). Escrito na década de 1950, esta explicação tornou-se
mais persuasiva ainda na atualidade.
5 Dentre eles, podemos citar, por exemplo, os de deadlock, gridlocke stalemate.
6 Há exceções importantes, no entanto. Levy e Spiller (1996) discutiram veto
playersem uma chave positiva. O veto em sua análise representa um instrumento
de pré-compromisso que permite superar problemas de oportunismo. Da mesma
forma, a literatura sobre o federalismo como promotor de mercados chega à mesma
conclusão (ver Weingast, 1995).
7 Uma importante exceção é Ackerman (2000), que analisa o nexo entre desenho
institucional e aspectos normativos.
8 A pesquisa comparada sobre países africanos parece sofrer menos do viés
majoritário. Há pouca referência sobre os efeitos fragmentadores do excesso de
dispersão do poder produzido pelas regras institucionais. A esse respeito, ver
a discussão instigante do caso sul-africano em Cranenburgh e Kopeck (2004).
Pelo contrário, a dispersão é vista como precondição para a governabilidade,
dada a heterogeneidade social e étnica. Humphreys e Bates, na realidadde,
testaram a hipótese contrária ao que a literatura prediz, a saber, "que quanto
maior os pontos de veto na estrutura do governo, maior será a probabilidade de
os governos produzirem bens públicos" (2005, p. 2).
9 Para uma revisão sobre o assunto, ver Carol e Shugart (2006).
10 O título do livro de Ames no original em inglês é The deadlock of democracy
in Brazil.Krebiehl (1998) traça a genealogia desse conceito e seus similares
como gridlock. Este último teria se originado em 1980 para descrever o pior
cenário do tráfico em Nova York, quando as linhas ficavam presas em todas as
direções. Burns (1963), no inicio da década de 1960, já demonstrava
insatisfação com o funcionamento da democracia norte-americana pela dispersão
de poder e partidos políticos frágeis, em livro intitulado The deadlock of
democracy. Para a história intelectual deste argumento, cf. Sundquist (1992).
11 A tipologia de Lijphart tem sido objeto de muitas críticas que não podem ser
revistas no espaço restrito deste artigo. Ver a esse respeito, Gerring, Thacker
e Moreno (no prelo). McGann e Latner (2006) argumentam que muitos dos países
classificados como consensuais (Holanda, Suécia etc.), na realidade, estão
entre os paises onde há as formas mais puras de utilização de regra da maioria,
não tendo praticamente nenhum dos checks and balancesconstitucionais. Eles
também defendem a idéia de que governos com muitos pontos de veto ' como os de
coalizão ' levam à flexibilidade nas políticas e não ao imobilismo.
12 Para o conceito de identificabilidade (identifiability), ver Shugart (2001)
e Powell (2000).
13 Para uma discussão detalhada a esse respeito, ver McDonald e Budge (2005).
14 Este conceito, no entanto, deve ser qualificado, pois é vulnerável a pelo
menos uma crítica significativa. Essa congruência só faz efetivamente sentido
se a agenda política for unidimensional. Se a agenda for multidimensional,
sabemos desde Arrow, que não existe nenhum mecanismo de agregação de
preferências que resulte em uma escolha social ótima. Como utilizado por Powell
e Vanberg, o conceito refere-se ao continuumesquerda-direita, e apenas se
sustenta enquanto este último fizer sentido. Há, no entanto, uma dimensão
importante que é capturada e que se refere à legitimidade das decisões.
15 Refiro-me a equilíbrio no sentido em que esse termo é utilizado em
microeconomia ou na teoria dos jogos ' equilíbrio pode ser ineficiente ou
subótimo.
16 Isso, na realidade, só deverá ocorrer se existir alternativas viáveis, o que
no mundo real nem sempre acontece.
17 A literatura empírica sobre esse tema fornece vários achados não
consensuais. Em relação aos efeitos da magnitude do distrito, alguns analistas
argumentam que quanto mais baixa ela for, menor será o potencial de
responsabilização dos governantes, com a conseqüência de haver maior extração
de rendas públicas por este último. Outros sustentam exatamente o contrário:
quanto maior a magnitude, menor a extração de rendas (Persson, Roland e
Tabellini, 2003, pp. 9-21). Argumenta-se que isto ocorre porque as barreiras à
entrada de novos candidatos ou partidos são baixas, criandose uma situação
oligopolista ou monopolista no mercado político. Nesse modelo, partidos e
candidatos variam essencialmente em duas dimensões: ideológica e relativa à
honestidade intrínseca. Os cidadãos, em geral, preferem candidatos honestos,
mas divergem quanto à ideologia. Incumbentes desonestos ainda podem permanecer
no poder se os eleitores com que partilham as mesmas preferências ideológicas
não puderem identificar um candidato honesto substituto. A probabilidade disso
ocorrer em distritos de baixa magnitude é muito maior. Para o efeito de regras
eleitorais sobre a corrupção e a responsabilização, ver Adserá, Boix e Page
(2003). A variável central na capacidade de responsabilização neste último
trabalho nada tem a ver, no entanto, com o desenho institucional, refere-se ao
acesso à informação.
18 Para um índice comparativo de influência da oposição, ver Strom (1990).
19 O conceito de mandato não é aplicável neste caso. Agências independentes
estão mais próximas a delegados, dos quais se espera que ajam no melhor
interesse dos representados. Mandatos não fazem sentido em um contexto de
informação assimétrica entre cidadãos ou políticos e reguladores (Majone, 1999;
Levy e Spiller, 1996). O controle procedural é a única alternativa (McCubbins e
Schwartz, 1984).