Mobilizações homossexuais e estado no Brasil: São Paulo (1978-2004)
Introdução
Nos últimos anos, o movimento pelos direitos dos homossexuais tem ganhado
grande visibilidade e importância no cenário político brasileiro,
principalmente em virtude das diversas "Paradas do Orgulho GLBT",1 que têm
chamado a atenção de todas as instâncias da sociedade. O objetivo deste texto é
entender a relação do movimento homossexual com o Estado, ou seja, verificar
como ela se dá e de que forma facilita ou dificulta a mobilização em torno da
homossexualidade e a obtenção de direitos para a população homossexual.
Para isso, foram utilizadas diversas fontes de informação. Entrevistas
semidiretivas,2 realizadas com militantes "históricos" do movimento homossexual
e com militantes presentes no processo de rearticulação do movimento, em meados
da década de 1990; material jornalístico pesquisado nas bases eletrônicas de
dados da Folha de S. Paulo e do site MixBrasil direcionado à comunidade
homossexual; participação em fóruns e eventos organizados pelo movimento
homossexual; e, ainda, conversas informais com militantes, que também
auxiliaram na delimitação e comprovação das hipóteses.
Busco reconsiderar o impacto que a epidemia de Aids3 teve no movimento
homossexual. O que ficou conhecido como a "peste gay " aumentou certamente o
estigma relacionado à homossexualidade, acelerando o processo, então em curso,
de desmobilização da militância a favor dos direi tos homossexuais. Em
contrapartida, a Aids tornou público o debate sobre a sexualidade, em parte
devido à morte de figuras importantes da cultura brasileira, vítimas do HIV.
Com efeito, essa epidemia trouxe uma maior visibilidade da homossexualidade no
cenário nacional, abrindo espaço, em um primeiro momento, para o contato entre
militantes homossexuais e órgãos estatais, o que gerou uma resposta
relativamente prematura à doença por parte do Estado. Em um segundo momento, os
recursos e financiamentos fornecidos pelo Ministério da Saúde a grupos
homossexuais para a prevenção da doença na comunidade homossexual
possibilitaram a reestruturação do movimento homossexual em todo o país.
Com base no conceito de estrutura de oportunidades políticas, tal como
desenvolvido por Sidney Tarrow (2004), analisar-se-á também o surgimento do
movimento homossexual em São Paulo e seus desdobramentos recentes. O processo
de abertura política propiciou um clima favorável à difusão da ação coletiva de
diversos movimentos sociais e teve impacto no surgimento do movimento
homossexual. No ano de 2000, a eleição de Marta Suplicy para a prefeitura de
São Paulo teve repercussão na conquista de novos espaços de interlocução entre
o Estado e a comunidade homossexual.
Para desenvolver essa argumentação, proponho, em primeiro lugar, uma discussão
da literatura brasileira sobre movimentos sociais, a fim de elucidar as
principais mudanças ocorridas no campo de ação dos movimentos nas décadas de
1970, 1980 e 1990, juntamente com a exposição dos principais referenciais
teóricos da análise. Em seguida, será feito um breve relato da trajetória do
movimento homossexual na cidade de São Paulo. Por fim, serão analisados o
impacto da epidemia de Aids, as inovações ocorridas nas mobilizações de
homossexuais e a relação deste movimento com o Estado (principalmente na
conjuntura do mandato de Marta Suplicy).
Movimentos sociais: origem e transformações
Durante o processo de redemocratização, as ciências sociais brasileiras deram
grande ênfase à problemática dos movimentos sociais. Com a abertura política,
diversos grupos puderam se organizar no sentido de reivindicar seus direitos de
cidadania.
Os movimentos sociais, apesar de suas diferenças ' desde aqueles que buscavam
uma melhoria nas condições de vida até os que almejavam alterações no estilo de
vida, tinham em comum o fato de se articularem em torno de reivindicações
coletivas, definidas como "carências comuns" (Durham, 1984), e de apresentarem
um potencial sociocultural transformador (Evers, 1984). Distantes dos meios
burocráticos de participação, os movimentos eram caracterizados pelo baixo
número de participantes e por adotarem formas coletivas de tomada de decisão,
criando, assim, novas formas de individualidade, baseadas na autodeterminação e
na emancipação (Durham, 1984; Evers, 1984). Mais ainda, os movimentos sociais
promoveram a revalorização de práticas sociais do cotidiano popular, o que
permitiu a elaboração de identidades coletivas com vistas a defender interesses
e expressar vontades de sujeitos coletivos portadores de um projeto de
transformação social (Sader, 1988).
Na sua maioria, as análises produzidas nos anos de 1970 e início da década
seguinte enfatizaram o caráter transformador e emancipatório dos movimentos
sociais. Tal ênfase, de um lado, e a crescente desmobilização e incapacidade de
se colocar em prática o projeto político transformador, de outro, motivaram ou
podem explicar, talvez, o grande "desalento" de boa parte da literatura
brasileira sobre o tema no decorrer da década de 1980. Falava-se em "refluxo"
ou, em alguns momentos, em "cooptação" dos sujeitos atuantes nesses movimentos.
Entretanto, ao contrário do que anunciava a literatura, os movimentos sociais
permaneceram atuantes e se tornaram atores importantes na sociedade civil
(Lavalle et al., 2004). Creio que os estudos que alardeavam a "morte dos
movimentos sociais" (Ottman, 1995) não analisaram de modo mais atento as
transformações do contexto político e aquelas vivenciadas nos próprios
movimentos sociais.
Uma das principais mudanças ocorridas foi o novo papel desempenhado pelo
Estado. Considerado o grande "inimigo comum", o Estado passou a ser um
importante interlocutor e, muitas vezes, aliado na consecução das
reivindicações de diversos movimentos (Cardoso, 2004; Gohn, 2002). É importante
salientar que o contato entre movimentos sociais e Estado já existia durante o
regime militar (Cardoso, 1983), mas o processo de edemocratização e a eleição
de governos comprometidos com o projeto de participação da sociedade civil
abriram espaço para uma atuação conjunta de co-gestão e proposição de políticas
públicas (Teixeira, 2003). Durante o processo constituinte também assistiu-se a
uma ampla participação dos movimentos nos espaços políticos institucionais. Por
meio dos " lobbies populares" ( Idem ), os movimentos atuaram de forma
significativa na definição dos termos da Constituição de 1988. Conhecida como
"constituição cidadã" (Dagnino, 2003), a Carta Magna garantiu, mesmo que apenas
no plano legal-formal, antigas demandas dos movimentos sociais ' amplos
direitos sociais e a instituição de mecanismos de participação popular, como
emendas populares, referendos e conselhos gestores de políticas públicas, entre
outras (Carvalho, 1998; Teixeira, 2003).
Nos anos de 1990, o Estado brasileiro enfrentou outra importante mudança.
Seguindo uma tendência latino-americana de resposta à crise fiscal dos Estados
nacionais, baseada no que ficou conhecido como "Consenso de Washington"
(Dagnino, 2003), o governo brasileiro iniciou um amplo programa de reforma do
Estado, que, entre diversas ações, destacam-se as privatizações de empresas
estatais, a derrubada de monopólios da prestação de serviços públicos (energia,
telefonia) e a delegação, às organizações da sociedade civil, de funções de
prestação de serviços sociais, antes sob a responsabilidade estatal (Teixeira,
2003). No bojo dessa redefinição da relação entre Estado e sociedade, as ONGs
passaram a ter um papel mais ativo no campo de ação dos movimentos sociais
(Doimo, 1995, Gohn, 2002; Teixeira, 2003). Podese dizer que elas "saíram da
sombra" ao deixar de lado um trabalho de viés mais pedagógico com as lideranças
populares para atuarem de forma efetiva nas ações coletivas (Gohn, 2002). Vale
lembrar, contudo, que essas organizações também passaram a disputar espaço com
grupos de movimentos sociais, uma vez que são mais preparadas do ponto de vista
técnico (maior escolaridade de seu pessoal, maior infra-estrutura). Em
conseqüência, muitos grupos ligados a movimentos sociais tornaram- se ONGs, a
fim de obter financiamentos e manter uma estrutura de mobilização mais ou menos
estável, ao contrário dos antigos grupos, mais informalmente organizados
(Teixeira, 2003). Embora as "parcerias" possibilitem a inserção de várias ONGs
nos movimentos sociais, criou-se, segundo Gohn, uma "camada de dirigentes que
cada vez mais se distanciam das bases dos movimentos" (2002, p. 286). Mais
ainda, esses grupos tornam-se cada vez mais meros prestadores de serviços
públicos, antes de responsabilidade estatal, e acabam por ter menos tempo para
ações mais propositivas e de mobilização social (Teixeira, 2003).
Todo esse processo tem sido permeado por conflitos (Cardoso, 2004). De fato,
não podemos deixar de levar em conta que os movimentos sociais, assim como o
Estado, não são atores homogêneos, ao contrário, possuem diversas "faces",
muitas vezes opostas entre si. Ao reconhecê- los como conflitos de ação direta,
A. Doimo (1995) demonstrou que os movimentos sociais constituem campos éticos-
políticos que oscilam entre um caráter expressivo-disruptivo, contestador da
ordem estabelecida, e um caráter integrativo-corporativo, que busca a garantia
de direitos e a integração dos grupo no interior sociedade. Nas palavras da
autora:
[ ] tais conflitos [de ação direta] apresentam um caráter altamente
cambiante, podendo tanto adquirir um perfil pendular entre a defesa
do estatismo e a reivindicação das vantagens do mercado, quanto
oscilar entre condutas expressivo- disruptivas de negação do Estado e
atitudes integrativo-corporativas de afirmação de sua face provedora
(Idem, pp.52-53).
Uma das vertentes teóricas que trabalhou com a relação entre movimentos sociais
e instituições políticas foi a teoria de Mobilização Política. Para o propósito
deste trabalho, será utilizada a formulação dessa teoria tal como desenvolvida
por Sidney Tarrow (2004). Para ele, entender o surgimento e a dinâmica dos
movimentos sociais pressupõe a análise do conceito de estrutura de
oportunidades políticas.4 Entendida como "[ ] dimensiones consistentes ' aunque
no necesariamente formales, permanentes o nacionales ' del entorno político que
fomentan la acción colectiva entre la gente [ ]" (Idem, p. 45), a estrutura de
oportunidades políticas pode facilitar ou dificultar a ação dos movimentos
sociais. Em contextos de oportunidades políticas favoráveis, a ação dos
"desafiadores" expande as oportunidades para outros grupos se mobilizarem,
gerando "ciclos de protesto". Nesses ciclos, ocorre a difusão da ação coletiva
de setores mais mobilizados para os menos mobilizados, marcados por um ritmo
acelerado de inovação nas formas de confrontação, nos marcos de referências da
ação coletiva, e pela combinação de participação organizada e não organizada
(Idem, pp.202-203).
Além dos contextos de grande mobilização, os movimentos sociais dispõem de
outras bases para empreender a ação coletiva, como, por exemplo, os repertórios
de ação coletiva. Definidos como a "[ ] totalidad de los medios de que dispone
(un grupo) para perseguir intereses compartidos" ( Idem, p. 59), os repertórios
dependem das oportunidades e da organização do movimento. Eles se transformam
com o passar do tempo, mas em ritmo "glacial", e são herdados pelos movimentos.
Mesmo assim, Tarrow afirma que "[ ] existe espacio para la innovación y la
espontaneidad" e que "tales innovaciones [ ] pueden limitarse a animar una
forma convencional de acción colectiva [ ] pero, con el tiempo, las
innovaciones pueden cristalizar en formas completamente nuevas" ( Idem, p.
149).
Outra base para a ação dos movimentos é a criação de marcos de referência
( frames ). Enquanto esquemas interpretativos que simplificam e condensam a
realidade, ao pontuar de forma seletiva situações, experiências e
acontecimentos, os marcos constituem a dimensão simbólica da ação coletiva. Ao
auxiliar os movimentos na identificação de injustiças, atribuindo
responsabilidades e propondo soluções, eles permitem que novas idéias e
símbolos sejam incorporados à matriz cultural existente ( Idem, pp. 160-162).
Tarrow pontua também a importância das redes sociais existentes entre membros
do movimento. Elas facilitam, de acordo com o autor, a comunicação e a troca de
informações e experiências de mobilização entre os indivíduos, bem como
possibilitam a manutenção do contato dos membros de um determinado movimento em
períodos de repressão ou desmobilização.
É na conjunção de fatores externos e internos que podemos explicar o "poder"
dos movimentos sociais Ao comparar o movimento estudantil francês da década de
1960 ao movimento feminista norte-americano, Tarrow demonstra como a habilidade
das feministas em conjugar as diversas dimensões da ação coletiva foi decisiva
para seu relativo "sucesso". Apesar de uma organização a princípio débil e do
acesso restrito ao sistema político, as feministas conseguiram articular
diversas formas de ação (direta ou lobista) e de organização (grupos informais
e de interesse), tornando pública a questão de gênero e garantindo programas de
ação afirmativa e leis favoráveis à questão feminina. Com base nesse exemplo, o
autor mostra a importância da interação dos movimentos sociais com as
instituições políticas, mas afirma, em contrapartida, que isso pode ser uma
"faca de dois gumes", uma vez que
[ ] los movimientos sociales demasiados marginalizados por las
instituciones corren el riesgo del aislamiento y el sectarismo; pero
los que colaboran excesivamente com ellas y asumen rutinas
institucionales pueden verse imbuidos de su lógica y sus valores
( Idem, p. 289).
Trajetória do movimento homossexual na cidade de São Paulo (1978-2004)
A emergência do movimento homossexual
A fundação do grupo Somos, em 1978, é considerada o marco do início da luta
política dos homossexuais em São Paulo e no Brasil (MacRae, 1990; Green, 2000;
Trevisan, 2000). Em um momento de extrema efervescência política, oriunda do
processo de abertura do regime militar, milhares de movimentos sociais
emergiram em torno de diversas reivindicações coletivas. Juntamente com a
mobilização das mulheres contra o machismo e o sexismo, os omossexuais
buscaram, pela primeira vez no país, politizar a homossexualidade, a fim de
romper os limites do gueto e reivindicar direitos iguais.
Nesse contexto de contestação ao status quo surge o jornal Lampião da Esquina,
um dos expo entes da chamada imprensa "nanica". Ao criticar o autoritarismo
presente tanto nas instituições políticas como na própria sociedade, o Lampião
levantou a questão da homossexualidade em seus aspectos político, existencial e
cultural (MacRae, 1992). Esse jornal converteu-se no grande divulgador das
idéias propostas pelo Somos e outros grupos do incipiente movimento
homossexual, embora esta relação, entre o jornal e os grupos de militância, não
tenha ocorrido sem conflitos (MacRae, 1990).
Era consenso no movimento homossexual a rejeição a qualquer forma de
autoritarismo, fosse este oriundo da repressão do regime militar, das hostes da
esquerda, fosse o ocorrido na relação entre homem e mulher ou mesmo entre o
casal homossexual. Como outros movimentos sociais da época, o movimento
homossexual dava grande ênfase à sua autonomia em relação a partidos políticos.
Também propunha um modelo igualitário de identidade sexual, rejeitando modelos
hierárquicos de relações sexuais/afetivas presentes na cultura brasileira (Fry,
1982) e reivindicando uma identidade homossexual na qual se identificariam
todos aqueles que eram vítimas da discriminação e do preconceito
independentemente das diferenças existentes dentro da comunidade homossexual
(MacRae, 1990).
Devido ao discurso fortemente antiautoritário dos movimentos sociais do
período, o Estado era considerado o principal inimigo na luta pela democracia,
e o movimento homossexual teve, nesse sentido, uma participação efetiva. Visto
que os canais convencionais de interlocução entre Estado e sociedade
encontravam-se fechados, a ação do grupo Somos esteve muito voltada para o
trabalho de conscientização de seus membros e de setores progressistas da
sociedade. O grupo participou de vários eventos em universidades e em
manifestações de contorno mais propriamente "político", como o 1º de Maio de
1980, em São Bernardo do Campo, o que comprova o esforço do grupo em divulgar a
causa homossexual. Porém, a mais importante mobilização do Somos foi a campanha
contra a violência policial ( Idem, 1990). A ação conjunta das polícias civil e
militar desencadeou uma caça brutal aos freqüentadores da noite no centro de
São Paulo, sobretudo prostitutas, travestis e homossexuais.
Dado o clima de relativa liberalização com a proximidade das eleições de 1982,
a ação do delegado José Wilson Richetti gerou uma ampla mobilização do Somos e
de diversos grupos, inclusive aqueles oriundos dos movimentos feminista e negro
(Idem). Apoiavam a causa parlamentares da oposição e de algumas celebridades do
mundo artístico. Dessas articulações foi organizado um ato público em frente ao
Teatro Municipal, em 13 de junho de 1980 (Trevisan, 1986; MacRae, 1990). As
estimativas calcularam entre quinhentos a mil participantes, que caminharam
pelo centro da cidade sem encontrar repressão policial. Além disso, o Conselho
Parlamentar de Direitos Humanos convocou o delegado Richetti para prestar
esclarecimentos sobre a ação na Assembléia Legislativa. Participaram
integrantes de vários grupos homossexuais e feministas. A presença de
parlamentares do PDS5 e o despreparo dos parlamentares da oposição, com receio
de ofender as convicções moralistas de seu eleitorado, impossibilitaram uma
ação mais enérgica contra o delegado Richetti. Mesmo assim, a ação conjunta foi
suspensa, criando- se uma sensação de vitória momentânea para os grupos
homossexuais (MacRae, 1990). No momento da campanha contra a violência
policial, o Somos encontrava-se em processo de cisão interna (MacRae, 1990;
Trevisan, 2000). E é neste momento que surgem as primeiras notícias de casos de
Aids.
O movimento homossexual e a Aids
Embora o primeiro caso de Aids tenha sido diagnosticado em 1981 nos Estados
Unidos, só em 1983, com a morte do estilista Marco Vinicius Resende, o
Marquito, a Aids tornou-se uma realidade no Brasil.6 Amplamente divulgada na
mídia como a "peste gay " ou "câncer gay ", a Aids reforçou o pânico geral
contra a homossexualidade. Entre os homossexuais, a presença da doença gerou
muitas dúvidas devido à falta de informação.7 Com as primeiras mortes, muitos
militantes homossexuais ficaram assustados, como relata uma ex-militante do
grupo Somos: "[ ] eu lembro que encontrei um ex-militante do Somos que tinha
virado evangélico [ ] ele tinha virado evangélico e queria de qualquer forma se
curar da homossexualidade, ele tava apavorado".8
Em contrapartida, outra parte da militância passou a se mobilizar no sentido de
buscar soluções para a doença. Integrantes do grupo Somos, do grupo Outra Coisa
(dissidente do Somos) e militantes homossexuais em geral procuraram o serviço
de saúde com o intuito de obter ajuda estatal no combate à epidemia.9 Dessa
iniciativa começou a ser organizado o I Programa de Combate à Aids no país
(Silva, 1986; Parker, 1994; Terto Jr., 1996; Texeira, 1997; Galvão, 2000). O
fato de haver na época um governo (Franco Montoro [1983-1987]) interessado na
participação da sociedade civil, aliado a uma equipe de sanitaristas
progressistas, explica a resposta relativamente prematura à epidemia no Brasil
(Teixeira, 1997; Galvão, 2000).
Devido ao avanço da epidemia e ao processo de desmobilização dos grupos
homossexuais em curso, o caráter da militância homossexual sofreu grande
mudança. A emergência da doença inaugurou uma nova fase do movimento (Facchini,
2002). As discussões acerca da questão homossexual foram deixadas de lado em
virtude da "urgência" em se produzir uma resposta à epidemia.10 A fundação do
Gapa, em 1985, pode ser considerada um marco dessa mudança. Em uma das
entrevistas foi relatado que parte significativa dos membros fundadores desse
grupo era de homossexuais e que muitos deles já haviam militado antes em outros
grupos, como o Somos.11 Inicialmente, as ações desses grupos visavam a um
trabalho assistencialista ' doação de cestasbásicas, roupas e remédios e
organização de eventos para angariar fundos para o socorro às vítimas da
doença.12 A participação mais efetiva do Estado em relação aos grupos mais
prejudicados pela Aids possibilitou a criação de "referenciais não-
discriminatórios e de defesa dos direitos dos afetados" nos serviços de saúde
(Galvão, 2000, p. 121) e influenciou outras respostas governamentais por todo o
país.
Embora basicamente envolvidos com atividades voltadas ao combate à Aids, vários
grupos mantiveram atividades mais relacionadas à discussão em torno da
homossexualidade. O principal deles foi o grupo Gay da Bahia (GGB), que
continuou a se empenhar em campanhas que não se restringissem apenas ao combate
à Aids (MacRae, 1990), como, por exemplo, a campanha, em colaboração com o
grupo Somos, pela mudança do código de classificação de doenças do Inamps em
1982, que descrevia a homossexualidade como "desvio ou transtorno sexual".
Outra importante ação do movimento homossexual foi a campanha pela mudança do
Código de Ética dos Jornalistas,13 organizada pelos grupos Triângulo Rosa (RJ),
GGB (BA) e Lambda (SP), incluindo o termo "orientação sexual" nas proibições do
Artigo 10,14 a fim de minimizar "os preconceitos constantemente reafirmados
pela imprensa" (Silva, 1993, p. 123).
O Grupo Lambda foi um dos poucos grupos gays a manter atividades em São Paulo
durante a década de 1980.15 Um dos entrevistados relatou que nas reuniões do
grupo era possível perceber o caráter informal e esporádico de suas atividades:
"[ ] eram grupos pequenos, nunca uma reunião onde havia mais de três militantes
[ ] quando eu ia à casa dele [Ubiratan da Costa e Silva], o máximo que eu
encontrava eram uma ou duas pessoas".16
Embora fortemente vinculado ao combate à Aids, seu principal expoente, Ubiratan
da Costa e Silva, manteve contato com grupos gays de outras partes do país,
engajando-se em mobilizações no âmbito local ' como o pronunciamento,
juntamente com o Gapa, contrário à ação do prefeito Jânio Quadros, que proibiu
o ingresso de homossexuais na Escola Municipal de Bailado em 198717 ' e na
esfera federal ' participação em debates do movimento homossexual e suporte ao
grupo Triângulo Rosa na Assembléia Nacional Constituinte (Silva, 1993). Trazer
a questão homossexual para as discussões da Constituição foi um fato de grande
relevância, pois possibilitou o contato com parlamentares que se sensibilizaram
com a causa e, mais tarde, tornaram-se importantes interlocutores do movimento
homossexual no Congresso Nacional. Nas entrevistas não foram obtidas
informações precisas a respeito do fim das atividades do Lambda. Mas Galvão
(2000) relata a participação do grupo na organização do III Encontro da Rede
Brasileira de Solidariedade (ONG/Aids), ocorrido em Santos, em 1990, e presume-
se que as atividades do grupo permaneceram pelo menos até a morte de Ubiratan
da Costa e Silva, em 1993, vítima da Aids.
Em relação aos grupos lésbicos, o Galf (Grupo de Ação Lésbica-Feminista),
oriundo do "racha" no interior do grupo Somos, manteve atividades durante toda
a década de 1980, principalmente no gueto lésbico e no movimento feminista18
(Pontes, 1986; MacRae, 1990). Segundo Silva (1993), o Galf participou de
discussões que resultaram na utilização nos debates da Constituinte do termo
"orientação sexual", em vez de "preferência sexual" ou de "opção sexual".19
Porém, foi apenas no início da década de 1990 que os contatos entre os grupos
gays e lésbicos se tornaram mais intensos.
Década de 1990 e a rearticulação do movimento homossexual
Um dos entrevistados20 aponta o VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e
Homossexuais, realizado em 1993 em Cajamar (SP), como fundamental para a
rearticulação do movimento tanto em São Paulo como no Brasil. Como relata
Facchini (2002), o encontro teve aumento significativo no número de
participantes, com o predomínio dos grupos lésbicos (a maioria de São Paulo), e
contou, também, com a presença de novos grupos gays e mistos da cidade,21 além
de diversas ONG-Aids (ONGs especializadas em trabalho de prevenção à doença).
Tal diversidade de atores refletiu-se nas discussões que ocorreram desde a
paridade entre gays e lésbicas nas instâncias do movimento, a participação do
movimento homossexual no consórcio de vacinas anti-HIV e no I Congresso de
Movimentos Populares, até a possível criação de uma entidade para articular o
movimento em âmbito nacional (Facchini, 2002).
Outro importante evento para a rearticulação do movimento em São Paulo foi a
XVII Conferência da ILGA (International Lesbian and Gay Association) no Rio de
Janeiro, em 1995, que contou, de acordo com o relato de um dos entrevistados,22
com a presença de vários militantes homossexuais de São Paulo. A sexóloga e
então deputada Marta Suplicy, presidente de honra da Conferência, apresentou a
primeira versão do projeto de lei de união civil entre pessoas do mesmo sexo,23
tema que mobilizou boa parte das discussões do encontro e que possibilitou,
posteriormente à conferência, a reunião de Marta Suplicy com militantes de São
Paulo.24 Em janeiro do mesmo ano, realizaram-se o I Encontro Brasileiro de Gays
e Lésbicas que Trabalham com Aids e o VIII Encontro Brasileiro de Gays e
Lésbicas,25 os quais, entre outras resoluções, aprovaram a fundação, a despeito
da oposição de vários grupos presentes, da ABGLT (Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas e Travestis) (Green, 2000; Facchini, 2002).
Em 1996, foi lançada a primeira candidatura gay à Câmara Municipal de São
Paulo26 pelo Partido dos Trabalhadores. Mesmo com o apoio da deputada Marta
Suplicy, a candidatura não obteve sucesso. Em 1997, o IX Encontro Brasileiro de
Gays, Lésbicas e Travestis e o II Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e
Travestis que Trabalham com Aids (EBGLT-Aids) ocorreram mais uma vez em São
Paulo, com a participação de 52 grupos tanto da militância GLT ( Gays, Lésbicas
e Travestis) como de ONG-Aids e simpatizantes. Havia muito conflito entre seus
organizadores, sendo que vários grupos foram excluídos da comissão de
organização.27 Apesar disso, foi neste ano que os grupos de São Paulo
organizaram a Parada do Orgulho GLT, que se tornou símbolo do movimento
homossexual no Brasil. Mesmo depois de uma primeira tentativa frustrada em
1996, em 28 de junho de 1997, aproximadamente duas mil pessoas seguiram pela
Avenida Paulista28 com o intuito de atrair a atenção da sociedade e dar
visibilidade pública às reivindicações dos homossexuais. A Parada do Orgulho
GLBT29 passou a acontecer todos os anos, tornando- se parte integrante do
calendário oficial da cidade. Ao reunir aproximadamente um milhão e meio de
pessoas,30 esse evento passou a ser uma das principais formas de o movimento
homossexual afirmar sua existência como sujeito político.
Em 2000, o assassinato do adestrador de cães Edson Néris da Silva, na Praça da
República, por um grupo de Skinheads conhecido como "Carecas do ABC",
simplesmente por estar andando de mãos dadas com um amigo, chocou a opinião
pública e a militância homossexual. Os grupos reagiram com várias medidas,
entre elas uma vigília contra a violência aos homossexuais e diversas ações
junto a parlamentares e autoridades do Judiciário.31 No mesmo ano, foi eleita
prefeita a ex-deputada Marta Suplicy.32
Além da novidade representada pela Parada do Orgulho, o movimento homossexual
utilizou outra forma inovadora de mobilização que ficou conhecida como
"beijaço". Nesse tipo de ação, os militantes beijam-se em espaços públicos ou
privados onde ocorreram episódios de discriminação contra homossexuais. Em São
Paulo, ocorreram duas ações desse tipo. A primeira em um bar, acusado de
expulsar um casal de lésbicas por se beijarem, sob a justificativa de que a
proprietária não queria que o bar fosse identificado como "bar gay ".33 A de
maior repercussão, entretanto, foi realizada no Shopping Frei Caneca e contou
com aproximadamente 3 mil pessoas.34
Além disso, o movimento homossexual em São Paulo tem tido um intenso trabalho
com parlamentares ' a formação de uma "Frente Parlamentar pela Livre Expressão
Sexual" na Assembléia Legislativa;35 as vitórias obtidas no campo legal, como a
aprovação de uma lei estadual antidiscriminação36 por orientação sexual; a
criação de uma defensoria homossexual,37 vinculada ao Ministério da Justiça e
primeira do gênero no Brasil, e a aprovação da possibilidade de recebimento de
pensão por parte de parceiros homossexuais no Iprem (Instituto de Previdência
Municipal de São Paulo).38
Ao combinar diversas formas de ação, o movimento homossexual tem conseguido dar
visibilidade à sua causa. Embora tenha sofrido grande impacto com a epidemia de
Aids, nos anos de 1980 o movimento conseguiu manter diversas ações de defesa da
população homossexual. Na década seguinte, com a diminuição do estigma que
relaciona a Aids à homossexualidade e o auxílio dos recursos oriundos de
financiamentos para a prevenção da doença, os grupos homossexuais conseguiram
se rearticular, promovendo diversos encontros nacionais e internacionais e
inovando nas formas de mobilização, a exemplo das "Paradas" e dos "beijaços".
Essas ações tiveram como resultado a maior interlocução com os poderes públicos
e a garantia, mesmo que de forma restrita, de uma legislação favorável à
comunidade homossexual, como a lei 10.948/2001, que pune "toda manifestação
atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual
ou transgênero".
AIDS, estrutura de oportunidades políticas e o movimento homossexual
O impacto da Aids
A trajetória do movimento homossexual foi caracterizada por vários desafios,
mas sem dúvida o maior deles foi a Aids. Em uma atmosfera de abertura política
e relativa liberalização dos costumes, a Aids surge trazendo consigo velhos
preconceitos e estigmas sociais. Tachada pela imprensa de "peste gay " ou
"câncer gay ", a Aids representava, para setores conservadores, a resposta ao
"desbunde" dos anos de 1970 (Galvão, 2000) e o fim dos ideais libertários da
contracultura, amplamente divulgados pela máxima "Sexo, Drogas e Rock 'n Roll "
(Messeder Pereira, 2004).
A morte de milhares de pessoas, inclusive figuras ilustres, expôs à sociedade a
questão da sexualidade. E, ao se falar em sexualidade, é necessário falar em
todas as suas expressões, inclusive a homossexualidade. O debate público sobre
esse tema causou impacto no movimento homossexual (Cerqueira e Mott, 2002).
Como afirma Messeder Pereira:
Se, de um lado, ela [a Aids] veio reforçar antigos preconceitos que
já pareciam ultrapassados [ ], por outro, ela, pelo enorme drama
social que evoca, coloca as sociedades e os Estados em confronto
direito com a necessidade de implementar [ ] políticas de prevenção,
o que os obriga, [ ] a lidar diretamente com os grupos gays
organizados (2004, p. 59).
Não é o mero surgimento da doença que "força" os governos a lidarem com o
problema. No caso brasileiro, a emergência da doença ocorreu em um contexto de
oportunidades políticas favoráveis (Tarrow, 2004). A existência de uma
militância homossexual (embora em processo de desmobilização), combinada com a
eleição de Franco Montoro para o governo do Estado de São Paulo ' governo
comprometido com um projeto participativo (MacRae, 1997; Teixeira, 2003) ',
explica a prematura resposta governamental à epidemia (Terto Jr. 1996;
Teixeira, 1997; Galvão, 2000). Já no caso norte-americano, em que o movimento
homossexual era bem organizado, pelo contrário, a administração republicana
ignorou a existência do problema, e setores conservadores utilizaram a Aids
como argumento contra a luta pelos direitos homossexuais (Vaid, 1995; Engel,
2001). Esta recusa do Estado em produzir respostas à doença teve como corolário
o fortalecimento de novas formas de ativismo político, menos
institucionalizados e mais voltados para formas de ação direta e contestatória
da ordem (como, por exemplo, o movimento ACT UP ) (Engel, 2001).
Outro ponto que merece destaque diz respeito à identificação dos homossexuais
como "grupo de risco". Se a definição de "grupo de risco" aumentou o estigma e
a exclusão desses grupos, ela também justificou a "importância de traçar
estratégias específicas para essas populações, fazendo com que os seus
integrantes se tornassem elementos importantes nas ações de prevenção [ ]"
(Galvão, 2000, p. 83). Vale lembrar, por outro lado, que os grupos de prevenção
fizeram esforços para desvincular a Aids da comunidade homossexual, o que
juntamente com o aumento do número de casos, na década de 1990, entre
heterossexuais (principalmente mulheres) acabou por "auxiliar" nesse sentido.
A relevância do trabalho de grupos gays na prevenção da Aids explica o apoio
financeiro dado a eles pelo Estado (principalmente via Programa Nacional de
DST-Aids) e, em menor medida, pelas organizações de cooperação internacional
( Idem ). O trabalho conjunto entre o Estado e a sociedade civil tem sido
apontado como um dos principais fatores do sucesso do Programa Nacional de
DSTAids no combate à epidemia no Brasil e serve como exemplo de gestão bem-
sucedida para outros países ( Idem ). Não foi por acaso que a campanha do então
candidato governista à presidência, José Serra enfatizou sobremaneira suas
realizações como ministro da Saúde (Gauri e Lieberman, 2004). Outro dado
importante dessa "parceria" é o apoio dado pelo Programa Nacional para a
realização de eventos regionais, nacionais e internacionais. Com o estabelece o
relatório do Ministério da Saúde:
A sustentação de projetos dessa natureza [apoio à realização de
encontros] tem contribuído para o fortalecimento de diversos
movimentos sociais, intensificando as ações de prevenção e
assistência na mesma proporção em que permite a identificação de
pontos de convergência que caracterizam o perfil de segmentos sociais
a ser trabalhado (Ministério da Saúde, 1998, p. 62).
Ciclo de protesto, inovações nos repertórios de ação coletiva e o papel das
redes sociais
No caso específico de São Paulo, a existência de uma estrutura de oportunidades
políticas favorável (Tarrow, 2004) e a intensa mobilização social que se
disseminou no país no final da década de 1970 foram decisivos para o movimento
homossexual em seus primórdios. O processo de abertura política e a menor
capacidade de repressão do Estado geraram um ciclo de protestos ( Idem ), no
qual o movimento homossexual foi favorecido pela difusão de ação coletiva dos
grupos pioneiros. Com efeito, houve, nesse período, uma grande interação entre
diversos movimentos sociais, tornando o contato entre grupos extremamente
frutífero para a luta contra o autoritarismo e pelo direito à diferença. Grupos
de homossexuais passaram a ter contato direto com a causa feminista e dos negro
(MacRae, 1990).
No que diz respeito aos repertórios de ação coletiva, o movimento homossexual
inovou nas formas de mobilização no Brasil. Influenciado pelo exemplo das Gay
Pride Parades norte-americanas, o movimento adotou esse tipo de ação para dar
visibilidade à causa homossexual. Com a crescente participação da comunidade
homossexual, assim como de heterossexuais, as Paradas conseguiram atrair a
atenção dos meios de comunicação de massa, inserindo a questão dos direitos
homossexuais na pauta de discussão política. Os "beijaços", inspirados nos
Kiss-in norte-americanos, também aparecem como uma inovação da mobilização
homossexual no Brasil. A crescente imagem que o mercado segmentado GLS39 passou
a ter na mídia e a ênfase no poder de consumo dos homossexuais (a idéia do pink
money40 ) contribuíram também para tais experimentações. Esse contexto de maior
visibilidade do mercado GLS e de uma cultura gay (Facchini, 2002; Nussbaumer,
2001), somado à presença de aliados nas instituições políticas (Tarrow, 2004),
repercutiu na sociedade civil, o que revela o aumento expressivo da
participação nas Paradas nos últimos anos.
Concernente às redes sociais, elas tiveram grande importância na participação
dos militantes homossexuais na organização do primeiro serviço de prevenção à
Aids em São Paulo (Galvão, 2000), dado que o movimento se encontrava em
processo de desmobilização, depois do "racha" ocorrido no grupo "Somos"
(MacRae, 1990). A realização da Ilga, em 1995, teve impacto na transmissão de
experiências de militância e de mobilização entre militantes brasileiros e
estrangeiros.41 A realização dos Encontros Nacionais, apesar dos conflitos
subjacentes, também possibilitou a construção de redes de amizade e de trocas
de informação, agilizadas por mecanismos modernos de comunicação, como a
internet. A tentativa de articulação das redes de militantes, no sentido de
coordenar as ações do movimento homossexual em âmbito nacional, é um dos
grandes desafios do movimento hoje.
Movimento homossexual e o Estado: limites e possibilidades
Como afirmado anteriormente, a presença de uma estrutura de oportunidades
políticas favorável possibilitou os primeiros contatos da militância
homossexual com órgãos estatais. À exceção da participação na Constituinte,
esse contato permaneceu restrito, nos anos de 1980 e em parte da década
seguinte, às instâncias estatais de saúde ' secretarias estaduais e municipais
de saúde, Ministério da Saúde e, mais especificamente, o Programa Nacional de
DST-Aids (PN DST-Aids).42 A crescente desvinculação dos homossexuais como
"grupos de risco" e a manutenção dos recursos do PN DST-Aids43 possibilitaram a
reestruturação do movimento homossexual em todo o país (Facchini, 2002).
Inaugurou-se um novo momento na luta homossexual, caracterizado por uma rela
ção com o Estado mais efetiva ' exemplo disso é a fundação da ABGLT e a
apresentação, na Câmara dos Deputados, do projeto de reconhecimento de união
entre pessoas do mesmo sexo.
Recentemente, a eleição da prefeita Marta Suplicy teve impacto nas mobilizações
e no maior contato do movimento homossexual com o Estado, em São Paulo.
Conhecida pelo seu trabalho em defesa dos direitos homossexuais, a prefeita
implementou, no âmbito do poder municipal, diversas ações afirmativas para a
comunidade GLBT: possibilidade de recebimento de pensão por parte de parceiros
homossexuais no Iprem (Instituto de Previdência Municipal de São Paulo);44
apoio logístico para a realização das Paradas do Orgulho GLBT; capacitação de
professores e funcionários da rede pública municipal para lidar com as
diferenças (projeto "Educando para a diversidade"),45 realizado pelo Grupo
Corsa,46 e a garantia de um representante do segmento GLBT no Orçamento
Participativo,47 entre outras.
A relação da prefeita com o movimento e a comunidade homossexual, no entanto,
foi permeada por conflitos. Um deles foi devido ao fechamento do "Autorama",
espaço de convivência gaylocalizado ao lado do Parque Ibirapuera. A prefeitura
interditou o local, sob a alegação de que o lugar estava sendo utilizado como
ponto de prostituição e tráfico de drogas.48 Menos de um mês depois, o então
presidente da Associação da Parada do Orgulho GLBT interveio e o espaço foi
reaberto sob a condição de se criar um grupo de discussão sobre seu
funcionamento,49 De onde partiu a proposta de tornar o espaço um "jardim gay
".50 Embora apoiada por setores do movimento homossexual,51 a idéia foi
criticada por vários militantes como sendo um "factóide"52 e uma "ação para
normatizar a vida sexual das pessoas".53 Ainda não se encontrou uma solução
definitiva para o uso desse espaço.
Tal como Tarrow (2004), vários militantes pontuaram os "perigos" deste contato
mais próximo com as instituições políticas. Segundo um dos entrevistados, a
respeito da relação de "dependência" entre os grupos e os recursos do Programa
Nacional de DST-Aids: "você vai ver que vários grupos foram criados para lutar
contra a Aids, para poder pegar dinheiro do Ministério da Saúde. Grupos de
direitos homossexuais, e que inseriam no seu programa a luta contra a Aids para
poder ganhar dinheiro [ ]".54 Além disso, o vínculo com o Estado limitaria a
capacidade reivindicativa do movimento. Como afirma o relato de uma
entrevistada:
A impressão que eu tenho é assim: o movimento social, no geral,
virou, a boa parte da liderança virou funcionário do partido. [ ]
Porque eu acho assim, o fato do partido estar lá e ter uma abertura,
isso não tira do movimento a responsabilidade de continuar lutando. A
impressão que eu tenho é que é assim: ah, o PT é legal, tá' no
poder, ahh, vamos sentar [ ] e descansar, porque eles vão fazer tudo.
[ ] Quem tem que continuar fazendo é o movimento. [ ] A minha
participação, a minha colaboração, é como cidadã. É o caminho que eu
acho legal. Agora, se não tá bom, eu é que tenho que fazer. Eu não
vou esperar que eles, sentadinho lá no Governo, tendo que pensar no
país inteiro, tendo que pensar numa cidade inteira, pense: "ahh,
vamos buscar procurar um projeto perfeito para essa categoria". Não,
o projeto perfeito quem tem que colocar somos nós e a gente tem que
fazer inclusive a pressão [ ].55
Considerações finais
Ao longo desses 25 anos de história, o movimento homossexual enfrentou diversos
desafios e passou por grandes transformações. De um movimento libertário e
contracultural, passou a ter uma feição mais pragmática (ou, segundo Doimo
(1995), integrativo-corporativa), o que se constata pela interação progressiva
com atores importantes do status quo, como o Estado e o mercado.
O caráter mais pragmático da militância foi acompanhado da crescente
visibilidade do movimento na mídia, da maior presença da temática homossexual
em atividades artísticas (de peças de teatro a novelas) e da legitimidade,
ainda incipiente, das reivindicações homossexuais perante a sociedade.
Embora o perigo de ser "cooptado" pela lógica estatal permaneça (de acordo com
os comentários dos entrevistados), a interação dos grupos homossexuais com o
Estado foi fundamental para a construção de uma política mais eficaz de combate
à Aids (Galvão, 2000; Gauri e Lieberman, 2004). Além disso, esse contato
possibilitou a aprovação da lei estadual 10.948, além de levar a questão da
diversidade sexual para outros âmbitos da ação estatal (a exemplo do programa
"Educando para a diversidade").
Como se procurou demonstrar, a confluência de fatores externos ao movimento
homossexual (como uma estrutura de oportunidades políticas favorável e o
advento da Aids) com fatores internos (como a capacidade de mobilização e
inovação nos repertórios de ação coletiva) demonstra o "poder" adquirido pelo
movimento homossexual em inserir suas demandas na agenda pública e reivindicar
seus direitos de cidadania. Apesar disso, o grande número de assassinatos de
homossexuais,56 a exemplo do caso Edson Néris em São Paulo, e a ampla homofobia
existente na população revelam à militância homossexual os desafios futuros na
luta pela garantia de direitos humanos para a população homossexual.
Notas
1 GLBT ' Gays, Lésbicas, Bissexuais e "Transgêneros". Após muita discussão no
interior do movimento, optou-se, na década de 1990, pelo uso desta sigla, a fim
de contemplar os diversos segmentos pertencentes ao que denominamos
genericamente movimento homossexual. Para mais detalhe, ver Facchini (2002).
2 Os nomes dos entrevistados são fictícios.
3 Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
4 Para Tarrow, a estrutura de oportunidades políticas tem cinco dimensões
principais: a) abertura do sistema político: cria maiores estímulos para
participação; b) evidências de realinhamentos políticos dentro do sistema: gera
incertezas entre os participantes do governo e encoraja os desafiantes a
exercitar seu poder, induzindo as elites a buscar apoio fora do âmbito da
política institucional; c) aparecimento de aliados fortes: é um importante
incentivo, já que podem tanto garantir a nãorepressão do movimento, como
possibilitar um canal de negociação nas instâncias governamentais; d) divisões
das elites: diminuem os custos de mobilização, o que facilita a ação dos
movimentos com poucos recursos; e) declínio na capacidade do Estado de reprimir
dissensões: a maior probabilidade de não-repressão do movimento gera incentivos
para a mobilização.
5 Partido Democrático Social, então partido governista.
Entrevista com Alexandre, 1/12/2004. Ex-militante do grupo Somos, ele esteve
presente nas primeiras articulações do movimento homossexual em resposta à
Aids, tendo participado do Gapa (Grupo de Apoio a Portadores de Aids) e de
reuniões de outros grupos ligados ao movimento homossexual na década de 1990.
6 Entrevistas com Alexandre, 1/12/2004, e Carlos, 24/11/2004. Carlos foi
militante do grupo Somos e também esteve presente nas primeiras articulações do
movimento homossexual em resposta à Aids. Atualmente é militante do movimento
homossexual.
7 Entrevista com Maria, 13/11/2004. Ela teve contato com o movimento feminista
e participou de grupos lésbicos no final dos anos de 1980 e início da década
seguinte. É atualmente militante do movimento homossexual.
8 Entrevista com Carlos, 24/11/2004.
9 Entrevista com Carlos, 24/11/2004 e Antônio, 19/11/2004. Antônio é ex-
militante do movimento homossexual, teve contato com o grupo Lambda na década
de 1980 e militou no movimento na década de 1990.
10 Entrevista com Alexandre, 1/12/2004.
11 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
12 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
13 "Art. 10 ' O jornalista não pode: a) concordar com a prática de perseguição
ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e
de orientação sexual" (Silva, 1993).
14 O entrevistado Antônio citou mais dois grupos ' Libertos, que tinha sede na
Zona Norte da capital, e Eros. Segundo ele, ambos tiveram contato com o Lambda,
mas não soube dizer o tempo de existência desses grupos, nem relatar
especificamente quais eram suas atividades.
15 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
16 Ver site http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/4387_8.asp.
17 Entrevista com Maria, 13/11/2004.
18 Após intenso debate, optou-se pelo uso desse termo, uma vez que não estaria
embutida aí a idéia da homossexualidade como algo voluntário. "Orientação
sexual" comportaria um terreno neutro, sem implicações de ordem médica ou moral
(Silva, 1993). Como afirma Facchini, esta "solução de consenso" relaciona-se a
uma ação mais pragmática do movimento, menos preocupada com a transformação
sociocultural e mais voltada "para garantia dos direitos civis e contra a
discriminação e violência dirigida aos homossexuais" (2002, p. 80).
19 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
20 Glusp (Gays e Lésbicas da USP), Etcétera e Tal, GH-PT (Grupo de Homossexuais
do PT) e Urânia (Facchini, 2002, p. 89)
21 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
22 Projeto de Lei no.1.151/1995. "Projeto permite adoção de criança por gays
solteiros", em Folha de São Paulo, 24/6/1995.
23 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
24 A partir do encontro de 1995, os eventos nacionais e internacionais do
movimento homossexual passaram a contar com recursos do Ministério da Saúde
(Facchini, 2002).
25 " Gays pedem voto contra o preconceito", em Folha de São Paulo, 15/07/1996.
26 Para mais detalhes dos conflitos em torno da organização desses eventos,
consultar Facchini (2002).
27 A Parada teve o lema: "Gays, Lésbicas e Travestis: em todos os lugares, em
todas as profissões" ( Revista Oficial da Parada do Orgulho GLBT de SP, 1ª
edição).
28 A partir de 2000 foi incluído à sigla o termo "bissexuais ( Revista Oficial
da Parada do Orgulho GLBT de SP, 1ª edição).
29 "Parada Gay reúne 1,5 milhão e bate recorde", em Folha de São Paulo, 14/6/
2004.
30 Ver site http://mixbrasil.uol.com.br/extra!/carecas.ht.
31 Ver site http://www.estoufelizassim.hpg.ig.com.br/cronologia3.html.
32 "Bar em São Paulo discrimina lésbicas", em Central de Notícias Mix Brasil,
11/4/2002.
33 "Beijaço lota área em shopping de SP", em Folha de São Paulo, 4/8/2003.
34 Ver site http://www.al.sp.gov.br/index4.htm.
35 Lei Estadual n. 10.948/2001.
36 "Defensoria Homossexual começa a funcionar em São Paulo", em Central de
Notícias Mix Brasil, 29/10/2001. "Orientação Normativa Iprem n.º 06, de 13 de
novembro de 2002", no site http://portal.prefeitura.sp.gov.br/
empresas_autarquias/iprem/balanco/0016.
37 Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
38 Para maiores detalhes sobre a idéia de pink money, ver Santos (2006).
39 Entrevista com Antônio, 19/11/2004.
40 Entrevista com Carlos, 24/11/2004.
41 "Aids ajuda no surgimento de grupos gays ", em FSP, 14/6/1995.
42 "Orientação Normativa Iprem n.º 06, de 13 de novembro de 2002", no sitehttp:
//portal.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/iprem/balanco/0016.
43 "Projeto ensina professores a lidar com diversidade sexual", em Central de
Notícias Mix Brasil, 22/5/2002.
44 Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor: Grupo de Conscientização
e emancipação das minorias sexuais.
45 "Beto de Jesus vai representar comunidade gay no Orçamento Participativo de
SP", em Central de Notícias Mix Brasil, 14/8/2002.
46 "Prefeitura fecha ponto de pegação em SP", em Central de Notícias Mix
Brasil, 17/5/2002.
47 "Autorama reabre em São Paulo sob condições", em Central de Notícias Mix
Brasil, 5/6/2002.
48 "Jardim dos gays ", em Folha de São Paulo, 10/7/2002, e "Prefeitura de São
Paulo quer transformar Autorama em jardim gay ", em Central de Notícias Mix
Brasil, 12/7/2002.
49 "Prefeitura de São Paulo pode ampliar horário de funcionamento do
Ibirapuera", em Central de Notícias Mix Brasil, 22/7/2002.
50 "À prefeita de São Paulo", em Folha de São Paulo, 4/6/2003.
51 "Fiscais da genitália alheia", em Folha de São Paulo, 21/7/2002.
52 Entrevista com Carlos, 24/11/2004.
53 "Fiscais da genitália alheia", em Folha de São Paulo, 21/7/2002.
54 Entrevista com Carlos, 24/11/2004.
55 Entrevista com Maria, 13/11/2004.