Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil
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Estas notas são uma condensação da produção de autores brasileiros sobre a vida
intelectual no país. Condensação no sentido de espessamento, já que toma as
contribuições estabelecidas e as organiza sob uma perspectiva determinada,
tensionando-as a partir de questões que não necessariamente estiveram presentes
no horizonte de preocupações de seus autores. Não é, por isso, uma resenha,
menos ainda um panorama completo da bibliografia concernente ao tema, cuja
seleção deixou de lado trabalhos relevantes, em nome da economia do modelo
narrativo proposto. Há, pois, perdas registráveis na extensão e no
aprofundamento dos argumentos mobilizados. Contudo, a compactação de idéias já
amplamente assentadas nessa área de estudos permite ver mais claramente suas
propostas e implicações, rearticulando-as no contexto de um debate sobre a
inteligência brasileira que, se não é novo, tem sido extraordinariamente
refrescado pelas mudanças estruturais em curso.
A perspectiva que sustenta, como alicerce oculto, a concepção deste artigo
refere-se à dimensão pública da atividade intelectual no Brasil, o que o põe em
diálogo, e, ao mesmo tempo, o diferencia de trabalhos que costumam apontar o
declínio do intelectual público em contextos de forte institucionalização
universitária (Posner, 2001; Jacoby, 1990). Assim, o foco nas questões
relativas às formas de organização do exercício intelectual no Brasil ao longo
da sua trajetória de modernização ' as Academias, a Universidade e as
Organizações não-governamentais ' permitiu sugerir que tais soluções
institucionais, conquanto muito distintas, apresentam um padrão de continuidade
no que se refere à relação entre intelectuais e vida pública.
A inclusão das ONGs nessa reflexão introduz, como notório, um elemento de
incerteza e um tratamento até certo ponto normativo acerca do seu papel no
mundo contemporâneo. Mas sua emergência e crescente influência no espaço
público brasileiro correspondem a uma mudança estrutural operada no âmbito da
cultura ' a chamada "inteligência coletiva" ou "rede mundial do saber" (Lévy,
1994) ', cujos efeitos, em termos do impacto desfechado sobre a configuração de
agentes sociais e profissionais que lhe dão suporte, merecem ser inquiridos.
Assim, por muito que tal questão desborde a modelagem do espaço tradicional de
debates e explicações acerca dos intelectuais e da atividade intelectual no
Brasil, sua inscrição entre os temas que compõem a agenda dessa área de estudos
se justifica pela constatação de que a figura e as funções do intelectual
público vêm sendo redefinidas pela conformação de uma inteligência
transnacional, ajustada às exigências da nova ordem globalizada. Nesse caso, a
caracterização das ONGs como um dos feitios possíveis de institucionalização
dessa inteligência cosmopolita que, no entanto, mantém-se, aqui, associada à
definição e à tentativa de solucionar problemas públicos, sugere a capacidade
de renovação e de democratização da tradição intelectual brasileira.
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Pensada em chave macroestrutural, isto é, na sua relação com o processo de
modernização do país desde o século XIX, pode-se dizer que a inteligência
brasileira obedeceu a formas de organização que transitaram (1) das Academias e
Institutos, em moldes similares aos das monarquias administrativas européias do
período da Restauração, para (2) a constituição de uma comunidade científica
centrada na Universidade e na institucionalização do sistema nacional de pós-
graduação durante o século XX, e, mais recentemente, para (3) uma pulverização
de agências nucleadoras de intelectuais, que, sem deslocar o predomínio da
modalidade organizacional precedente, vêm competindo com ela por jurisdição
sobre problemas públicos ' não tanto em termos de uma disputa por competências
para definir a natureza ou a causalidade daqueles problemas, mas no sentido de
se avocarem como instituições responsáveis por sua solução (Gusfield, 1981). É
ilustrativo desse fenômeno o notável crescimento do número de intelectuais
reunidos em torno de organizações não-governamentais nas duas últimas décadas,
bem como a ampliação da influência dessas agências no espaço público
brasileiro.
Destacam-se, desse modo, três "eras" organizacionais distintas, delineadas a
partir da forma predominante de institucionalização do ambiente intelectual no
Brasil ' o que significa dizer que, embora Academias, Universidade e ONGs não
esgotem as possibilidades de organização da inteligência nos últimos dois
séculos, são elas as instituições que, cada uma a seu tempo, vêm fornecendo
parâmetros para o exercício da atividade intelectual e a inscrição social de
seus praticantes.
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Assim, por exemplo, durante o Império, ainda que existissem cursos regulares de
direito, medicina e engenharia, tais Escolas não conformavam o centro da vida
intelectual no Brasil, consistindo, antes, em espaços de socialização de jovens
da elite, sobretudo no caso das Escolas de Direito, para ocupação de cargos
públicos. Na prática, portanto, eram instâncias do jogo político, mais do que
agências de produção intelectual e inovação técnico-científica.
É bem verdade que no século XIX a separação entre os campos político e
intelectual não se completara (Fink, Leonard e Reid, 1996). E o que se
convencionou chamar de intelectual era o "letrado" que, por aquela época,
começava a ampliar sua margem de autonomia em relação ao poder, animando uma
incipiente opinião crítica que será determinante da moderna história da
intelligentsia ocidental (Mannheim, 1963). As Academias francesas ilustram bem
esse percurso, pois, tendo sido organizadas sob o Antigo Regime, momento em que
vigorou maior identificação entre "letrados" e reis, foram mantidas na era
napoleônica e mesmo depois dela, no contexto da Restauração, já aí com
tonalidade um tanto distinta, inclusive pela incorporação de intelectuais de
extração social mais baixa, cuja chegada àquelas agências era sintomática das
mudanças observadas na relação entre o Estado e a opinião (Auerbach, 1974).
Tal modelo de organização da inteligência espalhou-se pela Europa e alcançou o
Brasil, onde, ao longo de todo o século XIX, Academias e Institutos
constituíram-se em espaços de animação intelectual e de construção de
ideologias profissionais, decisivas, como se sabe, para o estabelecimento de
jurisdição sobre áreas do saber até então reivindicadas por "práticos" '
rábulas, no caso de advogados, curandeiros, no de médicos, e mestres-de-obras,
no âmbito da construção civil. Portanto, mais do que as Escolas, foram aquelas
agências que conferiram estatuto de profissão ao exercício das artes liberais
no Brasil (Coelho, 1999).
Além disso, pode-se dizer que a proliferação das Academias sob o Império foi
parte de uma política devotada à ampliação da esfera estatal, mediante o
incremento dos quadros do funcionalismo e a democratização do acesso a eles,
principalmente no ramo militar (Motta, 1976), a extensão da instrução pública
referida à formação técnica de artífices e gráficos ' do que é exemplo a
criação do Imperial Instituto Artístico ' e a construção de espaços de
organização de intelectuais e artistas sob o padrão dominante no continente
europeu. Assim, como realidade típica dos Estados ampliados do período da
Restauração, a reprodução das Academias no século XIX, na Europa e no Brasil,
atesta, no plano cultural, o andamento de uma modernização em compromisso com o
passado (Gramsci, 2002). Se, no continente europeu, as dinastias monárquicas
restauradas não lograram cancelar a novidade introduzida pelas forças sociais
do Terceiro Estado ' e o recrutamento alargado das Academias indica
transformações intersticiais ou "moleculares" em curso naquelas sociedades ',
no Brasil, caso mais recessivo de revolução passiva (Werneck Vianna, 1997), a
iniciativa do Poder Moderador em organizar agências intelectuais conforma um
movimento de modernização sob controle político do Imperador.
De modo que pensar a organização dos intelectuais brasileiros no século XIX
impõe atentar para o processo de centralização do poder, cuja trajetória
compreendeu uma ampliação do escopo do Estado, ao definir como de interesse
público a produção das ciências e das artes no Brasil. Tal fato, em última
análise, evidencia a força diretora da tradição, na medida em que implicou
atualizar, em pleno Oitocentos, a velha matriz do absolutismo português,
segundo a qual o rei busca incrementar seu poder sem confrontar diretamente as
classes senhoriais, agregando, para tanto, outros espaços, materiais e
simbólicos, que o direito feudal, tradicional, não poderia disputar (Hespanha,
1994; Barboza Filho, 1999). No contexto do renascimento lusitano, isso se
traduziu na incorporação de novos territórios na África, na América e no
Oriente, enquanto no século XIX, no âmbito do Estado nacional brasileiro,
consistirá na dupla fórmula da defesa da unidade territorial ' que conferia
"reservas" de soberania ao monarca ' e da criação de espaços simbólicos de
poder exclusivos ao rei, do que a criação de agências intelectuais foi
expressão.
O fato é que, tomando a organização dos intelectuais para si, como elemento
constitutivo do seu poder, a monarquia brasileira conferiu dimensão pública à
atividade intelectual, e essa será a marca de origem da moderna inteligência no
país. Instituições como a Academia Científica do Rio de Janeiro, precursora
desse formato organizacional e devotada a estudos práticos de agricultura,
ainda no contexto colonial (1772-1779); a Real Academia Militar e o Real
Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, ambos de 1810, o último criado
especificamente para abrigar a Coleção Werner, trazida para o Rio de Janeiro
por D. João VI; o Museu Nacional, instituição de pesquisa em ciências naturais,
notadamente a mineralogia e a geologia, e antecessora, nesse sentido, da Escola
Politécnica e da Escola de Minas de Ouro Preto, ambas criadas na década de
1870; a Academia Imperial de Belas Artes, resultado da Missão Francesa de 1816;
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), esteio da ideologia
nacional no século XIX; a Academia Imperial de Medicina e a Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro, essa última aplicada, desde 1887, ao
desenvolvimento de pesquisas contra a varíola; o Instituto dos Advogados
Brasileiros (1843); a Sociedade de Geografia; o Clube de Engenharia, criado em
1880 e tornado, juntamente com a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional,
um pólo de coordenação política e intelectual do estrato de engenheiros; a
Associação de Homens de Letras e o Colégio Pedro II, dentre tantas outras,
ilustram o modo dominante de organização da vida intelectual em terras
brasileiras.
Em suma, o Brasil no século XIX foi palco de intensa atividade intelectual,
conjugada à ação diretiva do Estado. A intervenção estatal nesse plano não
derivou fundamentalmente da adesão monárquica ao iluminismo tardio, ou de
inclinações pessoais de D. Pedro II ' embora as tivesse ' para se acercar de
sábios. Indica, antes, uma concepção política da prática intelectual,
entendendo-a como reserva de soberania do rei e, nessa dimensão, como matéria
de interesse público (Kantorowicz, 1998).
Tal lógica de reprodução do poder, contudo, produziu efeitos positivos ' o
principal deles, a quebra do monopólio que as classes dominantes classicamente
exercem sobre o processo de constituição da atividade intelectual, abrindo-se
uma porta de oportunidades para os que, apartados do mundo relativamente
homogêneo das elites senhoriais, souberam transpô-la. Intelectuais oriundos de
estratos médios da sociedade, e mais o numeroso contingente de mulatos urbanos
que Gilberto Freyre (1990) surpreende em ofícios modernos no último quartel do
século XIX, expressam relativa diferenciação do ambiente intelectual sob o
Império, malgrado sua intencionalidade. Enfim, o quadro institucional que
explica a forma de articulação entre política e cultura no Oitocentos
brasileiro é igualmente explicativo da dimensão estratégica conferida pelo
Estado imperial às agências intelectuais. Tal cenário não resistiria à
proclamação da República.
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Em 1889, o Império se fecha, deixando como legado a estruturação de três ramos
da vida intelectual, tal como era praticada: (1) uma rede cultural, científica
e artística centrada nas Academias e Institutos, com projeção em círculos
especializados internacionais e alguma capilaridade no conjunto das províncias;
(2) escolas de ensino superior desprovidas da atividade de pesquisa ou, pelo
menos, secundárias em relação às associações acadêmicas e profissionais no que
tangia à inovação técnico-científica (Schwartzman, 1979); e (3) quadros
isolados do Estado imperial, bacharéis, sobretudo, mas também engenheiros
militares, cuja experiência como servidores públicos os havia qualificado para
o exercício da crítica social e política de seu tempo, animando, desde a
campanha abolicionista, uma opinião urbana inflamada pela circulação de jornais
e revistas de variada tonalidade ideológica.
Fruto da engrenagem político-cultural do Império, a inteligência brasileira
ver-se-á, então, imersa em uma nova forma de articulação entre Estado e
sociedade: se o Império havia conferido destaque aos temas da política, da
institucionalização dos mecanismos de poder e da ordenação do mundo público, a
república voltar-se-á para a sociedade, para as relações mediadas pelo mercado
e para os padrões de diferenciação social que operam na estruturação da ordem
moderna.
Tomada, então, em grandes linhas, pode-se dizer que a inteligência sob a
República Velha foi reordenada segundo dois vetores em permanente tensão: (1) a
afirmação do mercado capitalista como coordenador das práticas sociais e, logo,
do conjunto das profissões intelectuais ' o que tenderá a desprender o campo
cultural/científico da esfera política; e (2) a tentativa de mitigar os efeitos
da liberalização econômico-social sobre o mercado profissional, sobretudo o das
antigas profissões imperiais, do que é ilustrativa a organização do Sindicato
Nacional dos Médicos, em 1927 (Coelho, 1999). No caso dos médicos, aliás, a
luta de suas lideranças foi tenaz e consistiu em ganhar o controle do mercado:
pelo lado da oferta, cerceando a ação das chamadas "escolas livres", último
vestígio da plataforma educacional positivista, que ampliava significativamente
o número de diplomados, e, pelo lado da demanda, procurando conter a cooptação
de profissionais pelo Estado, mais agressiva na crise política dos anos de
1920, quando, dentre outras iniciativas governamentais, foi criado o
Departamento Nacional de Saúde Pública, que passou a disputar a inscrição
social dos médicos (Idem).
De qualquer modo, a centralidade que a monarquia conferira à atividade
intelectual, tornando suas agências parte indissociável da política, ruíra.
Academias e institutos seguiriam existindo, porém submersos na nova realidade
vigente e certamente não mais como núcleos de acumulação do poder do Estado.
Sem ancoragem forte no Estado e sem um mercado robusto de bens simbólicos
(Miceli, 2001), a inteligência experimentará duas alternativas: rearticulará,
de um lado, algum tipo de nexo entre produção intelectual e política, embora
com base em mecanismos bastante rebaixados quando comparados aos que vigiam sob
o Império, já que, diferentemente daquela época, implicavam, agora, relações
personalizadas com políticos, resultando em práticas de clientela e,
conseqüentemente, na subalternização do intelectual no comércio estabelecido
com seu padrinho. Esse terá sido o panorama geral, associado à trajetória de
literatos e outros segmentos intelectuais de menor prestígio, que se
reproduziriam sob o comando de frações da nova classe dirigente (Idem).
De outro lado, na rama das antigas profissões imperiais, mais consolidadas e
gozando socialmente de maior prestígio, a inteligência buscará
institucionalizar mecanismos de reconhecimento e legitimação de sua prática,
ensaiando certo ativismo, cujo desfecho desembocará no movimento credencialista
conduzido por segmentos das antigas lideranças profissionais e engrossado, a
partir dos anos de 1920, por uma nova geração de praticantes, oriunda das
camadas médias urbanas, que se alinhou pela valorização do diploma como
atestado real de perícia técnico-científica (Coelho, 1999). Portanto, em
conformidade com o liberalismo de fundo, que removera a centralidade do Estado,
mas precavidos quanto aos desajustes introduzidos pelo mercado, os
profissionais liberais abraçaram, em geral, a idéia de auto-regulação de suas
atividades. Somente que, à diferença das antigas lideranças, a nova geração de
médicos, engenheiros e advogados tendia a considerar que de nada valeria o
credenciamento de peritos se estes não se comprometessem com as transformações
necessárias à vida nacional ' o que conformava uma ideologia profissional de
outro tipo e uma concepção política tributária da centralidade do Estado como
coordenador da reforma social.
Instaurou-se, pois, uma clivagem no interior dos núcleos profissionais quanto à
destinação social do conhecimento, reacendendo, por outros personagens e
caminhos, a concepção que tivera curso no Império, vinculada à vocação pública
da atividade intelectual. São dessa época a Liga Pró-Saneamento, iniciativa
levada a cabo por jovens médicos sanitaristas, e, entre outros, o movimento em
prol de uma "engenharia nacional", liderado por Aarão Reis ' manifestações
sociais de um ambiente intelectual vincado pelo debate entre especialização
profissional vs. atuação política. Exceção notável terá sido o movimento de
educadores, cujas lideranças souberam contornar tal polarização e reconhecer no
"especialista" um ator indispensável ao processo de auto-esclarecimento da
sociedade para a conquista de seus interesses (Cunha, 1987; Fernandes, 1977;
Werneck Vianna, Carvalho e Palácios, 1994) ' aspecto de uma cultura intelectual
que o tornará referência para o grupo que, reunido na Escola Livre de
Sociologia e Política (1933), dará partida à reflexão sociológica brasileira.
Por fim, a República Velha terá que reacomodar a experiência intelectual dos
publicistas, última floração, a rigor, da casa grande, cuja autonomia derivava
de sua peculiar inscrição social, como membros de uma elite sem amarras no
mundo mercantil. Descendentes de juristas, quase sempre bacharéis, como
Oliveira Vianna e Alberto Torres, ou remanescentes do quadro de funcionários do
Estado Imperial, como Euclides da Cunha, pode-se dizer que os primeiros
intérpretes do Brasil republicano serão portadores de uma representação do país
fortemente encapsulada por categorias e esquemas mentais do período precedente.
Neles, se fosse possível apresentá-los panoramicamente, o Brasil é visto,
sobretudo, pelo ângulo da perda, notadamente a da grande obra do Estado
centralizado, cuja sobreposição à sociedade, embora considerada pelos
republicanos uma anomalia despótica, fora responsável pela promoção das
liberdades, na medida em que contivera o particularismo das classes senhoriais
(Oliveira Vianna, 1920).
De modo que a palpitação da moderna sociedade brasileira pouco era relevada
analiticamente por aquele grupo de intérpretes, exceto como transfundo de suas
convicções intervencionistas. Pois, para eles, os conflitos do mundo do
trabalho, como no ciclo de greves do período compreendido entre 1917 e 1919, a
formação do Partido Comunista, a organização dos católicos em torno do Centro
Dom Vital, a manifestação dos artistas na Semana de 22 ou o crescente
radicalismo dos tenentes, que, de defensores da efetivação dos direitos
liberais consignados na Carta de 1891, varreriam o país com a Coluna Prestes,
eram evidências da mitigação do papel do centro político e da rearticulação,
sob novos condicionantes, da fragmentação social da nossa origem. Com tal
perspectiva, seu objeto preferencial não poderia ser a sociedade, mas, ao
contrário, a centralidade da ação do Estado na coordenação do trânsito ao
moderno.
Visto, portanto, com o distanciamento que o tempo permite, o debate sobre o
lugar dos intelectuais na República Velha prenunciava uma rota crescentemente
hostil às liberdades e aos direitos individuais, pois a idéia de um Estado
intervencionista ganhava amplos setores da inteligência. A nova forma estatal
que se consolidará na década de 1930, subordinando os interesses de indivíduos
e grupos a uma "razão nacional", deixaria clara a dupla identidade dos
intelectuais naquele contexto: como inteligência aplicada ao esforço de
modernização do país e como estrato profissional da nova ordem corporativa,
isto é, como figuras, respectivamente, da política e da sociologia.
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Tome-se a relação entre intelectuais e modernização sob o Estado Novo,
admitindo-se sua dupla dimensão: a política, que dependia da adesão dos
intelectuais ao projeto de reconstrução do país, sendo liderada por Capanema
(Schwartzman, Bomeny e Costa, 1984); e a estrutural, ou sociológica, resultante
da engenharia social concebida por Alberto Torres, Azevedo Amaral e Oliveira
Vianna, da qual os intelectuais eram parte, independentemente de sua vontade ou
adesão. Assim, como personagens da política, os intelectuais abraçaram a idéia
de superação do atraso brasileiro, mediante o desenvolvimento das forças
produtivas nacionais (Pécaut, 1990). E a exigência de uma Universidade, por
aquela época, deveu-se, em larga medida, à demanda estatal por recursos humanos
e tecnologia para a consecução de tal obra.
Quanto aos intelectuais como personagens da estrutura social, o fato de as
profissões de nível superior coroarem a hierarquia ocupacional prevista na
institucionalidade corporativa (Santos, 1979) foi também aspecto decisivo para
a relevância que a Universidade assumirá no contexto estadonovista. Nesse
sentido, se a Universidade brasileira foi projetada politicamente, como lugar
da invenção material e espiritual de um novo país, do ponto de vista
sociológico será alçada à condição de agência de promoção social e incorporação
privilegiadaà cidadania (Idem) ' aspectos complementares que fizeram dela o
esteio da atividade intelectual ao longo de toda a segunda metade do século XX
(Schwartzman, 1979; Pontes, 1998).
Portanto, a partir dos anos de 1930, o investimento nas chamadas ciências
básicas convive com o desenvolvimento de quase todas as áreas do conhecimento,
incluindo as ciências sociais, cujo sucesso atesta o fato de que os processos
em curso e os temas candentes da nossa formação social conhecem, na
Universidade, expressão e um novo lugar de enunciação. Com isso, a trajetória
de institucionalização universitária no Brasil não representou, como em outros
contextos nacionais (Bender, 1993; Jacoby, 1990), um retraimento da vocação
pública dos intelectuais, uma dissociação entre a ciência e a Cidade, ainda que
tal fato não significasse a existência de canais efetivos e eficientes de
comunicação entre esses termos, inclusive pela vigência, desde 1937, de um
regime político repressivo e autoritário. A Universidade brasileira,
retardatária no continente americano, será, pois, o ambiente em que a
inteligência atualizará sua forma de inscrição social e de intervenção na vida
pública.
De modo que, deixando de lado os juristas, expressão mais antiga e
paradigmática dos intelectuais brasileiros, cujo protagonismo na cena
estadonovista não conheceu reciclagem universitária, devendo-se, antes, à sua
participação na montagem do sistema de solidarização entre trabalhadores e
Estado, isto é, à sua centralidade na construção da ordem corporativa (Werneck
Vianna, 1976), do ponto de vista da nova experiência intelectual que a
Universidade propiciou, são os sociólogos os personagens que melhor
exemplificam as inovações concernentes à relação entre ciência e vida pública,
na medida em que sua legitimidade como representantes em geral da sociedade
deveu-se à sua inscrição no ambiente universitário. O processo de
institucionalização das ciências sociais no Brasil ilustra, pois, o caso
singular de uma inteligência que interpela a arena pública sem comunicação
direta com ela, com base apenas na sua posição no campo científico. Tome-se o
caso da Universidade de São Paulo.
Criada em 1934, sob os auspícios da elite paulista e com o objetivo de formar
quadros políticos regionais após o confronto militar de São Paulo com o governo
central (1932), a USP, no que tangeu à organização dos cientistas sociais,
contradiria o caráter instrumental daquele projeto. Pesou o desejo de
profissionalização da primeira geração de sociólogos (Miceli, 1989), que os
levaria a investir em uma formatação estritamente acadêmica do seu ofício.
Cedo, porém, a própria lógica disciplinar explodiria aqueles limites, pois
confinar-se em uma comunidade científica, vivendo exclusivamente a dinâmica
departamental, significava obter autonomia em relação às elites ao alto custo
de um afastamento radical da sociedade. Seres funcionalmente modernos em meio a
uma ordem patrimonialista e oligárquica, defendendo sua independência em face
da política, mas reconhecendo seu papel como atores da modernização em curso,
os sociólogos uspianos abraçaram, então, simultaneamente, uma identidade
acadêmica e um ethos intelectual compatível com a noção de intelectuais
públicos (Werneck Vianna, Carvalho e Palácios, 1994). Sua atividade seria,
pois, conduzida de modo a, sem abdicar de sua identidade universitária '
deixando, portanto, de se instituir como atores diretos da transformação social
no Estado ou nos partidos políticos ', influir no circuito da opinião pública e
da sociedade civil, apontando as circunstâncias da transição brasileira rumo à
ordem urbano-industrial com vistas a acelerá-la e a preparar os setores
subalternos para nela se inserirem como classe, isto é, como sujeitos
conscientes de seus direitos de cidadania.
Em resumo, sob a liderança de Florestan Fernandes, o que se conhecerá como "a
sociologia da USP" representou (1) um padrão de profissionalização baseado na
idéia de autonomia da comunidade científica e (2) a constituição de uma agenda
político-intelectual dedicada ao tema da superação da ordem patrimonial
brasileira, com a conversão do indivíduo dependente em cidadão. Para aqueles
sociólogos, a oposição atraso-moderno deveria ser resolvida no plano
societário, dependendo menos, portanto, da modernização econômica induzida pelo
Estado do que da reforma social ' o que, aliás, se traduziria em pesquisas
sobre a democratização do sistema educacional, levadas a cabo em fins dos anos
de 1950, por ocasião do debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
quando o tema da modernização vinculou-se diretamente à idéia de
"aperfeiçoamento intelectual e moral" do homem comum brasileiro (Fernandes,
1966, p. 134).
Assim, como ciência voltada à reforma social, o modelo de institucionalização
da sociologia em São Paulo reeditou a tradição disciplinar norte-americana,
embora sem o traço característico da sociologia do Norte, a saber, a forte
comunicação entre a comunidade científica e os interesses da sociedade (Bulmer,
1984). A ditadura Vargas impediu, por muito tempo, que estímulos externos à
universidade, na forma de demandas sociais por pesquisas, favorecessem aquela
vocação, fazendo dos sociólogos paulistas um caso singular de intelectuais
públicos, já que referidos ao campo científico. No início da década de 1960,
quando parecia que, finalmente, os sociólogos paulistas se inscreveriam no
centro dos interesses do empresariado de São Paulo, respondendo a uma demanda
específica do setor, sobre as características da livre empresa na ordem
brasileira, o golpe de 1964 cancelaria, mais uma vez, a possibilidade de
vínculo concreto entre ciência e sociedade, encapsulando os pesquisadores
paulistas nos círculos de especialistas e da Universidade.
O modelo, porém, de organização da atividade intelectual em São Paulo não foi
imediatamente universalizado. Outros estados da federação, expostos a processos
distintos de modernização, viviam um contexto universitário ainda dominado
pelas profissões liberais e, quando se abriram às ciências sociais, reafirmaram
a agenda intelectual de suas elites tradicionais. E no Rio de Janeiro, ambiente
em que a sociologia, tal como em São Paulo, será a linguagem dominante nos
debates sobre a modernização, seus praticantes conhecerão inscrição distante da
institucionalização universitária.
Como se sabe, na qualidade de capital do Estado Novo, o Rio de Janeiro sediará
extraordinária expansão do setor público e, em conseqüência, a gênese de uma
categoria social específica ' o funcionalismo público de carreira. Na prática,
tal processo consistiu na formação de um mercado de trabalho político, para o
qual se dirigiram muitos intelectuais, inclusive escritores ' o "caso" de
Drumond é o mais citado ', cujas atividades literárias, combinadas a posições
na hierarquia burocrática, tiveram o duplo efeito de reforçar o regime e
alavancar sua produção no âmbito de um setor editorial em expansão (Miceli,
2001). Sob esse padrão de trocas entre dirigentes políticos e intelectuais
alimentaram-se, portanto, formas recíprocas de legitimação, que sustentaram o
modo de dominação vigente, mas alongaram, significativamente, o tempo de
constituição de um mercado autônomo de bens simbólicos, em condições de
propiciar mecanismos de concorrência e de obtenção de gratificações próprias ao
campo intelectual. De modo que, no Rio de Janeiro, a universidade conviverá,
por um bom tempo, com outras vias de acesso à vida pública, sendo, em larga
medida, pouco mais que uma agência de obtenção de credenciais para o
escalonamento salarial dos ocupantes de postos superiores do serviço público.
Ademais, a experiência universitária na capital da República não se
caracterizava pela afirmação da ciência e pela constituição de uma comunidade
científica. Sua história teve início nos anos de 1920, quando foram reunidas as
escolas superiores existentes na cidade, sob a denominação de Universidade do
Rio de Janeiro. Em 1931, Francisco Campos, à frente do Ministério da Educação,
consagra aquele formato e, em 1935, sob a gestão ministerial de Capanema, é
instituída uma comissão encarregada da ampliação daquele conglomerado de
cursos, ensejando o aparecimento, dois anos depois, da Universidade do Brasil,
composta por quinze escolas ou faculdades e dezesseis institutos, alguns deles
já existentes, além do Museu Nacional.
Como instituição reorganizada em 1937, a Universidade do Brasil será colocada
sob jurisdição direta do governo federal (Schwartzman, Bomeni e Costa, 1984).
Com tal perfil, não só o trabalho científico buscará realizar-se fora dela ' a
criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) data de 1949 ', como
também, no caso das ciências sociais, virá a apresentar uma institucionalização
bastante retardatária, do que é sintoma a criação do seu primeiro programa de
pós-graduação somente em 1968, no Museu Nacional, agência que remontava ao
Império e, portanto, gozava de maior autonomia em relação às injunções
contextuais da política universitária.
De modo que nada mais distante da experiência de um sociólogo do Rio de Janeiro
do que a comunidade científica erigida em São Paulo, já que, fora da USP,
aquele tipo de intelectual não conhecia uma carreira universitária, o estímulo
à pesquisa acadêmica, vivendo sob jurisdição política das autoridades
educacionais do governo federal, em um ambiente urbano, ademais, que, como sede
do governo, fazia da burocracia política o centro de gravidade da vida
intelectual. Portanto, naquele ambiente organizacional das décadas de 1930 e
1940, a inteligência estacionada no Rio de Janeiro e alojada na máquina
administrativa do Estado Novo projetou seu anelo modernizador na ação estatal,
cujos desdobramentos na década seguinte, já então arejados pelas instituições
democráticas da Carta de 1946, conheceriam uma aproximação com o movimento
popular e sindical em ascensão, animando o primeiro impulso ideologicamente
consistente do nacional-desenvolvimentismo.
O populismo ' termo com que a bibliografia nomeou a relação entre o mundo
popular e as elites estatais ' irá recriar a percepção do Estado como agência
de modernização virtualmente democrática, por meio daquilo que à época foi
chamado de "capitalismo de Estado", isto é, um capitalismo controlado
politicamente, avesso ao particularismo da burguesia "entreguista" e aberto aos
interesses majoritários da nação. Sem a mediação da academia, pensadores
sociais no Rio de Janeiro conhecerão, então, lugares de intervenção política e
de animação da esfera pública em instituições extra-universitárias, para-
universitárias, das quais o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb)
foi a melhor e mais consistente experiência, ou, ainda, em movimentos
influenciados pelo Iseb, como o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos
Estudantes (CPC-UNE) ou o movimento de alfabetização popular idealizado por
Paulo Freire (Paiva, 1986). Concebidos sob a cultura do nacional-
desenvolvimentismo, nada estranho que esses movimentos tivessem seu início ou
seu desfecho em alguma agência do Estado, como ocorreu com a alfabetização
popular e o CPC, cujos principais dirigentes ocupavam posições destacadas no
Ministério da Educação quando do golpe militar de 1964.
O fato é que, malgrado as diferenças regionais assumidas pelo processo de
institucionalização da universidade brasileira, nela não se verificou o
cancelamento da dimensão pública da atividade dos intelectuais. Seja no Rio de
Janeiro, onde a universidade foi uma via subsidiária de engajamento dos
intelectuais no projeto de modernização conduzido pelo Estado, seja nas
unidades da federação, em que as elites regionais puderam adiar a afirmação da
universidade como agência de produção de pensamento independente, seja em São
Paulo, ponta da modernização capitalista brasileira, em que o campo científico
se desprendeu mais celeremente do campo político, o fato é que,
progressivamente, a inscrição na universidade concederá aos intelectuais uma
nova arena de participação na vida nacional.
Assim, no início dos anos de 1960, o debate político sobre a crise da formação
social brasileira conhecerá uma tradução universitária (Lahuerta, 2005): contra
o reformismo estatal que ganhava musculatura, atraindo, inclusive, setores do
movimento operário e sindical, bem como quadros representativos dos partidos
políticos de esquerda, a crítica universitária assinalará a insanável oposição
entre Estado e sociedade no Brasil, considerando o reformismo em curso uma
forma de ocultar a sujeição dos setores subalternos às elites políticas da
ordem burguesa. A crítica teórica de Francisco Weffort e Otávio Ianni ao
populismo é a expressão mais acabada, e consagrada academicamente, desse
diagnóstico.
6
O golpe militar de 1964 inaugurou mais um ciclo de regime autoritário no país e
atualizou as instituições corporativas de 1937, no sentido de que procurou
reforçar a subordinação do sindicalismo à "razão de Estado". Com a diferença
crucial de que o tipo de modernização que vingara sob o Estado Novo era
sistêmica, evitava isolar os objetivos econômicos em relação às esferas da
política, da cultura e da organização social, enquanto, sob o regime militar, o
recurso à ordem burocrático-corporativa de 37 será instrumental: abandonará o
que nela havia de durkheimiano, de esforço aplicado em solidarizar grupos e
classes sociais, e buscará, tão-somente, o crescimento econômico. O resultado
será uma brutal assimetria entre a dimensão do mercado e as demais esferas da
sociedade.
Assim, se é possível dizer que o Estado Novo recuperou a política imperial de
fazer da cultura um assunto de interesse público e, afinado com a sociologia da
época, conferiu a ela papel destacado na construção do consenso em torno dos
objetivos da modernização, a orientação que predominou durante o regime militar
conceberá um consenso forjado exclusivamente pelo mercado, a partir do
lançamento do capitalismo brasileiro em uma nova escala de acumulação.
Isso explica a desimportância que os militares conferiram às agências de
cultura e a presteza com que organizaram, ainda em 1964, o Escritório de
Pesquisa Econômica Aplicada (Epea), tornado Instituto vinculado ao Ministério
do Planejamento, em 1967, com funções de assessoramento do governo para a
elaboração do Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico (1967-1976), que não
sairia do papel, e o mais realista Projeto Estratégico de Desenvolvimento
(1967-1970), em meio ao período mais cruento da ditadura (D'Araújo, Farias e
Hippolito, 2005). Portanto, com a exceção do segmento dos economistas, os
militares não estabelecerão vínculos sistemáticos com os intelectuais públicos,
concedendo-lhes lugar vulnerável aos rigores da repressão, especialmente no
caso dos artistas, sempre que ameaçassem ativar nexos efetivos com o mundo
popular. Intelectuais orgânicos do novo ciclo de modernização do país, os
economistas serão atores proeminentes da montagem de uma nova ordem econômico-
social, cujos desdobramentos têm-lhes garantido a reprodução de seu
protagonismo na cena pública brasileira.
O planejamento, a economia, em detrimento do que havia sido a tônica da
ditadura Vargas, a saber, o trabalho, a sociedade ' foi essa nova lógica de
modernização que favoreceu a generalização de uma ética social perversa, em que
o indivíduo passa a ver com estranheza o que não é o seu interesse imediato.
Abriu-se, desde ali, uma profunda lesão no tecido social, caracterizada, entre
outras coisas, pela atitude de indiferença da população em relação à política e
pelo fosso enorme que separou o homem comum da vida institucional,
especialmente no caso dos personagens da grande migração rural-urbana, que
chegavam às cidades sem contato anterior com algum liame da malha de proteção
social legada pelo período Vargas aos trabalhadores urbanos.
Em meados dos anos de 1980, o processo de distensão política explicitou os
efeitos da modernização autoritária conduzida pelo regime militar, sobretudo no
que se refere à degradação da dimensão do público, não somente na esfera
estatal, como também na própria sociedade civil. Avançava-se no caminho da
liberalização política sem cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem
partidos de massa e, mais grave, sem normas e instituições confiáveis para a
garantia do sistema democrático (Santos, 1993). Naquele contexto, a organização
da inteligência brasileira atravessou mudanças significativas, ensejadas por
muitas variáveis.
Destacam-se três: (1) a massificação do acesso de jovens à Universidade,
favorecida pela reforma universitária dos anos de 1970 que, se, por um lado,
representou uma vitória das lutas estudantis de décadas anteriores, foi também
uma estratégia política de atenuação do conflito entre os setores médios ' não
necessariamente politizados, mas interessados em ascender socialmente pela via
da educação ' e o regime militar; (2) a consolidação do sistema universitário,
com a rápida expansão e institucionalização de um sistema nacional de ensino
pós-graduado e pesquisa, bastante abrangente em relação a áreas de
conhecimento, alocação regional dos programas e incorporação social de
postulantes, resultado de políticas levadas a cabo por setores da inteligência
militar sob a ditadura, que, orientadas, originalmente, para áreas muito
específicas do conhecimento, como as ciências exatas e as naturais, viriam a se
estender a todas as demais (Abranches, 1987); e por fim (3) a emergência de uma
cultura de "sociedade civil", amplamente escorada em setores do liberalismo
histórico de São Paulo e no novo sindicalismo do ABC, cuja crítica ao Estado
autoritário deslizou facilmente para uma rejeição à tradição estatista da nossa
formação histórica, ensejando, entre outras coisas, a criação do Partido dos
Trabalhadores, agremiação que se definiu, desde a origem, como empenhada na
formação de uma vontade popular autônoma e na constituição de um novo sistema
de valores para a sociedade brasileira.
Juntos, os dois primeiros itens indicam importantes transformações operadas no
âmbito da relação estabelecida entre a Universidade e a sociedade. Pois, se é
fato que o regime militar concebeu e implementou uma política científica
avançada, que favoreceu a institucionalização da ciência e a emergência de um
mercado de trabalho e de bens científicos, a nova sociedade brasileira não mais
concederá ao conhecimento acadêmico a feição de uma "pedagogia do moderno"
(Pécaut, 1990), explicativa das condições gerais de sua forma e representativa
de seus interesses, priorizando, para tanto, as organizações classicamente
devotadas a esse objetivo ' partidos, sindicatos e associações. Liberta, pois,
do "mandato público" que lhe conferiram seus fundadores, as ciências, muito
especialmente as sociais, democratizam-se, cumprindo trajetória compatível com
o tipo de recrutamento presente no ambiente universitário. De modo que na nova
relação entre Universidade e sociedade, a inscrição pública dos intelectuais
não desaparecerá, mas tenderá a se constituir, cada vez mais, a partir de suas
agendas especializadas de pesquisa, de suas identificações com áreas temáticas
afinadas a interesses de grupos sociais a que muitas vezes pertencem,
agregando-se a isso o estabelecimento de nexos com as instâncias de
publicização dos artefatos materiais e simbólicos produzidos na academia, tais
como a mídia, agências do Estado ou partidos políticos.
Quanto ao item relativo às alterações no âmbito da cultura política brasileira
e à emergência de um partido homólogo à nova sociedade, pode-se entendê-lo como
mais um dos efeitos da democratização social sob o regime autoritário, na
medida em que a constituição de novos atores organizados, notadamente o
sindicalismo do ABC, nascido sobre distinta plataforma produtiva e em
descontinuidade com o sindicalismo precedente, não conheceu nexos objetivos com
a cultura política que conduzira a marcha da modernização brasileira até então
e, nesse sentido, não disputará sua direção, preferindo removê-la, substituí-
la. O novo sindicalismo, fruto das profundas transformações econômico-
estruturais que o país conheceu sob o regime militar, tinha como horizonte o
mercado, a indústria de capital privado, o mundo dos interesses. E, para ele, o
Estado e a esfera pública, considerados, desde a Revolução de 1930, como
estratégicos à modernização e à democratização brasileiras, representavam
efetivos obstáculos ao livre desenvolvimento da sociedade e lugares
institucionais de reprodução dos padrões hierárquicos e socialmente iníquos que
predominaram em nossa história (Werneck Vianna, 2000).
Portanto, o vasto movimento de opinião, que, enraizado em personagens da
esquerda acadêmica da USP e no liberalismo histórico das elites políticas e
intelectuais de São Paulo, viria a se fortalecer na década de 1980 em torno de
uma interpretação negativa da história do país e de um novo sentido atribuído à
idéia de democratizá-lo, entendeu que a principal tarefa de seu partido, o
Partido dos Trabalhadores, deveria consistir na formação de uma vontade popular
autônoma, na construção de um novo sistema de valores, na formação, enfim, de
uma nova cultura da sociedade civil contra a velha cultura estatista
brasileira. De modo que, por inopinados caminhos, São Paulo, que cedo abrigara
um movimento de institucionalização da vida universitária e de superação da
intelligentsia como ator privilegiado da mudança social, retornará sobre seus
próprios passos, reencontrando-se com a velha polaridade atraso/moderno, da
qual esperava sair pela recusa ao reformismo e pela preparação dos setores
subalternos para o exercício de uma ação histórica distinta.
Assim, a última grande controvérsia da inteligência brasileira ' reforma ou
revolução ' conhecerá dicção universitária e aclimatação no setor moderno do
operariado paulista, em um momento em que, no âmbito das ciências sociais
institucionalizadas, era já consensual, a despeito do elenco pluralista de
categorias mobilizadas pelos autores, o diagnóstico de que a ordem burguesa já
se estruturara no país, fruto de uma coalizão entre elites modernas e
tradicionais, cabendo agora democratizá-la. Outros temas e outros problemas
animavam, pois, a agenda pública dos cientistas sociais na década de 1980,
particularmente o tema da cidadania, anunciado pelo Cidadania e justiça, de
Wanderley Guilherme dos Santos, publicado em 1979.
7
As décadas de 1980 e 1990 foram as de um paradoxal desenvolvimento das ciências
sociais no Brasil. O paradoxo ' o de uma ciência, como a Sociologia, que requer
como condição para a sua institucionalização a democracia e que se expande em
meio a duas ditaduras ' indica o sucesso dos seus intelectuais na extração de
recursos junto a agências governamentais que não lhes tinham apreço e na
atração de clientela para cursos desprestigiados e desprovidos de mercado
profissional promissor (Werneck Vianna, Carvalho e Palácios, 1995). Uma forma
de entender esse paradoxo é constatar que o ponto de inflexão na
institucionalização das ciências sociais coincide com o momento de formação de
um sistema nacional de ensino e pesquisa, gerando, pois, a necessidade de
ampliação de quadros qualificados na Universidade e, em conseqüência, a criação
de programas de pós-graduação na área. Foi, portanto, o mercado universitário,
e não demandas estatais por pesquisas ou o movimento de atores sociais ao
encontro de uma ciência aberta à incorporação de seus temas, que terá levado as
ciências sociais brasileiras ao sucesso.
Tal padrão endógeno de crescimento corrobora a idéia de que a universidade foi
o lócus incontrastável de organização dos intelectuais ao longo da segunda
metade do século XX, principalmente em suas três últimas décadas, com alcance
ainda mais ampliado se consideradas suas redes de atividades periféricas ao
sistema de ensino e pesquisa, tais como a burocracia científica, os serviços
técnicos laboratoriais, as editorias de revistas científicas, as agências
públicas e privadas de divulgação da ciência, o marketing institucional, os
museus dedicados à área, os profissionais aplicados ao planejamento e à gestão
universitária etc. Ao lado disso, porém, são freqüentes as projeções de um
próximo esgotamento desse mercado, antevisto na atual escassez de postos
universitários, vis-à-vis o número anual de pós-graduandos formados. A década
de 1990, por isso, situa a universidade em uma encruzilhada no que se refere à
sua destinação como agência de inscrição dos intelectuais na vida pública
brasileira.
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Os dez últimos anos do século XX e os primeiros desse século têm sido marcados
pela construção da democracia no Brasil, em um contexto de transformações
mundiais que puseram em suspeição a solidez de qualquer dos fundamentos
clássicos da vida social.
É certo que a centralidade do mercado tem redesenhado a cena internacional
desde a década de 1980. Mas, àquela época, os problemas institucionais no
Brasil eram tão prementes, a sociedade inteiramente mobilizada pelo esforço
constituinte, que a agenda da globalização ficou afeta aos seus operadores mais
diretos e, hoje, não parece deter a mesma energia onipotente, o mesmo impulso
de cristalização irreversível de seus efeitos sobre o mundo. Afinal, o Estado e
a dimensão da política não sucumbiram como previam os ideólogos do
neoliberalismo e, com exceção das regiões onde nunca tiveram proeminência, como
na África ou nos Bálcãs, parecem hoje se recompor com alguma eficácia.
Por outro lado, o Estado que se afirma nesse começo de milênio não será mais o
Estado "de proprietários" (Elias, 1997) que esteve na base da construção
ideológica das nações nos séculos XIX e XX, subsumindo e ocultando lógicas
culturais relevantes à reprodução da vida em sociedade (Balakrishnam, 2000), e
nem mesmo a grande máquina pedagógica da norma que foi o Welfare State, com seu
programa administrativo das desigualdades e diferenças sociais. Será, talvez,
uma reinvenção do público como lugar em que se entrecruzam práticas e projetos,
ação e reflexão, sem um referente essencializado a que possamos retornar e
reencontrar o ideal moderno. Portanto, nem o mercado nem o Estado que
conhecemos estariam em condições de responder aos desafios que as sociedades
contemporâneas criaram para si.
Foi esse o contexto que viu o florescimento das organizações não-governamentais
em todo o mundo, as quais, a despeito das caracterizações dominantes, que
tendem a tomá-las, tão-somente, como agências do mercado, parecem, antes,
consistir em formações intelectuais mais aptas a lidarem com a atual mobilidade
das fronteiras institucionais (a política, a jurídica, a econômica, a religiosa
etc.), movê-las, quando se encontram enrijecidas ou reificadas, e procederem a
uma espécie de ocupação de espaços de atuação que se viam recortados e
habitados por atores específicos e inalcançáveis por outros públicos que não os
de suas respectivas circunscrições. Assim, para os propósitos dessa reflexão,
seria estéril tentar classificar as ONGs como entes do mercado ou da sociedade
civil gramsciana (Cohen e Arato,1992). São, a rigor, atores de uma espécie de
"guerrilha" no território das grandes estruturas institucionais (Velho, 2000),
que, de outra forma, não conheceriam a diversidade de atribuições exigida pelos
novos tempos. Afinal, funções estatais, econômicas ou espirituais estão sendo
desempenhadas com o concurso de atores diversos e de forma interinstitucional.
No Brasil, o crescimento do número de ONGs coincidiu com o movimento de
redemocratização do país, conhecendo camadas de especialização temática ' a
questão da capacitação de lideranças, nos anos de 1980, questões relativas aos
temas sociais, na década de 1990, e, mais recentemente, os temas ambientais
(Fernandes e Piquet, 1991). Sua presença como intelectual público, contudo, foi
pouco entendida ou pouco salientada, em parte como reação de aguerridos
defensores das concepções políticas institucionalistas, que, na academia ou
fora dela, "fecharam" a questão democrática a outras possíveis abordagens '
tratava-se de defender as práticas do sistema representativo e isso demarcou o
campo máximo de visibilidade dos problemas inerentes à democracia. Mas, de
outra parte, talvez se possa dizer que o desprestígio público das ONGs decorreu
também da afinidade eletiva que elas mantêm com temas que desbordam os marcos
da reflexão sobre os grandes maciços institucionais que, como se viu, foram os
marcadores da nossa trajetória modernizadora, principalmente o Estado nacional.
As ONGs, por isso, eram, no mínimo, uma incômoda projeção do desajuste entre as
práticas sociais e a tradição de pensamento que nos permitia "entender" o mundo
e o Brasil, há dois séculos.
Assim, enquanto a universidade brasileira conhecia extraordinário crescimento
com base (1) na preservação de uma agenda identificada com as vicissitudes da
modernização no país e (2) na retroalimentação de identidades intelectuais
adidas àquele espaço, as ONGs desenvolveram-se a partir de uma pauta
extralocal, que tem tensionado hábitos e identidades intelectuais
estabelecidos, forçando, não sem resistência, a redefinição do conhecimento
acadêmico em direção a problemas fragmentários, setoriais, que, não obstante
sua aparente particularidade, são comuns a grupos sociais em diferentes regiões
do mundo. O exemplo de ONGs envolvidas com jovens da periferia das grandes
cidades brasileiras pode ser ilustrativo desse fenômeno. Pois, o fato de terem
contribuído decisivamente para que se extraísse o tema da "rebelião juvenil" da
chave das teorias da ordem e forçado sua inscrição no debate internacional
sobre reconhecimento social ilustra o quanto o cosmopolitismo de tais agências
pode beneficiar a pesquisa acadêmica e produzir uma dinâmica reflexiva
socialmente mais abrangente e politicamente mais democrática.
Portanto, se o surgimento das ONGs expressa uma transformação profunda na ordem
do mundo, a sua projeção no Brasil deriva, em larga medida, da capacidade que
tem demonstrado de realizar o que a universidade sozinha talvez não viesse
cumprindo a contento, a saber, a interação efetiva com atores e problemas
sociais contemporâneos. Tem sido elas que vêm conferindo maior mobilidade à
agenda pública brasileira, desentranhando "problemas sociológicos" de práticas
sociais antes invisíveis à academia e mesmo aos atores políticos classicamente
recortados. Em outras palavras, diferentemente do que possa ocorrer em outras
formações intelectuais, em que a institucionalização universitária para além de
anteceder, em alguns séculos, o surgimento das ONGs representou um retraimento
da participação pública da inteligência acadêmica, aqui, a quase simultaneidade
entre o contexto de consolidação da academia e o surgimento das ONGs tem
aproximado as duas agências, qualificado as suas respectivas participações no
processo de democratização do país e as fertilizado.
É certo que o senso comum educado quando trata das ONGs brasileiras costuma
apontar como causa eficiente da comunicação que mantêm com a universidade a
"filiação" de suas lideranças à vida acadêmica e ao seu repertório, como ex-
membros, que foram, de uma instituição que não pôde incorporá-los ao seu quadro
funcional. Desse ponto de vista, o predomínio da universidade como agência de
organização dos intelectuais e da cultura ver-se-ia, ainda hoje, garantido,
cabendo às ONGs o papel de uma instância subsidiária de alocação institucional
da inteligência. Contudo, o fato de muitos núcleos acadêmicos de pesquisa
promoverem convênios com ONGs para a realização de investigações e atividades
conjuntas aponta para uma reciclagem das práticas universitárias, com impacto
ainda imprevisível na definição da identidade dos intelectuais contemporâneos.
Isso não significa, por certo, o cancelamento da centralidade da universidade
na conformação do intelectual público brasileiro, mas, sim, a auto-reforma
daquele ambiente institucional em moldes mais compatíveis com a democracia do
século XXI. Quando departamentos universitários, ONGs e associações
profissionais, como as que reúnem atores do sistema judiciário (associações de
promotores, de defensores públicos e de magistrados ' segmentos, como se viu,
compromissados com a tradição pública brasileira), se unem para o entendimento
de problemas sociais e a construção de soluções para grupos afetados por eles '
como no exemplo recente da regularização fundiária das favelas cariocas ' está-
se diante de uma nova formação intelectual, de uma "inteligência coletiva"
(Lévy, 1994), que combina, em si mesma, tradição e inovação, em complexa
interatividade. Sozinhas, as partes desse novo órgão intelectual seriam,
talvez, insuficientes para a finalidade a que se destinam, encontrando, juntas,
uma organização contingente que lhes faculta o caminho da representação
funcional de interesses que, de outra forma, não seriam avistados quer pelo
Estado, quer pelo mercado. Assim, estimada a preservação do intelectual público
como aspecto inarredável da moderna trajetória brasileira, ele subsistirá, ao
que parece, atentando para as novas circunstâncias abertas diante de si.