Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasileira
Introdução
O objetivo deste artigo é descrever e analisar as orientações dos cidadãos
brasileiros a respeito da democracia e suas instituições, tendo por base sua
experiência prática com esse regime nos últimos vinte anos. Comparando o Brasil
com outros países latino-americanos, o trabalho examina como os cidadãos
brasileiros participaram do longo processo de transformação do regime
autoritário em democrático, resultado de uma mudança gradual, e não brusca ou
definitiva. Qual seria o grau de adesão dos brasileiros ao regime democrático
(a) como um ideal e (b) como um sistema prático? Em que medida a sobrevivência
de atitudes autoritárias compromete a aceitação do regime, e como a experiência
dos cidadãos com as instituições democráticas influi sobre suas atitudes
políticas? A demanda pública por democracia seria compatível com a oferta
institucional do regime brasileiro? Essas são as indagações que nortearam este
estudo.
A análise testa a influência de dois tipos de variáveis explicativas da adesão
à democracia: de um lado, as relativas à abordagem da cultura política e, de
outro, as de avaliação do desempenho de instituições democráticas. No primeiro
caso, o teste envolveu a construção de uma tipologia de atitudes que, além de
distinguir as orientações democráticas das autoritárias, contrasta-as com a
posição de ambivalência política dos indivíduos em face dos regimes democrático
e autoritário; no segundo caso, o teste foi realizado com variáveis usualmente
utilizadas para medir tanto a satisfação com a democracia vigente, como a
confiança dos cidadãos em suas instituições. Diferente, no entanto, da
tendência usual da literatura de contrapor as duas abordagens, a premissa
adotada é que não só a tradição da cultura política mas também aquela que
valoriza o desenho e o desempenho das instituições públicas influem na relação
dos cidadãos com o regime democrático (Rose, 2001; Lijphart, 1999). Assim,
considera-se que a mescla entre orientações valorativas e orientações
pragmáticas - derivadas do julgamento do desempenho das instituições - cria o
ambiente em que se definem as atitudes e as percepções intersubjetivas dos
indivíduos quanto ao regime político. Ainda sobre isso, outro pressuposto do
estudo é que a qualidade da democracia, definida nos termos de Diamond e
Morlino (2004), influencia a experiência, a avaliação e a percepção dos
cidadãos sobre as instituições democráticas e, nesse sentido, pode reforçar
tendências da cultura política brasileira de desvalorizar, por exemplo, as
instituições de representação política como partidos e parlamentos.1
As variáveis utilizadas na análise derivam de medidas em nível individual
feitas por pesquisas de opinião da Corporação Latinobarômetro, entre 2002 e
2004, em 18 países latino-americanos, totalizando mais de 48 mil entrevistas.
Embora as pesquisas do Latinobarômetro tenham sido objeto de crítica, em
especial, quanto à representatividade de suas amostras para alguns países, a
utilização de dados para os anos mencionados justifica-se por se tratar, neste
caso, de pesquisas que, diferentemente de anos anteriores, atenderam - segundo
seus responsáveis2 - às exigências de representatividade para o conjunto da
população dos países incluídos. Além disso, em relação aos objetivos deste
estudo, algumas dimensões adotadas pelas pesquisas do Latinobarômetro
mostraram-se adequadas por utilizar variáveis relativas a valores e a
instituições utilizadas em outras pesquisas internacionais, assegurando a
possibilidade de comparação.
Os resultados confirmam a hipótese central do trabalho, segundo a qual a
variação dos índices de adesão à democracia e de confiança política no Brasil
depende tanto da cultura política como do funcionamento das instituições
democráticas; mas o aspecto mais importante das descobertas preliminares indica
que a presença daqueles fatores estimula a preferência de significativas
parcelas de cidadãos brasileiros por modelos de democracia que descartam uma
das características mais importantes desse regime - em realidade, um dos
principais elementos que distinguem a democracia de suas alternativas - isto é,
as instituições de representação, por meio das quais, além do direito de
escolher governantes, os eleitores podem fiscalizar e exercer controle sobre a
atuação deles.
O texto discute inicialmente os conceitos de democratização e de qualidade da
democracia. Em seguida, são tratadas as diferenças entre as abordagens
culturalista e institucionalista e, em ambos os casos, hipóteses empiricamente
verificáveis são derivadas da teoria. A seção seguinte trata das
características singulares do caso brasileiro, referindo-se às suas implicações
para a qualidade da democracia e situando-o no contexto das experiências
internacionais de democratização. Por fim, são apresentados os dados analisados
e as conclusões provisórias que eles sugerem. Entre as implicações mais
importantes deste estudo estão as que se referem aos efeitos das atitudes de
ambivalência quanto ao regime político e às avaliações negativas das
instituições derivadas da experiência política dos entrevistados. Ambos os
fatores afetam a escolha dos entrevistados quanto a modelos de democracia em
sentido negativo; as implicações teóricas e práticas deste fato são discutidas.
Democratização, democracias e qualidade da democracia
Tal como ocorreu no Brasil, nas últimas três décadas a maioria dos Estados
existentes no mundo tornou-se democrática. Quando argumentou, dezessete anos
atrás, que uma terceira onda de democratização tinha varrido o mundo entre 1974
e 1990, Samuel Huntington referiu-se a não mais que trinta países que tinham
feito a transição do autoritarismo para a democracia, o que fez dobrar o número
de governos democráticos no mundo (Huntington, 1991). Mas isso foi antes de se
completarem as transformações provocadas pela queda do muro de Berlim, em 1989,
na Europa do Leste, e de desenvolvimentos similares na Ásia e na África, em
anos seguintes, cujos efeitos resultaram na multiplicação do número de regimes
democráticos no mundo. A evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a
interpretação segundo a qual a história tinha chegado ao seu fim estava errada,
mas a democracia prevaleceu sobre suas alternativas em quase todas as partes do
mundo (Shin, 2005).
Apesar disso, numa perspectiva comparativa, o resultado do processo de
democratização das últimas décadas mostrou que os novos regimes são bastante
diferentes entre si e que não existe uma única via para a institucionalização
da democracia. Por certo, a análise da democratização tem de levar isso em
consideração. Embora a literatura especializada reconheça que se trata de um
fenômeno complexo, relativo à transformação de regimes políticos de natureza
totalitária ou autoritária em outro definido por características das tradições
republicana, liberal e democrática, o exame de diferentes experiências mostrou
que a democratização diz respeito também ao processo de transformação de uma
democracia limitada, incompleta ou híbrida em um regime democrático pleno - por
mais difícil que seja defini-lo (Shin, 2005; Diamond, 2002; O'Donnell, 1994;
Weffort, 1992; Reis, 1988; Sen, 1999; Vianna, 2002).
A evolução das últimas décadas apontou nessa direção. Com efeito, pouco mais de
trinta anos depois do início da terceira onda de democratização, a democracia
tornou-se o regime político preferido dos cidadãos na maior parte das regiões
do globo (Gallup International, 2005), aí incluído o Brasil, mas isso não
impediu que a natureza desse avanço fosse questionada. Assim, de um total de
192 nações pesquisadas em 2005, 119, ou seja, 62% foram classificadas como
democracias eleitorais pela Freedom House (2005), uma vez que suas mais
recentes eleições para a escolha de governos atenderam aos padrões
internacionais, segundo os quais elas devem ser justas, competitivas, regulares
e abertas à participação de todos os segmentos da comunidade política,
independentemente de sua ideologia e de suas raízes culturais, étnicas ou
socioeconômicas. No entanto, em vários casos, limitações importantes foram
diagnosticadas, exigindo a qualificação das transformações iniciadas anos
antes. Embora eleições sejam indispensáveis para a existência da democracia,
como advogam as definições convencionais, tornou-se evidente que elas não
garantem per se a instauração de um regime democrático capaz de assegurar
princípios como o primado da lei, o respeito aos direitos dos cidadãos e o
controle e a fiscalização dos governos. Apesar de demonstrar que o antigo
regime terminou e que, doravante, a escolha de governos está submetida ao
princípio da soberania popular, a vigência de eleições não impediu, em alguns
casos, que, mesmo evoluindo no sentido da ampliação dos direitos civis e
políticos, democracias eleitorais não atendessem necessariamente a todos os
critérios segundo os quais um sistema político autoritário se transforma em
democrático. No Leste Europeu, na Ásia e na América Latina, países que
consolidaram processos eleitorais competitivos convivem com a existência de
governos que violam os princípios de igualdade perante a lei, usam a corrupção
e a malversação de fundos públicos para realizar seus objetivos e impedem ou
dificultam o funcionamento dos mecanismos de accountability vertical, social e
horizontal. Nesses casos, o que está em questão não é se a democracia existe,
mas a sua qualidade (Shin, 2005; Morlino, 2002; Diamond, 2002; Diamond e
Morlino, 2004; O'Donnell, Cullell e Iazetta, 2004; Schmitter, 2005; Lipjhart,
1999).
Não surpreende, portanto, que o debate retome a definição da democracia. Apesar
das controvérsias herdadas do século XIX, a literatura que analisou
experiências recentes de democratização caracteriza-a como um fenômeno de
natureza multidimensional. Isto resultou de diferentes desenvolvimentos do
argumento. Por uma parte, acompanhando a abordagem minimalista de Schumpeter
(1950) e procedimentalista de Dahl (1971), vários autores definiram a
democracia em termos de competição, participação e contestação pacífica do
poder. Assim, o estabelecimento de um regime democrático implicaria basicamente
nas seguintes condições: 1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio
de eleições com a participação de todos os membros adultos da comunidade
política; 2) eleições regulares, livres, competitivas e abertas; 3) liberdade
de expressão, reunião e organização, em especial, de partidos políticos para
competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de informação sobre a
ação de governos e a política em geral. Essa definição tem a vantagem de deixar
claro que qualquer sistema político que não se baseie em processos competitivos
de escolha de autoridades, capazes de torná-las dependentes do voto da massa de
cidadãos - isto é, do mecanismo por excelência de accountability vertical -,
não pode ser definido como uma democracia.
Mas a ênfase minimalista de Schumpeter é vulnerável ao que outros autores
classificaram como "falácia eleitoralista", isto é, a tendência de se
privilegiar as eleições sobre outras dimensões da democracia (Karl, 2000). Com
efeito, ao definir a democracia essencialmente como um método competitivo de
escolha de governos dentre as elites disponíveis, essa perspectiva desconsidera
o fato de que mesmo países que adotam o mecanismo eleitoral podem conviver com
a realização de eleições que não são inteiramente livres, tornando discutíveis
os seus resultados. Além disso, a vertente minimalista dá pouca importância ao
que acontece com as demais instituições durante a democratização. Instituições
como o parlamento, o judiciário ou a polícia podem funcionar de forma
deficitária ou incompatível com a doutrina da separação de poderes, mesmo
convivendo com um regime de regras eleitorais. Em vista dessas limitações, Dahl
(1971) ampliou e completou a definição da democracia com sua abordagem das
poliarquias, mostrando que para que o princípio de contestação do poder esteja
assegurado é também indispensável que condições específicas assegurem a
participação dos cidadãos na escolha de governos, inclusive a possibilidade de
eles próprios serem escolhidos; ainda, como característica central da
democracia, este autor apontou a exigência de contínua responsividade dos
governos à preferência dos cidadãos. Essas condições implicam em garantias
relativas às liberdades individuais e ao direito de organização e representação
da sociedade civil, em especial, em partidos políticos, por intermédio dos
quais a pluralidade de concepções e interesses em disputa pode se expressar.
Mas elas implicam também na tradição do que se designou como
constitucionalismo, isto é, a necessidade de que princípios internalizados em
instituições - como mecanismos de pesos e contrapesos - sejam garantidos por
uma constituição aceita como legítima pela sociedade, isto é, pela dimensão
legal que envolve valores compartilhados pela maioria dos membros da comunidade
política. Assim, em suas etapas iniciais, a democratização consolida
instituições cujos objetivos asseguram a igualdade dos cidadãos perante a lei e
seus direitos de participação e representação. Mas alcançadas tais condições, a
adoção de princípios de boa governança como a legalidade, a universalidade, a
transparência e a responsabilização dos governantes emerge como objetivos
complementares da agenda da democratização.
O desenvolvimento dessas diferentes etapas indica que o processo de
democratização avança gradualmente e não de forma linear. Após comparar o
efeito das diferenças seqüenciais da primeira e da terceira ondas de
democratização do mundo, Rose e Shin (2001) constataram que vários casos do
primeiro grupo consolidaram um sistema de eleições livres antes de se completar
a instauração de outras instituições do Estado democrático, relativas ao
primado da lei, da participação da sociedade civil e dos mecanismos de
responsabilização de governos. Eles concluíram que a consolidação da democracia
não é a única alternativa de mudança de regimes políticos. Não sendo um
processo teleológico, em que cada etapa remete necessariamente a outra que
seria sua continuação racional, e sendo impossível garantir que democracias que
nascem incompletas irão necessariamente se aperfeiçoar, os autores sugerem que
alguns sistemas políticos poderão persistir por tempo indeterminado como
broken-back democracies, ou seja, como sistemas institucionais deficientes,
incapazes de assegurar plenamente o governo da lei (e não dos homens), a
competição política e a responsabilização dos governos.
O que esta perspectiva coloca em questão não é simplesmente a contraposição
democracia/ditadura, mas a qualidade do regime democrático. O conceito,
definido com base no funcionamento do mercado, refere-se à qualidade do produto
ou serviço produzido segundo procedimentos, conteúdos e resultados específicos.
A qualidade envolve processos controlados por métodos e timing precisos,
capazes de atribuir características singulares ao produto ou serviço, de modo a
satisfazer as expectativas de seus consumidores potenciais. No caso da
democracia, espera-se que esse regime seja capaz de satisfazer as expectativas
dos cidadãos quanto à missão que eles atribuem aos governos (qualidade de
resultados); confia-se que ele assegurará aos cidadãos e às suas associações o
gozo de amplas liberdades e de igualdade política capazes de assegurar que
possam alcançar suas aspirações ou interesses (qualidade de conteúdo); e conta-
se que suas instituições permitirão, por meio de eleições e de mecanismos de
checks and balances, que os cidadãos avaliem e julguem o desempenho de governos
e de representantes (qualidade de procedimentos). Instituições e procedimentos
são vistos, portanto, como meios de realização de princípios e valores adotados
pela sociedade como parte do processo político. Sem elidir que a disputa por
interesses e preferências envolve conflitos, a idéia é que as instituições se
constituem - com base nos objetivos normativos que lhes são atribuídos - na
mediação mediante a qual os conflitos podem ser resolvidos pacificamente.
Com base nestes pressupostos, Diamond e Morlino (2004) identificaram oito
dimensões segundo as quais a qualidade da democracia pode variar. As cinco
primeiras correspondem a regras e práticas de procedimentos, sendo também
relativas ao seu conteúdo: o primado da lei, a participação e a competição
políticas, e as modalidades de accountability (vertical, social e horizontal);
as duas seguintes são essencialmente substantivas: de um lado, o respeito por
liberdades civis e os direitos políticos e, de outro, como conseqüência do
anterior, a progressiva implementação da igualdade política e de seus
correlatos, a igualdade social e econômica; por último, é mencionado um
atributo que integra procedimentos a conteúdos, ou seja, a responsividade de
governos e dos representantes, por meio do que os cidadãos podem avaliar e
julgar se as políticas públicas, assim como o funcionamento prático do regime
(leis, instituições, procedimentos e estrutura de gastos públicos) correspondem
aos seus interesses e às suas preferências.
Em diferentes casos de democratização, o que está faltando para que estas
condições sejam alcançadas, segundo Rose e Shin (2001), são as instituições
básicas do Estado moderno: elas podem não ter se formado adequadamente nas
etapas iniciais do processo ou podem estar operando com base em distorções de
seus objetivos. Além de não respeitar de modo completo princípios como o
primado da lei ou a obrigação dos governantes prestarem contas aos eleitores de
suas ações, algumas democracias eleitorais convivem com déficits de
representação e com a existência de sistemas partidários incapazes de servir de
referência para as escolhas políticas dos eleitores. Elas também operam muitas
vezes com base em relações ambíguas entre os poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, os dois últimos nem sempre sendo capazes de assegurar de forma
adequada a independência que deve existir entre eles, e não garantindo
devidamente a representação e a participação da sociedade civil na avaliação
das decisões que afetam a comunidade política. Nestes casos, o que está em
questão não é apenas o desempenho formal das instituições, mas o fato de o seu
modo de funcionamento frustrar tanto a realização de valores que orientaram a
escolha do desenho institucional pela sociedade, como os interesses dos
cidadãos. Os efeitos disso para as relações entre os cidadãos e o sistema
político - expressos em insatisfação política e desconfiança de instituições -
são freqüentemente críticos e, por essa razão, suas implicações precisam ser
examinadas.
Essa questão levou alguns autores a designar as instituições da democracia
representativa - e inclusive as eleições - como o seu hardware que,
considerando a dinâmica revelada pela experiência recente, para operar
adequadamente necessitaria de um software congruente com os objetivos e a
missão atribuídos aos seus componentes (Lamounier, 2005; Shin, 2005; Rose,
2001; Almond e Verba, 1963; Eckstein, 1966). Ou seja, o funcionamento adequado
das instituições democráticas requer a presença de elementos de justificação de
sua função, os quais estão relacionados com convicções dos cidadãos a respeito
da sua missão e do seu funcionamento. A idéia é que instituições não são
instrumentos neutros de realização de interesses e de preferências, mas
correspondem a escolhas normativas da sociedade sobre como processar seus
conflitos constitutivos (Moisés, 2005a). Por isso, esses autores sustentam que,
enquanto não seja aceito tanto pelas elites políticas como pela massa dos
cidadãos como "the only game in town" (Linz e Stepan, 1996), o regime
democrático não conclui a sua implantação. Em um balanço crítico das
experiências internacionais de democratização, Shin (2005) resumiu o argumento
segundo o qual, para que o regime democrático como parte integrante do seu
pertencimento à comunidade política. O que os cidadãos pensam e sentem sobre as
instituições democráticas, assim como suas atitudes a respeito delas, são
componentes indispensáveis do software sem o qual o hardware democrático
funciona mal. Por isso, a relação entre atitudes, comportamentos e o regime é
uma dimensão indispensável do estudo da democratização e do grau de
democraticidade alcançado em cada caso (O'Donnell, 2004; Cullell, 2004).
Cultura política, instituições e atitudes políticas
Para explicar a relação entre as atitudes dos cidadãos e o processo de
democratização, a literatura especializada recorreu a duas correntes teóricas
supostamente contraditórias. De um lado, há a tradição de estudos de cultura
política para a qual conta a presença ou ausência de orientações democráticas
dos indivíduos, formadas a partir de processos de socialização que interagem
com a experiência política, influindo sobre a estabilidade ou a mudança do
regime. A cultura política refere-se a uma variedade de atitudes, crenças e
valores políticos - como orgulho nacional, respeito pela lei, participação e
interesse por política, tolerância, confiança interpessoal e institucional -
que afeta o envolvimento das pessoas com a vida pública. A teoria postula que
essas orientações têm longa duração no tempo e, assim, que elas influenciam os
cidadãos a aceitarem ou não o regime democrático como sua alternativa
preferencial. Mas isso não quer dizer que mudanças de orientação não possam
ocorrer, neste caso, sob a pressão de efeitos de transformações geracionais e/
ou de processos de modernização econômica e social sobre os valores políticos
(Almond e Verba, 1963; Eckstein et al., 1998; Inglehart, 2002; 2003). A
importância das atitudes da massa de cidadãos também é enfatizada pelas teorias
de congruência (Eckstein, 1998) e de capital social (Putnam, 1993; Baquero,
2003). Algumas teorias culturalistas são holísticas, agregadas e deterministas,
enquanto outras são mais individualistas, micro-orientadas e probabilísticas,
mas, independentemente dessas diferenças, elas compartilham muitos aspectos
comuns, a exemplo da relevância atribuída à noção que combina participação
política e aceitação da autoridade pública como condição da democracia (Mishler
e Rose, 2001; 2002).3
De outro lado, as teorias institucionais da democracia oferecem a principal
alternativa à abordagem culturalista. Elas se propõem a avaliar a
institucionalização da democracia a partir de dados sobre eleições, competição
entre partidos e o funcionamento dos sistemas presidencialista e
parlamentarista, utilizando-se de indicadores agregados de instituições
políticas, desempenho de governos ou a relação entre o Executivo e o
Legislativo. O que conta para essa perspectiva não são os valores políticos ou
a orientação normativa dos indivíduos, mas a eficácia das instituições com
relação a fins almejados pelos atores políticos. Um importante pressuposto de
diferentes teorias institucionais é a noção segundo a qual comportamentos,
decisões e o desenho das instituições são produtos da escolha racional de
atores relevantes, assim como de avaliações coletivas do sistema político. De
modo geral, as teorias institucionais supõem que o apoio dos cidadãos ao regime
político depende da avaliação de curto prazo, baseada no cálculo de custos/
benefícios, do desempenho institucional. Como conseqüência, atitudes de apoio
ou de confiança política são concebidas como função do funcionamento das
instituições do regime, e pouco ou nada teriam a ver com a cultura política
(Coleman, 1990; North, 1990; Hetherington. 1998; Norris, 1999; Braithwaite e
Levi, 1998).
As teorias de cultura política e, em particular, o modelo proposto por Almond e
Verba (1963) foram objeto de várias críticas, sendo uma das mais importantes a
que se refere ao seu suposto viés determinista, isto é, à noção de que o
surgimento e a consolidação dos regimes políticos, quaisquer que sejam eles,
dependeriam da existência prévia de valores congruentes com as instituições
correspondentes. Embora em textos mais recentes Almond (1980; 1990) tenha
descartado essa interpretação, o livro The civic culture foi criticado por
implicar em uma relação de dependência entre cultura política e estabilidade
democrática - foco central de preocupação dos formuladores da abordagem com os
países que começaram a se democratizar no segundo pós-guerra do século XX. Se
esse fosse o caso, contudo, seriam inviáveis as transições do autoritarismo
para a democracia, particularmente em situações em que valores autoritários
estavam (ou estão), total ou parcialmente, enraizados na sociedade; ou seja, a
noção de determinação é incompatível com a dinâmica empírica da democratização.
Almond e Verba também foram criticados por propor uma modalidade de análise
comparativa que, tomando o modelo de democracia liberal como referência,
apontava os sistemas políticos norte-americano e britânico como ideais. A
cultura cívica corresponderia a cidadãos que, relativamente ativos na vida
política, mostrariam propensão para combinar participação com confiança
interpessoal e deferência às autoridades. Mas diferentes experiências mostraram
que a democracia pode conviver com baixos níveis de participação, atitudes de
protesto e mesmo distanciamento das autoridades. A objeção mais importante,
contudo, diz respeito à relação entre cultura política e estrutura política: a
distinção analítica entre as duas categorias, segundo os críticos, teria
servido para Almond e Verba enfatizar a necessidade de congruência entre elas,
mas eles não teriam explicitado a natureza da relação, a sua dinâmica e o
sentido de sua causalidade. Enquanto a maior parte dos críticos argumentou que
a cultura política é apenas um efeito da estrutura política (Barry, 1970), que
tenderia a se consolidar com o passar do tempo, os seguidores de Almond e Verba
sustentaram, ao contrário, que o modelo analítico proposto supõe uma ligação
efetiva entre as dimensões micro dos comportamentos individuais (captada por
surveys sobre atitudes e opiniões) e macro (relativa às estruturas do sistema),
permitindo explicar a dinâmica da relação cultura-estrutura. Em vez de
determinação, Almond e Verba teriam adotado o suposto segundo o qual estrutura
e cultura se influenciam mutuamente, ou seja, valores afetam a escolha de
instituições (seu desenho e sua missão) e o funcionamento positivo ou negativo
destas moldam a cultura política, contribuindo para sua continuidade ou
mudança. Nessa relação, caracterizada por uma causalidade cruzada entre as duas
dimensões, a estrutura institucional seria causa e efeito da cultura política,
e vice-versa (Lijphart, 1980; Street, 1994; Rennó, 1998). É com esse sentido
que o conceito de cultura política é utilizado neste artigo.
Quanto à abordagem das teorias institucionais, em que pese a sua relevante
contribuição para a análise do funcionamento do sistema político, um importante
foco de crítica refere-se ao seu tratamento das instituições democráticas como
algo exógeno ao processo de tomadas de decisão coletivas, da mesma forma que
acontece com as reações do público ao seu funcionamento e desempenho. Com
efeito, o institucionalismo sustenta que atores relevantes fazem escolhas em
resposta a um ambiente de incentivos institucionais que, sendo indeterminados,
tornam os cursos de ação não estritamente decorrentes de instituições
específicas. Os atores são vistos como fazendo escolhas de dentro, ou a partir
das instituições, o que justificaria a utilização de um modelo explicativo
causal que as trata como variáveis independentes e, assim, como pouco ou nada
afetadas por fatores como a cultura política. No entanto, a abordagem
institucional tem sido questionada com base na evidência de que os atores que
supostamente tomam decisões a partir das instituições, também fazem escolhas a
respeito das instituições com base em contextos sociais e culturais, os quais
oferecem repertório e contorno para essas escolhas. Exemplo disso seriam
decisões sobre reformas institucionais tomadas sob o impacto das relações entre
líderes políticos e eleitores, cuja mútua influência pode afetar as respectivas
escolhas; neste caso, em vez de tratar as instituições apenas como variáveis
independentes, elas deveriam ser consideradas, conforme o contexto sob exame,
variáveis sob a influência de outras, como, por exemplo, valores e cultura
política (Munck, 2004; Moisés, 1995). O conceito de instituições é utilizado
aqui neste sentido.
Como as teorias culturalista e institucionalista divergem sobre a importância
de categorias como a confiança política ou a adesão ao regime, pouco esforço de
pesquisa foi feito, até o momento, no sentido de se examinar suas possíveis
conexões [as poucas exceções são os trabalhos de Mishler e Rose (2001; 2002) e
Norris (1999)]. Este artigo retoma, neste sentido, um ponto de contato entre as
duas perspectivas formulado, décadas atrás, por David Easton (1965) ao tratar
dos problemas envolvidos na formação da legitimidade dos regimes políticos e ao
sugerir que o fenômeno de apoio político - difuso e específico - está associado
à experiência política dos cidadãos, isto é, à relação e ao uso que eles fazem
das instituições públicas em sua vida, e ao julgamento político que decorre
dessa experiência. O julgamento de instituições e mesmo de governos
dificilmente pode ser caracterizado fora dos marcos e do repertório oferecido
por contextos sociais que incluem valores e cultura política (Easton, 1965;
Norris, 1999; Moisés, 2006b). A idéia é que tanto a tradição da cultura
política como a que valoriza o formato e o desempenho das instituições influem
sobre como os cidadãos se relacionam com o regime democrático. As orientações
formadas durante processos originários de socialização, embora importantes para
definir tendências atitudinais de longo prazo, interagem, mesclando-se de forma
não linear com o julgamento político decorrente da experiência dos cidadãos com
as instituições. Em outras palavras, a combinação de orientações derivadas de
valores com a avaliação propiciada pela experiência política prática forma o
terreno em que se definem as atitudes e as reações dos cidadãos sobre o regime
democrático. A questão do apoio ao regime tem, portanto, natureza complexa e
multidimensional, envolvendo ao mesmo tempo a aceitação da democracia como um
ideal, a rejeição maior ou menor de suas alternativas, a insatisfação com seus
resultados práticos e atitudes que confundem ou misturam essas escolhas. Ou
seja, as escolhas do público a respeito do regime político não podem ser vistas
em termos de tudo ou nada, isto é, de adesão total ou rejeição total, mas, ao
contrário, elas se caracterizam por um processo gradual, cuja dinâmica envolve
atitudes de dúvida e de ambivalência política, assim como os seus efeitos
(Dalton, 1999; Klingemann, 1999; Shin, 1999; Shin e Park, 2006; Shin, 2005).
Hipóteses gerais a serem testadas
Em termos práticos, considerando que parcelas significativas de cidadãos no
Brasil e em outros países latino-americanos viveram lapsos importantes de suas
vidas sob a influência de concepções autoritárias quanto às suas relações com
as instituições políticas, a primeira hipótese a ser considerada sustenta que a
relação do público com a democracia distingue a adesão ao regime como um ideal
da sua expectativa de solução de problemas da sociedade por meio das
instituições. Ou seja, o fenômeno de apoio político desdobra-se empiricamente
em duas dimensões analíticas distintas: a normativa e a prática. A primeira
refere-se à adesão à democracia como princípio ou valor ideal, derivada da
cultura política, e segunda diz respeito à satisfação com o regime e a
confiança em suas instituições, fatores associados com a accountability social
levada a efeito pelos cidadãos. Não se espera que a variância dessas atitudes
tenha a mesma direção; com efeito, Shin (2005) e outros autores sustentaram,
com base em diferentes casos de democratização, que existe um gap entre essas
duas dimensões porque, nas novas democracias, além da duradoura influência de
seu passado autoritário, os cidadãos têm experiência limitada de participação
política, e a sua possibilidade de compreender e acompanhar o complexo
funcionamento de instituições voltadas a assegurar princípios como o primado da
lei, a separação de poderes e a obrigação dos governos de prestar contas,
depende, por uma parte, de sua formação política pregressa e de fatores que
afetam a sua cognição política, como a escolaridade, e, por outra, da sua
avaliação das instituições democráticas, neste caso, muitas vezes sob
influência da percepção formada no contexto de distorções ou déficits
institucionais.
Assim, ao lado de sua visão ideal da democracia, as orientações dos cidadãos
referem-se também ao funcionamento prático das instituições. O maior ou menor
grau de adesão normativa à democracia não implica necessariamente em satisfação
com os resultados das instituições: isso decorre de algo distinto, a saber, da
avaliação dos cidadãos sobre o quanto e como elas respondem às suas
expectativas (Klingemann, 1999; Norris, 1999; Mishler e Rose, 2001; Shin, 2005;
Durand Ponte, 2004). A hipótese implica, portanto, em que o regime democrático,
além de um valor ideal, mostra-se eficiente se suas instituições funcionarem
como canais efetivos através dos quais os cidadãos sentem que podem fazer valer
direitos e realizar interesses e preferências. Do julgamento decorrente dessa
experiência, sob influência de orientações da cultura política, formam-se as
atitudes de adesão democrática, satisfação com o regime e confiança em suas
instituições.
Ao mesmo tempo, tendo em conta algo comum à maior parte de casos de
democratização das últimas três décadas, isto é, as situações envolvendo
incertezas derivadas de cenários de mudanças e continuidades econômicas e
políticas, sustenta-se também a hipótese segundo a qual os cidadãos não estão
inteiramente certos se é a democracia ou se são suas alternativas
antidemocráticas que oferecem a melhor possibilidade de solução para os
problemas da sociedade. Pesquisas sobre processos de democratização no Leste
Europeu, na Ásia e na América Latina mostraram que, mesmo quando a mudança do
autoritarismo para a democracia foi ou é apoiada por movimentos da sociedade
civil, isso não é suficiente para que a maioria dos cidadãos abandone, no todo
ou em parte, as orientações autoritárias pregressas que, por significativo
lapso de tempo, influenciaram ou serviram de referência para suas escolhas
políticas. As incertezas, neste caso, podem dar origem a atitudes de dúvida e
de ambivalência política, e os seus efeitos podem influenciar os níveis de
adesão ao novo regime. Nos casos em que a democratização não resolveu
completamente questões institucionais herdadas do período autoritário ou não
assegurou a qualidade do novo regime democrático, isto é ainda mais importante
(Rose, Mishler e Haerpfer, 1998; Rose, Shin e Munro, 1999; Rose e Shin, 2001;
Huneeus, 2003, Durand Ponte, 2004; Aguero, 1992).
Implicações do caso brasileiro
A experiência democrática brasileira dos últimos vinte anos permite examinar
algumas dessas questões. Entre nós, a democratização resultou de iniciativas de
liberalização de dirigentes do antigo regime seguidas de negociações com as
lideranças democráticas, mas o seu primeiro presidente civil foi escolhido pelo
Congresso Nacional segundo regras estabelecidas pelos governos militares4. Essa
ambigüidade marcou a fase final da transição, e a votação da Constituição de
1988 foi fortemente influenciada tanto por manobras de um presidente egresso do
autoritarismo, como por pressões dos militares em torno de disputas sobre o
tempo de duração do mandato presidencial, o sistema de governo, as relações
entre o Legislativo e o Executivo e o papel do Estado na economia. O resultado
final suscitou interpretações controversas sobre a natureza do novo sistema
político, cujas implicações têm relação com o tema deste artigo (Cardoso, 2006;
Pereira et al., 2005; Lamounier, 2005; Reis, 2003; Reis, 2007; Santos, 2006;
Ames, 2001; Figueiredo e Limongi, 1999; Linz e Stepan, 1996; Moisés, 1995;
Mainwaring, 1995; Abranches, 1988; 2001; O'Donnell, Schmitter e Whitehead,
1986).
Dentre as principais linhas de interpretação, a mais usual sustentou até o
início da década passada que, embora tenha assegurado importantes avanços
quanto aos direitos individuais e sociais, a nova Constituição brasileira teria
institucionalizado um sistema político tendente a colocar em risco a sua
governabilidade. Seu epicentro seria o chamado presidencialismo de coalizão
(Abranches, 1988; 2001) que, associando poderes presidenciais herdados do
período autoritário a algumas características consociativas, a uma legislação
eleitoral que combina a representação proporcional com lista aberta de
candidatos e a um sistema multipartidário frágil e fragmentado, se
caracterizaria por um padrão de qualidade institucional de baixa intensidade.
Isso se deveria, entre outras razões, à limitação da capacidade do Congresso
para fiscalizar e controlar plenamente as ações do Executivo5, à fragilização
da relação entre representados e representantes (Mainwaring e Welna, 2005), com
o conseqüente estímulo à continuidade de relações de patronagem e clientelismo,
e às dificuldades de se assegurar de forma adequada os meios de controle e de
punição da corrupção e de crimes contra o patrimônio público (Ames, 2001).
Enquanto o foco central desse diagnóstico confrontava os efeitos do
presidencialismo de coalizão com a doutrina da separação de poderes, a
principal abordagem alternativa, consolidada a partir de meados da década
passada, tomou direção oposta. Enfatizou precisamente a estabilidade que as
instituições democráticas teriam conquistado depois de 1988 e, principalmente,
a superação da paralisia decisória que caracterizou as relações entre o
Executivo e o Legislativo no período pré-64. Argumentando contra a visão que
apontava as supostas deficiências do sistema político como resultado de uma
patologia de difícil superação, os defensores dessa posição sustentam que o
Brasil institucionalizou um sistema político centrado no Executivo e nas
lideranças partidárias, mas que, a exemplo do parlamentarismo e de outros
sistemas presidencialistas (à exceção do caso norte-americano), o
presidencialismo brasileiro asseguraria a governabilidade do sistema mediante a
delegação de poder que recebe da maioria parlamentar integrante das coalizões
governativas. Em virtude de prerrogativas constitucionais estabelecidas em
1988, o Executivo deteria o poder não apenas de impor a agenda política e de
ter a última palavra nas alocações orçamentárias, mas de assegurar o apoio
necessário ao desempenho de suas funções, sendo nisto secundado pelo Colégio de
Líderes partidários. Não haveria razão, nesta perspectiva, para se falar de
risco à governabilidade e da necessidade de as instituições serem
aperfeiçoadas, pois as taxas de sucesso e dominância do Executivo no parlamento
comprovariam a funcionalidade do sistema (Figueiredo e Limongi, 1999; Limongi,
2006). Embora implícito, o caráter normativo da abordagem transparece no
tratamento da questão da governabilidade que é tomada, quase que
exclusivamente, como função da capacidade de os governos realizarem os seus
objetivos (Lamounier, 2005).
Essa abordagem deu origem a uma nova linha de interpretação do sistema político
brasileiro, mas mesmo os seus principais autores reconheceram que esse
diagnóstico implica em limitações das funções próprias do parlamento:
caracterizado como um ator de natureza mais reativa do que proativa, as
políticas iniciadas pelo Congresso Nacional restringem-se a um número pequeno
de áreas, como políticas distributivas, localistas ou regionalistas, pouco
afetando o status quo econômico e social do país. Segundo intérpretes dessa
abordagem, tendo aceitado as circunstâncias que levaram a essa nova
configuração institucional, mesmo ao reagir contra o uso abusivo de medidas
provisórias pelos presidentes, "de certa forma, o Congresso atou as próprias
mãos e, ao fazê-lo, contrariou interesses políticos da maioria" (Limongi e
Figueiredo, 2003; p. 297).
Por outro lado, mesmo autores parcialmente concordes com a nova abordagem falam
"do caráter 'encarcerado' da dinâmica do legislativo brasileiro" ao analisar as
razões da baixa participação dos congressistas na produção de leis do país. Os
parlamentares reagiriam aos incentivos específicos de sua carreira e à
percepção dos limites de sua influência na produção de políticas públicas,
reduzindo seu tempo de permanência no parlamento, empobrecendo a experiência e
afetando a eficácia de sua função de representação (Amorim Neto e Santos,
2002). Outros mostraram que, além de estar praticamente excluída a
possibilidade de compartilhamento da agenda entre o Executivo e o Legislativo,
o processo de negociação entre o presidente e a sua base parlamentar, por meio
do qual são oferecidos cargos e vantagens adicionais aos partidos,
comprometeria o princípio de accountability horizontal (Santos, 1999). Com
efeito, Santos caracterizou essa situação como "um processo de encarceramento
ou travamento (locked-in process)", concluindo existir "uma evidente
contradição no Brasil entre os elementos constitucionais e procedimentais da
configuração de sua polis", formada, segundo ele, na perspectiva de pesos e
contrapesos (2003, p. 214). Finalmente, pesquisas recentes mostraram que o
presidencialismo de coalizão, diferente do diagnóstico da nova interpretação,
implica em um padrão institucional "mais individualmente dirigido do que
institucionalmente constrito" (Rennó, 2006a), envolvendo tanto a delegação da
maioria aos presidentes como a chamada ação unilateral (em que o Executivo
recorre, por exemplo, às medidas provisórias para fazer frente às suas
dificuldades políticas no parlamento ou na sociedade). Em outras palavras, o
poder de agenda do presidente seria usado como mecanismo de eficácia
legislativa (acelerando a tramitação de propostas de interesse comum do
Executivo e do Legislativo) e como forma de usurpação do poder do Legislativo;
mais do que efeito de uma estrutura institucional consolidada, a delegação da
maioria aos presidentes seria algo contingente e condicional, dependente da
capacidade do presidente para assegurar a sobrevivência da coalizão
governativa. Como demonstraram Pereira, Power e Rennó (2005), assim como Amorim
Neto et al. (2003), o governo FHC exemplificaria esse processo: durante seus
dois mandatos, Cardoso logrou montar uma coalizão majoritária relativamente
estável, mesmo envolvendo-se em negociações controversas com o Congresso e nem
sempre conseguindo aprovar algumas de suas principais propostas políticas
(Ames, 2001). Mas, em comparação com os presidentes anteriores, manteve um
padrão de relações entre Executivo e Legislativo reconhecidamente equilibrado e
não conflituoso.
As características mencionadas afetam a qualidade da democracia, e estão
associadas a outras limitações institucionais. O país convive com a violação de
direitos fundamentais de setores mais pobres da população, entre os quais os
mais atingidos são os afro-descendentes. Amplas camadas da população não têm
acesso a direitos civis, a exemplo do devido processo da lei ou do direito a um
tratamento justo e equânime por parte dos tribunais de justiça; elas também são
vítimas de violência policial e de organizações criminosas que operam
articuladas com alguns de seus agentes, o que levou alguns autores a
classificar a democracia brasileira como um "regime de exceção paralelo à
legalidade constitucional existente" (Pinheiro, 2003, p. 269). Mesmo analistas
que reconhecem os avanços do país no terreno da competição e da participação
políticas classificam o Estado brasileiro como incapaz de fazer cumprir
plenamente a lei e as exigências do regime constitucional vigente. O uso de
tortura para obter confissões de suspeitos de origem social subalterna e a
morte de centenas de civis sob a justificação de tratar-se de confrontos da
polícia com criminosos são vistos como indicadores de deficiências graves ou
mesmo de ausência do Estado de direito (Hagopian, 2005, p. 128).
Também a continuidade de práticas de corrupção mostra que nem o impeachment de
um presidente ou a punição de parlamentares por motivos semelhantes6 foi
suficiente para que o país aperfeiçoasse os mecanismos institucionais e o marco
jurídico responsáveis pelo controle dos efeitos sistêmicos de hábitos e
comportamentos antirepublicanos. Nesse sentido, a situação protagonizada no
primeiro mandato do presidente Lula por integrantes do governo e membros do PT
- cuja identidade política foi construída, em grande parte, por meio da
denúncia de tais práticas - indica que as mesmas práticas foram usadas (segundo
processo aberto pelo Supremo Tribunal Federal, com base em denúncia do
Ministério Público) para assegurar apoio às suas iniciativas no Congresso
Nacional e à sua continuidade no poder. As evidências recolhidas pela Comissão
Parlamentar de Inquérito dos Correios7 sugerem que o esquema de corrupção
utilizou-se de sobras financeiras de campanhas eleitorais e de dinheiro "não
contabilizado" para pagar gastos de partidos que formaram a maioria governista
no Congresso (Soares e Rennó, 2006). Ademais, após tentar impedir que as
denúncias surgidas em 2005 fossem investigadas pelo poder Legislativo, o
governo tolerou a violação por órgãos do Estado de direitos individuais de um
empregado doméstico que acusou o ministro da Fazenda da época de estar
envolvido com fatos relacionados com as denúncias. Os indícios mostram que
negociações destinadas a assegurar a delegação da maioria ao Executivo, nesse
período, envolveram o uso ilegal de recursos públicos e privados para custear
gastos de campanhas de formadores da coalizão governante.8
Os fatos apontam para dificuldades do sistema político brasileiro de acionar
mecanismos de accountability horizontal.9 O quadro é agravado por outras
limitações institucionais que afetam a relação dos cidadãos com o regime, a
exemplo do fato de o sistema de representação proporcional brasileiro não
assegurar plenamente a igualdade de representação dos eleitores na Câmara dos
Deputados. Com a fixação de tetos mínimos e máximos de deputados por distritos
eleitorais estaduais, independentemente do tamanho de suas populações, o
princípio de igualdade dos cidadãos quanto ao direito de escolher
representantes está comprometido, fazendo o voto de eleitores de algumas
regiões valerem cinco ou seis vezes mais que o de outras. Essa distorção,
justificada no período entre 1946 e 1964 em termos de exigências consociativas,
foi agravada durante o regime militar pela criação de novos Estados e, depois,
mantida na Constituição de 1988. Pesquisas recentes relativizaram o seu
impacto, mas ela ainda é responsável por "as regiões Sul e Sudeste do país
serem as mais prejudicadas, e as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste as
beneficiadas" (Bohn, 2006, p.196). Os efeitos da desproporcionalidade estimulam
o encolhimento de partidos - grandes e pequenos - nos estados mais populosos,
mesmo que a penetração partidária nas diferentes regiões seja atualmente menos
desequilibrada do que no passado.
Outro fator de distanciamento entre representados e representantes resulta da
norma legal que autoriza os partidos políticos a apresentarem listas de
candidatos nas eleições proporcionais igual a uma vez e meia o teto máximo de
cada distrito eleitoral estadual (sendo que o número pode dobrar, no caso de
coligações). Com efeito, a depender do número de partidos habilitados, a oferta
total de candidatos pode chegar a centenas ou milhares, o que eleva os custos
de informação do eleitor sob forte impacto de seus níveis críticos de
escolaridade. Isso pode tornar extremamente complexa a sua escolha eleitoral ao
envolver uma multiplicidade de candidatos de um mesmo partido. Para
contrabalançar os efeitos negativos da norma, como os incentivos à
personalização da escolha eleitoral em detrimento do voto em partidos, ou a
amnésia do eleitor que em pouco tempo não sabe mais quem é o seu representante,
alguns analistas defenderam recentemente a limitação do número de candidatos e/
ou a adoção pura e simples do voto em legenda como forma de encurtar a
distância entre representados e representantes (Almeida, 2006; Rennó, 2006b).
Os problemas apontados relativizam as imagens positivas a respeito do sistema
político brasileiro, mas é inegável que o país é uma democracia eleitoral nos
termos definidos pela Freedom House, já que, desde 1989, quando um presidente
civil foi eleito pela primeira vez em quase três décadas, cinco eleições
nacionais para escolher governos e o Congresso Nacional foram realizadas.
Coordenadas por um tribunal de justiça independente, as eleições são livres e
asseguram a participação de cerca de 126 milhões de eleitores de uma população
total de 186 milhões, ou seja, aproximadamente 70% da população.10 É pouco
provável, neste cenário, que os déficits institucionais coloquem em risco a
sobrevivência da democracia no curto prazo. No entanto, ao afetar diferentes
dimensões da qualidade da democracia, supõe-se que eles afetam também a
percepção dos cidadãos sobre o sistema democrático. Nesse sentido, a adoção
pelo governo Lula de métodos que desqualificam a relação entre partidos, e
deles com o governo, mediante suposta compra de apoio político no Congresso, ou
o incentivo para que parlamentares abandonem os partidos pelos quais foram
eleitos para aderir à base de sustentação do governo, da mesma forma que as
resistências da Câmara de Deputados para punir parlamentares envolvidos no uso
de recursos ilegais em troca de apoio ao governo,11 aprofundam o descrédito da
opinião pública quanto aos partidos e o Congresso Nacional;12 e podem reforçar
a tradição brasileira de personalização das relações políticas, sobrepondo
lideranças individuais às instituições de representação. Em conseqüência, as
hipóteses específicas deste estudo sustentam que os fatores descritos influem
negativamente sobre a satisfação dos cidadãos com a democracia e comprometem a
sua confiança nas instituições. Supõe-se ainda que seus efeitos reforcem
elementos tradicionais da cultura política, estimulando atitudes de
ambivalência política e orientações negativas quanto aos partidos e aos
parlamentos. Além disso, supõe-se também que as atitudes de desconfiança
política e de insatisfação com a democracia afetem negativamente a preferência
dos entrevistados quanto a alternativas de organização da democracia.
Testando as sobrevivências do autoritarismo
A democracia não tem longa tradição de duração na América Latina e poucos são
os países em que o regime não sofreu interrupções no século passado (caso da
Costa Rica). Na maior parte do continente, os cidadãos conheceram, ao
contrário, longos períodos de regimes autoritários (casos da Argentina, Brasil,
Chile, Equador, Peru e Uruguai), com ou sem tutela militar, que às vezes
representavam simples retorno a experiências autocráticas anteriores ou a
continuidade de regimes de ditadura unipessoal ou de partido único (casos do
Paraguai e do México). Afora períodos de predomínio do sistema oligárquico,
vigente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, em geral os regimes
autoritários duraram de 10 a 30 anos (e mais nos casos do Paraguai, México e
Nicarágua). Por isso, tendo em conta o importante papel dos processos de
socialização na formação da cultura política (Mishler e Rose, 2002), a
generalização da preferência pela democracia em décadas recentes não pode ser
pensada como implicando necessariamente em apoio incondicional a todos os
elementos do novo regime (Dalton, 1999; Finifter e Mickiewicz, 1992; Inglehart,
2003). A expectativa é que os traços de sobrevivência de concepções
autoritárias sobre a política, expressos em preferências autoritárias e em
atitudes de ambivalência política, ainda sejam fortes, influindo sobre as
convicções a respeito do papel das lideranças políticas e da relação dos
cidadãos com governos, partidos e parlamentos.
Para testar essas hipóteses, este estudo procedeu, em primeiro lugar, à
construção de uma tipologia destinada a verificar as orientações dos indivíduos
quanto à democracia. Com base nas suposições anteriores, a idéia era verificar
em que medida atitudes que revelam a sobrevivência de traços autoritários entre
os cidadãos impactam as tendências de adesão ao regime democrático. Por isso,
para além das atitudes de simples adesão ou de rejeição à democracia, a
tipologia buscou caracterizar o fenômeno de ambivalência política na sociedade
brasileira e seus efeitos para a legitimação da democracia. Os tipos políticos
foram construídos com base nos seguintes indicadores de adesão normativa a
regimes: 1) "Você concorda muito, concorda, discorda ou discorda muito da
seguinte afirmação: A democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de
governo"; 2) "Com qual das seguintes frases você concorda mais: A democracia é
preferível a qualquer outra forma de governo; Em algumas circunstâncias, um
governo autoritário pode ser preferível; A pessoas como eu, dá no mesmo um
regime democrático ou um não-democrático".
Na construção dos tipos (ver Anexo_1), foram considerados democratas os
entrevistados que concordaram com a afirmação de que "a democracia é o melhor
sistema de governo", malgrado os seus problemas, e também que, na segunda
questão, escolheram a alternativa segundo a qual "a democracia é preferível a
qualquer outra forma de governo"; foram considerados autoritários os
entrevistados que discordaram da afirmação de que "a democracia é o melhor
sistema de governo" e que preferiram um "governo autoritário em algumas
circunstâncias"; e, finalmente, foram considerados ambivalentes os
entrevistados que concordando que "a democracia é o melhor sistema de governo",
preferiram, na segunda questão, as alternativas relativas a um "governo
autoritário em algumas circunstâncias" e "tanto faz um regime democrático ou
autoritário"; também quem concordou com a afirmação de que "a democracia é
preferível a qualquer outra forma de governo", na segunda questão, mas
discordou de que "A democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de
governo", na primeira questão, foi computado como ambivalente. A expectativa
era que os tipos atitudinais variassem da adesão majoritária à democracia à
preferência minoritária pelo regime autoritário, mas que expressassem também
considerável volume de apoio a atitudes de ambivalência política.
O Gráfico_1 apresenta a distribuição dos tipos pela população da América Latina
(Brasil e países de comparação). De modo geral, a distribuição dos indivíduos
mostra que a democracia converteu-se na América Latina na mais importante opção
atitudinal dos cidadãos. No conjunto do continente, a média de democratas é de
quase 53%, ou seja, é majoritária, contudo mais baixa do que a encontrada em
outros países que também se democratizaram nas três últimas décadas.13 Merece
destaque o fato de o Brasil estar entre os três países que têm o mais baixo
índice de democratas da América Latina, ou seja, 40%, só superado por Equador
(36,1%) e Paraguai (38,6%), enquanto Argentina (63,46%), Chile (55,83%), Costa
Rica (72,04%), Uruguai (77,14) e Venezuela (63,3%)14 têm os índices mais altos.
A média de indivíduos explicitamente autoritários é, em geral, baixa no
continente (7,58%), com exceção do Paraguai (25,03%), Equador (15,54%) e Peru
(10,86%). Mas o aspecto mais significativo é o fato de ser bastante alto o
contingente de indivíduos ambivalentes, isto é, que embora não se oponham
frontalmente à democracia não estão seguros em escolhê-la como "the only game
in town": eles são quase 40% no continente e, no Brasil, chegam perto de 54%,
14 pontos a mais do que a média de democratas no país. Além do Brasil, índices
altos de ambivalentes são encontrados também em outros países de tradição
democrática frágil e onde o funcionamento das instituições democráticas
apresentou graves problemas em anos recentes (Baquero, 2003): Equador (48,4%) e
Peru (45,6%) - onde o índice de ambivalentes, a exemplo do Brasil, é superior
ao de democratas - e México (46,2%), Colômbia (45,1%) e Bolívia (43,7%).15 Ao
primeiro olhar, portanto, os países do continente dividem-se entre os de maior
tradição democrática e aqueles onde essa tradição, sendo mais frágil,
corresponde aos públicos cuja adesão à democracia é menor. Uma implicação disso
é a confirmação da hipótese de mútua influência entre estrutura e cultura
políticas.
Com o objetivo de examinar melhor as implicações do fenômeno de ambivalência
política foi adotado, em seguida, um procedimento complementar: o cruzamento
dos tipos políticos com indicadores de atitudes não-democráticas, que revelam a
sobrevivência de valores autoritários.16 O Gráfico_2 apresenta para o conjunto
da América Latina as taxas de entrevistados que concordam com alternativas não-
democráticas. A última questão refere-se à demanda dos cidadãos pela democracia
em geral.
Como esperado, os indivíduos autoritários são os mais identificados com valores
antidemocráticos, mas os ambivalentes - a respeito dos quais não é possível
conhecer previamente a sua posição - vêm em seguida, indicando que as
incertezas quanto à escolha por regimes políticos reforçam as atitudes que
dificultam ou bloqueiam a aceitação da democracia. Nesse sentido, é notável que
o índice de ambivalentes cresça quando a alternativa antidemocrática usada no
teste se refere a dificuldades econômicas e políticas dos países; quando
estimula a adoção de um regime puramente antidemocrático ou se refere à opção
de apoio a um líder que descarte a democracia. Nessas situações, comuns a
vários países, um significativo contingente de indivíduos aceita - ao menos em
tese - que os governos desrespeitem a lei para enfrentar dias difíceis. Mesmo
em volume menor, também há democratas identificados com valores autoritários,
mostrando que o fenômeno de ambivalência política é mais complexo. Por último,
os dados mostram que o percentual geral de latino-americanos que considera
insuficiente a oferta de democracia atualmente existente é superior a dois
terços de todos os entrevistados, com os índices de autoritários e ambivalentes
alcançando médias superiores às do continente em conjunto. Ou seja, um grande
número de cidadãos latino-americanos considera que a democratização não está
cumprindo a sua promessa, o que sugere, como previsto pelas hipóteses, uma
situação de incongruência entre a visão do regime democrático como ideal e a
sua realização prática (Shin, 2005). Como observaram Baquero (2003) e Lopes
(2004), isto afeta uma dimensão fundamental da democracia, a participação.
O passo seguinte da análise consistiu no exame específico desse panorama para o
Brasil e outros onze países. A Tabela_1 permite comparar, para cada indicador
de atitude não-democrática, os percentuais de cada tipo atitudinal por país e
observar esses percentuais em relação ao total para a América Latina ou outros
países. Na maior parte dos casos a associação entre as variáveis é
significante; em geral, como esperado, os democratas que preferem valores não-
democráticos são bem menos numerosos que a média de cada país, com exceção de
Brasil e México, onde as médias são iguais, e, em poucos casos, superiores à
média do continente. Como esperado, os índices de autoritários que preferem
valores não-democráticos são quase sempre superiores às médias nacionais e, em
poucos casos, inferiores à média latino-americana. Sobressaem, no entanto, os
ambivalentes, cujos índices para quase todos os países são bastante superiores
às médias nacionais e à do continente. No caso do Brasil, a opção não-
democrática dos ambivalentes supera a média nacional, embora a síndrome se
verifique também para Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Venezuela. Os
ambivalentes, como previsto, preferem alternativas de solução de problemas
econômicos ou situação semelhante com apelos à intervenção dos militares e
alternativas claramente não-democráticas. Trata-se de uma confirmação da
sobrevivência de traços autoritários no quadro das novas democracias latino-
americanas.
A descrição apresentada, baseada em análises bivariadas, aponta para
importantes tendências de associação entre as variáveis selecionadas. Contudo,
para se avançar mais na caracterização e na compreensão do fenômeno, outro
passo analítico foi adotado: a construção de um modelo de regressão logit com
objetivo de mapear os principais determinantes individuais dos tipos
atitudinais na América Latina. O Modelo_1 mostra que a razão de probabilidade
de ocorrência de indivíduos ambivalentes (e também autoritários) é maior entre
as mulheres, os indivíduos de menos de 39 anos de idade, com pouca
escolaridade, pouco interessados pela política e que não consideram as eleições
um mecanismo eficaz de escolha de alternativas políticas. Como esperado,
atitudes ambivalentes e autoritárias são determinadas tanto pela cultura
política como por percepções sobre o funcionamento das instituições
democráticas, mesmo em países em que a democratização foi apoiada por
mobilização da sociedade civil, como são os casos da Argentina, Brasil e Chile.
Por sua vez, a razão de probabilidade de ocorrência de democratas autênticos
mostrou-se maior entre os homens, indivíduos de mais de 39 anos de idade, com
alta escolaridade e que percebem mecanismos como as eleições de modo positivo.
O modelo indica que todos os países da América Latina são afetados por estas
características, com exceção dos autoritários na Bolívia e os democratas no
Peru, e confirma que o Brasil é o país em que a razão de probabilidade de
ocorrência de tipos ambivalentes é maior em comparação com todos os demais
países no período entre 2003 e 2004.
Os achados anteriores, com base em dados das pesquisas do Latinobarômetro,
posicionam o Brasil em uma trajetória distinta dos demais países latino-
americanos no que se refere ao processo de adesão do público de massa à
democracia. Era necessário, por isso, explorar melhor o seu significado. Para
tanto foi construído um novo modelo de regressão logit e, como mostram os
resultados, do total de oito indicadores de autoritarismo, para cinco deles a
relação entre as variáveis é significante: como esperado, nesses casos, as
razões de probabilidade de que os brasileiros autoritários prefiram valores
não-democráticos é sempre bastante maior que a com os democratas. Mas o Modelo
2 revela também que a massa dos ambivalentes - cujo contingente é superior a
50% no Brasil - também prefere as alternativas autoritárias, indicando a
relevância das sobrevivências de traços da cultura política antidemocrática: em
relação aos democratas eles são mais de 2 vezes e meia mais propensos a voltar-
se para os militares em caso de problemas ou dificuldades ou, ainda, para um
líder que descarte a democracia e, é notável, são os coortes geracionais mais
velhos, isto é, provavelmente ainda sob influência da tradição autoritária, os
que apóiam estas alternativas. O modelo também mostra que os brasileiros de
baixa escolaridade são os que preferem alternativas antidemocráticas.
Insatisfação política e desconfiança da democracia
As análises anteriores referem-se à adesão à democracia como um ideal, mas,
como previsto pela discussão teórica, uma segunda dimensão de apoio político
relativa à experiência prática dos cidadãos com o regime envolve o seu
julgamento sobre a qualidade de seus resultados. Diferentes pesquisas empíricas
sobre a democratização utilizam a variável satisfação com a democracia para
medir essa dimensão de accountability social (O'Donnell, 2004). Mas, além do
desempenho de governos e dos seus resultados, as instituições e seu modo de
funcionamento também são relevantes para moldar a relação entre cidadãos e
regime político. As instituições asseguram a qualidade dos procedimentos
democráticos e envolvem a percepção sobre se o sistema político funciona de
acordo com sua justificativa normativa. Alguns autores sustentam, nesse
sentido, que elas não são neutras e que, quando capazes de justificar-se por
sua ação e sua retórica discursiva, sinalizam o grau de efetividade dos
direitos previstos em constituições; constituem, portanto, o ponto de contato
entre o princípio de igualdade perante a lei e a estrutura da cidadania (Offe,
1999). Para mensurar essa dimensão, a literatura especializada utiliza a
variável confiança em instituições, que se baseia no julgamento dos cidadãos
sobre o funcionamento de parlamentos, partidos políticos, cortes de justiça,
policia etc. (Moisés, 2006b).
Os dados da Tabela_2 dão conta da análise bivariada entre essas dimensões e
variáveis políticas selecionadas para a América Latina, Brasil e países de
comparação17. Eles confirmam a suposição da literatura de que os sentimentos de
insatisfação com o regime e de desconfiança das instituições estão associados,
não com a opção democrática, e sim com atitudes autoritárias ou ambivalentes.
Mesmo não comprovando a causalidade da relação, as associações apontam para a
influência das dimensões de accountability social - cujos coeficientes de
associação entre si também são significantes - sobre os tipos atitudinais, em
especial, autoritários e ambivalentes. No Brasil, como mostrado pelo Gráfico_4,
os indivíduos classificados por esses tipos são de fato os mais insatisfeitos
com a democracia e os mais desconfiados de suas instituições. Os dados ainda
mostram que, controlados por indicadores de insatisfação com o regime
democrático ou desconfiança de suas instituições, os índices de autoritários e
ambivalentes crescem em quase todos os países da América Latina, enquanto
aqueles de democratas diminuem, as únicas exceções sendo relativas aos
argentinos e aos mexicanos quanto à desconfiança das instituições, cujas médias
de democratas são iguais às dos dois países como um todo. É importante observar
também que, além dos brasileiros, os percentuais de argentinos, chilenos,
costarriquenhos e uruguaios insatisfeitos com a democracia são superiores às
médias nacionais, o que sugere duas interpretações possíveis: a) em países
dotados de tradição democrática mais antiga e mais consistente, o grau de
exigência dos cidadãos com o funcionamento do regime é maior, aproximando-os da
situação que nos países de democracia originária foi chamada de cidadãos
críticos (Norris, 1999). Em vários desses países, diferentemente do Brasil, o
sistema partidário é mais consistente, incluindo partidos originados em fins do
século XIX ou início do XX; b) a baixa intensidade da qualidade da democracia
expressa pelo funcionamento deficitário de suas instituições afeta em sentido
negativo a relação dos cidadãos com o regime, como também Baquero (2003)
constatou em suas pesquisas sobre países como Peru e Equador. Ao mesmo tempo,
outras pesquisas partindo de pressupostos distintos concluíram que uma mudança
da situação envolve a adoção de reformas institucionais no sentido de
reaproximar os cidadãos do sistema político (Avritzer e Anastásia, 2006).
Preferência por modelos antidemocráticos
Com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre as implicações desse quadro,
a análise voltou-se em seguida para os padrões de associação das variáveis
anteriores com indicadores de preferência dos indivíduos sobre modelos
alternativos de democracia almejados para seus países.18 A idéia era examinar
os efeitos dos sistemas democráticos deficitários (nos termos definidos antes)
sobre as atitudes políticas dos cidadãos. Os dados dos Gráficos_3 e 4 confirmam
as tendências mencionadas antes: no conjunto da América Latina e,
especialmente, no Brasil, ao serem consultados sobre a democracia que desejam
para os seus países, para além dos autoritários, os indivíduos ambivalentes são
os que mais preferem um tipo de regime democrático incompleto ou incapaz de
atender a princípios fundamentais de participação e representação. Assim,
acompanhando as taxas de crescimento da insatisfação com a democracia e da
desconfiança de suas instituições, as linhas que revelam as opções por uma
"democracia sem Congresso" e por uma "democracia sem partidos políticos" também
aumentam. No caso do Brasil, essa tendência é mais acentuada, em comparação com
os outros países, e mais intensa para a preferência por uma "democracia sem
Congresso Nacional". Com relação a um sistema político em que o parlamento
apresenta sérias dificuldades para desempenhar suas funções de accountability
horizontal (Figueiredo, 2004), os resultados mostram que os entrevistados
tendem a descartar as instituições às quais essas funções estão entregues.
Em termos gerais, os resultados apresentados nas seções anteriores confirmam as
principais hipóteses deste estudo. Mas era necessário explicar ainda por que os
latino-americanos, e em especial, os brasileiros associam a adesão ao regime
democrático como um ideal à escolha de modelos incompletos ou deficientes de
democracia, os quais excluem características que distinguem esse regime de suas
alternativas, como a existência do parlamento e dos partidos políticos. Modelos
desse tipo, por definição, colocam em questão os procedimentos, os resultados e
o conteúdo da democracia, e, portanto, comprometem a sua qualidade. O que leva
os cidadãos a escolher essa alternativa?
Como discutido nas secções anteriores, duas ofertas teóricas procuram explicar
esta síndrome: uma é de natureza instrumental, a outra, de natureza normativa.
O modelo instrumental baseia-se na influência das teorias econômicas clássicas
e neoclássicas na análise política, e adota a visão do regime político como
meio ou instrumento para realizar fins definidos a partir da exclusiva
suposição de uma escolha racional dos atores. Em contraste com esta
perspectiva, o modelo intrínseco sustenta que as pessoas escolhem ou não a
democracia como um objetivo orientado normativamente. A premissa é que normas e
valores são adquiridos por meio do processo de socialização e do aprendizado
envolvido na sua experiência política ao longo de sua vida adulta. Este estudo,
contudo, considera que as duas abordagens não são incompatíveis e enfatiza a
possibilidade de que o julgamento crítico dos indivíduos quanto à ação de
governos e ao funcionamento das instituições - seja em função de seus
resultados práticos, seja considerando seus objetivos normativos - não exclui a
influência da cultura política e pode conjugar-se a ela.
Com isso em vista, o passo final do estudo consistiu em pesquisar quais são os
determinantes da escolha por modelos democráticos que prescindem do parlamento
e dos partidos políticos. Com base na literatura especializada, os modelos de
regressão logit construídos para analisar os determinantes individuais dessa
preferência incluem, agora, além de variáveis que refletem a sobrevivência do
autoritarismo (autoritários e ambivalentes) ou que expressam o julgamento dos
cidadãos sobre a democracia e as suas instituições (insatisfação com a
democracia e desconfiança das instituições), indicadores de avaliação do
desempenho econômico e político do regime, percepções sobre a corrupção e
experiências com as eleições, confiança interpessoal e outras orientações
culturais - todas controladas, de um lado, por variáveis sociodemográficas e,
de outro, por parâmetros de comparação entre os brasileiros e os cidadãos de
outros países.19 O objetivo era testar, além das hipóteses deste trabalho, as
hipóteses de abordagens alternativas que competem com suas premissas.
Os resultados do Modelo_3 de regressão para os dados de 2002 confirmam e
aprofundam os achados anteriores. Em primeiro lugar, eles definem as
características individuais de todos latino-americanos (aí incluídos os
brasileiros) que preferem os modelos de "democracia sem congresso" e "sem
partidos políticos": eles são relativamente jovens, têm menos de 39 anos de
idade, são autoritários, ambivalentes, insatisfeitos com o regime democrático,
desconfiados de suas instituições e não acreditam que o mecanismo eleitoral
cumpre a sua missão. No caso da opção por uma "democracia sem Congresso
Nacional", os indivíduos convencidos de que a corrupção aumentou nos últimos
anos tem razão de probabilidade igual a 1,3 vezes em comparação com os que
descartam essa escolha, confirmando a hipótese de que a falência ou a
inexistência de mecanismos efetivos de accountability horizontal, ao
comprometer a qualidade da democracia, afeta a relação dos cidadãos com o
regime. O modelo também testou a influência de variáveis instrumentais de apoio
político, mas os indicadores de desempenho econômico de governos e do sistema
político não se mostraram significantes;20 tampouco a fé religiosa dos
entrevistados, diferentemente do que tem sustentado Inglehart (2002), afeta as
escolhas por democracias incompletas, mas a desconfiança interpessoal, no caso
da opção por uma "democracia sem congresso", e a ausência de orgulho pela
nacionalidade, para a escolha por uma "democracia sem partidos", contam para o
resultado final, confirmando previsões da teoria do capital social e de outras
teorias culturalistas. Quanto às variáveis sociodemográficas, apontadas muitas
vezes como determinantes de níveis de sofisticação política, apenas a baixa
escolaridade dos entrevistados influencia a escolha do modelo de "democracia
sem partidos", indicando que a razão de probabilidade dessa escolha é maior
para os indivíduos de alta escolaridade, algo relativamente surpreendente por
mostrar que um maior grau de informação e de cognição sobre o funcionamento do
sistema político pode estar associado, ao contrário das suposições usuais da
literatura, a uma visão hostil ao papel dos partidos no regime democrático.
Porém, esse resultado pode indicar que esses segmentos, similares ao que Norris
(1999) e outros chamaram de cidadãos críticos, desvalorizam os partidos porque
avaliam negativamente o papel que eles estão efetivamente desempenhando. Nesse
caso, essa visão crítica, antes de solapar a legitimidade do sistema
democrático, representa uma demanda de seu aperfeiçoamento.
Por fim, ao permitir comparar a atitude dos brasileiros com a das populações
dos demais países, o modelo revelou que apenas colombianos, equatorianos,
panamenhos, paraguaios e venezuelanos têm maior razão de probabilidade de optar
pelo modelo de "democracia sem congresso", enquanto a escolha por uma
"democracia sem partidos" é maior entre bolivianos, colombianos, equatorianos,
guatemaltecos, panamenhos e paraguaios. Nos demais países, os indivíduos são
todos menos propensos que os brasileiros a fazer essas escolhas. E, com exceção
da Venezuela - que, devido ao processo que levou ao "pacto del punto fijo"
(Karl, 1986), logrou manter o sistema democrático funcionando ininterruptamente
desde 1958 até as recentes ameaças à vigência das liberdades democráticas -,
são todos casos cujo padrão de institucionalização do sistema democrático são
mais críticos do que o brasileiro. O caso do Brasil, contudo, para ser bem
compreendido remete outra vez ao Modelo_1 de regressão, que indica que os
brasileiros têm maior probabilidade de se definirem como ambivalentes do que em
qualquer outro país da América Latina. Em comparação com os demais países, no
Brasil há mais risco de que seus cidadãos escolham alternativas de regimes que
excluem o parlamento e os partidos políticos e onde, como revelou o Modelo_2 de
regressão, autoritários e ambivalentes têm, respectivamente, 4 e 2 vezes
respectivamente mais chance de considerar que a democracia não responde às
expectativas criadas durante o longo processo de democratização.
Breves considerações finais
O exame da relação dos cidadãos brasileiros - em comparação com os latino-
americanos em geral - com o processo de democratização, em anos recentes,
permite qualificar as seguintes questões discutidas pela teoria democrática
contemporânea:
(1) A análise dos dados empíricos confirma a existência de um gap entre as
dimensões normativa e prática de apoio ao regime democrático, como argumentaram
Rose e Shin (2001), mas mostra que contextos marcados pela sobrevivência de
traços autoritários da cultura política e, ao mesmo tempo, por distorções do
funcionamento das instituições democráticas, com repercussões sobre a qualidade
do regime democrático, afetam de diferentes modos a experiência dos indivíduos
e influem sobre suas orientações políticas. Assim, a preferência por soluções à
margem da lei e das normas democráticas (podendo envolver o retorno de
militares ou o apoio a lideranças carismáticas) com o objetivo de resolver
problemas da sociedade está associada com o desprezo ou o descrédito de
componentes fundamentais da democracia representativa, como o parlamento e os
partidos políticos. Os testes empíricos confirmam a hipótese de que tanto a
cultura política como a avaliação das instituições contam para este resultado e
reforçam a suposição de parte da literatura de que fatores políticos importam
mais do que os econômicos na determinação das atitudes dos cidadãos (Newton,
1999).
(2) O contraste entre a adesão normativa majoritária ao regime e o severo
julgamento dos cidadãos sobre a democracy-in-action indica que o grau de
incongruência existente entre a oferta institucional de democracia e a demanda
cultural dos cidadãos pelo sistema não está sendo superado com o passar do
tempo. Nem o desempenho dos governos, nem o das instituições parece capaz de
assegurar aos cidadãos que suas expectativas quanto ao regime são realizáveis.
Isso sugere que as elites políticas têm dificuldades para perceber a gravidade
da situação ou não se sentem encorajadas a enfrentar os problemas que precisam
ser resolvidos para que a oferta democrática satisfaça a demanda da cidadania.
Diversamente de certo consenso que parece ter se estabelecido na ciência
política, no caso brasileiro a questão remete para a atualidade da reforma
política (Moisés, 1995; Rennó e Soares, 2006; Avritzer e Anastásia, 2006).
(3) Quanto à qualidade da democracia, a situação brasileira aponta para
existência de déficits institucionais que afetam princípios básicos como, por
exemplo, o primado da lei ou a responsabilização de governos, comprometendo a
capacidade do sistema político de responder às expectativas dos cidadãos. A
insatisfação com a democracia e a desconfiança de suas instituições indicam que
eles não sentem que seus direitos de participação e representação - de que
dependem a igualdade política e seus corolários, como a igualdade social e
econômica - sejam canais efetivos para enfrentar problemas como a corrupção ou
as dificuldades econômicas. Nesse contexto, a análise dos dados aponta para a
existência de conexão entre a ambivalência a respeito de valores políticos, a
insatisfação com a democracia e a desconfiança de instituições, como partidos e
Congresso Nacional. Não deveria surpreender, nessa situação, que o país seja um
campeão de baixos índices de identificação partidária, de avaliação negativa do
Congresso Nacional e de incapacidade dos eleitores de lembrar-se dos políticos
em quem votaram nas últimas eleições. A experiência de práticas de corrupção
envolvendo governos, partidos políticos e membros do Congresso Nacional, sem
que os meios institucionais de controle sejam considerados efetivos, ajuda a
explicar a escolha que tantos cidadãos fazem de modelos de democracia "sem
partidos" e "sem Congresso Nacional". Resta saber se esse processo de
progressiva deslegitimação das instituições básicas da democracia
representativa poderá ser usado, a médio ou longo prazos, para alimentar
alternativas antidemocráticas.
Notas
1 Moisés (1995) e Baquero (2001; 2003) relatam resultados de pesquisa neste
sentido para diferentes períodos.
2 Ver explicações sobre as amostras no site www.latinobarometro.org.
3 Um balanço crítico e abrangente das teorias da cultura política pode ser
encontrado em Rennó (1998). Em sentido semelhante a questões propostas neste
trabalho, o autor chama a atenção para o problema da relação entre estrutura
política e cultura política, algo também tratado por Moisés (1995). Para uma
abordagem distinta, no estudo de países latino-americanos, que combina a
análise histórica com o uso de dados quantitativos, consultar Gómez (2004).
4 Tancredo Neves, líder de uma coalizão de forças formada por dissidentes do
antigo regime e líderes da resistência democrática, foi eleito presidente
segundo a constituição dos governos militares, mas morreu antes de tomar posse.
O vice-presidente, José Sarney, um dissidente do regime militar que até poucos
meses antes presidira o partido de sua sustentação, tornou-se o primeiro
presidente civil.
5 O artigo 62 da Constituição de 1988 autoriza o presidente, em casos de
"urgência e relevância", a decretar "medidas provisórias com força de lei". A
prerrogativa tem sido amplamente utilizada por todos os presidentes desde 1988
e, embora objeto de controvérsia entre os principais analistas, é considerada
"uma forma poderosa de autoridade legislativa porque permite que os chefes do
Executivo controlem o conjunto da produção legislativa, inclusive de políticas,
em conformidade com o seu desejo" (Amorim Neto, 2006). Ver também Figueiredo
(2004).
6 Em 1992, o primeiro presidente civil eleito depois da democratização sofreu
um processo de impeachment sob acusação de corrupção; em 1993, membros da
Comissão de Orçamento do Congresso Nacional foram destituídos e punidos por
acusações semelhantes.
7 Ver Relatório Final da CPI dos Correios (2006).
8 Em entrevista à imprensa, o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB,
partido integrante da base aliada do governo, declarou que o PT transferira
recursos para aquele partido pagar gastos da campanha eleitoral de 2002. A
declaração foi confirmada em depoimento à CPI dos Correios (2006).
9 Embora sustente uma visão positiva do sistema político, Figueiredo (2004)
fala claramente das dificuldades do parlamento brasileiro para desempenhar as
suas funções no quadro do presidencialismo de coalizão.
10 A universalização do sufrágio é uma característica importante do processo de
democratização do Brasil. Em 1930, sob um sistema oligárquico, votaram na
escolha de presidente da República 2 milhões de cidadãos, correspondendo a 5%
da população; em 1945, na democratização brasileira do após-guerra, votaram 16%
da população; e, em 2002, 66,6% que, considerada apenas a população de 18 anos
ou mais, representava 94%. O voto é obrigatório e facultativo para pessoas de
16 a 18 anos ou de 70 anos ou mais. Na última eleição presidencial, foram
contados 76% de votos válidos, isto é, excluídos os votos em branco, nulos e o
não-comparecimento (Lamounier, 2005; Kinzo, 2004).
11 A CPI dos Correios concluiu que 16 parlamentares receberam recursos ilegais
ou se envolveram em delitos semelhantes em troca de apoio ao governo, mas
apenas três foram punidos pela Câmara dos Deputados, mostrando o peso do
corporativismo em decisões destinadas a corrigir distorções que afetam o
desempenho do parlamento.
12 Pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que a avaliação do Congresso
Nacional chegou ao nível mais baixo dos últimos anos após as denúncias de
corrupção no governo Lula: 47% consideram o seu desempenho "ruim ou péssimo",
34%, "regular" e apenas 13%, "ótimo ou bom". Baquero (2003) também encontrou
índices críticos, em relação ao Congresso Nacional e aos partidos políticos, na
região metropolitana de Porto Alegre em 2002: 89% e 91%, respectivamente, de
pouca ou nenhuma confiança.
13 A Costa Rica é a democracia mais longeva da América Latina. Argentina, Chile
e Uruguai, apesar de interrupções do regime democrático, contam -
diferentemente do caso brasileiro - com uma tradição de partidos surgidos entre
o final do século XIX e início do XX que seguem tendo papel importante até
hoje.
14 Em anos recentes, o Equador enfrentou várias crises institucionais que
terminaram com a deposição de um presidente e, mais recentemente, durante os
trabalhos da assembléia constituinte, com o afastamento de deputados que se
opuseram ao presidente; o México só na última eleição presidencial introduziu
um efetivo sistema de alternância no poder; o Peru sob o governo de Fujimori
sofreu um autogolpe em 1992 e, na Colômbia, a legitimidade do Estado vem sendo
permanentemente ameaçada por causa da ação da guerrilha e do narcotráfico.
15 As médias de preferência pela democracia, em anos recentes, são de 59% nos
países do leste da Ásia, 51% no leste da Europa e 63% na África (Shin, 2005);
na Espanha, em Portugal e na Grécia, em meados dos anos de 1980, eram
respectivamente de 71%, 61% e 87% (Moisés, 1995).
16 Para a análise, foram consideradas as seguintes afirmações: 1) "No seu país,
um governo militar pode solucionar mais ou menos coisas do que um governo
democrático?"; 2) "Um governo militar pode substituir um governo democrático se
as coisas se tornarem muito difíceis"; 3) "Não importa que um governo não-
democrático chegue ao poder se puder resolver os problemas econômicos"; 4)
"Quando há uma situação difícil, não importa que o governo passe por cima das
leis, do parlamento e das instituições com o objetivo de resolver os
problemas"; 5) "Se o país passa por sérias dificuldades, o presidente não
precisa se limitar ao que dizem as leis"; 6) "Eu daria um cheque em branco a um
líder salvador que resolvesse os problemas do país"; 7) "Prefiro a democracia a
um líder que tenha todo o poder sem o controle das leis"; 8) "Como é a
democracia no seu país: uma democracia plena, uma democracia com pequenos
problemas, uma democracia com grandes problemas ou não é uma democracia?".
17 A satisfação com a democracia foi medida pela seguinte pergunta: "Em geral,
você diria que está muito satisfeito, satisfeito, não muito satisfeito ou nada
satisfeito com o funcionamento da democracia no país?". Neste estudo, adotou-se
a versão dicotômica, isto é, satisfeito ou insatisfeito. Quanto à confiança
política, a questão utilizada foi: "Por favor, veja este cartão e diga, para
cada instituição listada, quanta confiança você tem em cada uma delas: muita,
alguma, pouca ou nenhuma confiança". As instituições consideradas nas análises
foram: o Congresso Nacional, os partidos políticos, o Judiciário e a polícia.
18 Em vista da tradição latino-americana e, em especial, da brasileira de
desvalorizar o parlamento e os partidos políticos, foram escolhidas as
seguintes questões para teste: "Algumas pessoas dizem que sem partidos
políticos não pode haver democracia, enquanto outras dizem que a democracia
pode funcionar sem partidos" e "Algumas pessoas dizem que sem o Congresso
Nacional não pode haver democracia, enquanto outras dizem que a democracia pode
funcionar sem o Congresso - qual frase está mais próxima da sua maneira de
pensar?". A variável foi dicotomizada e utilizada a alternativa negativa no
teste.
19 As perguntas referiam-se à avaliação da situação econômica do país, da
situação econômica do entrevistado, da renda familiar, da igualdade diante da
lei, do orgulho quanto à nacionalidade, da percepção sobre a intensidade da
corrupção, da efetividade das eleições e da religiosidade, além de indicadores
sociodemográficos.
20 O resultado é diferente daquele obtido por Lopes (2004) no que se refere ao
papel da avaliação da economia para a confiança institucional, indicando que
esta é uma área que demanda mais pesquisa.