Rompendo fronteiras: a cidade do samba no Rio de Janeiro
Introdução
Embora as manifestações de Carnaval na cidade do Rio de Janeiro sejam bastante
variadas, os desfiles suntuosos das escolas de samba pertencentes ao Grupo
Especial e ao de Acesso no Sambódromo sobrepõem às demais formas de se brincar
o carnaval, prevalecendo a visão quase consensual de que as brincadeiras
estariam restritas a eles. A apresentação de blocos independentes, a realização
de bailes em clubes, a premiação de fantasias e um conjunto de outras
manifestações compõem, portanto, o panorama da festa de Carnaval, nessa cidade.
Os fazedores dos desfiles carnavalescos saúdam o surgimento da Cidade do Samba
como, por exemplo, Joãosinho Trinta para quem a sua construção significa, ao
lado do incentivo aos blocos independentes, "um sonho realizado".1 No entanto,
esse empreendimento condensa uma tensão entre aspectos tradicionais e modernos,
na medida em que o velho é recriado e re-significado, sob outras condições
históricas. Desse modo, são reafirmadas as imagens "glamourosas" que associam
essa cidade ao samba, aos desfiles carnavalescos, às festas, à alegria, às
praias e ao estilo de vida do "povo brasileiro" e, em particular, dos cariocas.
Um modo de viver possível ou almejado por todos no planeta.
Os turistas, chegando às dependências da Cidade do Samba, recebem uma
publicação editada pela Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) com o
título "RIO, Cidade do Samba" e um subtítulo - "A fábrica dos sonhos se torna
realidade" - que instiga a sua imaginação. O sonho concretiza-se, atendendo às
demandas dos sambistas e à curiosidade dos turistas que, através de um balcão
suspenso na altura do 3º piso, entram em cada uma dessas "fábricas" pela
passarela externa que as circunda. Assim, podem apreciar a construção das
alegorias e o trabalho dos artesãos e dos artistas.2
A Cidade do Samba do Rio de Janeiro foi construída a partir de uma parceria
firmada entre dirigentes das grandes escolas de samba cariocas e representantes
dos órgãos governamentais locais com vistas à expansão das atividades de
turismo, complementando as que acontecem, desde 1984, no Sambódromo. Para isso,
a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro cede o terreno para edificação da
Cidade do Samba com área equivalente a dez campos oficiais de futebol.
O projeto arquitetônico da Cidade do Samba segue as diretrizes de um parque
temático, mas resulta de uma coleta sistemática de informações históricas e
dados técnicos acerca da produção artística dos desfiles de carnaval.
Compreende quatorze prédios construídos um ao lado do outro e um pátio interno.
Nos prédios, funcionam os barracões denominados nos discursos oficiais por
"fábricas dos sonhos".
Cada um desses prédios tem quatro pavimentos com área de 600 m². Neles estão
instalados vários almoxarifados; setor de ferragens; carpintaria; cozinha,
refeitórios, sanitários; portaria; elevador para carga; administração; setores
de criação tais como: construção das esculturas e sua modelagem em fibra de
vidro, vime ou arame; oficinas de costura e de adereços. O elevador de carga
atende aos quatro andares, integrando as várias oficinas instaladas no último
pavimento com a montagem dos carros alegóricos que se encontram no térreo, cuja
área tem, aproximadamente, 2.700 m². Essa área possibilita a construção
simultânea de doze carros alegóricos. Um vão no teto do 3º pavimento permite
ver o andar superior, onde são confeccionados as esculturas e os adereços dos
carros alegóricos.
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Circulando esse vão, uma talha se move presa em um trilho amarelo que
transporta enormes esculturas e as colocam no carro alegórico correspondente.
Ou seja, os carros não se movimentam no barracão, mas a talha. As alegorias
atingem até 8 metros de altura. No quarto pavimento de 2.700 m², encontram-se
os ateliês de costura, de chapéus e de outros adereços, além das oficinas de
escultura e de modelagem. Cada barracão tem um portão verde central de 10
metros de largura por 7,5 metros de altura com entrada pelas ruas que circundam
a Cidade do Samba. Cada prédio possui três portas com tela de arame verde
voltadas para o pátio interno. Desse modo, se pode ver, a partir de dentro dos
barracões, as alegorias expostas nesse pátio, bem como as que fizeram parte do
desfile anterior da escola de samba à qual pertence o barracão. Essas portas
ficam fechadas, mas se abrem para limpeza diária do chão no térreo e no momento
em que as alegorias são levadas, completamente montadas, para o Sambódromo, às
vésperas dos desfiles oficiais de Carnaval.
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Os prédios circundam, configurando uma área interna onde estão expostas
alegorias e algumas esculturas das várias escolas de samba, compondo um cenário
para os shows musicais semanais com interpretes, passistas e percussionistas
ligados às diferentes agremiações carnavalescas cariocas.
No mesmo espaço urbano, concentram-se a produção dos carros alegóricos e a
confecção de grande parte das fantasias, ou seja, os processos propriamente
ditos de trabalho que se desenrolam nos barracões e a movimentação nas quadras
das escolas de samba onde se realizam os ensaios semanais, particularmente, às
vésperas dos dias de Carnaval.
A concepção da Cidade do Samba visa, sem dúvida, a preencher os olhares
"estrangeiros" voltados para o exótico. Neste aspecto, reside a competência
global de seus idealizadores, mostrando que "muitos lugares turísticos de hoje
têm de vincar seu caráter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser
suficientemente atractivos no mercado global de turismo" (Santos, 2002, p. 65).
Contudo, suas fronteiras se rompem, interferindo na dinâmica urbana. Quer
dizer, a sua construção atua na cidade do Rio de Janeiro, enquanto proposta de
revitalização da região da Gamboa aliada à implementação da política de
ativação social, via turismo, propiciada pelo samba, enquanto manifestação
cultural.3 Esse empreendimento demonstra, especialmente, que o samba constitui,
hoje, "parte de uma cultura musical globalizada" (Idem, p. 64).
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Na Cidade do Samba, desenrolam-se múltiplas práticas de trabalho e de emprego,
atividades com finalidades diversas, inclusive, as de administração condominial
dos prédios, ou dos barracões, ocupados pelas escolas de samba do Grupo
Especial e as do Grupo de Acesso associadas a LIESA. Cada uma delas organiza e
gerencia a produção das alegorias e as práticas de trabalho e de emprego de
modo independe, mas todas contribuem para manutenção e funcionamento da Cidade
do Samba. A concentração espacial de práticas e atividades relativas ao fazer
artístico dos desfiles carnavalescos e do entretenimento facilita os fluxos de
pessoas, informações, de material e de peças enviadas por fornecedores, gerando
uma economia de tempo decorrente dessa circulação e promovendo uma redução
relativa aos custos operacionais da produção. Assim, a forma de gestão
implementada na produção artística dos desfiles carnavalescos pelas grandes
escolas de samba remete aos preceitos administrativos que orientam as empresas
contemporâneas de alta tecnologia.
Desse ponto de vista, instaura um processo de reestruturação produtiva fora das
fábricas, demarcando um redesenho urbano, cujas tendências também podem ser
observadas em outras cidades contemporâneas. A construção da Cidade do Samba
parece abranger tão-somente as atividades de entretenimento destinadas,
principalmente, aos turistas, mas também institui as condições para agregar
valor aos recursos tecnológicos fornecidos pelas escolas de samba aos artistas
e artesãos que trabalham na produção dos desfiles de Carnaval. Nesse ponto,
revela-se a tensão entre a preservação de um saber fazer, visto como
tradicional, e a adoção de algumas soluções consideradas modernas.
Cada agremiação carnavalesca do Grupo Especial e a campeã do Grupo de Acesso
alugam esses prédios por um ano, mas a sua permanência no local depende do
resultado alcançado no concurso anual de Carnaval. As últimas colocadas no
grupo Especial devem se retirar do prédio para que as primeiras colocadas do
Grupo de Acesso4 possam participar do condomínio formado na Cidade do Samba.
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Os prédios foram, inclusive, escolhidos pelos dirigentes das grandes escolas de
samba de acordo com a classificação obtida por elas no concurso anual de
carnaval em 2004. Nesse ano, a Beija-Flor de Nilópolis conquistou o
bicampeonato, o que lhe garantiu a escolha do prédio de número 11; a Mangueira
optou pelo prédio n. 13 e assim sucessivamente, conforme as várias preferências
e disponibilidades.
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Os barracões estão dispostos5 de tal modo que configuram em seu conjunto uma
roda de samba. Vale lembrar que as rodas de samba sempre foram importantes
momentos na formação das redes de sociabilidade e de convivência nas escolas de
samba. Os participantes de uma roda de samba sentam, em geral, uns ao lado dos
outros, mas tocam e cantam sempre voltados para o centro do círculo, trocando
olhares e sinais entre si.
Os turistas e "estrangeiros", na qualidade de consumidores privilegiados das
atividades oferecidas na Cidade do Samba, têm a oportunidade de escolher e
vestir uma fantasia; subir em carros alegóricos e acompanhar os shows musicais
protagonizados pelos componentes das várias escolas de samba. Essa experiência
constitui um simulacro do que poderiam assistir nos dias de carnaval no
Sambódromo. As atividades incluem, portanto, programas de entretenimento e uma
visita aos barracões com acesso pela passarela externa que circunda todos eles
e de onde se pode apreciar uma parcela dos processos de trabalho envolvidos na
produção artística dos desfiles carnavalescos.
A presença de turistas e visitantes não atinge, diretamente, a vida cotidiana
das escolas, nem altera, de imediato, as formas de organização dos barracões.
Ao contrário do que apregoam alguns discursos nostálgicos e, até certo ponto
românticos, em relação às mudanças na festa carnavalesca na cidade do Rio de
Janeiro. A abertura das atividades que se desenrolam nos barracões aos olhares
externos, mesmo que seja por algumas horas, permite avaliar a situação em que
se encontra cada agremiação carnavalesca para o próximo concurso anual de
Carnaval.
Os investimentos na construção de uma Cidade do Samba demonstram ao mundo "que
o samba tem valor",6 mas a sua emergência está permeada por ambigüidades ao
tentar contemplar tanto olhares internos - por dentro - das escolas de samba,
quanto os olhares externos ñ de fora. Desse modo, combina aspectos tradicionais
e modernos na sua gestão, substituindo repressão policial por negociação e, em
vez de negação, o reconhecimento dos festejos populares, como manifestação
cultural. Nessa medida, expressa a articulação entre demandas sociais,
econômicas e a dos próprios sambistas, embora a cidade do Rio de Janeiro já
detenha um patrimônio histórico expressivo ao lado da exuberância da sua
natureza. Apesar disso, a proposta da Cidade do Samba corrobora essa vocação,
tornando a cidade cada vez mais um pólo atrativo aos investimentos voltados
para um turismo sustentável.
É evidente o despreparo dos governantes para tomar decisões relativas ao
desenvolvimento turístico. Por isso, a maior parte das políticas governamentais
está restrita ao traçado de rotas turísticas, ou à delimitação de áreas que
atendam às expectativas de turistas. Assim, a administração do turismo parece,
segundo Ramos, "um fenômeno simples que consiste em fornecer incentivos fiscais
para construir complexos de hotéis" (2005, p. 80).
A instalação da Cidade do Samba caminha, no entanto, em outra direção. Daí os
discursos recorrentes que tentam difundir a idéia de que tudo mudou, inclusive,
no antigo barracão. A partir de então, as suas características desapareceriam,
surgindo, a partir de então, a "fábrica dos sonhos". Os nomes podem mudar, mas
permanecem as tradições, o modo de fazer a festa e quem a faz acontecer. As
práticas de trabalho e/ ou de emprego pouco se alteram, sendo preservado, nos
intramuros das novas instalações, o modo de fazer alegorias, adereços e
fantasias.
A análise desses vários aspectos implica desafios, dentre eles, o de desvendar
as suas interconexões e inter-relações. O surgimento da Cidade do Samba no Rio
de Janeiro exemplifica, de um lado, a implementação de uma política
governamental de ativação social, no Brasil, baseada na proposta de turismo
sustentável cujo objetivo seria gerar emprego e renda diante da expansão dos
negócios relativos ao comércio de drogas; de outro lado, constitui um marco
importante no desenrolar dos festejos carnavalescos naquela cidade, como avalia
uma das pesquisadoras do carnaval carioca.7 Importa ainda destacar, nessa
análise, a dimensão simbólica do samba e do carnaval, cujo sentido se encontra
na cidade em que se localiza.
Cidade do Samba e demandas sociais
Nasce o sol e com ele é fincada a primeira estaca8
A vocação turística do Rio de Janeiro alia-se à implantação e à expansão das
atividades de entretenimento como, por exemplo, a criação da Cidade do Samba.
Os discursos de representantes das escolas de samba e dos governos locais
enaltecem os investimentos gerados pelos bens intangíveis no contexto de uma
política governamental de ativação social que se configurou, no Brasil, de modo
fragmentado no decorrer dos anos de 1990. Embora tenham sido influenciadas pelo
sucesso das políticas européias e norte-americanas, a sua implementação, nesse
país, caracteriza-se por certa dramaticidade, respondendo às tendências do
mercado de emprego (Silva, 2006) e diante do recrudescimento "da guerra aberta
contra os jovens" (Negri e Cocco, 2005, p. 111).9
Nas palavras de Silva, "a ativação é vista como a cura para todos os males
sociais, especialmente para as altas taxas de desemprego, para as situações de
exclusão e/ ou marginalização do mercado de trabalho (assalariado) de longa
duração" que implicam em custos elevados no enfretamento dessa "nova questão
social". Torna-se urgente "transformar despesas passivas em despesas ativas".
(Silva, 2006, p. 96).
O cenário histórico, particularmente na cidade do Rio de Janeiro, propicia a
rápida adesão aos projetos de intervenção social por meio de políticas
governamentais com vistas à geração de emprego e renda para jovens do sexo
masculino. São eles, segundo indicadores estatísticos, que se encontram mais
vulneráveis aos atrativos exercidos pelo comércio de drogas no Rio de Janeiro.
Declara José Júnior, coordenador do Grupo Cultural Afro Reggae, em entrevista a
um jornal paulistano: "ninguém gera mais emprego que o tráfico em subúrbios e
favelas. Tem sempre vagas porque há muitas mortes e prisões [...] hoje o que
resolve é emprego [...]. A educação, infelizmente, ficou em segundo plano".10
O projeto da Cidade do Samba é freqüentemente reverenciado pela imprensa, pelos
sambistas e por representantes empresariais, governamentais e das escolas de
samba a partir de sua inserção nas políticas de ativação social promovidas pelo
governo local. Em certa medida, essa avaliação positiva se relaciona com o fato
de que os olhares externos sobre o Carnaval recaem nas grandes escolas de
samba, principalmente as cariocas, cada vez mais focalizadas pelos meios de
comunicação eletrônica em várias partes do mundo.
A grande maioria dos admiradores e participantes dos festejos carnavalescos,
assim como de outras festas populares, desconhecem os seus preparativos. Os
múltiplos processos de trabalho que viabilizam, por exemplo, os desfiles de
carnaval ainda permanecem invisíveis, até mesmo na Cidade do Samba. Além de
ficar visível apenas uma parcela dos processos de trabalho requeridos na
construção dos carros alegóricos, todo esplendor das alegorias e das fantasias
só será desvelado no próprio desfile da escola de samba nos dias de Carnaval.
Nesse momento, ganham outro sentido, ao compor a narrativa de um enredo,
enquanto um dos elementos dos códigos não-verbais (Blass, 2007).
As visitas a Cidade do Samba e, principalmente, os espetáculos musicais e a
performance dos sambistas que se desenrolam no pátio interno estão direcionados
aos turistas nacionais e estrangeiros. Desse modo, busca-se o retorno
financeiro dos investimentos públicos e privados aplicados na sua administração
e funcionamento. Em certa medida, os argumentos sobre a transformação dos
"velhos" barracões em "fábricas dos sonhos" e a expansão de uma "indústria da
folia" baseada no samba fundamentam-se nessa perspectiva. Importa difundir a
idéia do "novo", mesmo sendo o "velho" que se configura sob outras condições
históricas. Então, o que se entende por "fábricas dos sonhos" e "indústria da
folia" ? Qual a relação entre essas noções?
Fábrica dos sonhos e indústria da folia
"...o Carnaval é uma opção de emprego e de geração de renda."
BARBOSA (2004, p. 77)
Os dirigentes das agremiações carnavalescas, assim como os sambistas em geral,
associam freqüentemente a produção artística dos desfiles carnavalescos ao
modelo fabril. Contudo, são as linhas de montagem para produção em série das
indústrias automobilísticas que tomam como referência histórica. Assim, a
fábrica moderna, na sua universalidade abstrata, torna-se emblemática, mais uma
vez, das formas de organização do trabalho coletivo, apesar das peculiaridades
das práticas de trabalho no barracão.
A denominação "fábrica de ilusões", ou então "de sonhos", seria, talvez, uma
tentativa para conquistar o reconhecimento social na implantação e no
funcionamento da Cidade do Samba. As imagens divulgadas pela LIESA buscam
legitimar o fazer e o saber fazer carnaval. Antes mesmo desse empreendimento, a
idéia de fábrica relativa ao funcionamento e à organização dos processos de
trabalho na produção dos desfiles já era bastante recorrente. Sem dúvida, a
divisão de tarefas e a inserção de cada um(a) na produção das alegorias e das
fantasias atendem aos princípios da divisão do trabalho. Porém, a fragmentação
das tarefas, que cria o trabalhador coletivo no barracão, remete ao processo
produtivo da manufatura, conforme já me referi em outras publicações (Blass,
1998, 2007).
A produção dos desfiles carnavalescos das escolas de samba diz respeito ao
fazer artístico cuja lógica responde ao consumo e não à acumulação. Nesse
fazer, cada passo é dimensionado, as etapas são redimensionadas para atender
metas predefinidas, exigindo previsão e controle das ações individuais. Quem
faz os desfiles de Carnaval acontecer, detém um saber fazer no seu ofício que
lhe permite desempenhar as suas práticas de trabalho em outros lugares.
Conforme analisa Barbosa, "o trabalhador de escola de samba, muitas vezes, por
desempenhar um ofício convencional (carpinteiro, serralheiro, costureira etc),
embora sendo orientado para um resultado artístico, não se restringe ao
trabalho no barracão, desempenhando sempre atividades paralelas" (2004, p. 73).
Admitindo esse fato, alguns autores partem da concepção da chamada "cadeia
produtiva da economia do carnaval" para descrever a produção artística dos
desfiles de carnaval nas grandes escolas de samba, supondo que essa produção
dependeria, como ocorre em outras organizações produtivas, de vários setores
tais como: indústria têxtil, de madeira, couro, plástico, chegando até, a
indústria fonográfica e à radiodifusão.11 No entanto, essas análises ignoram o
fato de que o fazer artístico, nas suas múltiplas formas de expressão, segue
"estilos e ritmos ligados à intuição, à emoção, às descobertas e aos acasos que
dificultam a padronização de tarefas e atividades. Nesse sentido, persegue a
lógica da não linearidade" (Blass, 2006, p. 18).
Ao contrário do que apregoam muitos sambistas e idealizadores da Cidade do
Samba, os preceitos da modernidade restringem-se às decisões administrativas
ligadas ao condomínio e ao funcionamento de uma "cidade de fluxos". Não
atingem, portanto, a forma de organização desses processos de trabalho que
sempre vigoraram no barracão. Por esse motivo, os prédios, que compõem a Cidade
do Samba, permanecem sendo "barracão dos sonhos" e não "fábrica dos sonhos".
Isto significa admitir que o modo de fazer alegorias, adereços e fantasias não
se altera, nem a produção dos desfiles carnavalescos, envolvendo múltiplos
locais e diferentes tempos, permanece seqüencial, sincrônica e simultânea. Além
disso, as práticas de trabalho continuam, fundamentalmente, manuais e
artesanais. A confecção de alegorias, fantasias e adereços não atende aos
requisitos de uma produção em massa, embora sejam montados a partir de
centenas, ou mesmo milhares, de peças prensadas, recortadas, coladas e
pintadas. Mesmo assim, foge das diretrizes padronizadas exigidas pelo
funcionamento de linhas de montagem. Se cada carnaval é um carnaval, todos os
anos renovam-se enredos e, por conseqüência, o modo de apresentar uma
narrativa.
As composições musicais articulam, por exemplo, sons de instrumentos musicais e
palavras escritas em versos que variam de intensidade conforme as imagens
mobilizadas pela letra de um samba de enredo. Na produção artística das
alegorias e das fantasias, formas, cores e linhas com variação de ritmos são
imaginadas antes de serem expressas e ganharem materialidade. O imaginar
depende da materialidade específica de cada campo de trabalho. No caso da
pintura, o imaginar implica, como explica Ostrower, "ordenar, ou preordenar -
mentalmente - certas possibilidades visuais, de concordâncias ou de
dissonâncias entre cores, de seqüências ou contrastes entre linhas, formas,
cores, volumes de espaços visuais com ritmos e proporções" (2001, p. 35).
Dessa perspectiva, considera Renato Theobaldo, carnavalesco da escola de samba
Vai Vai, entre 1991 e 1993, que saberes e fazeres interferem na produção
artística dos desfiles carnavalescos. Para ele, desde tapeceiros, soldadores,
carpinteiros, eletricistas, até compositores, percussionistas, cantores,
escultores, estilistas, costureiras, desenhistas, aderecistas etc.,
acrescentariam algo ao enredo proposto por um carnavalesco, seja dando
sugestões, seja introduzindo alterações na proposta inicial da narrativa de um
enredo. Por esse motivo, fica difícil delimitar o aspecto autoral de um produto
que é sempre coletivo.
Os vários prédios construídos na Cidade do Samba constituem um dos lugares da
produção dos desfiles das escolas de samba, ao lado das quadras e dos ateliês
de fantasias. O seu funcionamento não se enquadra no modelo fabril porque não
se "fabricam" sonhos. Os artesãos e artistas envolvidos na produção artística
de desfiles carnavalescos objetivam os sonhos, ou viabilizam sonhos que, antes,
eram apenas imagens que narrariam um determinado enredo. Nessa medida,
permanecem sendo "oficinas dos sonhos".12
A idéia de uma Cidade do Samba, enquanto indústria da folia, abrange os
quatorze prédios, um museu a céu aberto, mas principalmente diz respeito às
apresentações musicais que ocorrem no pátio interno13 onde se pode ouvir e
dançar samba. Na abertura das comemorações carnavalescas de 2007, por exemplo,
houve baile, corso, desfile de fantasias de luxo, evolução de passistas e
ritmistas e um pequeno desfile ao som do samba-enredo de 2006 da Vila Isabel,
agremiação carnavalesca que se sagrou campeã naquele ano. A imprensa local
noticiou que "todas as atividades tiveram como mestres de cerimônias: Milton
Cunha (carnavalesco da Porto da Pedra, em 2007) e Carlinhos de Jesus
(coreógrafo da comissão de frente da Mangueira)".14
Os "localismos" culturais e artísticos alcançam os mercados planetários e são
globalizados "pela combinação entre espetáculo e competição desportiva, de um
lado, e televisão, de outro, pelos circuitos musicais". (Fortuna e Silva, 2002,
p. 441) Desse ponto de vista, torna-se fundamental inserir manifestações
culturais e artísticas nos processos sociais da globalização como, por exemplo,
as diferentes formas de se brincar o carnaval.
Essa visão também transparece na análise de Figueira que chamar a atenção para
"a expertise brasileira" no modo de fazer carnaval, principalmente, na versão
criada pelas grandes escolas de samba no Rio de Janeiro. Para essa autora, os
seus desfiles de Carnaval constituem uma invenção brasileira potencializada por
fluxos simbólicos que "nenhum outro país possui".15
O foco dessas análises recai, basicamente, na festa propriamente dita e não o
seu efetivo acontecer que se sustenta em relações sociais construídas e
reconstruídas no cotidiano de uma escola de samba. O transcorrer dos desfiles
oficiais, no Sambódromo, funda-se nesse aspecto, mas também depende do empenho
de seus integrantes e da adesão dos foliões ao enredo narrado por uma
determinada agremiação carnavalesca.
O projeto da Cidade do Samba torna-se realidade a partir da dedicação e do
envolvimento dos fazedores do Carnaval. Se tal projeto não fosse expressão dos
seus próprios protagonistas, estaria provavelmente ainda adormecendo nas
gavetas de algum órgão governamental.
Olhares sobre nós mesmos
Os sambistas viam a obra como se fosse a própria casa16
Nada é negligenciado no projeto da Cidade do Samba no Rio de Janeiro, inclusive
a escolha do local para sua edificação na Gamboa. Essa escolha demonstra, de um
lado, o reconhecimento das tradições culturais, da experiência histórica dos
africanos e da presença urbana dos negros no Rio de Janeiro. De outro lado,
remete à ruptura das "muralhas" socioeconômicas e simbólicas que segregam os
habitantes da baixada fluminense e os moradores na cidade do Rio de Janeiro; ou
então, que separam zona norte e zona sul dessa cidade, ou ainda que dividem
asfalto e morros.
Sua localização em Gamboa significa um retorno às origens, como anuncia a
revista editada pela LIESA na suas várias páginas. Esse território "concentra
grande tradição da cultura popular da Cidade, nomeadamente, de personagens e
entidades ligadas ao Carnaval carioca" como, por exemplo, os batuques de Tia
Ciata na Praça Onze; os clubes de rancho sedimentados por Hilário Jovino
Ferreira e que inspiraram escolas de samba como a "Vizinha Faladeira", uma das
mais antigas agremiações carnavalescas, organizadas por estivadores (cf. p. 9).
Além disso, "o principal local de desembarque e comércio de negros era na atual
Praça Quinze e seus arredores. O crescimento do tráfico e a presença maciça de
cativos incomodava a burguesia" (Idem, p. 6) Então, por volta de 1770, o
mercado de escravos foi transferido "para a região do Valongo, até então
ocupada por chácaras e hortas" (Idem, p. 7) Entre as chegadas e saídas dos
negros para as minas e lavouras, eles "batucavam e cantavam para matar um pouco
a saudade de sua terra, para onde, certamente, nunca mais voltariam". Nessas
proximidades, surgiriam as primeiras rodas de samba (Idem, p. 8).
O fazer carnaval, antes desprezado ou ignorado, conquista, gradativamente, a
legitimidade junto aos órgãos governamentais locais, ganhando maior
visibilidade na sociedade brasileira. Para alguns autores, essa mudança decorre
da transferência da capital federal para Brasília. Escreve Figueira, "como o
Rio de Janeiro havia perdido a função de capital federal, a condição turística
da cidade passou a ser enfatizada. O Carnaval tornou-se o principal produto no
mercado de turismo de entretenimento carioca (e assim) compete com outros
carnavais - o de Salvador, por exemplo".17
Os desfiles anuais de Carnaval das grandes escolas de samba tornam-se, ao mesmo
tempo, um evento cultural, político, econômico e alteram ainda a paisagem
urbana.18 A construção da Cidade de Samba poderia, nesse sentido, abrir um
debate em torno da proposta de revitalização urbana, ao interferir no entorno
de um "pedaço" da cidade, ampliando ruas e avenidas para translado das
alegorias até a área de concentração no Sambódromo, onde acontecem os desfiles
nos dias de Carnaval. O percurso é mantido, mas se alteram "as facilidades de
manobra no interior e no entorno a Cidade do Samba", promovendo um "espetáculo
que a cidade não vê".
Desde a inauguração do Sambódromo na Marquês de Sapucaí, em 1984, sambistas e
dirigentes das escolas de samba reivindicavam alterações no traçado urbano para
atenuar os transtornos no tráfego em virtude do translado das alegorias às
vésperas dos dias de Carnaval. A construção da Cidade do Samba atende essa
demanda, mas também torna mais visível uma parcela das atividades desenvolvidas
pelas escolas de samba fora desse período. Tanto que está escrito em letras
enormes nos cartazes fixados nas paredes externas no entorno da Cidade do
Samba: "aqui o Carnaval é o ano inteiro."
As referências ao passado, bastante recorrentes nos documentos oficiais
consultados na elaboração deste texto, são acompanhadas pela difusão de um
ideário moderno associado às movimentações de britadeiras, guindastes, soldas
para fundações, terraplanagem etc. que são utilizados em quaisquer edificações.
Do ponto de vista dos dirigentes das escolas de samba e dos fazedores dos
festejos carnavalescos, a construção de um local destinado exclusivamente à
produção dos desfiles carnavalescos reafirma e demonstra que esses festejos
devem ser levados a sério, extrapolando a idéia de uma simples brincadeira.
Nessa medida, põe a descoberto os múltiplos processos de trabalho que se
desenrolam durante meses.
Enfatizando a racionalidade técnica subentendida no projeto da Cidade do Samba,
os seus idealizadores lembram que "para montar uma linha de produção aproximada
do ideal, os arquitetos passaram quase dois anos visitando os antigos barracões
nos armazéns das Docas, estudando, detalhadamente, todo o processo de
construção de alegorias e produção de fantasias".19 Portanto, o que já existia
foi refeito com o uso de outros materiais e de recursos tecnológicos oferecidos
pela construção civil. Não se trata de um "novo" projeto, pois o layout dos
"antigos" barracões não é alterado. A área central com uma altura equivalente a
três andares, onde são construídos os carros alegóricos, encontra-se, contudo,
em ambiente fechado e, portanto, protegida das intempéries.
A revista da LIESA, tentando demarcar as mudanças implementadas pelo projeto
arquitetônico da Cidade do Samba, enfatiza especialmente o tamanho dos portões
dos barracões e ao uso do ar comprimido para o translado dos carros alegóricos
com altura excessiva para atravessar as ruas da cidade até o Sambódromo. Apesar
das imagens divulgadas nessa publicação, essa solução técnica já havia sido
introduzida na confecção dos carros alegóricos antes da construção da Cidade do
Samba.
As descobertas e as soluções técnicas são, assim, reatualizadas. Se antes
enormes esculturas e adereços saiam pelas janelas dos armazéns com auxílio de
talhas e guindastes e eram colocados, completando os carros alegóricos
estacionados nas ruas em frente aos barracões, agora na Cidade do Samba, eles
"descem" pelo vão interno aberto no teto do 3º piso e são posicionados sobre os
carros alegóricos distribuídos na área central dos barracões. Assim, esses
carros saem dos barracões, completamente, finalizados. Ou seja, tudo acontece
dentro dos barracões. Alteram-se as condições de trabalho, sem modificar a base
técnica da produção artística dos desfiles de carnaval cuja gestão permanece
sob a coordenação e responsabilidade do carnavalesco contratado para "fazer um
determinado carnaval" junto com a comissão de Carnaval da escola de samba.
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Os idealizadores da Cidade do Samba consideram a denominação "barracão"
ultrapassada na medida em que remete aos "tempos difíceis" da produção dos
desfiles. Que tempos difíceis eram esses? Eram os tempos em que o próprio
espaço para montar os carros alegóricos era criado e recriado a todo instante
na base do imprevisto. A improvisação começou, como ressalta a revista da
LIESA, "nos subúrbios, passou pelo Pavilhão de São Cristóvão e terminou nas
Docas". Eram "tempos difíceis", quando os carros eram acabados nas ruas e nem
havia lugar para mexer a tinta a ser usada na arte final das esculturas e das
alegorias.
Os discursos institucionais difundem, assim, a idéia da "falta de espaço
interno" como "um obstáculo à produção", levando a improvisação, bagunça e
sujeira. Em contraposição, aos "antigos" barracões, ressaltam o planejamento
sistemático, a ordem e a limpeza que distinguem as condições de trabalho
experimentadas pelos fazedores dos desfiles carnavalescos na Cidade de Samba.
No entanto, todas as tarefas e as atividades requeridas na produção artística
dos desfiles de carnaval sempre foram, detalhadamente, planejadas e preparadas
em suas diferentes etapas, como já apontei em outros textos.
As dificuldades diziam respeito à circulação de materiais e de peças, assim
como à falta de refeitórios e/ou à pouca disponibilidade de sanitários tanto
para homens, como para mulheres. Barbosa conclui, apoiando-se nas palavras de
Louzada, carnavalesco da Beija Flor, que os antigos barracões lembram "os
ambientes insalubres das fábricas dos primórdios da revolução industrial [sem
qualquer] semelhança com o brilho e a beleza das alegorias e adereços que ali
são produzidos" (2004, p. 75).
Convém ressaltar que uma certa desordem e uma aparente desorganização
transparecem no funcionamento cotidiano dos atuais barracões, como pude
constatar em visitas recentes.20 É forçoso reconhecer, nesse sentido, que todo
ato criativo supõe incertezas e descobertas que são, muitas vezes,
imprevisíveis no projeto inicial. Por isso, as soluções parecem improvisadas,
prefigurando uma idéia de falta de organização, mas elas, na realidade,
resultam, conforme Ostrower (2001), dos próprios desafios relativos aos atos de
criar.
Nas apresentações dos desfiles de carnaval, no Sambódromo, as alegorias
tornaram-se cada vez maiores em largura e altura; os adereços e as fantasias
ganharam mais volume para que pudessem ser apreciados pelo público das
arquibancadas. Essas modificações exigiram mudanças no desenho dos barracões e
no tamanho dos portões através dos quais entram e saem os carros alegóricos. A
reorganização espacial de antigos barracões provoca, por sua vez, algumas
alterações no projeto das esculturas, ou em parte delas. Nos barracões da
Cidade do Samba, elas são confeccionadas quase sem articulações e podem ser
observadas de cima para baixo, isto é, elas são postas nos carros alegóricos
como serão vistas por muitos espectadores nos desfiles oficiais de carnaval
protagonizados pelas grandes escolas de samba na cidade do Rio de Janeiro. O
manejo da talha, sob o piso do 4º pavimento, abre essa possibilidade sem que
seja necessário muito esforço físico por parte dos artesãos. Além disso, as
esculturas e os adereços são colocados em várias posições, ampliando as
soluções estéticas
Essas transformações exigem outra tecnologia, envolvendo o saber fazer dos
antigos ferreiros e soldadores. Nos anos de 1980, esses artesãos dedicavam
atenção especial na concepção das dobras das esculturas21 a fim de preservar as
alegorias na sua montagem e desmontagem durante o translado para as
apresentações das escolas de samba, no Sambódromo, uma vez que os carros
alegóricos atingiam uma altura cuja medida ultrapassava a altura máxima dos
telhados aonde eram produzidos.22 Portanto, o produto final revela as condições
sociais concretas em que o saber fazer dos artesãos se realizava. Por isso,
muitos sambistas consideram que foram tempos gloriosos, mas difíceis.
As oposições entre tradicional e moderno, no que se refere aos locais de
produção das alegorias, expressam-se na mobilização de um ideário fabril e nas
imagens de uma "indústria da folia" limpa e organizada que concretiza sonhos.
Nada é mencionado a respeito do entorno urbano que permanece tão deteriorado
quanto era antes da construção da Cidade do Samba na Gamboa.
Tendo em vista essas considerações, seria importante distinguir, em primeiro
lugar, o funcionamento dos barracões, enquanto local de produção artística, e
as atividades relativas aos espetáculos musicais nas quais atuam alguns
componentes das escolas de samba a fim de promover a "folia". Em segundo lugar,
é preciso observar que a divisão e a hierarquia entre as escolas de samba na
cidade do Rio de Janeiro não só permanecem, mas principalmente aprofundam-se.
Os critérios estabelecidos para a escolha e a ocupação dos barracões
institucionalizam, sem dúvida, a predominância das maiores em detrimento das
escolas menores.
Considerações finais
As referências históricas que buscam justificar a escolha da localização urbana
da Cidade do Samba revelariam, na perspectiva deste artigo, o reconhecimento
das tradições culturais, da experiência histórica dos africanos e da presença
urbana dos negros no Rio de Janeiro. A sua implementação consistiria, no
entanto, uma "resposta biopolítica" às "dimensões desumanas e o imensurável
sofrimento experimentado por grande parte da população" diante de "um poder de
fazer morrer" arbitrário e generalizado disseminado pela cidade, como escrevem
Negri e Cocco, (2005, p. 111). Esses autores tentam desvendar a dinâmica das
cidades contemporâneas no Brasil, em particular (a do) Rio de Janeiro, a partir
do conceito de biopoder, forjado por Foucault. A concepção de biopoder, lembra
Pelbart, "destina-se a produzir forças e fazê-las crescer, mais do que barrá-
las [...]. Gerir a vida mais do que exigir a morte" (2007, p. 22). Contudo,
Negri e Cocco ampliam esse conceito a fim de ressaltarem, segundo Pelbart, a
"dimensão racista ofuscada, quando não sistematicamente ocultada, da dominação
no Brasil" (Idem, ibidem).
Essa dimensão converge, importa frisar, com a visão etnocêntrica que sobreleva
o corpo que dança e, justamente, o exotismo do "samba no pé", cujos gestos e
movimentos das passistas respondem à cadência da percussão de uma bateria de
escola de samba. Os turistas desejam conhecer de perto e vivenciar por alguns
instantes essa experiência, tentando mover o corpo ao ritmo do samba, mesmo que
sejam desajeitados. A Cidade do Samba torna-se, assim, um dos lugares
investidos de significados e de interpretações dos próprios turistas. Comenta
Fortuna a esse respeito: "dada a sua permanência, por definição, limitada
nestes lugares, e dado o seu descomprometimento com a história e a cultura
locais, o turista pode exagerar na avaliação simbólica do lugar e investi-lo de
qualidades extra-ordinárias" (1999, pp. 68-69, grifos do autor).
Os fluxos econômicos dos eventos culturais e artísticos, se sintonizados aos
fluxos simbólicos, promovem o alcance das políticas governamentais de ativação
social baseada nos pressupostos do turismo sustentável. Ou seja, esses fluxos
complementam-se por meio de imagens e ideais veiculados pelos meios eletrônicos
de comunicação social e também pela movimentação de turistas que difundem outro
modo de estar no mundo. Assim, os fluxos culturais globais compreendem, na
perspectiva de Appadurai, cinco dimensões ou panoramas disjuntivos:
etnopanorama, midiapanorama, tecnopanorama, finançopanorama e ideopanorama,23
que se encontram em constante tensão entre homogeneização e heterogeneidade
cultural. Importa considerar para a análise proposta neste artigo os
etnopanoramas e os midiapanoramas. Os primeiros dizem respeito às "pessoas que
constituem o mundo em transformação em que vivemos: turistas, imigrantes,
refugiados, exilados etc.", incluindo a intensa circulação dessas pessoas pelo
mundo; enquanto os segundos abrangem a "distribuição das capacidades
eletrônicas de produzir e disseminar informações através de jornais, revistas,
estações de televisão, estúdios de filmagens etc.", bem como um vasto e
complexo repertório de imagens, de narrativas e de etnopanoramas para os
espectadores do mundo inteiro..." (Appadurai, 1998, p. 315)
A mediação eletrônica marca, portanto, um campo mais vasto do que as formas de
mediação escrita, oral, visual e auditiva. Por isso, estamos "perante uma nova
ordem de instabilidade no que respeita à produção de subjetividades modernas"
que extrapolam os limites nacionais e entrecruzam diferentes experiências
locais na elaboração de projetos individuais e coletivos. Desse modo, "a
imaginação é hoje fundamento para ação e não apenas para fuga" (Appadurai,
1998, p. 202).
Diante do exposto, os discursos em torno da defesa das manifestações culturais
nacionais como mecanismo de resistência diante das tendências históricas de
homogeneização das práticas culturais em tempos de globalizações, perdem seu
impacto. O ressurgimento das manifestações locais, regionais ou mesmo nacionais
não constituiria "uma espécie de reação à globalização, mas uma espécie de
combinação sincrética das culturas [...]. Desta forma, um número de variantes
locais daquela que é a cultura globalizada desenvolve-se e integra-se, em vez
de se contrapor" (Hobsbawm, 2000, p. 108, grifos meus).
Tradições são, portanto, reinventadas e recriadas no contexto de trocas
intensas de idéias, ideais e pessoas, aumentando a sua interdependência nas
sociedades contemporâneas. Esse intercâmbio constante traz, segundo Fortuna e
Silva, "também oportunidades de protagonismo na área da oferta cultural, que
vários países vêm explorando, seja por via de afinidades regionais ou
lingüísticas, seja por via de valorizações mais ou menos conjunturais das suas
imagens de marca" (2002, p. 442).
Os processos sociais da globalização alargam, portanto, o mercado consumidor
dos "localismos" culturais e artísticos como, por exemplo, se observa na Cidade
do Samba. A programação das suas atividades busca atender, antes, aos olhares
dos turistas que têm acesso, embora restrito, aos barracões e participam da
programação musical e de outras atividades na "indústria da folia".
As políticas de ativação social são avaliadas a partir da expansão dos níveis
de emprego e das remunerações pagas na Cidade do Samba. A esse respeito é
importante distinguir quem é contratado para atuar nos barracões e quem é
contratado para as atividades fora deles, isto é, na "indústria da folia".
Importa assinalar, mais uma vez, que cada escola de samba seleciona e
contratada os artesãos e artistas para as atividades a serem desenvolvidas nos
barracões, como já ocorria, anteriormente. A novidade reside na contratação de
passistas, ritmistas e de outros profissionais do carnaval para atuar nos shows
musicais e nos demais programas de entretenimento oferecidos na Cidade do Samba
com vistas à geração de capital. Se eles, por quaisquer motivos, deixarem de
receber seu pagamento, esse processo corre o risco de interromper-se,
inviabilizando parte das atividades previstas no projeto de construção da
Cidade do Samba no Rio de Janeiro.
A sua implantação não alterou o funcionamento e a organização dos processos de
trabalho nos barracões. Institucionaliza, contudo, as desigualdades econômicas
e sociais entre as agremiações carnavalescas, reafirmando, inclusive, as
imagens de que "o povo estaria fora da grande festa". Os "estrangeiros" e os
turistas são, sem dúvida, os principais consumidores, porém é difícil separar,
de um lado, fazedores e, de outro, consumidores. Não se pode ignorar que os
fazedores da "da folia na Cidade do Samba" são também consumidores em outros
lugares, particularmente nas escolas de samba às quais pertencem.
Neste artigo, pretendi chamar a atenção para os múltiplos aspectos que envolvem
a construção da Cidade do Samba no Rio de Janeiro. Um deles diz respeito a sua
dimensão simbólica, pois é a própria expressão dessa cidade. Outro aspecto
trata da importância da desfolclorização dos festejos carnavalescos, o que
constitui uma visão bastante difundida pelos olhares estrangeiros. Outro
aspecto seria ainda mostrar que o Carnaval "é coisa séria". Essa festa faz
parte da nossa vida cotidiana, tendo em vista que algumas formas de
sociabilidade e de convivência sobreviveram e persistem nas sociedades
contemporâneas. E, finalmente, explorar um dos paradoxos do tempo presente
quando as soluções de gestão e de organização consideradas mais modernas
pressupõem tradições que são, assim, preservadas.
NOTAS
1 Cf. News Liesa, 5, edição especial, p. 26. Publicação da Liga Independente
das Escolas de Samba (LIESA), principal fonte de dados das reflexões
apresentadas neste texto.
2 Essas informações resultam das visitas que fiz nos dias 10 e 11 de dezembro
de 2007 às dependências da Cidade do Samba.
3 Convém lembrar as experiências ocorridas em Barcelona (Espanha), por ocasião
das Olimpíadas de 1992, e em Lisboa (Portugal) com a realização da Expo 98.
4 Alguns integrantes da bateria e componentes do GRES Beija-Flor recebem, na
Cidade do Samba, a São Clemente, escola de samba vencedora no grupo de Acesso,
no concurso oficial de 2007. Instala-se no prédio antes ocupado pela Porto da
Pedra, ou seja, o de n. 6.
5 Na visita que fiz a Cidade do Samba, em dezembro de 2007, a distribuição dos
prédios apresenta algumas alterações. No prédio n.1, funcionam oficinas de
formação profissional para o trabalho no carnaval. Essas oficinas são
coordenadas pela LIESA. Nesse local, estão também expostas alegorias que foram
feitas em várias escolas de samba. O prédio n. 3 pertence a Portela e o n. 7
está desocupado, tendo sido, até o Carnaval de 2007, alugado pela Império
Serrano. Importa registrar que essa agremiação carnavalesca e a Porto da Pedra
obtiveram as últimas colocações no Grupo Especial, nesse ano. Assim, os seus
barracões deixaram de funcionar na Cidade do Samba.
6 Expressão do samba A voz do morro, de Zé Ketti.
7 Cf. Entrevista com Maria Laura Cavalcanti (O Globo, 17 de fevereiro de 2007,
p. 6).
8 Legenda da fotografia reproduzida na p. 13 da revista News Liesa, 5.
9 Segundo os dados apresentados por Negri, no ano de 2000, 57,1% dos homicídios
são de jovens do sexo masculino com idade entre 15 e 24 anos. No estado do Rio
de Janeiro, essa taxa atinge 181 homicídios por 100 mil habitantes, superando
"as mortes causadas por acidentes de trânsito" (Negri e Cocco, 2005, p. 111).
10 Folha de São Paulo, "Militar na rua não dá certo, diz líder da ONG", 2 de
maio de 2004, C4.
11 Cf. "Um mundo de significados", Sociologia, ano 1 (4): 31, 2007.
12 Essa designação remete à exposição fotográfica "Oficinas do sonho: a Beija-
flor vista do barracão" de Valtemir Valle, realizada no MAC-USP, com a
curadoria de Maria Lúcia Montes, entre dezembro de 1993 e fevereiro de 1994.
13 Cf. as imagens fotográficas divulgadas pela LIESA, ou mesmo as fotos feitas
por mim.
14 "Baile: début da Cidade do Samba", O Globo, 17 de fevereiro de 2007, p. 3.
15 Cf. "Um mundo de significados", Sociologia, ano 1 (4): 31, 2007.
16 Cf. News Liesa, 5: 18.
17 Cf. "Um mundo de significados", Sociologia, ano 1 (4): 30, 2007.
18 Os desfiles de Carnaval no Rio de Janeiro seriam, para Cavalcanti, a
expressão mais acabada da cidade contemporânea. Cf. entrevista com Maria Laura
Cavalcanti, publicada no jornal O Globo, 17 de fevereiro de 2007, p. 6.
19 Cf. News Liesa, p. 25.
20 Ver nota 2.
21 Ver Montes (1993, pp. 10, 20 e 21).
22 Idem, p. 14.
23 O sufixo panorama é usado por Appadurai para designar as interpretações
prospectivas que se moldam pela posição histórica, lingüística e política de
diferentes agentes sociais, sendo o agente individual o "último local deste
conjunto" (1998, p. 312).