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BrBRHUHu0102-69092008000200006

BrBRHUHu0102-69092008000200006

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0102-6909
Year2008
Issue0002
Article number00006

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Ontologia e gênero: realismo crítico e o método das explicações contrastivas

Muito da da relevância das ciências sociais tem sido avaliada em função das conseqüências políticas práticas de suas teorias ou, colocando a questão de outra forma, de sua capacidade de gerar mudanças na sociedade que possam ser consideradas benéficas para todos ou para uma parte expressiva de seus membros (Delanty, 1997). De forma geral, entretanto, a relação entre o pensamento social e sua aplicação prática tem sido mais explícita entre aquelas teorias nascidas no seio de determinados movimentos sociais, como é o caso do feminismo. Se o movimento feminista tem contribuído para a produção das ciências sociais ao chamar a atenção para temas anteriormente "invisíveis" à comunidade científica e ao sugerir que a ciência tem sido sistematicamente distorcida por causa da "cegueira de gênero", o inverso também é verdadeiro: inspiradas pela dimensão emancipatória do movimento, as teóricas feministas enfatizam as conseqüências políticas de sua produção intelectual, especialmente no que diz respeito a questões para o debate sobre o estabelecimento de políticas emancipatórias.

O compromisso com a idéia de emancipação de forma alguma está limitado à produção feminista, mas pode ser estendido a toda tradição crítica, entendida no sentido amplo de qualquer reflexão teórica que tenha uma visão crítica da sociedade e das ciências, ou que tenta explicar a emergência de seus objetos de conhecimento (Macey, 2000). Em grande medida, esta tradição baseia-se em preceitos clássicos do Iluminismo, em especial a idéia de emancipação via esclarecimento e uma concepção de sujeito capaz não de conhecer o mundo, mas também de transformá-lo. Parte do problema é que essas idéias estão sob suspeita, o que tem gerado um ceticismo crescente em relação à possibilidade de emancipação dos sujeitos via conhecimento. Isto não apenas tem colocado um fardo excessivamente pesado sobre os ombros de cientistas sociais, cujas atividades não são especialmente justificáveis, mas também sobre os movimentos sociais, que têm perdido parte da fundamentação de suas políticas (Hamlin, 2002).

É sabido que desde os anos de 1970 a teoria feminista tem alertado para os perigos da supergeneralização ao sugerir que os valores, as experiências, os objetivos e as interpretações de grupos dominantes são apenas isso e que não nada de intrinsecamente natural ou necessário acerca deles (Lawson, 1999). A filosofia e a epistemologia feminista, em particular, dedicam-se sobretudo à forma pela qual o gênero influencia nossas concepções de conhecimento, de sujeito cognoscente, assim como as diversas práticas de justificação dessas concepções. Sem adentrar nas especificidades das diversas tradições da epistemologia feminista, é possível afirmar que, de forma geral, todas procuram identificar as formas por meio das quais as concepções e as práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento têm sistematicamente colocado em desvantagem as mulheres e outros grupos subordinados, buscando ainda modificar essas concepções e práticas a fim de que elas possam servir aos interesses desses grupos (sua dimensão emancipatória) (Anderson, 2004).

Para diversas autoras (Flax, 1990; Harding, 1990; Fraser, 1995 e, de uma perspectiva bastante crítica, Benhabib, 1990, 1995), esse tipo de alerta para os perigos da supergeneralização tem criado uma "afinidade eletiva" entre a epistemologia feminista e diversas vertentes de epistemologia pós-moderna, embora a definição deste último termo não seja isenta de ambigüidades ou universalmente aceita (cf. Butler, 1995). A afinidade em questão refere-se a alguns pressupostos compartilhados pelo feminismo e por uma epistemologia pós- moderna que podem ser, para os nossos propósitos, resumidos nos seguintes pontos: a idéia de que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou "descolada" de pontos de vistas específicos; de que toda compreensão ou explicação alcançada será sempre parcial (assim como falível e transitória); de que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas. Isto significa, por outro lado, que a prática de universalizar a priori, ou de meramente pressupor ou afirmar a relevância ou validade geral de uma posição é, na melhor das hipóteses, um equívoco metodológico que tem conseqüências políticas significativas (Lawson, 1999).

Apesar disso, essas considerações têm, por vezes, ido mais longe do que muitos de seus proponentes e defensores intentaram. Ao se oporem a diversas práticas de universalização a priori, muitos teóricos acabaram por se opor a toda e qualquer prática generalizante. E uma vez que a base para se considerar uma abordagem dominante como universalmente legítima foi (corretamente) colocada em xeque, com freqüência se tem defendido uma posição relativista extrema, segundo a qual toda abordagem é tão válida, ou tão parcial, quanto qualquer outra (cf.

Rorty, 1999). Essa forma de relativismo é especialmente problemática para uma teoria "crítica" que tem por principais objetivos a questão do esclarecimento e da emancipação. Além disso, algumas categorias e conceitos centrais à teoria feminista, como gênero, mulher, feminino, patriarcado etc., têm sido colocados sob suspeição por se basearem em um sistema classificatório binário, dicotômico, que não apenas privilegia um dos pólos do binarismo, mas exclui toda e qualquer alusão a termos alternativos. Assim, por exemplo, o pensamento binário impediu durante muito tempo que se concebesse a existência de sociedades com uma relativa igualdade de gênero dado que, segundo os termos do binarismo, a única alternativa possível ao patriarcado seria o matriarcado (Saffioti, 2005). Como conseqüência, a própria utilidade do termo "patriarcado" foi questionada, em vez de simplesmente se questionar seu status de universalidade e tentar delimitar suas fronteiras históricas e culturais.

Ainda mais problemática para uma teoria feminista emancipatória tem sido a suspeição acerca de sujeitos femininos, ou o próprio conceito de "mulheres".

Mas para que a teoria feminista possa ser percebida como uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como elas têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e poderes causais que, embora historicamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra (o mesmo pode ser dito a respeito da epistemologia: sem um sujeito do conhecimento, não epistemologia possível).

Por fim, a chamada "morte da metafísica" tem gerado um deslocamento importante das questões ontológicas em favor de questões epistemológicas sob o argumento de que toda e qualquer forma de ontologia científica (entendida aqui no sentido de que alguns objetos de conhecimento existem, em sua maioria, independentemente de, ou pelo menos anteriormente a, qualquer investigação científica) deve ser descartada. É este deslocamento, concebido por autores como Sandra Harding (1999) como perfeitamente compreensíveis e justificáveis na teoria feminista contemporânea, que será questionado a seguir. Em outros termos, trata-se de investigar a diferença que uma reflexão ontologicamente orientada pode fazer em relação às nossas proposições epistemológicas e teóricas, com ênfase especial em um modelo explicativo que pode ser derivado delas.

Diferentemente da perspectiva ontológica lukacsiana1 defendida por Heleieth Saffioti (2005), tentarei demonstrar as vantagens de uma perspectiva ontológica conhecida como realismo crítico, um tipo de realismo científico, não- representativo (ou não representacionista), que concebe a realidade como fundamentalmente (1) aberta e (2) estruturada ou estratificada, isto é, constituída de poderes causais e mecanismos subjacentes aos eventos e fenômenos observáveis. A este realismo ontológico, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais (o que se aplica mesmo às suas posições ontológicas que são, por este motivo, sempre abertas e sujeitas a reformulações). Aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter "ação-dependente" de todo fenômeno social, isto é, sua existência depende (ao menos em parte) da agência humana intencional (Bhaskar, 1996; Lawson, 1999; Hamlin, 2000).

Inicialmente, desenvolverei essas questões tentando demonstrar como elas podem contribuir para a reflexão acerca de um dos problemas mais espinhosos do feminismo contemporâneo, que toca diretamente a questão da existência das mulheres como agentes sociais ou sujeitos de conhecimento e de mudança: a dissolução da distinção entre sexo e gênero com base na redução da ontologia à epistemologia, ou, ainda, na dissolução dos nossos objetos de conhecimento em nosso conhecimento acerca dos objetos. Por fim, apresentarei um método de formação de hipóteses explanatórias desenvolvido pelo economista britânico Tony Lawson, compatível com o realismo crítico e que possibilita recuperar a dimensão emancipatória da teoria feminista.

Trazendo de volta a realidade Uma das principais críticas à epistemologia empirista (cujas características são freqüentemente invocadas por alguns autores pós-modernos como elemento essencial do que eles denominam "método moderno") é a de que o conhecimento é uma construção social. Isto significa dizer que não apenas as pessoas têm um papel ativo na observação e na seleção dos fatos da realidade, mas também que muitos desses fatos são, em alguma medida, construídos por nós. Assim, por exemplo, Roy Bhaskar, um dos principais pensadores do realismo crítico, argumentou que as regularidades observadas pelos cientistas naturais em seus laboratórios são criações humanas: os experimentos científicos são situações artificiais geradas pela ação humana a fim de se criar sistemas fechados que não existem na natureza. Mas o objetivo desse fechamento artificial é, contrariamente ao que algumas perspectivas construtivistas radicais defendem, ter acesso a uma realidade que existe independentemente de nossas atividades ou concepções acerca dela. Um experimento deve possibilitar a identificação de leis ou mecanismos causais a partir do isolamento de um evento X (a causa) de outros eventos que possam estar também influenciando um dado evento Y (o efeito). Um experimento é, portanto, normalmente executado sob condições de isolamento do mundo, isto é, em sistemas fechados, pois no mundo real, que é um sistema aberto, em geral não podemos identificar determinadas seqüências de eventos, tornando a atividade experimental necessária.

Mas se pode assumir que os mecanismos causais que operam nos experimentos continuam operando no mundo real ao se considerar sua independência em relação aos eventos que eles geram, isto é, que as causas estão freqüentemente fora de sintonia com os eventos do mundo. Nesse sentido, uma condição da inteligibilidade da atividade experimental é a de que, em um experimento, o cientista é o agente causal de uma seqüência de eventos (que permite identificar uma possível relação causal entre dois ou mais eventos), mas não é o agente da lei causal que a seqüência de eventos permite ao cientista identificar (Bhaskar, 1997, p. 12), pois elas estariam operando quer as tenhamos identificado, concebido, imaginado, ou não. Assim, por exemplo, a lei da gravidade estava operando muito antes de sua identificação, embora a maneira como concebamos seus efeitos e suas propriedades possa variar ao longo do tempo. Isto aponta para o caráter falível do conhecimento.

Por meio de argumentos transcendentais2 como o efetuado acima, os realistas críticos estabelecem que a realidade é estratificada ou estruturada: existe uma distinção entre o nível dos fenômenos observáveis (empírico), o nível dos eventos (factual, nem sempre empiricamente observável, mas cuja existência pode ser inferida teoricamente) e o nível das estruturas e dos mecanismos geradores de eventos e fenômenos (real, que inclui o factual e o empírico, mas que não se reduz a nenhum deles e que pode ser inferido por meio de argumentos transcendentais). Esses mecanismos geradores de eventos, que podem ou não se atualizar (porque, sendo um sistema aberto, o mundo apresenta uma série de mecanismos em interação que podem anular os efeitos observáveis uns dos outros), dizem respeito a determinadas propriedades ou aspectos de um objeto, ou uma estrutura em virtude da qual apresenta certo tipo de poder ou uma forma de ação específica.

Nem todos os realistas críticos utilizam a expressão "mecanismos causais" - alguns preferem falar de "configurações causais" ou "poderes causais" para enfatizar que tais mecanismos não são previsíveis ou determinísticos (New, 2005). De fato, em contraste direto com a concepção de lei causal dos empiristas, os realistas consideram que Leis não descrevem os padrões ou legitimam predições de eventos. Ao contrário, parece que elas devem ser concebidas, ao menos no que diz respeito aos objetos ordinários do mundo, como situando limites e impondo restrições aos tipos de ação possíveis para um dado tipo de objeto. Leis não apenas predicam tendências (que, quando exercidas, constituem o comportamento nórmico) de objetos novos (ou de objetos familiares em situações novas ou situações-limite); elas impõem restrições (mais ou menos absolutas) a objetos familiares (Bhaskar, 1997, pp. 105-106).

Essa concepção de leis como sentenças nórmicas difere da concepção usual (empirista), no sentido de que, em vez de estabelecer que "se A, então normalmente B", estabelece que "se um mecanismo é ativado, então ele tem a tendência de fazer algo, qualquer que seja o resultado",3 inclusive a ausência de qualquer evento, observável ou não. Um ponto importante a ser considerado é o de que os mecanismos existem como poderes causais de algo, mas embora esses poderes possam continuar operantes mesmo sem se manifestarem, sua atualização depende de algum tipo de input ou ativação. Dessa forma, a idéia de agência ou de poder causal é mantida, ainda que num sentido estritamente não determinista.

Uma das principais conclusões que se pode tirar da concepção de realidade estratificada e aberta é que eventos e fenômenos não podem ser atribuídos a um nível particular da realidade, mas os mecanismos podem. Assim, por exemplo, as pessoas não podem ser caracterizadas como objetos físicos, químicos, biológicos, psicológicos ou sociais, mas como estruturas emergentes que incluem todos esses estratos da realidade. Existe, portanto, uma relação de dependência entre os mecanismos de cada um desses níveis, ainda que, especialmente no que diz respeito à relação entre o nível social e o psicológico, possa haver uma emergência concomitante de seus mecanismos (isto é, de uma perspectiva ontológica, é provável que a sociedade, a linguagem e a mente humana tenham emergido juntas) (New, 2005).

A ontologia não tem implicações apenas para considerações acerca do tipo de explicação mais adequado. Qualquer epistemologia ou teoria do conhecimento tem que se basear minimamente em uma ontologia do senso comum que leva a sério a existência do mundo (Hamlin, 2002). Isto parece uma proposição estranha, pois mesmo as perspectivas construtivistas mais radicais não parecem negar este fato. Que todo conhecimento pressupõe ou "cria" uma ontologia não é difícil de estabelecer. O que eu posso conhecer acerca de um dado objeto depende, em larga medida, das propriedades que considero próprias a ele. O problema surge quando "ser" é reduzido a "ser conhecido", pois é possível saber que algo existe, mesmo que não se saiba exatamente o que é, por meio dos efeitos que ele gera.

Para os realistas críticos, existe uma distinção entre um objeto de conhecimento e o conhecimento acerca de um objeto. O que está em jogo aqui não é uma separação total ou dualista entre essas duas coisas, mas uma não- identificação, ao menos absoluta. Sem essa distinção, é difícil, senão impossível, compreender o fato de que "nosso conhecimento acerca de um dado objeto é freqüentemente criticado e/ou revisado etc., ou atribuir sentido ao fato de que os objetos do conhecimento na maioria das vezes mudam independentemente de nós" (Lawson, 2003b, pp. 164-165). Nesse sentido, embora os realistas reconheçam uma dimensão epistemológica fundamental no estabelecimento de proposições ontológicas (toda ontologia é construída via linguagem e pensamento), não faz sentido simplesmente varrer nossas concepções acerca do que o mundo é para debaixo do tapete. Manter nossas ontologias implícitas terá como conseqüência a entrada de nossas concepções pela porta dos fundos, o que pode gerar muita confusão desnecessária. Assim, embora autoras como Judith Butler, por exemplo, em nenhum momento neguem a realidade dos nossos corpos, seus argumentos em favor do caráter socialmente construído do sexo (e não apenas do gênero) freqüentemente levam a uma dissolução da distinção entre conceito e realidade (cf. Butler, 2003, pp. 156-162). A confusão refere-se ao fato de que, embora considere que os corpos existem fora do discurso, para Butler, as tentativas de descobrir ou descrever suas características de fato constituem aquilo que as categorias afirmam representar. Para os realistas, a realidade da diferença sexual "é uma questão distinta dos processos sociais por meio dos quais as categorias de sexo são alocadas" (New, 2005, p. 12). Como qualquer objeto cuja existência seja posta em dúvida, faz-se necessário determinar que mecanismos causais estão (potencialmente) operantes, a fim de se estabelecer (teoricamente) suas origens em um objeto particular, o que também se aplica aos nossos corpos.

No entanto, existe um receio generalizado por parte de teóricas feministas em refletir acerca de questões ontológicas, em parte devido a uma confusão entre realismo e essencialismo. Mesmo aquelas teóricas, como é o caso de Sandra Harding, que reconhecem que os "projetos feministas podem se beneficiar de pesquisas ontológicas" (Harding, 2003, p. 152), preferem, "por razões estratégicas", deixar sua ontologia em segundo plano e refletir sobre epistemologia, a fim de desenvolver "estratégias que valorizem perspectivas femininas como recursos para organizar um fim para a dominação masculina" (Harding, 1990, p. 90). São bem conhecidas as críticas antiessencialistas efetuadas às concepções essencializantes de gênero, de autoras como Nancy Chodorow e Carol Gilligan (Bordo, 1990; Fraser e Nicholson, 1990), e creio que elas devem ser levadas a sério. Não é possível falar de "mulheres" como se elas constituíssem uma categoria homogênea e totalizante, não marcada por dimensões como classe, raça ou etnicidade. Os problemas enfrentados pelas mulheres negras de classe baixa são, afinal de contas, distintos dos problemas comuns à maioria das mulheres brancas de classe média.

Apesar disso, conforme argumenta Andrew Sayer (2004), o termo "essencialismo" tem sido usado em sentidos muito diferentes e o "antiessencialismo" tem uma grande quantidade de alvos. Para o autor, existem duas dificuldades principais implícitas no debate sobre essencialismo: em primeiro lugar, o medo do dogmatismo epistemológico relativo a uma concepção de verdade absoluta ou de um acesso privilegiado ao mundo; em segundo, o medo de um determinismo ontológico de acordo com o qual aquilo que os objetos fazem, inclusive as pessoas, é completamente determinado por sua natureza. Embora ambos os receios sejam plenamente justificáveis, nenhum deles é aplicável à perspectiva realista defendida neste artigo. De fato, quando as teóricas feministas da segunda onda questionaram a autoridade de uma ciência falogocêntrica, o que elas estavam (corretamente) pressupondo é que a autoridade dos cientistas é falível. Como Sayer (2004) e outros realistas críticos enfatizam, tal falibilidade pressupõe ao menos um realismo minimalista, segundo o qual o mundo não é simplesmente produto de nossas mentes, ainda que elas sejam consideradas um produto social.

Isso porque se o mundo fosse meramente produto de tais construções sociais, então todo conhecimento socialmente construído seria infalível. Além disso, falar de uma "natureza" humana, como fazem os realistas, não implica determinismo: a natureza profundamente social dos seres humanos inclui, por exemplo, a capacidade de variabilidade cultural. Mas mesmo que se considere sua dimensão biológica, isso não implica determinismo: o fato de as mulheres possuírem um útero que, diferentemente dos homens, possibilita a concepção, esta "natureza" simplesmente coloca restrições e possibilidades ao que pode ocorrer. Vale lembrar que os mecanismos biológicos estão em interação constante com mecanismos sociais, psicológicos e culturais.

Se, por um lado, os realistas reconhecem que se pode falar de uma natureza feminina ou masculina (isto é, reconhecem a realidade do referente da categoria sexo), também reconhecem que a natureza não é uniforme, mas diferenciada de uma tal forma que nem sempre pode ser caracterizada de maneira dicotômica ou binária. O sexo biológico (uma regularidade empírica) não é meramente dimórfico, como bem aponta Butler (2003). Como toda regularidade empírica, ele diz respeito a um sistema aberto e, portanto, apenas aproximadamente produz regularidades constantes e duradouras (voltarei a este ponto adiante, com o conceito de "demi-regularidades" desenvolvido por Lawson), mas a regularidade dimórfica do sexo humano é real e extradiscursiva e não pode ser ignorada. O que se faz necessário é tentar estabelecer que condições (ou ausência de condições) impossibilitaram a atualização de determinadas propriedades em casos particulares, como seria de se esperar de acordo com a norma. Onde não existem objetos naturais, como é o caso do gênero, ou onde os objetos naturais possuem "fronteiras borradas", como na maioria dos casos de intersexualidade, existe mais espaço para a construção social de tais fronteiras, mas isso não significa que elas possam ser arbitrariamente construídas.

Existe ainda uma discussão metodológica acerca da construção de hipóteses causais que é fundamental, caso se queira ir além da determinação das condições de possibilidade da emergência de determinados discursos em direção à explicação da realidade, discursivamente constituída ou não. É para esta questão que me voltarei agora, ao introduzir o método da explicação contrastiva.

Demi-regularidades e explicação contrastiva A chamada "virada lingüística", entendida no sentido amplo de que a compreensão da realidade social implica considerar os processos lingüísticos que a constituem, acabou por fortalecer uma velha e falsa dicotomia entre interpretação e explicação causal, na qual a primeira adquiriu uma posição hegemônica. De uma perspectiva realista, no entanto, não apenas esta dicotomia é falsa, mas, dependendo dos nossos propósitos, a explicação causal pode e deve ser empregada.

Os realistas críticos defendem a dependência conceitual de nossas atividades, seja em contextos sociais, seja em contextos naturais, embora contestem que todas as nossas conceituações do mundo sejam igualmente adequadas (por exemplo, alguns homens de países africanos agem com base na crença de que manter relações sexuais com uma virgem pode curar a Aids, mas, de um ponto de vista estritamente pragmático, esta crença é falsa). Além disso, os realistas consideram que o processo de produção de um objeto pode ser conceitualmente dependente, mas, a partir do momento em que passa a existir, pode constituir um objeto possível de explicação causal. De fato, considerar a importância da linguagem na constituição da realidade inevitavelmente coloca grandes questões causais acerca das condições de possibilidade da emergência de determinadas ideologias, de como elas estruturam e são estruturadas por conflitos políticos e, de maneira geral, como os discursos produzem seus efeitos (Fairclough, Jessop e Sayer, 2004). No entanto, diante da impossibilidade de isolar e de ativar determinados mecanismos causais via experimentação nas ciências sociais, uma das principais questões que se apresenta para a análise causal é como os mecanismos podem ser identificados.

Vimos, anteriormente, que um dos objetivos dos experimentos era o de produzir regularidades observáveis por meio do fechamento artificial (experimental) dos sistemas em questão. Será que a única alternativa à produção de regularidades via experimentos seria um "fluxo randômico, incoerente e totalmente assistemático"? Para o economista Tony Lawson, a resposta é não: Embora o mundo social seja aberto, dinâmico e em mudança, alguns mecanismos podem ser, em regiões restritas de tempo e espaço, reproduzidos continuamente e tornar-se (ocasionalmente) aparentes em seus efeitos no nível dos eventos, dando origem a generalidades imperfeitas, mas efetivas, ou regularidades parciais, mantendo-se em tal grau que, prima facie, uma explicação é requerida [...] Assim, da mesma forma como as folhas de outono caem no chão muito freqüentemente, as mulheres estão concentradas nos setores secundários dos mercados de trabalho [...] e assim por diante (1997, p. 204, grifo do autor).

A estas regularidades parciais que indicam a efetivação (ocasional e regional, em termos de tempo e espaço) de um mecanismo, Lawson refere-se como demi- regularidades. A importância das demi-regularidades é que elas podem representar uma espécie de propedêutica ou de abordagem introdutória para a explicação causal na ausência de condições experimentais.

Inspirados pelas tradições fenomenológicas e hermenêuticas, diversos autores argumentaram que o mundo social se apresenta em alguma medida pré- interpretado aos cientistas sociais devido ao fato de sermos agentes sociais competentes (Bhaskar, 1979; Collier, 1994; Giddens, 1993). Anthony Giddens chega mesmo a afirmar que isso representa uma vantagem inicial em relação aos cientistas naturais, que têm muito menos conhecimento do senso comum sobre os fenômenos e os processos pelos quais se interessam. Lawson reformula este argumento no sentido de enfatizar uma forma por meio da qual avançamos em relação a determinados aspectos do nosso conhecimento cotidiano, como, por exemplo, ao perguntarmos por que algo não é exatamente o que esperamos que ele seja. Assim, freqüentemente nos perguntamos por que nossos alunos se saíram pior nas provas deste ano do que nas dos anos anteriores (porque a greve dos professores "cortou" o semestre em dois); por que meu cachorro não quis sair para passear hoje (porque comeu algo que lhe fez mal no dia anterior); por que, nas camadas de baixa renda, existem mais mulheres chefes de família do que nas classes médias (porque as separações são mais freqüentes nesses grupos); por que as mulheres recebem menores salários do que os homens (porque tendem a se concentrar em ocupações menos valorizadas socialmente) etc. Reflexões desse tipo são freqüentes na vida cotidiana, e a complexidade das respostas pode variar imensamente, algumas delas requerendo uma explicação mais profunda do que outras. Mas, de forma geral, conseguimos resolver satisfatoriamente grande parte das questões levantadas em nossa vida diária.

Ao refletir sobre o que possibilita o sucesso ou o fracasso das respostas oferecidas, Lawson examina dois pontos correlatos: primeiro, a estrutura das questões e das respostas oferecidas; segundo, tenta estabelecer as precondições (ontológicas) do sucesso das respostas bem-sucedidas, isto é, "as condições que devem se apresentar para que tais práticas bem-sucedidas ocorram" (Lawson, 2003c, p. 86). A partir da compreensão dessas condições, ele infere algumas conseqüências mais amplas para a pesquisa social.

Em relação à estrutura das perguntas, cada uma delas estabelece um contraste com uma situação esperada, ou seja, não assumem a forma "por que x?", mas "por que x e não y (como esperado)?". Isto significa que as respostas dadas a esse tipo de pergunta referem-se a um fator causal que não diz respeito a x em si mesmo, mas explica o contraste "x e não y" (Idem, ibidem). Isto é, obviamente, muito mais simples do que explicar todos os fatores causais envolvidos em uma pergunta do tipo "por que x", pois requer apenas que se identifique o fator responsável pela diferença em questão. A idéia do contraste não é nova. John Stuart Mill, Weber e diversos sociólogos históricos adotavam aquilo que o primeiro chamava de método da diferença. O que é novo, na perspectiva de Lawson, é a aplicação dos contrastes para a identificação do interesse suscitado pela pergunta e a posterior identificação de possíveis mecanismos causais via abdução ou retrodução. Dizendo de outra forma, os contrastes podem nos alertar para situações em que existe algo de interesse para ser explicado, e isto tem uma relação direta com algumas das principais questões levantadas pela epistemologia feminista em relação à cegueira de gênero. A ênfase em explicações contrastivas significa que tanto as questões levantadas pela ciência como a forma pela qual elas são tratadas, isto é, os mecanismos causais buscados, necessariamente refletem os pontos de vista, as interpretações e as situações dos cientistas. Não se trata aqui de simplesmente supor, como fazem algumas teóricas do ponto de vista feminista, que as perspectivas são inevitáveis, mas também de considerar que tais perspectivas (interessadas, preconceituosas etc.) são indispensáveis para o estabelecimento de uma explicação causal: A tarefa de detectar e identificar mecanismos causais previamente desconhecidos parece requerer o reconhecimento de contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes relevantes e percebê-los como surpreendentes ou interessantes e que desejem agir com base em sua surpresa ou interesse. A iniciação de novas linhas de investigação requer pessoas predispostas, literalmente preconceituosas, no sentido de olhar em certas direções (Lawson, 1999, p. 41).

Certamente, nem todas as explicações baseadas no estabelecimento de contrastes são bem-sucedidas, e nada garante, a priori, que elas venham a ser. Mas é possível estabelecer pelo menos duas condições de possibilidade para o seu sucesso: a primeira é que deve haver um domínio de observação que Lawson denomina "espaço de contraste", ou um domínio (espaço-temporal) no qual é significativo, dada nossa compreensão atual, o estabelecimento de comparações ou, ainda, "um espaço no qual quaisquer contrastes sistematicamente observados possam ser, prima facie, considerados significativos ou de interesse" (Lawson, 2003c, p. 89). A segunda condição, mas difícil de ser alcançada, é que todos os aspectos ou partes relevantes do espaço de contraste sejam corretamente interpretados como estando sujeitos a mais ou menos o mesmo conjunto de influências, exceto por um subconjunto (que é o que deverá contar como o mecanismo em questão) (Idem, ibidem). Assim, por exemplo, meus alunos do último ano estiveram sujeitos a mais ou menos todas as circunstâncias que os alunos dos anos anteriores, exceto uma: a greve dos professores. O ponto importante é que se deve identificar "um fator causal (incluindo-se talvez uma ausência) que contribuiu para o estado de coisas atual, mas que não teria possibilitado o que era esperado ou imaginado, ou não condicionou uma alternativa concreta" (Lawson, 1997, p. 210).

O estabelecimento dessas condições mostra que, por um lado, o processo de conhecimento pode se beneficiar da cooperação de indivíduos predispostos de diferentes maneiras, ou em situações diversas. Em outros termos, a pluralidade de vozes nos debates científicos ou políticos não é apenas uma questão de justiça ou de democracia, mas também uma prática metodológica saudável. Assim, verifica-se a necessidade da incorporação daqueles conhecimentos tácitos, inarticulados, característicos dos grupos marginalizados e, de maneira geral, excluídos da ciência social (Smith, 1990). Contrariamente a posições como a defendida por Nancy Hartsock (1983), a vantagem epistemológica que pode decorrer de tal posição de marginalidade não deriva de uma suposta maior proximidade das mulheres em relação à natureza ou qualquer argumento essencialista deste tipo, mas das posições sociais das mulheres como um grupo que vive nas margens. A dualidade do pertencimento/não-pertencimento faz com que os grupos em situação de liminaridade sejam forçados a ter consciência das práticas, dos valores, das crenças e das tradições não apenas dos grupos dominantes, mas também dos seus próprios. É esta consciência que gera maiores oportunidades da identificação de contrastes que podem ajudar a esclarecer o funcionamento da totalidade. Isto significa dizer que uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente mais "verdadeira" ou produz melhores concepções da realidade, mas certamente apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e questionamentos alternativos. Em outras palavras, a vantagem do conhecimento gerado por grupos marginalizados não se refere ao status de verdade das respostas obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou significativas (Lawson, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar visível aquilo que é invisível ou de subverter questões tradicionais.

Um último ponto relevante no que diz respeito à possibilidade de se gerar explicações causais diante da ausência de regularidades de eventos, do tipo produzido pelas ciências experimentais, refere-se à que tipo de evidência pode ser útil na seleção entre hipóteses conflitantes. Torna-se claro que toda perspectiva que se baseie numa pluralidade de vozes enfatizará diferentes aspectos da situação causal. No entanto, não existe nada, em princípio, que implique na incompatibilidade ou contradição das explicações ou hipóteses formuladas, embora seja possível que tais explicações produzam teorias que se encontrem em estado de competição (Lawson, 1999, p. 44). O problema de decidir entre hipóteses ou teorias alternativas é, para os realistas, uma questão de "poder explanatório", isto é, relativo ao número de questões resolvidas, da habilidade dessas teorias ou hipóteses esclarecerem uma ampla gama de fenômenos empíricos, de adequação empírica dos mecanismos e explicações oferecidos etc.

(Bhaskar, 1997; Hamlin, 2000; Lawson, 1997). O que fica excluído em relação às situações experimentais é o poder preditivo de tais hipóteses (um critério freqüentemente utilizado pelas ciências naturais), dado que se baseiam em demi- regularidades que, como tais, não pressupõem ubiqüidade (Lawson, 2003c). De uma perspectiva realista, portanto, embora a avaliação do poder explanatório de uma teoria necessariamente dependa do contexto (por exemplo, da natureza das questões e da possibilidade da justificação racional de determinadas explicações), o que importa sublinhar é que as dificuldades envolvidas não são exclusivas às explicações contrastivas baseadas em demi-regularidades, mas de qualquer abordagem que tenha pretensões críticas ou emancipatórias.

Como foi argumentado anteriormente, a possibilidade de crítica implica na aceitação de que algo existe, independentemente das afirmações sobre as quais se pode estar enganado, e isto requer algum critério (pragmático ou outro) que permita julgar a superioridade de uma teoria sobre outra. O realismo crítico, conforme apresentado, não constitui uma teoria da verdade, mas uma teoria do Ser e, nesse sentido, não oferece uma resposta única ou inequívoca acerca desses critérios. Mas relativismo epistemológico não implica em relativismo de julgamento, mas em considerar que nosso conhecimento é guiado por interesses, perspectivas e projetos políticos específicos. Estabelecer a superioridade de tais interesses, perspectivas e projetos requer, por seu turno, alguma concepção do que constituem necessidades humanas básicas que, embora assumam variações culturais distintas, são gerais o bastante para serem reconhecidas.

Nas palavras de Andrew Sayer, existe uma "relação entre necessidades humanas gerais e variantes contingentes e específicas, tais como a necessidade psicológica geral da necessidade de reconhecimento e as inumeráveis formas que este reconhecimento assume nas culturas particulares" (2004, p. 3). Não se pode, portanto, evitar alguma forma de universalismo. Mas é preciso que se reconheça que o universal se manifesta no particular e, nesse sentido, qualquer forma de universalização a priori deve ser encarada como suspeita.

Ao insistir na dimensão ontológica do nosso conhecimento, os realistas enfatizam a necessidade de se construir, via teoria, ontologias regionais acerca dos diversos objetos do mundo que nos possibilitem compreender o que significa ser humano. Ao se aceitar que os sujeitos humanos são estruturados da maneira proposta, pode-se reconhecer uma base de necessidades comuns para além das diferenças e, assim, estabelecer projetos políticos de emancipação humana.

Trata-se, em outros termos, de substituir uma política da mera diferença por uma concepção de "unidade na diferença" (Lawson, 2006). Como vários autores reconhecem (New, 1998, 2005; Lawson, 1999, 2003a, b e c, 2006; Staveren, 2004; Sayer, 2004; Harding, 1999, 2003), diversas teóricas feministas adotam, implicitamente, uma perspectiva realista em suas pesquisas. O que tentei demonstrar aqui foi simplesmente que, ao abandonarmos uma epistemologia com conseqüências ontológicas em favor de uma ontologia com conseqüências epistemológicas, podemos gerar um conhecimento que, ao dar voz a grupos em situação de marginalidade, possibilita não apenas tornar visíveis questões antes invisíveis, mas também empoderar esses mesmos grupos ao considerá-los agentes, participantes do processo de conhecimento.

Notas 1 O trabalho de Heleieth Saffioti busca incorporar o gênero às principais categorias do ser social defendidas por Lukács: trabalho, reprodução, ideologia e estranhamento. Existe uma afinidade entre a perspectiva lukacsiana e o realismo crítico, especialmente no que diz respeito à defesa da necessidade do estabelecimento de domínios ontológicos distintos da realidade, da primazia do ontológico em relação ao epistemológico, de uma perspectiva relacional, dentre outros. No entanto, pode-se argumentar que, enquanto o realismo crítico pode ser definido como uma ontologia científica que tem conseqüências para uma ontologia da práxis, a perspectiva de Lukács seria uma ontologia da práxis com conseqüências para uma ontologia científica. Nesse sentido, a ênfase do realismo crítico não recai, como em Lukács, numa ontologia social, caracterizada pelos realistas críticos como "regional" e, portanto, como objeto das ciências sociais empíricas. É justamente esta ontologia científica geral que estaremos privilegiando aqui ao introduzir o método das explicações contrastivas. Para uma comparação entre a ontologia de Lukács e o realismo crítico, ver Mário Duayer e João Leonardo Medeiros (2005).

2 Argumentos transcendentais dizem respeito às condições de possibilidade de determinados objetos, isto é, partem da existência de algo que é dado, para algo mais fundamental, que possibilita ou sustenta sua existência. Geralmente assumem a forma "o que deve ser o caso para que X seja possível?" (Collier, 1994, p. 20).

3 Agradeço a Tony Lawson por esta sugestão.


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