Erving Goffman, sociólogo do espaço
Já são 25 anos desde sua morte, mas Erving Goffman continua "dando o que
falar". Para permanecermos em trabalhos mais recentes, seu ex-orientando Thomas
Sheff (2006) desenvolveu uma teoria dos afetos e das emoções explicitamente
tributária das reflexões do autor. No mesmo ano, publicou-se (mais) um guia
sintético à sua biografia e principais preocupações teórico-metodológicas
(Smith, 2006). Isso, para não mencionar coletâneas que, também neste início de
século XXI (Treviño, 2003a; Gastaldo, 2004), desenvolvem temáticas teóricas e
metodológicas desse sociólogo e antropólogo a partir de problemáticas empíricas
e teóricas atuais das ciências sociais.
Com base nessas releituras, afora outras, mais antigas,1 gostaria neste estudo
de explorar uma faceta até agora pouco destacada da sociologia goffmaniana.
Refiro-me à sua abordagem teórica do espaço físico, definido aqui, para fins
heurísticos, como ambiente físico em que a vida social se dá.
Trata-se de uma preocupação de longa data no pensamento sociológico. Em torno
dela produziram-se historicamente concepções diferenciadas sobre os vínculos
entre espaço e vida social. Para uns, que remetem a leituras específicas de
Kant, o espaço seria essencialmente um construto social, tributário de
interações sociais e de representações coletivas.2 Para outros, associa-se mais
a um ambiente físico marcado por dinâmicas de seleção, de distribuição e de
acomodação, que "afetam" as relações dos seres humanos com o espaço e com o
tempo: uma variável ecológica.3 Enfim, argumenta-se ainda, em termos
dialéticos, que o espaço é mediação de práticas sociais imbuídas de
contradição.4 Direta ou indiretamente, tais concepções alimentam o debate
sociológico sobre o espaço físico até hoje. Teorias alternativas têm
recombinado criativa e (mais ou menos) criticamente essas concepções.5 O que,
aliás, não surpreende. Elas repõem, na sociologia, um debate filosófico antigo,
incorporado também por outras ciências humanas quando o assunto é espaço
físico.6
Considerando, à luz dessa longa história de enfoques sociológicos, que se pode
associar "sociologia do espaço" à pletora de preocupações teóricas e
metodológicas da disciplina especificamente com o papel do espaço físico na
vida social, então é o Goffman sociólogo do espaço que pretendo trazer para o
primeiro plano. É mais uma instigante e multifacetada dimensão de sua obra,
densa em termos teóricos, mas ainda insuficientemente conhecida.
Meu interesse sociológico e antropológico pelo espaço fez de mim uma leitora de
Goffman sempre atenta ao que ele mencionasse acerca de "espaço". O contato com
artigos e livros do período entre as décadas de 1950 e 1980,7 e com as análises
dos comentadores anteriormente referidos, permitiu reconhecer num corpus
definido de escritos (Goffman, 1951, [1956] 1967, 1959, 1961 [2005], 1961,
1963a, 1971) que a falta de uma definição explícita de espaço físico coexiste
com numerosas referências espaciais - embora, muitas delas, a "lugares"
tampouco definidos de modo explícito. Essas alusões todas têm na obra um papel
não somente descritivo, mas também interpretativo.8 De fato, as menções
espaciais medeiam concepções sobre o ambiente físico da vida social que têm
importância teórica significativa no esquema conceitual desenvolvido por
Goffman para compreender a estrutura normativa das interações face a face não
estritamente conversacionais - o que ele chamou de "ordem" ou "vida pública" e,
em seu último (e póstumo) texto a respeito (1983), de "ordem da interação".9
Demonstrar que importância é esta, eis o objetivo específico deste texto.
O papel teórico do espaço físico na sociologia goffmaniana transparece pouco na
bibliografia secundária. Tendo examinado, até outubro de 2007, as monografias e
as coletâneas acima aludidas, além de outras mais antigas, dos Estados Unidos,
da Inglaterra, da França, da Alemanha, de Portugal e do Brasil, e artigos e
resenhas de dois arquivos eletrônicos de revistas internacionais, sobretudo
anglo-saxônicas e francófonas,10 notei uma intrigante desproporção entre o
interesse do autor pelo espaço e a atenção de seus estudiosos a esse fato.
Evidentemente, ressalta-se o mérito de Goffman em recuperar, para a sociologia,
a relevância das "propriedades de relações espacialmente próximas" (Lyman,
1973, pp. 360-366). Seu objeto, as interações face a face, seria relevante
(Hannerz, 1980, p. 221) para uma compreensão antropológica da vida e da
experiência urbanas, embora o sociólogo não tivesse se devotado especificamente
a elas. Já outros estudiosos destacam que, em busca das propriedades da "ordem
pública", sua "microanálise" teria chegado a vários exemplos de interações
próprias da ordem social vigente entre desconhecidos nos chamados "lugares
públicos" (Lofland, 1998, p. 4; cf. também Lofland, 1973; Cahill, 1994). O
enfoque sobre a lógica normativa em "áreas físicas" fez da obra goffmaniana uma
orientação crucial da "microecologia social", herdeira da ecologia urbana de
Chicago (Joseph, [1998] 2000, pp. 56ss). E não só. Os textos sobre as
interações nos lugares públicos têm reverberado em pesquisas com orientações
teóricas diversas, nos cenários norte-americano (Smith, 2006, p. 39), francês
(Joseph, 1984, 1998) e luso-brasileiro (Pais, 1986; Martins, 1999; Frehse,
2004).
Mas o que dizer do estatuto teórico do espaço físico na obra do autor?
Preocupados com o modo como a antropologia tem tratado as relações entre
sociedade, cultura e ambiente construído, Setha M. Low e Denise L. Lawrence
(1990, p. 480) destacam a importância de sua "abordagem dramatúrgica", pautada
na noção de "territorialidade das relações interpessoais", para a apreensão
"psicocultural" das relações espaciais. Já discutindo o "lugar do espaço na
sociologia", Ann Tickamyer (2000, p. 807) sublinha a importância, para o
debate, das "regiões" goffmanianas como um dos condicionantes de encontros
pessoais. Breves menções como essas fazem par com pesquisas nas quais as
categorias do autor ajudam a compreender a relação dos indivíduos com
determinados "lugares" (Henderson, 1975; Bell, 1997, pp. 820ss). Porém as
vicissitudes teóricas do espaço em sua sociologia permanecem pouco conhecidas.
Perscrutar as referências espaciais contidas nos textos de Goffman acima
indicados permite discernir que, em sua seqüência cronológica de publicação, a
obra é perpassada por um conjunto de concepções sobre o espaço físico. A
existência destas aponta que, para o sociólogo, espaço é algo complexo. Sua
argumentação é pontuada por noções de estrutura social e de interação
essencialmente espaciais; e isso tem implicações teóricas para a sua
compreensão das relações socioespaciais. A complexidade reside, ademais, no
fato de que esses espaços abstratos, construções teórico-metodológicas,
coexistem na reflexão de modo muito especial com o espaço físico. Enfim, este
mesmo é matéria simultaneamente de quatro concepções de espaço.
Perpassada por essas três dimensões, a obra oferece ao debate sociológico uma
explanação interpretativa alternativa do papel do espaço físico nas relações
sociais. Ele escapa às concepções de construto social, de variável ecológica e
de mediação de práticas sociais por uma via que cabe, ao final da análise,
apresentar.
Em busca de espaço, dois pressupostos espaciais
Debruçar-se sobre o Goffman da ordem da interação em busca de referências de
cunho espacial é defrontar-se, logo em seu primeiro artigo acadêmico (1951, p.
292), com uma preocupação de inspiração simmeliana: os comportamentos
individuais são "signos de posições sociais" que, por sua vez, constituem
"símbolos de status" quando utilizados como "recursos" que localizam os
indivíduos socialmente. A orientação vem do Simmel da tradução do ensaio sobre
a moda ([1895]1904), uma das duas menções ao pensador alemão nos primeiros
escritos goffmanianos (Gerhardt, 2003, p. 146).
Este esclarecimento indica a relevância, para o autor, de um Simmel específico
- aquele interessado nas distâncias sociais que perpassam as "formas de
sociação", isto é, as formas do processo de mútuo exercício, entre os
indivíduos, de influências e determinações recíprocas (Simmel, [1917] 2006, p.
17; Waizbort, [1999] 2001, p. 100).
Ora, se há distâncias em jogo, há espaço implícito. No entanto, espaço como
configuração constituída pela interação de interações. Trata-se de uma
abstração teórico-metodológica, construção do sociólogo que permite compreender
o que separa e une socialmente os indivíduos em grupos. Assume, assim,
relevância uma concepção peculiar de espaço - propriamente, espaço social.11
Essa representação coexiste, no início da obra goffmaniana, com uma segunda que
foi mais explorada teoricamente pelo autor. Refiro-me ao espaçointeracional.
Dialogando não só com a tese durkheimiana ([1912] 1994) de que rituais
coletivos destinados ao indivíduo celebram a sacralidade da vida social, mas
também com o Alfred R. Radcliffe-Brown ([1939] 1952) do ritual como atitude de
respeito a um objeto imposta pela sociedade a seus membros, Goffman ([1956]
1967, pp. 47-63) associa as regras de conduta vigentes nas interações face a
face a "rituais de evitação" e de "apresentação" que integrariam a atividade
cerimonial da deferência, importante mesura ritual feita por um indivíduo a
outro durante a interação, na vida cotidiana. A perspectiva implica distinguir
"ritos positivos" de "negativos", que delimitam "distâncias cerimoniais" entre
os indivíduos. O fundamento para tanto o autor encontra na tradução norte-
americana do texto de Simmel sobre a discrição ([1908] 1950): adotar rituais de
evitação é lançar mão de uma forma de deferência que mantém intacta a "esfera
ideal" em torno de todo indivíduo e que, uma vez penetrada, destruiria o "valor
de personalidade da pessoa". E o espaço volta à cena. Só que agora
interacional, configurado simbolicamente através das regras de conduta nas
quais os indivíduos se orientam, em co-presença. Se tal espaço é atravessado
por relações de "familiaridade simétrica" ou de "assimetria", dependendo da
"distância sociológica" respectivamente em questão (Goffman, [1956] 1967, p.
64), ele não se confunde com o espaço social - embora o revele.
Contemplada sob o prisma das duas concepções, a interlocução de Goffman com
Simmel e Durkheim é tributária dos subsídios teóricos destes autores para sua
reflexão sobre o espaço - abstrato - que as interações sociais estendem pela -
abstrata - estrutura social. As mesmas referências aos dois pensadores
reaparecem na versão definitiva de seu primeiro livro (1959, p. 69). E os dois
espaços também: os "estímulos" que compõem a "aparência" do ator em interação
seriam reveladores de seu "status social"; já aqueles referentes à sua
"maneira" informariam sobre o "papel de interação" que ele esperaria
desempenhar na situação de contato face a face (Idem, p. 24).
Apesar de, nos textos subseqüentes, os trechos dos dois pensadores não voltarem
a ser citados, as duas concepções de espaço de fato perpassam a obra
goffmaniana. Em 1961, é aprofundada, como contraponto ao clássico debate
sociológico sobre papéis sociais, a noção de "distância do papel" (Goffman,
1961, pp. 83-152). Trata-se de englobar na análise a possibilidade de os
indivíduos, em sua performance na situação de interação, afastarem-se do
conjunto de direitos e deveres implícitos em seu papel social. Também esta
formulação pressupõe a concepção de um espaço interacional no qual os
indivíduos se movimentam, em co-presença. Tal universo de referência se propõe
de modo explícito na observação de que as interações face a face são "campos
projetivos ideais" que o participante ajuda inevitavelmente a estruturar (Idem,
p. 102, grifo meu). Abstrações espaciais, as interações têm "fronteiras" que,
asseguradas por uma "membrana" metafórica, submetem os eventos a elas externos,
entre outros, a "regras de transformação" (Idem, pp. 29-34, 65-66). Dois anos
depois, as metáforas mudam, novos conceitos são testados, mas a reflexão
continua com teorizações, por exemplo, sobre o papel, no contexto norte-
americano, da regra obrigatória de fit in, cuja conotação espacial indica a
importância de o indivíduo inserir-se, através de seu comportamento, no espaço
abstrato das interações (1963a, p. 11). Importante contraponto analítico é a
influência das "inadequações situacionais" sobre a delimitação de distâncias
interacionais e sociais (Idem, pp. 225, 229). Já em 1971, o autor salienta que
poder e posição social interferem na forma dos "territórios do self",
demarcações físicas, situacionais ou objetos manejados pelos indivíduos em
interação para preservar a imagem de si que constroem pela mediação das
interações com outros (Goffman, 1971, p. 41). Ademais, caberia considerar, nos
termos de uma "sociologia do lugar", que comportamento desviante é aquele de
quem não mantém seu "lugar" no grupo a que pertence. O que aponta para uma
relação direta entre o self e a posição normativamente definida do indivíduo no
interior do grupo, seu "lugar social" (Idem, pp. 340-357) ali - e, assim,
localização naquilo que estou chamando de espaços interacional e social.
Tais observações sugerem que, com o avanço da reflexão, o espaço social
demarcado por posições se submete mais e mais, em termos teóricos, ao espaço
interacional demarcado por ajuntamentos. O que se pode afirmar sobre distâncias
sociais parece depender de modo crescente do que se pode afirmar sobre as
distâncias interacionais. Estas revelam aquelas, desafiando distinções
sociológicas clássicas.12
Levando-se em conta esses aspectos, seria possível pensar que, em Goffman, o
espaço seja essencialmente metáfora de abstrações teórico-metodológicas
forjadas nas também teóricas interação e estrutura social. São construções
conceituais comuns na disciplina desde seus primórdios - sendo Simmel e
Durkheim pioneiros nesse sentido.
Todavia, há muito mais espaço em questão. A obra sobre as interações não
conversacionais sugere que os espaços interacional e social constituem, na
verdade, dois poderosos pressupostos do esquema interpretativo desenvolvido
pelo autor para desvendar a estrutura normativa das interações. Se os
indivíduos, ao interagirem, se expressam e manejam as impressões de seus
interlocutores a respeito deles visando a manter determinado self, tais
expressões e impressões localizam o indivíduo na própria interação e na
estrutura social por localizarem-no no espaço interacional e no social.
No entanto, o crucial é que esse processo de localização se efetiva no espaço-
tempo restrito da interação através de recursos comunicativos. E eis que
chegamos ao espaço físico.
No espaço interacional, quatro espaços físicos
Tendo-se em mente que Goffman fez sua pós-graduação em Chicago, e que
considerou Everett Hughes, aluno de Park com grande sensibilidade etnográfica
para pesquisas urbanas, seu mais importante professor (Smith, 2006, p. 31), não
espanta sua atenção ao espaço físico. Há quem reconheça (Abbott, 1997, p. 1153)
como especificidade das obras de Chicago entre os anos de 1910 e 1930 a ênfase
em "tempo e lugar": a "sociologia contemporânea" estranharia que fatos sociais
sejam "localizados".
Em relação à obra goffmaniana, a associação talvez mais imediata e evidente,
sobretudo no Brasil, concerne às chamadas "instituições totais" (em especial,
centros clínicos e hospitais psiquiátricos), referenciais empíricos
privilegiados no primeiro livro do autor publicado no país, em 1974 ([1961]
2005). Tais instituições exemplificam aquilo que o sociólogo chamara (1959, p.
xi) de "estabelecimentos sociais concretos" para sintetizar seu objeto de
estudo: o tipo de vida social que se desenrola nos limites físicos desses
estabelecimentos, sejam eles domésticos, industriais, sejam comerciais. A
formulação deixa intuir uma ampla gama de ambientes físicos em que a vida
social se dá; nos termos aqui propostos, um escopo variado de espaços físicos.
Explicitados como "lugares" ou não, são ambientes principalmente urbanos, o que
vai ao encontro da concepção que Goffman tem de sua atuação como pesquisador: a
de um "etnógrafo urbano hughesiano".13 O autor aprofundou-se nesse contexto
após dezoito meses de pesquisa de doutorado na "comunidade" de uma das Ilhas
Shetland (Winkin, 1988, pp. 66-70). Depois dessa experiência etnográfica, foram
três anos de observação participante nos setores de pesquisas farmacológicas e
de esquizofrenia do National Institutes of Health Clinical Center, e no
hospital psiquiátrico St. Elizabeths. Em seguida, "outras pessoas e lugares"
(Treviño, 2003b, pp. 31-32): equipes cirúrgicas nas salas de operação do
Herrick Memorial Hospital; jogadores e traficantes nos cassinos de Las Vegas e
Nevada; um disc-jockey numa rádio da Filadélfia.
Nesse percurso, ganhou corpo uma etnografia abrangente mas minuciosa da vida
social em espaços físicos variados da sociedade ocidental: o mundo rural e a
cidade e, nesta, "estabelecimentos sociais" em cujos "limites físicos" se dão
interações que desafiam, pelas regras que as medeiam, os padrões de normalidade
da sociedade, em especial de "nossa sociedade ocidental", "anglo-americana"
(Goffman, 1959, p. 106; [1961] 2005, p. 16; 1963a, p. 132). Se, em 1956, o
hospital psiquiátrico é "lugar de atos e compreensões profanos" para onde a
"sociedade moderna" leva os transgressores da ordem cerimonial ([1956] 1967, p.
94), em 1959 outros locais são referenciados: igrejas, andares térreos de
lojas, fábricas, agências funerárias, oficinas de prestação de serviços, postos
de gasolina, os cômodos do Hotel Shetland, emissoras de rádio e televisão,
casas (1959, p. 109, 114-20, 134-135), entre outros. Dois anos mais tarde, é,
afora o hospital psiquiátrico ([1961] 2005), a vez de mesas de jogo, carrosséis
infantis e salas de cirurgia (1961). Já em 1963 são destacados "lugares
públicos", ou seja, "regiões numa comunidade livremente acessíveis aos membros
daquela comunidade" (1963a, p. 9). O termo abarca locais vários afora o "espaço
público genuíno", de acesso legal irrestrito, como ruas e praças públicas
(Lofland, 1998, p. 4, n. 7).
Em face do escopo abrangente de espaços físicos, poder-se-ia afirmar,
parafraseando um trocadilho comum na antropologia, que estamos diante de uma
sociologia noespaço, e não uma sociologia do espaço. Os "limites físicos" dos
"estabelecimentos sociais" demarcariam apenas cenários empíricos referenciais
para as análises.
Trechos dispersos da obra do autor carregam, contudo, indícios de que há mais
em tela. Em 1961, ele ressalta a relação de determinadas "atividades de vida
íntima" com "locais" ou "regiões" específicas ([1961] 2005, p. 188); ademais
enfatiza, como uma propriedade distintiva de ajuntamentos em face de grupos
sociais, a "alocação da posição espacial" dos indivíduos na interação (1961, p.
11). São argumentos que sugerem que a localização dos indivíduos no espaço
físico é interpretativamente relevante para uma sociologia da interação.
Na primeira teorização mais delongada sobre a "ordem pública" (1963a, p. 17), o
espaço físico assume o estatuto explicativo de condicionante físico de modos de
comunicação na interação face a face: "A distância física no âmbito da qual uma
pessoa consegue experienciar outra com os sentidos nus - achando assim que o
outro está 'dentro do escopo' - varia de acordo com vários fatores: o sentido
envolvido, a presença de obstruções, mesmo a temperatura do ar". Essa
orientação permite reconhecer, por exemplo, em conversas informais, a
dificuldade representada pela distância física e pela interferência de
"arranjos mobiliários" (Idem, p. 98); e, mais tarde, que seria possível
caracterizar ajuntamentos de dois ou mais indivíduos nas ruas como with:
afinal, esses manteriam entre si um tipo de "proximidade ecológica" (1971, p.
19).
Tais argumentos de 1963 e 1971 sinalizam uma concepção de espaço que é
indissociável das reflexões ecológicas de Chicago. Esse é meio físico de
relações sociais necessariamente espaciais. Dependendo das condições espaciais,
tais ou quais interações são possíveis. Então, além de mero cenário físico, o
espaço interfere na vida social como condicionante físico de interações.14
Marcadas por tais aspectos, essas concepções de espaço, além das duas
primeiras, sobre o espaço abstrato da interação e da estrutura social, não
permitem intuir qualquer originalidade de Goffman para a reflexão sociológica
sobre o espaço tal como equacionada no início deste estudo. Se os espaços
interacional e social dialogam com as perspectivas de Simmel e de Durkheim, o
espaço-físico-cenário e o espaço-físico-condicionante inserem-se na tradição
etnográfica e ecológica de Chicago.
Porém ainda há mais em questão. Em um de seus primeiros artigos, o autor
reconhece nos atos ou eventos dos indivíduos em interação "veículos de signos",
isto é, portadores de "mensagens cerimoniais" relativas aos respectivos selves
e comunicadas durante a co-presença ([1956] 1967, p. 55). Esses atos ou eventos
podem, além de lingüísticos ou gestuais, ser "espaciais, como quando um
indivíduo antecede outro ao passar pela porta ou senta-se do seu lado direito,
e não esquerdo" (Idem, ibidem, grifo meu). A perspectiva propõe para o espaço
físico o papel de signo.
Goffman aprofundou-a em seguida. Na versão final de seu primeiro livro (1959,
p. 22), a concepção insinua-se na caracterização - dramatúrgica - do "cenário",
ou seja, "parte-padrão" da "fachada" que os indivíduos apresentam uns aos
outros em co-presença física. Ele envolveria mobília, decoração, aparência
física e outros "itens de bastidor" que, em conjunto, forneceriam a "paisagem e
os acessórios de palco" para a pletora de ações ali encenadas. Mas isso
justamente porque a apresentação do self se ancora na expressividade
intencional e não intencional dos indivíduos, de cunho essencialmente semiótico
(Idem, p. 2). Essa substância semiótica faz de locais físicos inclusive
"recursos cênicos" que distinguem os modos de vida das classes média e baixa
(Idem, p. 123). Se, em momentos subseqüentes do corpus de textos aqui em foco,
a metáfora dramatúrgica é substituída por referências próprias da comunicação
(1963a) e da etologia (1963a, 1971), a concepção semiótica de espaço físico
permanece. No ambiente espacial delimitado pelas interações face a face de dois
ou mais indivíduos, seus corpos não são apenas instrumentos físicos, mas
comunicativos (1963a, p. 23). Sua posição e movimentos no espaço físico
integram o "idioma corporal" (Idem, p. 33). O autor reconhece assim "convenções
espaciais" em engajamentos face a face informais de cunho conversacional: a
dependência de distâncias físicas de no máximo alguns pés e, por outro lado, a
dificuldade de conversas diretas quando os indivíduos estão a menos de um pé e
meio de distância (Idem, pp. 98-99). As distâncias físicas entre os indivíduos
comunicam tanto quanto as "distâncias individuais" ou "de vôo", nos pássaros
(Idem, pp. 156-161). A lógica explicativa mantém-se quando, aprofundando o
diálogo com a etologia, interessa mostrar (1971, p. 195) que as informações
individuais emitidas na interação indicam relações sociais mais ou menos
próximas: um dos "signos de interligação" entre interações e relações seria a
localização dos corpos no espaço.
Ao chamar a atenção para o caráter semiótico do espaço nas interações, a obra
goffmaniana escapa à concepção ecológica, mas também ao argumento de que o
espaço é um "meio" prenhe de "recursos" para as atividades sociais (Joseph apud
Valladares e Lima, [2000] 2005, p. 79). O espaço nem viabiliza praticamente as
atividades comunicativas face a face nem é instrumento de sua efetivação. Ele
comunica.
Ora, justamente por ser espaço comunicativo, o espaço físico é mais que um
signo. Deixando-se distinguir como tal pela existência de corpos passíveis de
ocupá-lo e, assim, transformá-lo e a si mesmo em signos, ele é, ainda, um
ambientede signos. É essa a quarta e última concepção de espaço que gostaria,
neste estudo, de destacar.
A intuição de que não haveria como refletir sobre a ordem normativa das
interações sem problematizar o "ambiente" que as envolve aparece já no início
da obra de Goffman. Em 1956, ele afirma que, do ponto de vista dos componentes
cerimoniais das atividades dos indivíduos em interação, "ambiente" é "um lugar
no qual é fácil ou difícil jogar o jogo ritual de ter um self" ([1956] 1967, p.
91). Três anos depois, e munido da metáfora dramatúrgica, o autor traz ao palco
da análise o já mencionado "cenário". Este constitui o "equipamento fixo de
signos" de uma entidade espacial maior: a "região de fachada", onde o self se
apresenta, e que compõe, junto com a "região de fundo ou bastidor" e o "lado de
fora", a chamada "região", limitada por barreiras à percepção. Na realidade
empírica, as interações nas regiões obedeceriam à lógica do chamado "cenário
comportamental", da então recente psicologia ecológica de Roger Barker e
Herbert Wright. De fato, Barker é relembrado em momentos variados, quando
importa reiterar que determinados comportamentos ocorrem em espaços físicos
definidos.15 Para o sociólogo (1959, p. 106), as interações envolvem
associações de sentido entre expectativas de conduta e "lugares". A formulação
indica o reconhecimento de que o espaço físico é mais do que um signo passível
de ser manejado. Dependendo justamente de suas características físicas - se
"região de fachada", "bastidor" ou "lado de fora" -, ele se presta a ambiente
em que são manejadas impressões distintas. E as próprias características
físicas são tidas como signos - sem excluir a possibilidade de as regiões
possuírem, às vezes, sentidos diferenciados (Idem, p. 126).
Uma vez elaborada teoricamente, essa dimensão do espaço físico foi desdobrada
para dar conta das sutilezas analíticas de cada momento. A fim de compreender
como "atividades de vida intima" dos pacientes do hospital St. Elizabeths
podiam "ocorrer", Goffman preocupou-se entre outros, orientado pela etologia (
[1961] 2005, p. 188), com o "ambiente", composto de "locais" ou "regiões" que
ele nomeou "espaços" - mais ou menos vigiados por terceiros - e "territórios" -
pessoais ou grupais dos internos (Idem, pp. 188-203). Já em busca da estrutura
normativa das interações face a face em lugares públicos em geral, passo
decisivo no esforço de teorização das relações socioespaciais, o autor
concentrou-se (1963a, p. 18) nas "condutas públicas adequadas" em "situações"
que passou a definir como "ambientes espaciais" (grifos meus) nos quais os
ingressantes se tornam membros de um ajuntamento já existente, ou que, assim,
passa a existir. Dotada de ênfase espacial, a noção de situação torna-se via de
acesso a outras, também de cunho espacial. Penso, em particular, em "situação
social", como ambiente de possibilidades de monitoramento (portanto,
comunicação) que fazem de qualquer ingressante o participante de um ajuntamento
(Idem, p. 243); e em "ocasião social", como "negócio, empreendimento ou evento
que, ligado a determinado lugar e tempo e tipicamente facilitado por
equipamento fixo, fornece o contexto social estruturante para a formação, a
dissolução e a nova formação de situações e seus ajuntamentos", em meio a um
"padrão de comportamento 'contínuo'" - de novo nos termos de Barker (Idem, p.
18).
Já quando importam, agora em interlocução estreita com a etologia, as conexões
da "vida pública" com as relações sociais, tornam-se cruciais os "territórios
do self". Os indivíduos buscam, a todo custo, preservar a posse, o controle, o
uso e a disponibilidade desses "campos" delimitados por lugares físicos, seus
equipamentos ou objetos, ou por objetos que, pertencentes aos indivíduos, em
geral os acompanham fisicamente (Goffman, 1971, p. 28). Contemplar a "ordem
pública" sob o prisma desses territórios é, de novo, deparar-se com signos
espaciais e um ambiente de signos. Mas este é, de certo modo, fisicamente mais
restrito. Delimitado pelo "mundo imediato" do indivíduo que interage (Idem, p.
250), ele representa potencial perigo para o self. A fim de conotar um espaço
físico definido por "signos de alarme" de cunho etológico, o autor o conceitua
como "Umwelt", termo alemão da etologia dos anos de 1930 (Idem, p. 252).
Dotado desta dupla dimensão, de ambiente situacional e ambiente do self nas
situações, o espaço físico assume, em Goffman, sua feição teórica mais
elaborada. Mais do que cenário, do que condicionante físico ou signo, o espaço
é ambiente de signos para as interações. O que, entretanto, não faz dele o
"ambiente" do interacionismo simbólico blumeriano, do qual o sociólogo foi
crítico (Gonos, 1977). Para Herbert Blumer (1969, p. 11), o ambiente se define
exclusivamente pelos objetos que os seres humanos (re)conhecem como dotados de
sentido, podendo um mesmo "local espacial" possuir ambientes diferentes. O
ambiente goffmaniano não se restringe a objetos com sentido, pois o espaço não
se restringe a uma construção simbólica humana. E isso, embora tenha
características que se transformam em signos, nas interações.
Porém então estamos em face de um ambiente expressivo. Tal como o corpo, o
espaço físico é idioma.
À luz da possibilidade de tal associação, vem à tona uma novidade para o debate
sociológico sobre o espaço. Interpretações semióticas do mesmo não são de hoje,
embora não especificamente na sociologia.16 Goffman, entretanto, tem algo
diverso a oferecer. Ao espacializar as interações face a face por meio da noção
de situação, ele assegura ao espaço físico um papel inovador na compreensão
sociológica das interações. O espaço constitui um dos idiomas de que os
indivíduos lançam mão quando interagem. É que as interações ocorrem no espaço.
Tal idioma faz par com o corporal, ao mesmo tempo em que está a ele submetido -
sendo o corpo poderoso produtor de espaço -, o que retira do idioma espacial o
mero caráter instrumental. Sua essência é expressiva, comunicativa.
Uma interação, seis espaços
O mero fato de Goffman ter palmilhado etnograficamente um leque vasto de
ambientes físicos no campo e na cidade, de acesso restrito e irrestrito, já
seria motivo para se atentar ao papel do espaço em sua sociologia. Não é comum
encontrar na história da disciplina contribuições teóricas enraizadas
empiricamente em observações etnográficas da vida social em locais tão
variados.
Ao buscar desvendar ali a lógica normativa das interações face a face,
acreditando que ela reside nessas próprias interações - que "geram" um "campo
de atividade" organizado por "normas de conjunção" (1971, p. ix) -, Goffman faz
sociologia no espaço. Porém, como cedo parece enxergar no espaço físico uma
variável que interfere nas interações e, pois, em sua lógica normativa, passa a
refletir sobre esta problematizando sociologicamente aquele. Em cena, o Goffman
sociólogo do espaço.
A análise aqui realizada permitiu reconhecer, primeiramente, que a própria
visão que o estudioso apresenta sobre as interações sociais tem forte aporte
espacial. Mesmo a mais singela "apresentação do self na vida cotidiana"
acarreta necessariamente, no espaço-tempo restrito das situações, que os
indivíduos se localizem e localizem interacional e socialmente aqueles que com
eles interagem. Interagir é invariavelmente colocar lugares sociais em xeque:
os lugares ocupados na interação e na estrutura social - esta, aliás, todo o
tempo de explícita inspiração durkheimiana e radcliffe-browniana. Tal
perspectiva assegura para aquilo que chamei de espaços interacional e social o
estatuto de pressupostos teóricos da sociologia goffmaniana do espaço.
Ademais, a análise revelou que o espaço físico não constitui somente cenário
físico de interações. É condicionante físico, signo e idioma de interações que
localizam, de diferentes modos, os indivíduos interacional e, assim,
socialmente.
Portadora dessas concepções, a obra do autor oferece ao debate sociológico
sobre o espaço uma explanação interpretativa ampla das relações socioespaciais.
Ao interagirem no espaço físico, os indivíduos se localizam e localizam aqueles
que com eles interagem no espaço interacional e social. Assim, vêm à tona duas
dimensões do espaço abstrato que, na sociologia, costuma prestar-se a ponto de
referência para a compreensão de relações e interações sociais. Como, na
situação de interação, a localização interacional e social dos indivíduos se
efetiva através da expressividade destes, o espaço físico não é só cenário. Ele
condiciona fisicamente a interação, porém, de outro ângulo, insere-se nela como
signo, ao mesmo tempo em que constitui o seu ambiente e, ainda, a Umwelt do
self de cada indivíduo em interação. O que remete, em última instância, a seis
dimensões sincrônicas do espaço físico.
Perdem relevância, então, distinções comuns na sociologia do espaço. Para
interpretações acerca da unidade autônoma de análise e de reflexão teórica que
é a ordem da interação, parece importar menos se o espaço físico é construto
social, variável ecológica ou mediação de práticas sociais. Do ponto de vista
das situações sociais em que a vida cotidiana se desenrola - seara dos
"momentos e seus homens" (1967, p. 3) -, interessa que ele é simultaneamente
cenário, condicionante, signo e idioma de modos de agir e pensar. Em face de
tal complexidade, cabe ao sociólogo etnografar a realidade empírica
distinguindo analítica, conceitual e, assim, teoricamente as regras de conduta
que medeiam essas interações. Para isso, o autor legou-nos uma paleta de
concepções.
Diante de tanto espaço, quem fica quase sem lugar é o tempo. É verdade que, ao
definir "situação" em conexão com a noção de "ocasião social" (1963a), Goffman
circunscreve ambas também temporalmente. Porém, trata-se do tempo breve das
interações, que não se confunde com o tempo de processos sociais mais
abrangentes. O autor sabe disso, diferenciando, entre as "atividades" que
importam no estudo das situações, "evento situado" e "aspecto meramente situado
da atividade situada", este, intrinsecamente dependente das condições que
prevaleceriam no interior das situações (Idem, pp. 21-22). Tal recorte
analítico o sociólogo perseguiu até o fim de sua trajetória, quando afirmou
que, para a "microanálise", é "impossível dizer o que quer que seja sobre os
estudos em grande escala" ([1982] 1983, pp. 198-199). De todo modo, reconheceu
naquele momento que, após o estudo da ordem de interação, "devamos passar às
conexões entre a ordem da interação e outras ordens da vida social, econômica,
política" (Idem, p. 202). A questão que permanece reside em se, colocando entre
parênteses a história, é possível compreender sociologicamente as situações de
que se constitui a vida cotidiana. Interpretações dialéticas dessa mesma vida
cotidiana afirmam que não.17
Entretanto, mesmo que em Goffman o tempo seja escasso, é revelador que abunde
espaço. No mínimo, antes de ele (1974, 1979, 1981) mergulhar em definitivo na
análise dos frames, enquadramentos contextuais e normativos dos sentidos
envolvidos na experiência da vida cotidiana, e que não se confundem com a noção
de situação (Gonos, 1977, p. 864, n. 18). Incorporando o espaço amplamente em
sua reflexão teórica sobre as interações, o autor abre a possibilidade de
questionarmos a abrangência teórica de sua abordagem. Suas concepções seriam
aplicáveis apenas ao "nosso mundo urbano secular" (Goffman, [1956] 1967, p.
47)? Mas o que dizer dos dados etnográficos provindos de contextos sócio-
históricos diferenciados, não apenas ocidentais?
Se o foco privilegiado de Goffman foi "nossa sociedade anglo-americana", suas
concepções deixam de fato intuir dimensões espaciais das relações sociais que
não são exclusivas da sociedade ocidental. E eis que a sociologia encontra a
antropologia, o Simmel sociólogo, o Durkheim antropólogo. E o autor reafirma,
sabendo ou não, a existência de outro espaço ainda: aquele, intelectual, que
congrega criativamente na unidade do diverso sociologia e antropologia.
Notas
1 Para uma síntese do debate a esse respeito, ver Chriss (1995).
2 Para explicitações pioneiras dessa perspectiva, ver respectivamente Simmel (
[1903] 1908, p. 462) e Durkheim ([1912] 1994, pp. 15-16).
3 Ver a respeito McKenzie ([1923] 1967, pp. 63ss). Esse equacionamento teórico
perpassa a produção inicial de Robert Park e Ernest Burgess ([1925] 1967) e
Roderick McKenzie ([1925] 1967) sobre a cidade de Chicago.
4 Precursora aqui é a reflexão de Henri Lefebvre sobre a "produção do espaço" (
[1974] 2000).
5 Ver, nesse sentido, as teorizações pioneiras de Pierre Bourdieu ([1972]
2000), de Anthony Giddens ([1984] 2003) e de John Urry ([1985] 1990).
6 Ver a esse respeito Lefebvre ([1974] 2000, passim), Urry ([1985] 1990, pp.
21-22) e Soja ([1985] 1990, pp. 99-106).
7 Refiro-me a trabalhos específicos de Goffman (1951, 1959, [1961] 2005, 1961,
1963a, 1963b, 1967, 1971, 1974, 1979, 1983).
8 Penso na distinção metodológica de Florestan Fernandes (1959, p. 36) entre
"explanações descritivas" e "interpretativas".
9 Ao longo deste texto, são de minha autoria todas as traduções de línguas
estrangeiras cujos autores não aparecem referenciados na Bibliografia.
10 Trata-se do Journal Storage(site <www.jstor.org>) e do Persée (site
<www.persee.fr>).
11 Tal visão simmeliana repercutiu mais tarde na obra de Pierre Bourdieu (cf.
uma das primeiras alusões a Simmel nesse sentido em Bourdieu [1966] 2005, p.
18).
12 Diz o autor em 1963 que "Mais do que a uma família ou clube, mais do que a
uma classe ou sexo, mais do que a uma nação, o indivíduo pertence a
ajuntamentos, e o melhor que ele tem a fazer é mostrar que é membro de boa
reputação" (Goffman, 1963a, p. 248). Essa percepção da importância teórica da
ordem - e do espaço - das interações se manterá até seu último e póstumo texto:
"Esse ponto de partida corpo a corpo assume, de modo paradoxal, que uma
distinção sociológica muito central pode não ser, de início, relevante:
notadamente, o contraste-padrão entre vida de aldeia e vida urbana, entre
cenários domésticos e públicos, entre relações íntimas, permanentes, e relações
fugazes e impessoais" (Goffman, 1983, p. 2).
13 Numa entrevista de 1980, Goffman declarou que seria esse o rótulo que
mereceria, se tivesse de receber um (Treviño, 2003b, p. 7).
14 O que, aliás, conota uma confluência dessa concepção com aquela que, segundo
Isaac Joseph (apud Valladares e Lima, [2000] 2005, p. 79), perpassa a
"abordagem ecológica", para a qual o espaço é "meio completo no qual a
atividade de adaptação e de cooperação dos indivíduos dos grupos encontra
recursos" (cf. ainda Joseph, [1998] 2000, p. 57).
15 Barker foi o fundador da chamada "psicologia ecológica", baseada em
observações detalhadas das relações entre comportamentos humanos e "cenários
naturais", não experimentais, encontrados na estação de pesquisa que ele criou
com colegas numa pequena cidade do estado norte-americano do Kansas, nos anos
de 1950 (cf., entre outros, Hall, 1969; Carneiro e Bindé, 1997).
16 Penso, entre outros, na reflexão benjaminiana sobre a Paris do século XIX
(Benjamin, [1938] 2006; Bolle, 1996) e em associações mais recentes entre
espaço e signo (Bachelard, [1957] 1996; Cannevacci, [1993] 2004).
17 Para sínteses das principais vertentes do debate, ver Pais ([1986] 2001) e
Martins ([1998] 2008). Adotando uma orientação teórico-metodológica distinta,
Richard Sennett ([1974] 1978, pp. 50-51) critica em Goffman o suposto caráter
a-histórico e estático de sua "sociedade de cenários".