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EuBRHUHu0100-512X2014000100020

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National varietyEu
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0100-512X
Year2014
Issue0001
Article number00020

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Deleuze, leitor de Espinosa: automatismo espiritual e fascismo no cinema

Le vieux fascisme si actuel et puissant qu'il soit dans beaucoup de pays, n'est pas le nouveau problème actuel. On nous prépare d'autres fascismes.

(Gilles Deleuze)1

Introdução: Espinosa, segundo Deleuze As leituras que Gilles Deleuze faz, breves no caso do pensamento de Heidegger, mais extensas no caso do pensamento de Kant, Nietzsche ou de Bergson, correspondem a um longo e complexo tecer de ideias que tem como principal objectivo a procura de um pensamento da diferença, isto é, da possibilidade de encontrar outras modalidades para se pensar a diferença em relação ao começo filosófico e à estética (teoria do sensível). É precisamente neste tecido de ideias que Espinosa se torna num filósofo crucial; para além de ser uma influência directa na filosofia deleuziana, Deleuze cria ainda um encontro original entre o "poder do pensamento" em Espinosa e o "poder do falso" em Nietzsche: esse encontro tornar-se-á explícito com a criação do conceito de "Imagem-tempo" nos anos 1980.2 "O movimento automático" defendido em "A Imagem- tempo", "faz surgir em nós um autômato espiritual, que, por sua vez, reage sobre ele."3 Do ponto de vista teórico, a associação entre o automatismo do mecanismo cinematográfico e os processos mentais dos espectadores remonta às primeiras teorias sobre o cinema. Em 1937, Faure faz um dos primeiros elogios ao cinema, ao aproximar o "automatismo material", próprio da técnica cinematográfica, ao "automatismo intelectual" do espectador: Na verdade, é o seu próprio automatismo material que faz surgir do interior destas imagens este novo universo que impõe pouco a pouco ao nosso automatismo intelectual. É deste modo, que aparece numa luz ofuscante, a subordinação da alma humana aos instrumentos que ela cria e vice-versa. Entre tecnicidade e afectividade, surge uma reversibilidade constante.4 Epstein defendia a especificidade da "máquina de pensar" que é o cinema: o cinematógrafo foi, gradualmente, criando um "cérebro mecânico", directa e indirectamente relacionado com a própria inteligência humana e que, no fundo, conduziu à criação de uma "filosofia de um cérebro-robot que não foi intencional e estritamente regulado para realizar um trabalho idêntico ao do órgão vivo".5 Porém, a interpretação que Deleuze faz dessa associação entre a técnica cinematográfica e a mente do espectador é inovadora no próprio recurso que faz do conceito de "autómato espiritual", conceito que é, em primeiro lugar, uma leitura de Espinosa, mas também de Leibniz. Mas, se o conceito de autómato espiritual nos remete para aquilo que na tradição filosófica diz respeito à unidade entre mente e corpo, ele surge aqui deslocado, de alguma forma actualizado pelo cinema e significando, por sua vez, e primeiramente, o circuito criado pelo choque entre a Imagem-movimento e o pensamento. Assim, na filosofia do cinema de Deleuze, o autómato espiritual ou mental não designa, como na filosofia de Espinosa, a possibilidade lógica de um pensamento que deduziria as ideias umas das outras, ou seja, a dedução de um pensamento mediante um outro pensamento.

O Método não é outra coisa senão o conhecimento reflexivo ou a ideia da ideia; e porque não a ideia da ideia se não existir primeiramente a ideia, portanto, não Método a não ser que haja primeiramente a ideia. Por consequência, será bom aquele Método que mostre como a mente deve ser dirigida pela norma de dada ideia verdadeira.6

Espinosa, o autómato e a autonomia espiritual Em Espinosa, o conceito de autómato espiritual surge, pela primeira e única vez,7 numa obra póstuma e inacabada, "Tratado sobre a Reforma do Entendimento".

Este livro divide-se em duas partes: uma primeira sobre o objectivo do método, do pensamento, sobre a "forma da ideia verdadeira"; e uma segunda sobre o "conteúdo da ideia verdadeira ou adequada", isto é, sobre o modo de concretizar o primeiro objectivo. Iniciando o livro naturalmente pela dúvida, Espinosa começa por nos indicar que o "autómato" corresponde ao Homem do cepticismo "cego", radical, ou seja, ao sujeito cartesiano que afirma e duvida sem que, no entanto, tenha conhecimento de que é ele quem afirma e duvida: "Se negam, concedem ou opõem, não sabem que negam, concedem ou opõem e, portanto, têm de ser considerados como autómatos totalmente privados de pensamento".8 Numa primeira acepção do termo, "autómato" designará a privação de pensamento, a inexistência de espírito, ou a falta de espírito reflexivo naqueles que não sabem sequer que duvidam quando afirmam duvidar - ou, em termos cartesianos, não se compreendem como Cogito. Entretanto, de acordo com Deleuze, o dualismo cartesiano tinha impedido a criação da personagem conceptual do "autómato espiritual", enquanto unidade de alma e corpo numa identidade indivisível entre forma e matéria. Ora, o conceito de autómato espiritual é justamente abandonado na Ética e substituído pelo conceito de conatusaliando, desse modo, o autómato espiritual com o "autómato corporal".9 A superação desse dualismo será uma das razões do interesse pelo pensamento de Espinosa, uma vez que, se, numa primeira parte, a exposição do método reflexivo ("ideia da ideia" ou o poder de pensar) não nos a conhecer mais do que o poder que temos em conhecer, numa segunda parte, Espinosa desenvolve a questão da ideia adequada ou o conteúdo da ideia verdadeira, seja enquanto reflexiva, como na ideia da ideia, seja enquanto expressiva, como na ideia adequada.10 Pensar é, segundo esta definição, seguir as leis do pensamento, as leis que determinam a forma e o conteúdo das ideias verdadeiras: Ao pensarmos, não obedecemos senão às leis do pensamento, leis que determinam ao mesmo tempo a forma e o conteúdo da ideia verdadeira, que nos fazem ligar as ideias a partir das suas próprias causas e de acordo com o nosso próprio poder, ainda que não conheçamos o nosso poder de compreender sem conhecer pelas causas todas as coisas que caiem sob este poder.11 O que o método nos permite conhecer é o nosso poder de conhecer, o nosso poder de pensar,12 noção que, por seu lado, será a causa de todas as outras ideias que se lhe seguirão (de um modo automático). Segundo Espinosa, o autómato espiritual corresponde a um espírito que age de acordo com as leis determinadas.13 Ou seja, numa segunda acepção do termo, o "autómato" surge no texto de Espinosa como sinónimo de autonomia: a autonomia e a espontaneidade do pensamento.14 Numa nota de "Espinosa e o problema da expressão", Gilles Deleuze afirma justamente: "Apesar da diferença das duas interpretações, o autómato espiritual tem um aspecto comum em Leibniz e em Espinosa: ele designa a nova forma lógica da ideia, o novo conteúdo expressivo da ideia e a unidade desta forma e deste conteúdo".15 Conceito que surge directamente ligado a uma prévia noção de imanência (desenvolvida na "Ética"), o autómato espiritual é, por excelência, a Imagem do sujeito espinosano autoprodutivo: ou seja, "[a] noção espinosana de autômato espiritual possui profundas implicações de ordem ontológica, pois este, ao desdobrar-se, é o real que se afirma e se determina como tal".16 O autómato espiritual é, portanto, uma unidade temporal indivisível do múltiplo, entre o modo de pensamento (intelecto como alma ou espírito)17 e o modo de extensão (corpo) de tal modo que, de uma forma reversível (de dobra ontológica), o espírito é expressão intelectual do corpo tal como o corpo é expressão extensa, espacial do espírito (paralelismo dos atributos na "Ética"). Ainda que este conceito tenha um tão grande destaque no livro de Deleuze dedicado a Espinosa, trata-se de um conceito inexistente na filosofia de Espinosa.18 Porém, na leitura deleuziana que seguimos, é o conceito de expressão que realiza a ligação Ser-Pensar: "São os conceitos espinosistas de substância e de modos que se relacionam com o plano de imanência como seu pressuposto. Este plano oferece-nos as suas duas faces, a extensão e o pensamento, ou, mais exactamente, os seus dois poderes, poder de ser e poder de pensar".19 Segundo Espinosa, tudo é causado pelo poder do pensamento, isto é, as ideias são a causa de outras ideias, sem que haja propriamente a concepção de um "Eu" que pense enquanto res cogitans; quem pensa é um agenciamento maquínico, como um autómato espiritual que pensa em nós. Neste sentido, pensar é obedecer às regras do pensamento, às leis que determinam a forma e o conteúdo das ideias verdadeiras que criam outras ideias unicamente pelo poder de pensar. Ou seja, a alma será unidade deste processo unicamente enquanto autómato espiritual.

Automatismo, acção e reacção Ora, se Espinosa destaca o poder do pensamento, Deleuze vai contudo relacionar este poder com as ideias de Nietzsche e Artaud, pensadores que fazem a ruptura com um modo tradicional de pensar: afinal, perante a impotência em se pensar a verdade, qual é o valor do pensamento? A questão da impotência do pensamento não diz apenas respeito à nossa relação com o cinema mas é, neste caso concreto, tanto o objecto do cinema quanto o seu sujeito. Para Deleuze, o maior poder que o pensamento pode expressar não está no modelo representativo, enquanto modelo do reconhecimento mas no pensamento do impensável, quando este enfrenta a sua maior impotência. Deleuze passa da questão do próprio mecanismo cinematográfico, um aparelho que faz mover as imagens, para as imagens que se automovem: o movimento é o dado imediato das imagens. Porém, o que lhe interessa nesta Imagem automática é a questão do pensamento: quando o movimento é automático. O autómato espiritual não é considerado apenas no sentido da filosofia clássica analisado; o cinema torna-se no modelo do próprio funcionamento do pensamento e não num sucedâneo deste pois, como defende Deleuze, a essência do cinema é "produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral".20 Segundo a noologia defenida por Deleuze, "[a] teoria do pensamento é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que faz com que ela passe da representação à arte abstracta; é este o objecto de uma teoria do pensamento sem imagem".21 A Imagem é compreendida como uma figura ou uma representação a eliminar. Deleuze, em "Diferença e Repetição", usa o termo "imagem" para a aproximar mais da noção de cliché, entendido como uma Imagem que pensa por nós segundo o senso comum não-filosófico. Isto é, ele usa o termo "imagem" no sentido de "representação" do pensamento: consequentemente, um pensamento sem Imagem equivalerá a um modo de pensar sem o modelo da representação e do reconhecimento. Pelo contrário, uma nova Imagem assinalará um tipo de pensamento não-representativo que renuncia à "forma da representação" e ao "elemento do senso comum".22 Em suma: "para um pensamento sem imagem" vem a significar para um pensamento sem representação enquanto destruição do Ícone, tal como acontece na ruptura que a arte abstracta faz na arte representativa.

Ou seja, com a crítica radical, Ela [a filosofia] encontraria a sua diferença ou o seu verdadeiro começo não num acordo com a Imagem pré-filosófica, mas numa luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosofia. Ela encontraria assim, a sua repetição autêntica num pensamento sem Imagem. (grifos no original)23 Um pensamento sem Imagem diz respeito a um começo sem pressupos- tos, não seguindo a Imagem tradicional do que significar pensar, orientar-se no pensamento.

Contudo, em "O que é a filosofia?", todo o pensamento filosófico pressupõe uma Imagem do pensamento: justamente neste sentido, pensar sem imagens equivale a começar a filosofia sem imagens do pensamento, sem pressupostos. Deleuze e Guattari voltam a colocar a questão: "o que é a filosofia, o que é pensar. Pensar é um acontecimento, um acto criativo e não reflexivo ou representativo. Em ruptura com a Imagem tradicional e os seus próprios "mapas e imagens"24 do que significa orientar-se no pensamento, procuram outros mapas e outras imagens: "Façam mapas e não fotografias nem desenhos."25 Segundo esta abordagem, a filosofia, não sendo nem uma forma de conhecimento, nem de reconhecimento, é uma forma de pensamento conceptual ainda que o acto de pensar não lhe seja, no entanto, exclusivo: também a ciência e a arte pensam, ou seja, actualizam o pensamento nas funções de perceptos e afectos, por cada expressão do respectivo plano. O que é exclusivo do âmbito filosófico é a criação autopoiética de conceitos, a criação de conceitos que são expressão do pensamento e não representação de objectos exteriores. Pensar não é a representação de um objecto; pensar não é sequer uma relação entre um sujeito e um objecto. "O pensamento que nasce no pensamento, o acto de pensar originado na sua genitalidade, nem dado no inatismo, nem suposto na reminiscência, é o pensamento sem imagem",26 afirma demarcando o trabalho filosófico de qualquer possibilidade de ser confundido com o co- nhecimento: pensar conceptualmente (filosoficamente) não é conhecer nada, ou seja, filosofar não é reflectir sobre um determinado assunto, mas antes é a criação de conceitos, de conceitos que são auto-referenciais, fechados em si, e que, por sua vez, nascem do corte com o caos.

Contudo, em segundo lugar, e recuperando a citação que tivemos como ponto de partida - "O movimento automáticofaz surgir em nós um autômato espiritual, que, por sua vez, reage sobre ele" -, Deleuze destaca igualmente a importância da reacção que o autómato espiritual deve ter ao próprio automatismo cinematográfico que o gerou. Isto significa um novo circuito no qual o espírito não segue passivamente as imagens, mas, antes pelo contrário, as imagens é que o forçam a pensar - trata-se de um noochoque. Deste modo, compreendemos que a primeira parte da frase citada de Deleuze - o automatismo do cinema cria o automatismo espiritual - seja tão importante como a final - a reacção ao automatismo espiritual -, a reacção que o espectador faz à Imagem-movimento (ou modelo clássico, dogmático do pensamento racionalista como representação). Tal como acontece na crise da Imagem-acção (caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: a mente do filme é igual à mente do espectador), o espectador ganha uma dupla função activa: se, por um lado, deve responder automaticamente às imagens que e ouve, numa relação de passividade (pelas percepções e afecções das imagens), por outro, destaca-se também a possibilidade de reacção pelo choque.

A questão prende-se, ao contrário do que se julgaria, com a "afectividade e virtualidade" do cinema e a perda da subjectividade, isto é, com as duas maiores capacidades do cinema. Deste modo, Richard Rushton defende, consequentemente, um conceito de espectador em Deleuze sem que, no entanto, a subjectividade no presente desse espectador seja de modo algum considerada como pobre.27 Para Eisenstein, a montagem cinematográfica tem a função de associar a montagem das imagens à montagem das ideias com o objectivo de criar um Todo fechado significante. É por meio da montagem e da associação livre entre imagens ou planos que se constrói igualmente uma representação do tempo, representação indirecta mediante o controlo do movimento. Na montagem dialéctica de Eisenstein, e nas suas diversas modalidades, o choque é provocado pela oposição entre imagens: por exemplo, em "O Couraçado de Potemkin"("Bronenosets Potyomkin", 1925), na cena da escadaria de Odessa, Eisenstein recorre à montagem rítmica que alia a duração de cada plano com o próprio movimento interno à cena, reforçando assim o conflito entre os dois movimentos, da montagem dos planos com o movimento compassado dos soldados que descem a escadaria.28 A uma práxis cinematográfica, corresponderá também, neste caso, uma práxis ideológica.

Todavia, para além deste primeiro movimento criado pela montagem, presente principalmente no cinema soviético (mas, de algum modo, extensível ao cinema da Imagem-movimento), de um movimento da Imagem para o pensamento(no qual o choque é provocado pela oposição das imagens que, por sua vez, obriga o pensamento a pensar o Todo - um Todo que não pode senão ser pensado),29 Deleuze fala igualmente do movimento inverso, do pensamento para a Imagem, isto é, de um movimento que cria figuras e metáforas: se a figura é criada a partir da emotividade do pensamento do espectador perante o conflito de imagens que percepciona, este choque sensorial leva, por sua vez, à criação de metáforas, ou seja, de clichés, a uma relação mediada pela representação.

É precisamente com este duplo movimento que podemos compreender que o autómato espiritual tenha dois momentos interpretativos distintos: se, por um lado, o autómato é activo, coincidindo com o movimento no pensamento (ou montagem das ideias) provocado pelo fora de si, por elementos que lhe são estrangeiros, por outro, ele também é passivo, como no caso concreto da montagem em Eisenstein, um movimento dialéctico, mediado pelas imagens que elaboram um conceito de espectador como um espírito entorpecido e guiado pelo cliché. O cinema deve interligar-se com a realidade íntima do cérebro, que não é o Todo mas a fissura (fêlure): ou seja, não é o pensamento do Todo, mas o dissociar, o deslocar, isto é, aquilo que é impensável dentro do próprio pensamento; o cinema não exalta o poder de tornar visível o pensamento mas revela o que é impensável no pensamento e de que modo o pensamento permanece "incompleto" ou em devir porque não um Todo que pudesse ser pensado. A nova Imagem de cérebro proposta por Deleuze é, consequentemente, a da fissura entre imagens: "esta realidade íntima não é o Todo, pelo contrário, é uma fenda, uma fissura".30 Ou seja, o choque provocado entre imagens não define o poder de pensar mas antes a sua impotência em pensar, e é justamente esta inversão (que não se limita a uma mera negação, como veremos) que nos vai devolver a crença no mundo.31 Não está aqui presente o optimismo envolvido no inicial choque do pensamento e consequente pensamento do Todo tal como Eisenstein defendia, no sentido em que o choque servia à retórica marxista, à propaganda exposta na ligação lógica de imagens ainda que com ligações improváveis entre si.

O entre imagens é a nova Imagem do pensamento, Imagem do impensável, Imagem do todo. É o exterior ao pensamento, o impensável das imagens, que provoca o choque, que obriga a pensar o impensável. Deste modo, para Deleuze, o maior poder que o pensamento pode expressar não está no modelo representativo, enquanto modelo do conhecimento, mas no pensamento do impensável, quando este enfrenta a sua maior impotência. Deleuze passa assim da questão do próprio mecanismo cinematográfico, um aparelho que faz mover as imagens, para as imagens que se automovem: o movimento é o dado imediato das imagens.

Poder de pensar e automatismo A ruptura com o optimismo relativamente às consequências (sociais e políticas) do choque provocado pela montagem, tal como é divulgado por Sergei Eisenstein e pelas experiências de Kuleshov, aconteceu, segundo Deleuze, com Antonin Artaud, por meio da noção de "impotência".32 Deste modo, Deleuze aproximará a questão heideggeriana - o que mais que pensar é o facto de ainda não termos começado a pensar, ou seja, a própria impotência - ao pensamento de Artaud. Contudo, contrariando uma tendência em associar Artaud ao teatro e aos seus papéis enquanto actor de cinema, Deleuze, pelo contrário, vem evidenciar os seus escritos e críticas relativamente ao cinema identificando nele um "cinema da crueldade". Artaud, ainda numa primeira fase de optimismo perante a força (metafísica) dos fotogramas cinematográficos, dos fluxos que criam vibrações33 no pensamento, escreveu o argumento de "La coquille et le clergyman" (1928), realizado por Germaine Dulac, procurando criar imagens-pensamentodeduzindo pensamento de outros pensamentos mas que superassem, subterrânea e inconscientemente, as próprias imagens-em-movimento.34 Ficou, no entanto, decepcionado com o seu resultado surrealista, com o apego ao elemento onírico como fuga ao despotismo do Logos e da consciência.

Ora, se Artaud se mostrou inicialmente admirado com as qualidades do cinema, com o ritmo, com a rapidez, com a quebra da continuidade narrativa, inclusive com o carácter ilusório e de distanciamento da realidade,35 vai, no entanto, repensar esse seu entusiasmo inicial. Na leitura que faz da relação entre o cinema e o cérebro - afirmando que o cinema comunica directamente com "a massa cinzenta do cérebro",36 por "vibrações neurofisiológicas" e choques -, critica tanto o cinema experimental abstracto, como o cinema comercial de Hollywood: a ligação ou comunicação ocorre não na ideia de Todo (Eisenstein), mas na fissura. Ao poder de o cinema tornar visível a forma representativa do pensamento, opõe-se agora o poder de o cinema mostrar a impotência em se pensar, de dar espaço ao impensável, contra, de algum modo, o despotismo do Logos e da representação. Se Eisenstein afirma o Todo como essência do cinema, Artaud vem afirmar a impotência do pensamento como essência do cinema. O cinema é, neste sentido, falha, fissura, impossibilidade de criação ou reconstituição de um todo:37 "O mundo cinematográfico é um mundo morto, ilusório e parcelar".38 O verdadeiro objecto-sujeito do cinema é a impotência do pensamento. Artaud e Espinosa representam assim posições opostas relativamente à Imagem do pensamento: se Espinosa exalta o poder do pensamento de auto- engendrar ideias pelas ideias, Artaud pretende ir além destas imagens- pensamento auto-engendradas e com ele compreendemos o que é a impotência de pensarmos. Deste modo, em "A Imagem-movimento", Deleuze afirma o correlato entre o automatismo técnico da máquina do cinema, através das imagens que se automovem, e o próprio automatismo do pensamento, correlato que, para Suzanne Hême De Lacotte, resolve o problema da origem de uma Imagem até então presa à criticada ideia de sujeito da Imagem dogmática do pensamento.39 Assim, a origem da Imagem é extrínseca; a Imagem é uma força vinda defora do pensamento, logo, do próprio impensável sem ter origem num sujeito descrito como tendo a capacidade natural de pensar e de pensar a verdade. Ou seja, o cinema vem evidenciar isto mesmo - que o automatismo técnico é acompanhado pelo automatismo espiritual do espectador.

Conclusão: o "Homem fascista" no cinema Porém, alguns perigos podem surgir desta passividade própria de uma arte mecânica e popular.40 Se, tal como acontece no cinema soviético, a massificação de uma arte é usada no seu carácter utilitário, servindo a uma "politização da arte", essa capacidade de reprodutibilidade técnica serviu também aos propósitos de um estado fascista de "esteticização da política", por exemplo, por meio do carácter "belo" da guerra, segundo a crítica elaborada por Walter Benjamim.41 O entorpecimento próprio de um espírito mumificado - "O autômato espiritual tornou-se a Múmia, essa instância desmontada, paralisada, petrificada, congelada"42 -, corresponde a uma mente guiada pelo movimento das imagens e pelo cliché, pela mediocridade, que, no cinema, leva à ditadura do Homem fascista, do Homem verídico: o autómato espiritual tornou-se Múmia ou, pior, "o autómato espiritual tornou-se no homem fascista".43 Se Benjamin refere que a massificação de uma arte reduz significativamente o seu carácter artístico, Elie Faure tentou, por seu lado, aproximar o automatismo material próprio da técnica cinematográfica ao automatismo intelectual do espectador assinalando que "[o] cinema é mais ou menos contemporâneo do fabrico em série, do motor, da radiofonia, da mecanização universal da produção.44 De um modo subtil, o cinema, enquanto aarte pública e popular característica do século XX, tornou possível a massificação de uma ideia de Homem fascista, tal como Deleuze a interpreta. Os perigos deste abuso são destacados por Deleuze citando, numa das suas aulas, um texto de Faure: Aqui, é preciso pôr de lado o equívoco. Amigos sinceros do cinema viram nele apenas um admirável "instrumento de propaganda". Seja. Os fariseus da política, da arte, das letras e até das ciências encontrarão no cinema o mais fiel dos servidores até ao dia em que, por uma inversão mecânica dos papéis, será a vez de ele as dominar.45 Todavia, este uso é feito por "amigos sinceros do cinema", e não pelos seus inimigos46 - ou seja, esta mediocridade é quantitativa, é própria de uma arte industrial de contornos massivos cuja função propagandista não tem em consideração nenhuma ideologia em concreto.47 Contrariamente ao individua- lismo, no caso do cinema soviético, o cinema orienta os "ritmos colectivos", tomando a função de educador das massas mas também operando como instrumento de propaganda: no limite, instrumento para qualquer propaganda. É neste sentido que a força dos livros escritos por Deleuze sobre cinema e filosofia resulta, necessariamente, da mudança que operaram no âmbito do pensamento filosófico, da teoria do cinema e mesmo da cinefilia: como afirma Gregory Flaxman, parafraseando Foucault, "Cinema 1" e "Cinema 2" são "uma introdução a um pensamento não-fascista".48 O noocinema surge como indicando os filmes que podem ser pensados, que têm de ser pensados - segundo uma nova lógica, segundo uma outra Imagem do pensamento. As imagens cinematográficas que nos fazem pensar não dizem respeito apenas ao conjunto de imagens que segue uma ideologia, um modelo despótico do que significa pensar, como acontece no primeiro regime de imagens, mas inclui também um campo de liberdade e de imprevisibilidade por meio do qual a Imagem escapa aos clichés dessa ideologia dominante.

Funcionando como verdadeiras cartografias do pensamento, estes filmes revelam o mapeamento dos movimentos do pensamento enquanto pura temporalidade, autopoiético e auto-referencial. Ou seja, a filosofia do cinema em Deleuze não é um pensamento do cinema mas uma cinematografia do pensamento. O novo cinema e os novos signos cinematográficos implicam, por isso, um novo pensamento.


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