A importância dos conhecimentos e dos modos de vida locais no desenvolvimento
sustentável: estudo exploratório sobre o impacto da Reserva Natural das Ilhas
Berlengas (Portugal) na comunidade piscatória
1. Introdução
A proteção da biodiversidade desafia os cientistas, políticos, ONGs, movimentos
sociais e as populações locais; há necessidade de coordenação de conhecimentos
e competências, recursos, interesses e necessidades, numa perspectiva que
revela e não nega as diversas culturas envolvidas, as suas percepções,
concepções, interesses e expectativas.
O sistema global das áreas protegidas cresce rapidamente, especialmente nos
países em desenvolvimento (Naughton-Treves et al., 2005). No entanto, a sua
criação segue muitas vezes objetivos políticos e económicos e não inclui as
populações locais como parceiros, priorizando os imperativos de ordem económica
(Santos et al., 2004). O potencial de desenvolvimento local não está
exclusivamente ligado a aspectos económicos e conservacionistas. Trata-se de um
processo dinâmico e multidimensional que envolve a história da comunidade, as
suas instituições, as suas interações e a capacidade de construir o seu próprio
destino, usando o capital social para alcançar as metas comuns. O capital
social está relacionado com a ajuda mútua entre os membros da comunidade,
devido a fatores sociais, culturais e económicos. Fukuyama (1996), qualifica o
capital social como confiança e cooperação entre os grupos. Nesse sentido, deve
haver a capacidade da sociedade civil de trabalhar em conjunto, subordinando,
de alguma forma, os interesses individuais ou de determinados grupos aos
interesses coletivos. Putnam et al (1994) considera que os baixos níveis de
capital social nas ações de uma comunidade significam baixos níveis de
desenvolvimento social. Esses níveis estão relacionados com as características
da organização social como sejam a confiança, reciprocidade, o dever cívico e
bem-estar coletivo, normas e sistemas que contribuem para aumentar a eficiência
da sociedade com base em iniciativas coordenadas entre organizações locais,
legisladores e governos, especialistas e cidadãos.
Esta visão sócio-ecológica, simultaneamente política, científica e cultural, é
a chave para a inclusão das perspectivas plurais existentes, democratizando o
conhecimento (científico e local) e dando destaque às populações locais, tanto
na produção de seu próprio conhecimento, na concepção, como na gestão e
implementação de estratégias que visam proteger a biodiversidade. É nesta visão
sócio-ecológica que se situa este trabalho. É neste contexto que procuramos
explorar, visto que se trata de um estudo exploratório, os sentidos e os
significados construídos na interação da comunidade com a implementação do
estatuto de Reserva Natural e seus impactos ambientais, sociais e culturais.
Procuramos dessa forma evidenciar a dimensão cultural e social das lógicas de
ação das populações locais, em particular a voz dos pescadores, suas
expectativas, necessidades, conhecimentos, evidenciando o seu papel na promoção
da biodiversidade e desenvolvimento sustentável. Neste contexto procuramos as
racionalidades leigas com as suas lógicas de produção de sentidos e ação. As
racionalidades leigas são uma categoria que aqui aplicamos a formas de pensar e
agir, circunscrevendo-a a campos do viver humano no plano da cultura envolvendo
lógicas, práticas e representações (Alves, 2011). Por desenvolvimento
sustentável entendemos a procura da harmonização da conservação ambiental e da
utilização racional dos recursos naturais com o crescimento económico, a
justiça, o bem-estar e equidade social. Assume-se, deste modo, como um processo
dinâmico, multidimensional, simultaneamente político, científico, ambiental e
cultural.
2. Definição do estudo ' objetivos
Tendo em conta estudos anteriores (Moreira, 1987; Calado, 1991; Souto, 1991),
este trabalho distingue-se pelo seu objetivo em estudar os desafios e ganhos em
bem-estar para as populações locais da Reserva Natural das Ilhas Berlengas
(RNB).
A comunidade piscatória de Peniche, a exemplo das restantes comunidades
piscatórias do país (Moreira, 1987), tem sofrido, ao longo do tempo, difíceis
alterações e transformações no seu modo de trabalhar e nas suas artes de
capturar o peixe. Nesse contexto, esta pesquisa parte da necessidade de
perceber o impacto da RNB na vida local dos habitantes da cidade de Peniche e,
principalmente, da sua comunidade piscatória, sendo o principal alvo das suas
implicações e consequências. Para isso, pretenderam-se construir instrumentos
de recolha de informação que permitam perceber o impacte da Reserva Natural das
ilhas Berlengas na vida da comunidade piscatória local.
A relação das Reservas e dos seus sistemas, bem como a gestão dos seus recursos
só podem ser entendidas se forem compreendidas as dimensões das interações
culturais, sociais e económicas das populações locais com a reserva, como parte
integrante da estratégia de conservação da biodiversidade e do desenvolvimento
sustentável. A tradicional dependência do mar e da pesca, e de outras
atividades delas subsidiárias, tornam a comunidade penichense particularmente
vulnerável a todas as alterações aí introduzidas.
3. Caracterização
3.1. A comunidade piscatória de Peniche
Peniche (Figura_1) é o principal porto de pesca de toda a zona centro (Moreira,
1987), pelos seus movimentos de entradas e saídas de embarcações de pesca,
volume de pescado transacionado em lota e importância económica da pesca
polivalente costeira (INE, 2010a). A comunidade piscatória de Peniche é uma das
mais antigas do país, dispondo de uma das mais vastas frentes marítimas e, na
zona centro, é a que conta com o maior número de pescadores no ativo (INE,
2010b). É em torno da pesca que se constitui, direta ou indiretamente, a grande
maioria da atividade económica e social aí existente (Moreira, 1987). O
município de Peniche conta com uma população residente estimada de 27 753
indivíduos (Censos, 2011), tendo registados na sua capitania marítima 1.090
pescadores e 789 embarcações das quais 422 com motor (INE, 2010b). Atualmente,
a comunidade piscatória e o respectivo porto de pesca de Peniche continuam
ainda a ter um papel importante e, principalmente bastante emblemático, na vida
deste município, embora sem a centralidade de outros tempos. Vários pólos de
desenvolvimento local concorrem com a atividade piscatória. Os desportos
náuticos de deslize e o turismo gastronómico têm sido uma nova aposta de
desenvolvimento local e regional, apoiada pelos dirigentes políticos de
Peniche. A hotelaria tem promovido os produtos tradicionais resultantes da
atividade piscatória local, como a famosa sardinha de Peniche.
A pesquisa e promoção no concelho de Peniche tem vindo a ser impulsionada pelos
centros universitários e de investigação (Instituto Politécnico de Leiria com a
Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar de Peniche). As águas de Peniche
destacam-se pela abundância dos seus recursos vivos marinhos, particularmente a
sardinha, o atum e similares, o robalo e o linguado. A arte do arrasto costeiro
e do cerco coloca igualmente a lota do porto de Peniche como primeira em volume
de vendas (INE, 2010a). Daí a lota do porto de Peniche continuar a ser muito
procurada pelos pescadores, negociantes, almocreves, carregadores,
indiferenciados. As pessoas deslocaram-se temporária ou definitivamente, de
diversas regiões do país para Peniche, o que contribuiu para formar uma
população heterogénea e diversificada (Souto, 2007).
3.2. A reserva natural das ilhas de Berlengas
O arquipélago das ilhas Berlengas fica situado na região administrativa do
concelho de Peniche, a 5,7 milhas do Cabo Carvoeiro, junto da cidade de
Peniche. A maior ilha do arquipélago é a Berlenga, um rochedo granítico que
atinge os oitenta e oito metros de altura, com um comprimento máximo de mil e
quinhentos metros e uma área total de setenta e oito hectares. O arquipélago é
constituído ainda por ilhas de menores dimensões, como as Estelas e os
Farilhões - Forcadas e outros rochedos (Figura_1), sem população residente.
A generalidade das áreas da reserva incluem um vasto manancial de recursos
piscícolas com grande valor comercial e turístico. O I inquérito nacional Os
Portugueses e o Ambiente (Almeida, 2000) sobre a opinião pública quanto à
influência no ambiente da constituição de Reservas Naturais, permitiu concluir
que as perspectivas são positivas. Em contrapartida as respostas são negativas
em relação ao estado do ambiente em Portugal, embora se considere importante os
impactos positivos alcançados com a constituição e manutenção de Parques e
Reservas Naturais.
O arquipélago tem grande riqueza e variedade de recursos piscícolas, estando
referenciadas setenta e seis espécies de peixes na área da RNB (Rodrigues et
al., 2008). Tem sido, desde há muito, procurado por milhares de pescadores
(principalmente de tipo comercial) e mergulhadores, mas também de turistas
nacionais e estrangeiros (essencialmente no verão) e ainda alvo de interesse
para as políticas de conservação da natureza e biodiversidade.
Em Setembro de 1981, o Decreto-Lei n.º 264/81 atribui-lhe o estatuto de Reserva
Natural. Em 1998, no âmbito das comemorações do Ano Internacional dos Oceanos,
o Decreto Regulamentar nº 30/98, de 23 de Dezembro, ampliou os limites da
Reserva, alargando-a a todo o arquipélago, pelo que passou a designar-se por
Reserva Natural das Berlengas (RNB), e instituiu uma Área Marítima Protegida
(AMP), inserida na Rede Nacional de Áreas Protegidas. Foi também reconhecido o
seu elevado valor biológico e de conservação da biodiversidade a nível europeu,
o que lhe valeu a acreditação de reserva Biogenética do Conselho da Europa e
Zona de Proteção Especial para Aves Selvagens.
Em 1997, a importância da sua conservação foi formalmente reconhecida pela
União Europeia, ao ser classificada como Sítio da Rede Natura 2000, rede
ecológica para o espaço Comunitário da União Europeia ao abrigo da Diretiva
Habitats, com o objetivo de contribuir para assegurar a biodiversidade através
da conservação dos habitats naturais, da fauna e da flora selvagens no
território europeu dos Estados-membros. As zonas tampão nas áreas marinhas
estão igualmente classificadas como Zonas de Proteção Especial das Berlengas e
como Reserva Natural.
Em 28 de Junho de 2011, o Concelho de Coordenação Internacional da UNESCO,
através do seu programa Man and the Biosphere (MAB), decidiu a favor da RNB. Em
conjunto com outras 17 áreas em todo o mundo, as ilhas Berlengas fazem agora
parte de um grupo de 580 locais considerados Reserva Mundial da Biosfera, World
Network of Biosphere Reserves (WNBR), distribuídos por 114 países.
A União Europeia, em 2001, apresentou um conjunto de cinco princípios para a
Governança Europeia (Comissão Europeia, 2001), onde se propõem uma maior
abertura e participação com a respectiva co-responsabilização das instituições
e dos cidadãos europeus. A Comissão Europeia, desde o ano de 2002, estatuiu a
política Europeia de exploração dos recursos haliêuticos em condições de
sustentabilidade na sua ZEE, apostando no envolvimento das comunidades
piscatórias nestes objetivos.
3.3. A gestão sustentável da RNB
O interesse para a gestão e conservação de áreas marítimas e principalmente das
reservas naturais terrestres em várias partes do globo foi formalmente marcado,
(em Junho de 1972, na primeira Cimeira da Terra) sob a égide das Nações Unidas,
em resultado de uma conferência internacional sobre o meio ambiente e o
desenvolvimento humano, na Suécia, com a aprovação da Declaração de Estocolmo.
Em termos científicos, assistimos a um crescente interesse e reflexão sobre os
principais impactos das reservas marítimas naturais nos seus ecossistemas, com
particular interesse para as ameaças centrais ao meio ambiente em geral e,
principalmente, ao seu meio marítimo e seu equilíbrio ambiental. Os documentos
formais dos planos integram e apelam ao envolvimento e à participação das
populações diretamente afetadas, para não só conseguir a sua adesão aos
programas definidos, mas também para recolher informação e ao mesmo tempo
conhecer os seus saberes enquanto condição imprescindível para a promoção do
desenvolvimento sustentável que produz mais e melhor bem-estar junto das
populações locais (Costanza et al., 1998), contribuindo dessa forma para o
sucesso desses tipos de governação (Samonte et al., 2010). No entanto, são
pouco conhecidos e debatidos os estudos que analisam a forma como se tem
utilizado efetivamente a participação das populações, os processos e
estratégias utilizados para a implementar, bem como a avaliação dos seus
impactos na promoção da sustentabilidade.
Numerosos cientistas de diversas universidades e centros de investigação por
todo o mundo, têm estudado e produzido conhecimento sobre os principais
impactes das reservas marítimas naturais nos seus ecossistemas (e.g.,
Vasconcelos et al., 2011). Nelas têm a possibilidade de apurar com maior rigor
quais as ameaças centrais ao ambiente em geral e, principalmente, ao seu meio
marítimo, tendo particular atenção ao seu equilíbrio ambiental (Pedrini et al.,
2007).
No arquipélago das Berlengas, foram concretizadas algumas iniciativas nos
últimos anos, com o intuito de manter ou mesmo reforçar os contactos entre os
responsáveis pela gestão da RNB e a população interessada. Muitas dessas ações,
levadas a cabo por diversas instituições, em parceria, solicitam o envolvimento
ou até a constituição de grupos organizados de utilizadores locais, como por
exemplo a Associação Amigos da Berlenga, de modo a definir ou implementar
algumas políticas públicas instituídas para a gestão de forma sustentável da
reserva.
O município de Peniche em colaboração com o ICNB tem organizado, anualmente,
iniciativas no âmbito das comemorações do Dia da Reserva Natural, com vistas à
sensibilização ambiental. Em 2010, este evento foi também incluído no âmbito
das comemorações do Ano Internacional da Biodiversidade. Considera-se que o
reforço do envolvimento da população local e dos turistas para a questão da
conservação dos recursos piscícolas e a biodiversidade da RNB contribuirá para
o êxito da gestão sustentável da mesma. Considera-se que os principais
beneficiários do sucesso da RNB são os pescadores, os donos dos barcos da pesca
de lazer e outros utilizadores da reserva em atividades recreativas e
balneares. Por isso se promovem a sua consciencialização e sensibilização sobre
a importância da biodiversidade marinha e da sua preservação e valorização na
implementação de medidas de gestão efetivas de forma a conseguir, no menor
prazo possível, a sua sustentabilidade ecológica.
Neste contexto, e atendendo a esses objetivos, é necessário criar projetos e
planos que tenham em conta a população interessada, incluindo-os ao nível da
decisão para que qualquer política ou organismo tenha sucesso na consideração
do fenómeno da biodiversidade enquanto um fenómeno não apenas biológico e
físico, mas sobretudo contextual, social e cultural.
4. Metodologia
Apesar de existir muita investigação sobre os benefícios ecológicos das
Reservas na preservação da biodiversidade e na gestão sustentável dos seus
recursos naturais, comparativamente, os estudos sobre os desafios e ganhos em
bem-estar para as populações locais são escassos (Hanazaki, 2002; Vasques,
Couto, 2011) .
Na falta de estudos recentes sobre estas comunidades em geral, e sobre a
implementação de uma reserva natural, em particular tendo em conta as
especificidades e características da RNB, decidiu-se construir e aplicar dois
guiões de entrevistas semi-diretivas a dois tipos de informantes privilegiados,
com distintas características: os profissionais da pesca que simultaneamente
presenciaram o aparecimento e a consolidação da RNB nas suas vertentes,
sociais, económicas e ambientais; e por outro lado, os técnicos que contribuem
ou contribuíram para o aparecimento e consubstanciação da reserva natural.
Ambos partilham ou partilharam quase diariamente, a mesma realidade social,
embora com objetivos e propósitos diferentes.
Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, onde se destaca o papel ativo
do sujeito na construção das suas vivências em torno do objeto. Foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas, em profundidade, com o objetivo de
compreender os sentidos e os significados, as representações e as vivências que
os diversos atores sociais em presença, têm ou manifestam, quando inquiridos
sobre ela. Procuramos os conhecimentos das populações locais, que designamos
por racionalidades leigas, e os dos técnicos, sobre a RNB. Qual a apropriação
que os autóctones fazem da reserva, como lidam com o seu enquadramento e com a
consequente regulação das atividades, principalmente de índole profissional e
económica? Qual o seu impacto social e cultural?
A constituição da amostra inquirida (por conveniência), sem qualquer pretensão
de ser representativa do ponto de vista estatístico, foi contudo rodeada de
cuidados, no sentido de aceder a informantes de primeira linha, ou seja, que
proporcionassem relatos de fatos relevantes relacionados com a RNB e a sua
constituição, e por si experienciados. Foram realizadas cinco entrevistas
exploratórias para validar as dimensões dos guiões em estudo: duas a pescadores
do porto de Peniche e uma a um antigo pescador da ilha Berlenga e atualmente a
trabalhar nas atividades marítimo-turísticas da reserva; duas entrevistas a
biólogos, ambos técnicos superiores da instituição responsável pela gestão
ambiental da reserva, e com responsabilidades na sua gestão ou monitorização.
Todas as entrevistas foram realizadas nas horas e nos locais escolhidos pelos
interpelados (em geral, nos seus postos de trabalho).
5. Resultados e Discussão
De um modo geral, os testemunhos recolhidos junto aos atuais ou antigos
pescadores, permitem identificar a constituição da reserva e suas regras como
uma dificuldade suplementar para o exercício da atividade piscatória em Peniche
e, principalmente, na área demarcada pela RNB, em confronto com a situação na
época imediatamente anterior à sua formação.
dantes pescava-se mais, via-se mais dinheiro a reserva não fez
nada pela pesca ... como acontecia dantes, pescávamos em paz, havia
peixe para todos e não era preciso isto tudo (Entrevistado nº2,
pescador de Peniche, dono de uma embarcação de pesca)
Contrastando com a situação imediatamente anterior à constituição da RNB,
identifica-se um discurso de frustração e desencanto em relação à situação
atual. Antes da existência da RNB, existiria um aparente ciclo de prosperidade
que foi interrompido de forma irreversível pelos responsáveis da RNB.
Dantes pescava-se mais, rendia mais, agora já só há 3 ou 4
pescadores a viverem na ilha. ... Antigamente era muito mais, oh
antigamente era às 40 e 50 lanchas lá no sítio (Berlenga). Agora
estão lá meia dúzia deles. (Entrevistado nº1, antigo pescador de
Peniche e marinheiro nas atividades Marítimo-Turísticas)
Mesmo os representantes da pesca industrial do arrasto (a mais condicionada
dentro do perímetro da RNB), que por natureza dispõem de mais meios para
contornar os obstáculos criados à sua atividade nas zonas agora protegidas,
referem que não será viável a continuação da imposição de forma crescente de
limitações aos diversos tipos de pesca.
A pesca com rede de emalhar é que não pode, dentro do retângulo de
proteção do arquipélago. E o arrasto também não pode operar dentro da
reserva. (...) Apenas trouxe dificuldades à pesca com arrasto e de
emalhar, porque todo o resto não... Nós não vamos permitir mais
restrições aos vários tipos de pesca na zona da reserva!
(Entrevistado nº3, pescador, armador e dirigente associativo)
Tem sido observada uma diminuição de mão-de-obra formada e vocacionada para a
faina marítima da comunidade piscatória de Peniche, a exemplo de outras
comunidades pesqueiras. Uma parte importante dos pescadores encontra-se perto
da idade da reforma, ou são aprendizes que vão embarcando enquanto procuram um
trabalho em terra. Os velhos pescadores da ilha Berlenga vêem o seu número
reduzir-se de ano para ano e culpam principalmente a RNB e a sua gestão por
anteciparem o seu próprio processo de extinção, devido às dificuldades que lhes
causa nas suas fainas tradicionais, ou à impossibilidade de renovação humana
que lhes impõem, ao não permitir a fixação de novos contingentes de pescadores
na ilha. A renovação pela via da descendência também é normalmente rejeitada
com o argumento da dureza e da pouca recompensa económica e social que a vida
no mar proporciona.
por isso é que ninguém quer ir para a pesca. O meu filho foi para
França que está lá melhor. E os de outros também. (...) É o
trabalhador mais explorado, é o pescador! nos que vivem na ilha
agora é quase só velhos, e os filhos não querem ir para lá. Têm
morrido muitos (pescadores). (Entrevistado nº1, antigo pescador de
Peniche e marinheiro nas atividades Marítimo-Turísticas)
Os biólogos entrevistados, técnicos superiores do ICNB, insistem sobre a
necessidade de controlar a presença humana e limitar o exercício da pesca e da
apanha na RNB, substituindo-as por outras atividades. Por outro lado, os
pescadores entrevistados desvalorizam o impacto da atividade humana na RNB,
realçando a vulgaridade que para si representa o acervo natural em presença na
região das Berlengas.
Aconteceu uma coisa que afetou, em parte, mas não propriamente os
residentes que foi deixar de se poder acampar na ilha toda. ( ) Neste
momento a principal preocupação é a de conter a carga humana presente
na ilha de Verão. Existe alguma pressão ambiental dos pescadores e
dos mariscadores, mas isso está a ser tratado e resolvido pela
fiscalização. Não é dramática a pressão ambiental exercida tanto
quanto sabemos, mas tem de ser monitorizada e restringida ao que foi
legalmente fixado. (Entrevistada nº 4, técnica)
penso que continua a ser uma das prioridades para aquela ilha, a
necessidade de disciplinar a atividade turística, quer ao nível dos
turistas em si quer ao nível dos operadores turísticos. Direcionando
esses serviços sempre para uma perspectiva de qualidade e não de
quantidade. (...) Não é necessária mais legislação mas sim proceder-
se à efetiva implementação do que já foi legislado . (Entrevistado
nº5, técnico)
A atual pressão económica também transparece em alguns dos testemunhos
recolhidos, aumentando concomitantemente a pressão na componente social e
ambiental das medidas tomadas sobre a reserva. Os ganhos alcançados com o
produto resultante da atividade piscatória para o pescador são postos em causa,
tendo em conta o custo de vida e os preços inflacionados que o peixe atinge
junto do consumidor final.
Para se sair ao mar, o gasóleo é caríssimo, volta-se e o peixe não
tem valor que valha. Mais vale ficar sentado! Agora cinco, dez,
até cinquenta euros não valem nada! Vendíamos o peixe na lota, na rua
em todo o lado onde se vendesse, agora isto está feito para só alguns
ganharem! O peixe para o pescador vale pouco, no mercado vale muito!
Isto hoje está cada vez mais pobre e pior! (Entrevistado nº2,
pescador de Peniche, dono de uma embarcação de pesca)
Por parte dos técnicos responsáveis pela implementação das regras
imprescindíveis à manutenção da RNB, uma situação de constrangimento económico
pode colocar em perigo todo o investimento feito até agora, levando inclusive
ao seu retrocesso. A capacidade de manter na RNB as verbas geradas na região e
a necessidade de atrair mais investimentos para a área ambiental pode ser
fulcral para o futuro do desenvolvimento ambiental da reserva.
Por vezes a fiscalização não atua porque não há gente, nem meios. Em
permanências só existem dois vigilantes Houve uma altura em que
houve seis seis é o mínimo necessário para aquilo funcionar. Eles têm
que fazer cumprir a legislação sobre o ambiente porque há mais
legislações. Também fiscalizam as licenças das pessoas Há um
desinvestimento no ambiente no ICNB, as receitas têm vindo a
diminuir. (...) De momento com os constrangimentos financeiros que
atravessamos, e a médio prazo, não vejo grandes possibilidades de
alterações na gestão dos recursos ambientais ou de outros.
(Entrevistada nº 4, técnica)
Os recursos, mesmo os recursos económicos, estão sobre grande
pressão! E se falarmos dos recursos ambientais, ainda mais diria que
atualmente, e anteriormente também, os principais problemas que
poderão ser suscitados na Berlenga são de natureza social e
económica (Entrevistado nº5, técnico)
Os testemunhos recolhidos sobre a RNB nas suas diversas facetas e impactos,
indiciam formas de ver e pensar opostas entre a população local com ocupações
ligadas, direta ou indiretamente, à reserva, e o ponto de vista de quem
desempenha profissões técnicas na área ambiental.
Foram unânimes os técnicos entrevistados em considerar a RNB um valor
ambientalmente vulnerável mas de grande importância para o presente e para o
futuro da região e do país. Por outro lado, os pescadores e habitantes da ilha
Berlenga também se mostraram intransigentes quanto à ausência de valor
acrescido trazida pela RNB à ilha, desvalorizando muitas vezes a importância a
ela atribuída.
Estas coisas nunca são de um dia para o outro, ou de um ano para o
outro sequer, são processos relativamente lentos que vão evoluindo ou
regredindo. A minha convicção é que se tem caminhado, de uma forma
geral, na direção certa em relação à biodiversidade em presença na
ilha e em relação à sua sustentabilidade. (Entrevistado nº5,
técnico)
Se a reserva acabasse, para já as pessoas iam começar a acampar por
todo o lado penso que estamos com uma das melhores gestões que
alguma vez tivemos até hoje (Entrevistada nº 4, técnica)
beleza daquilo (ilha Berlenga)! Não vejo nenhuma! Em termos de
visita cada um dá o valor que quiser; eu dava zero valor, não vejo lá
nada que valha! (...) É certo que aquilo tem estas ou aquelas
condições, mas depois lá nas rochas existe isto ou aquilo que não
existe em mais lado nenhum, mas isso não é significativo. Se tem lá o
marisco agarrado à pedra, ele está lá para quê? Ou serve para a nossa
alimentação, ou fica lá e morre! (Entrevistado nº3, pescador,
armador e dirigente associativo)
vou já dizer-lhe quem é que enganou a gente todos! (...) ele disse:
[nomeia uma pessoa], vamos fazer uma reserva para não se apanhar nem
um ouriço nem um percebe, nem uma lapa não apanhar nada! Para ser uma
reserva, para ser uma reserva natural. Meteu-se-lhe na cabeça que
aquilo estava a desaparecer, mas não desaparecia, você quanto mais
percebe arrancar, mais nasce! Quanto mais lapas arrancar, mais nasce!
Quanto mais ouriço apanhar mais nasce! Não serve para nada, nem
para os animais nem para o turismo Se dependesse de mim acabava com
a reserva, tudo. Eu fui parvo em ter assinado isso da reserva.
(Entrevistado nº1, antigo pescador de Peniche e marinheiro nas
actividades Marítimo-Turísticas)
A reserva nasceu para fazer lugares para tachos percebe? Dá
empregos à malta que não sabe fazer nada, nada de nada. E depois
ainda chateiam quem quer trabalhar, quem anda a pescar. Eu não quero
saber da reserva para nada A reserva não fez nada pela pesca.
Voltava tudo ao início, sem cá gajos do ambiente ou da reserva e tudo
isso (...) não é preciso virem pessoas, doutores, e eu sei lá o quê!
Agora estas pessoas que não percebem nada da ilha ou dos pescadores e
só querem ganhar dinheiro. Voltem todas de onde vieram e deixem a
gente em paz. (Entrevistado nº2, pescador de Peniche, dono de uma
embarcação de pesca)
Embora partindo de uma pequena amostra, consegue-se afirmar que os
protagonistas entrevistados, ligados de forma direta ou indireta à atividade
piscatória na RNB, indiciam graves sinais de incompreensão, por parte da
população beneficiada em relação à RNB, em oposição flagrante às preocupações e
cuidados exigidas pela regulamentação que os técnicos tentam implementar. Os
protagonistas da pesca contactados dividem-se entre a revolta e o desânimo
contra a RNB, por um lado, a incompreensão pelo seu estatuto, por outro. A
insatisfação e incompreensão generalizada que espontaneamente foram
transmitidas pelos pescadores e marítimos contatados em relação à RNB opõem-se
à convicção dos técnicos do ICNB, de que o atual estado da reserva é o mais
propício para o ambiente e também para as gentes de Peniche e as suas
atividades económicas.
A necessidade de compatibilizar as atividades piscatórias e da apanha, mais
tradicionais e populares, com outras atividades marítimas e turísticas, mais
modernas e tecnologicamente mais complexas (como as atividades ligadas ao
mergulho), representam um desafio para o estatuto da RNB e principalmente para
comunidade que a circunda.
A utilização, por parte dos peritos, de metáforas de cariz espiritual com
referências ao caráter único desta costa (Rodrigues et al., 2008), apela ao
sentimento religioso e ao orgulho da população local pela sua região costeira e
marítima. Mas esse orgulho não é suficiente para ignorar algum mal-estar que se
sente e se reflete num discurso mais truculento, quando é abordada a temática
da RNB.
Foi notório na análise dos discursos um enorme fosso entre quem vive do mar e
na ilha e quem no continente a estuda e a aprecia ao longe.
6. Conclusão
Este trabalho tenta responder à escassez de estudos sobre os desafios e ganhos
em bem-estar para as populações locais comparativamente a uma longa
investigação existente sobre os benefícios ecológicos das Reservas na
preservação da biodiversidade e na gestão sustentável dos seus recursos
naturais (Samonte et al., 2010).
Afirmamos que a eficiência dos resultados obtidos na RNB pode derivar do
empenhamento e participação de todos os atores sociais interessados, e que, o
seu envolvimento e compromisso das instituições e habitantes da região, ou
frequentadores da reserva, contribuirão para o êxito da mesma. Também a União
Europeia (Comissão Europeia, 2001) enunciou um princípio da participação, onde
é possível concluir que a qualidade, pertinência e eficácia das políticas
implementadas numa reserva natural dependem de uma ampla participação de toda a
população interessada na reserva, desde a sua concepção até à sua plena
execução, referindo-se ainda, à importância da participação popular para criar
uma maior confiança no resultado final e nas instituições que a tutelam.
Evidencia-se que é imprescindível aprofundar este estudo exploratório de modo
que se possa efetivamente demonstrar a importância da abordagem sócio-ecológica
da reserva, que exige uma valorização dos saberes plurais em presença para a
construção de estratégias participadas por todos os intervenientes no processo
tendo em vista a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável.