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EuPTCEEx1646-88722016000200007

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National varietyEu
Year2016
SourceScielo

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Extracção de areia na praia de Calhetona (Ilha de Santiago, Cabo Verde): causas, processos e consequências*

1. Introdução A areia é um importante material inerte que tem múltiplas aplicações, sendo porventura a mais genérica e que envolve maiores volumes a relacionada com a indústria da construção civil. A nível mundial, este material tem sido amplamente utilizado no processo de expansão urbana e industrial, criando empregos, gerando capitais e, consequentemente, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade. Contudo, a sua crescente e excessiva exploração é também causa de diversos problemas ambientais identificados um pouco por todo o mundo (e.g.,, Masalu, 2002; Lelles et al., 2005; Ashraf et al., 2011).

Cabo Verde não é excepção ao modo como a extracção de areia vem sendo feita nem às consequências que daí advêm. Um pouco por todo o arquipélago, com particular destaque para a Ilha de Santiago, onde se localiza a capital do país, a extracção clandestina de areia (e cascalho) para a construção civil tem sido realizada nas faixas costeiras e nos leitos das ribeiras, de forma desmedida e sem quaisquer planos de extracção e de posterior recuperação das áreas degradadas (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).

Na Ilha de Santiago, e no arquipélago de Cabo Verde em geral, a exploração de areia era pouco significativa até ao início dos anos 80 do Século XX, uma vez que este inerte era utilizado apenas no revestimento das paredes exteriores (de pedra) dos edifícios. A partir dos anos 80, devido à migração das populações rurais para as cidades, às remessas dos emigrantes, à melhoria das condições de vida das populações, à mudança das técnicas de construção e à liberalização de materiais de construção civil, houve um enorme aumento na construção de infra-estruturas e edifícios públicos e privados.

A utilização de areia, brita e cimento (blocos de cimento) foi substituindo a utilização da pedra, e rapidamente as casas de pedra se tornaram uma raridade (Gomes, 2004).

A utilização de areia na construção civil generalizou-se de tal modo que as consequências da sua exploração rapidamente se tornaram bastante evidentes no arquipélago.

De facto, o impacte ambiental desta actividade extractiva tornou-se de tal modo grave que, em 1997, o governo cabo-verdiano se viu obrigado a criar legislação proibindo a extracção e a exploração de areia nas dunas, nas praias e nas águas interiores, com excepção de casos devidamente autorizados (Decreto-Lei n.º 69/97, de 3 de Novembro).

No entanto, actualmente, e apesar da legislação e fiscalização existentes, os problemas ambientais decorrentes desta actividade estão ainda bem presentes, uma vez que existem muitas pessoas que se dedicam à extracção clandestina de areia.

A vulnerabilidade económica vivenciada pelas famílias cabo-verdianas tem contribuído para a ineficácia da legislação ambiental. Uma grande parte da população vive no limiar da pobreza, pelo que a exploração de recursos naturais tem sido utilizada de forma abusiva, para garantir a sobrevivência de populações carenciadas (Gomes, 2004). Paralelamente, a grande procura de areia e brita, vem favorecendo a exploração clandestina nas praias e ribeiras do arquipélago. Uma actividade dominada por mulheres chefes de famílias pobres, sem alternativas de emprego ou com baixa capacidade de gerar auto-emprego (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).

A Ilha de Santiago, onde reside mais de metade da população do arquipélago, é de longe o maior mercado de consumo de areia (Gomes, 2004; 2011). Este facto, associado à escassez deste recurso mineral nas ilhas do arquipélago e às difíceis condições de vida da população, coloca as áreas extractivas das ilhas sob enorme pressão (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012). De facto, segundo Gomes (2004), actualmente, pode considerar-se que as reservas de areia em Santiago e algumas outras ilhas se encontram tecnicamente esgotadas. A extracção continua, pois as areias são apanhadas, por vezes com grande perigo, no mar ou na sequência de enxurradas (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010).

Em diversas ilhas do arquipélago são evidentes os impactes ambientais negativos originados pela extracção de areia marinha, tais como, perturbação da linha da costa, salinização de solos agrícolas localizados junto ao litoral, perturbação da fauna e da flora costeiras e diminuição de espaços de lazer (Gomes, 2004, 2011; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).

A praia de Calhetona é uma das muitas praias da Ilha de Santiago e do arquipélago em geral, cuja degradação está intimamente ligada à extracção da areia para a construção civil. Assim, o presente trabalho, realizado em 2012, teve como objectivos caracterizar a comunidade que se dedica à extracção de areia na praia de Calhetona, descrever a dinâmica da actividade extractiva, avaliar a percepção que a comunidade tem relativamente às consequências da sua actividade e descrever os impactes ambientais resultantes da extracção de areia.

No contexto dos arquipélagos atlânticos, a extracção ilegal de areia nas praias não é um problema ambiental exclusivo de Cabo Verde; também em São Tomé e Príncipe esta actividade tem sido causadora de forte erosão nas zonas costeiras (Costa, 2014). Nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, até pelas melhores condições de vida das populações, a extracção ilegal de areia não é um problema actual, embora possa ocorrer pontualmente. No entanto, são bem conhecidos os impactes ambientais negativos resultantes da extração desregrada ocorrida durante a segunda metade do século XX, como é o caso paradigmático da praia de Santa Bárbara (Ilha de São Miguel, Açores) (Borges et al., 2002).

2. Material e métodos 2.1. Área de estudo O arquipélago de Cabo Verde, com uma superfície de 4033 km2 , situa-se no oceano Atlântico, a cerca de 450 km da costa africana, sendo constituído por dez ilhas e alguns ilhéus (Fig. 1). A Ilha de Santiago, integrada no conjunto das Ilhas de Sotavento (Fig. 1), é a maior do arquipélago, com 991 km2 de superfície, estando dividida administrativamente em nove municípios.

A praia de Calhetona localiza-se na costa nordeste da Ilha de Santiago, no extremo sul do concelho de São Miguel, na foz da ribeira dos Flamengos (Fig.

1). A bacia hidrográfica da ribeira de Flamengos (Fig.

1), com uma área de 30,8 km2, é uma das mais importantes da ilha do ponto de vista dos recursos hídricos e da produção agrícola. Os seus principais cursos de água nascem no planalto da Serra Malagueta, com uma altitude máxima de 1 063 m. Imediatamente a norte da praia situa-se Ponta Calhetona, um pequeno bairro da periferia da cidade de Calheta de São Miguel (sede do concelho) onde reside a comunidade que se dedica à extracção ilegal de areia na referida praia.

Figura 1 - Localização da Ilha de Santiago, da bacia hidrográfica de Flamengos, de Ponta Calhetona e da praia de Calhetona.

Em 2010, residiam no concelho de São Miguel, 15 648 habitantes, correspondentes a 5,7% da população da ilha e 3,2% da população nacional (INE, 2010). Tratase de uma população essencialmente rural (73,0%) e maioritariamente feminina (55,1%) (INE, 2010).

São Miguel é um dos concelhos cabo-verdianos que apresentam menores taxas de desemprego (4,9%), bem abaixo da média da ilha (12,2%) e do país (16,4%), contudo apresenta também a maior taxa de subemprego (82,7%), muito acima da média da ilha (54,1%) e do país (37,8%) (INE, 2014). À semelhança do panorama nacional, o desemprego afecta mais os homens (7,1% contra 3,8% nas mulheres), mas o subemprego afecta mais as mulheres (86,5% contra 77,9% nos homens) (INE, 2014).

A actividade económica, apesar da escassez e irregularidade da precipitação, baseia-se essencialmente na agricultura de regadio e de sequeiro. A pecuária e o comércio são também actividades económicas importantes no concelho, sendo a pesca um sector pouco desenvolvido. O turismo vem ganhando espaço, sobretudo o geoturismo e o ecoturismo.

2.2. Metodologia Neste trabalho foi utilizada uma metodologia de estudo de caso, maioritariamente qualitativa, tendo por base o levantamento documental, a observação direta e a recolha de informações através de questionário semiestruturado, aplicado na localidade de Ponta Calhetona, durante o mês de Fevereiro de 2012, a chefes de agregados familiares que exercem a extracção clandestina de areia na praia de Calhetona.

Optou-se por um questionário não muito extenso, por forma a que os inquiridos pudessem responder sem constrangimentos, não ocultando, assim, informações importantes para este estudo (ver Supporting Information I e II).

Relativamente à descrição da evolução/degradação da praia de Calhetona nos últimos anos, na ausência de dados cartográficos históricos, foi elaborada, com base na memória de habitantes locais, a reconstituição do seu aspecto físico no passado (anos 60) e efectuou-se a comparação com a situação actual.

3. Resultados e discussão 3.1. Caracterização da comunidade Na praia de Calhetona, a grande maioria (72%) dos chefes dos agregados familiares que se dedicam à extracção clandestina de areia são mulheres. Esta predominância do sexo feminino, característica da actividade extractiva em Cabo Verde, deve-se à forte emigração da população masculina, muitas vezes deixando para trás mulher e filhos, à baixa escolaridade e à limitada ou nenhuma formação qualificada das mulheres, e ainda, a outros factores sociais e culturais, com destaque para a gravidez precoce e consequente obrigatoriedade de assumir o papel de chefe de família (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).

No que respeita à estrutura etária, verifica-se que 19 indivíduos têm idades compreendidas entre 40 e 59 anos, representando cerca de três quartos (76%) dos inquiridos (Fig. 2). Apesar de a idade da totalidade dos inquiridos variar entre os 20 e os 59 anos (Fig. 2), isto não significa que apenas pessoas nesta faixa etária se dediquem à actividade extractiva. De facto, nesta praia, à semelhança do que ocorre em muitos outros locais da Ilha de Santiago onde se extrai areia (Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012), a extracção é efectuada por grupos familiares que incluem crianças e idosos na sua composição.

Os inquiridos são todos naturais da freguesia de Calheta de São Miguel e todos têm habitação própria em Ponta Calhetona. São casas simples, algumas com sinais evidentes de degradação, com pequenas divisões, energia eléctrica e água canalizada e algumas com casa de banho. Ponta Calhetona é um bairro relativamente recente, onde a grande maioria (84%) dos inquiridos reside 10 a 29 anos (Fig. 3), reflectindo a migração das populações rurais para as cidades, localizadas no litoral, ocorrida nos finais dos anos 80 e princípios dos anos 90.

No que concerne ao número de anos de dedicação à extracção clandestina de areia na praia de Calhetona, verifica-se que 16% dos inquiridos desenvolve esta actividade menos de 10 anos, 64% 10 a 19 anos e 20% 20 a 29 anos. Verifica-se assim que cerca de dois terços dos inquiridos se iniciou nesta actividade na década de 90, grosso modo, tirando proveito do enorme aumento da procura de areia pela indústria de construção civil que então se fez sentir.

As reduzidas percentagens de inquiridos com menos de 40 anos de idade (Fig. 2) e de inquiridos que se dedicam à extracção menos de 10 anos estão maioritariamente relacionadas com factores como a emigração, o aumento dos níveis de escolaridade e a opção por actividades profissionais mais seguras e legais.

Além disso, este recurso natural está (praticamente) esgotado e a fiscalização tende a aumentar.

Figura 2 Distribuição de idades dos inquiridos.

Figura 3 - Número de anos de residência em Ponta Calhetona.

Quanto ao grau de instrução, uma pequena minoria dos inquiridos (16%) não possui qualquer habilitação literária, enquanto 80% possui a instrução primária e 4% concluiu o ensino secundário. No entanto, e apesar dos baixos níveis de escolaridade apresentados pela grande maioria dos inquiridos, estes revelam grande preocupação em investir na instrução dos descendentes para que estes possam ter melhores condições de vida no futuro. De facto, os seus filhos e netos frequentam a escola, em número muito significativo, do ensino básico ao ensino superior. Aliás, no universo em estudo, apenas uma criança em idade escolar não frequenta a escola.

Em Cabo Verde o ensino básico é gratuito e tem uma duração de seis anos, envolvendo crianças dos seis aos doze anos de idade. No que diz respeito ao encargo educativo com os descendentes que frequentam outros graus de ensino (secundário, médio e superior), 12% dos inquiridos afirma ter ajuda de familiares residentes na diáspora, enquanto os restantes recorrem aos serviços de apoio sócio-educativo ou, quando não conseguem a comparticipação desses serviços, vendem animais de criação (vacas, cabras, porcos) ou pedem ajuda de familiares e amigos. Estes dados diferem dos obtidos por Lopes (2010), junto dos agregados familiares que se dedicam à extracção de areia nas ribeiras de Flamengos e Principal, no concelho de S. Miguel, e na Cuba (ribeira das Pratas) no concelho de Tarrafal, os quais revelaram que 30% dos filhos dos inquiridos não frequentavam a escola.

Todos os inquiridos têm pelo menos dois filhos, sendo que mais de metade (56%) tem cinco ou mais filhos.

Consequentemente, cerca de dois terços (64%) dos agregados familiares têm, pelo menos, seis elementos (Fig. 4). A dimensão média destes agregados familiares (6,2 elementos) é claramente superior ao valor registado no concelho (4,4 elementos) (INE, 2010). Os agregados familiares dos inquiridos apresentam composição muito diversificada, podendo incluir, para além dos inquiridos e dos seus cônjuges, os pais e os filhos de pelo menos um dos elementos do casal, os netos e até filhos de um familiar ou de uma pessoa com estreita relação de amizade.

Relativamente à actividade profissional, todos os inquiridos do género feminino afirmaram ser domésticas, enquanto os do género masculino revelaram desempenhar outras actividades. As actividades domésticas das mulheres não se resumem apenas às lides de casa, incluem ainda outras actividades, como agricultura, silvicultura e pecuária. Os homens desempenham actividades remuneradas ligadas ao sector primário, como agricultura, pecuária e silvicultura, bem como a outros sectores de actividade, nomeadamente, funcionalismo público, guarda-florestal e trabalho por conta própria (carpinteiro e pedreiro).

O processo de extracção de areia na praia da Calhetona não está dependente da maré, pois, contrariamente ao que acontece noutras praias da ilha, nesta a extracção não se realiza dentro de água, mas está fortemente condicionada pela fiscalização. Assim, a grande maioria (88%) dos inquiridos procede à extracção do ocaso ao raiar do dia, pois sob a protecção da escuridão da noite dificilmente são detectados pelos agentes fiscalizadores e, caso os vislumbrem ao longe, podem esconder-se ou fugir mais facilmente. Os locais da extracção são também cuidadosamente escolhidos, isto é, locais onde exista areia de melhor qualidade e onde seja maior a possibilidade de escapar às autoridades. Os restantes 12% realizam a extracção durante o dia, pois a necessidade torna-os menos inibidos, extraindo areia na praia sempre que seja possível, independentemente dos riscos corridos.

Os utensílios mais utilizados na extracção são a , utilizada por 48% dos inquiridos e o balde (60%), enquanto os mais utilizados no transporte até ao local de armazenamento são a banheira (56%) e os sacos (32%). Os sacos são também muito utlizados no armazenamento do material. Por ser uma actividade clandestina, o armazenamento é feito em lugares afastados do local da extracção, de forma a evitar problemas com as autoridades. A grande maioria (88%) dos inquiridos armazena a areia nas proximidades ou mesmo no interior de suas casas, os restantes (12%) fazem o armazenamento noutro lugar. Este cuidado no armazenamento da areia em lugar seguro revelado pela maior parte dos inquiridos, contrasta com a situação relatada por Lopes (2010), na praia de Cuba, onde a areia era armazenada nas vizinhanças da habitação ou junto à praia, e reflecte a maior pressão exercida pela fiscalização na praia de Calhetona e, em menor escala, a maior probabilidade de ocorrência de roubos.

No caso em que o armazenamento é efectuado longe da habitação, a venda é processada directamente nesse local, mediante a combinação estabelecida entre as partes interessadas.

Figura 4 - Número de indivíduos por agregado familiar.

Questionados sobre os motivos da extracção de areia, 28% dos inquiridos afirma não ter outra fonte de rendimento, estando a sua sobrevivência condicionada à actividade extractiva. Os restantes 72% praticam a extracção de areia para obter um rendimento suplementar.

O facto de quase três quartos dos inquiridos exercerem actividades complementares à extracção de areia, mostra que a venda de areia não é uma actividade rentável a ponto de permitir melhorar as condições de vida.

De facto, aqueles que têm apenas a venda de areia como base do sustento familiar afirmam que o lucro desta actividade extractiva apenas para cobrir as necessidades básicas da família.

Sendo uma comunidade rural, não é de estranhar que as principais actividades complementares à extracção de areia sejam a agricultura, a pecuária e a silvicultura.

Curiosamente, apesar da grande proximidade do mar, e à semelhança do que ocorre no concelho, a pesca é apenas praticada por uma minoria dos inquiridos (cerca de 10%).

Quase todos os inquiridos (92%) afirmaram ter sentido algum tipo de constrangimento durante a sua actividade clandestina, incluindo detenções e pagamento de coimas, acidentes, doenças, roubos e agressões físicas.

Como consequência dessa actividade, cerca de dois terços (68%) dos inquiridos foram detidos pelas autoridades e 80% pagaram coimas de 1 000$00 a 2 500$00 (circa 9 a 23 ). Em caso de detenção, o indivíduo é libertado após o pagamento da coima.

Os acidentes foram referidos por cerca de metade (52%) dos inquiridos, principalmente ferimentos provocados por objectos cortantes enterrados na areia. Os inquiridos fazem referência a um guarda, que no passado fiscalizou a praia de Calhetona, que em locais previsivelmente invadidos pelos extractores enterrava na areia tábuas com pregos e anzóis atados a uma haste de metal por linhas e espinhos de plantas, manifestamente na tentativa de surpreender e magoar os apanhadores de areia. Vale a pena referir que esta abordagem tão agressiva por parte de um guarda é uma excepção à regra, uma vez que, normalmente, a acção das autoridades tenta ser mais pedagógica do que punitiva.

As doenças referidas por 40% dos inquiridos incluem dores de coluna e de cabeça e febre, devida aos ferimentos sofridos.

Os roubos são referidos por 36% dos inquiridos, ocorrendo principalmente sobre a areia armazenada em locais afastados da residência. Durante a noite, indivíduos supostamente combinados com camionistas roubam esse material. As agressões dominam a estatística dos constrangimentos sofridos, 88% dos inquiridos afirmam ter sido vítimas de algum tipo de agressão resultante de lutas entre grupos rivais (intimidação, ameaça, correctivos) e de desacatos à autoridade.

Quanto ao processo de venda, na praia de Calhetona, como consequência da pressão da fiscalização, a areia é predominantemente vendida ao saco. Apenas um dos inquiridos referiu a venda à carrada como sendo a mais frequente, mas, mesmo neste caso, a areia é transportada, até à casa do comprador, em sacos até completar a referida carrada. Considerando que uma Toyota Dyna 280 tem capacidade para transportar 4500 kg a 5000 kg e que um saco de areia leva cerca de 50 kg, para completar uma carrada, são necessários 90 a 100 sacos. A entrega da areia aos compradores é sempre efectuada durante a noite e madrugada, de modo a evitar as coimas e a apreensão da areia e da viatura pelas autoridades.

Normalmente, quem compra a areia aos sacos são particulares residentes nas redondezas. O valor a pagar por um saco de areia é de 300$00 a 400$00 (circa 3 a 4€).

O preço pode ser mais reduzido se o comprador pretender adquirir uma quantidade razoável de areia ou se for um cliente regular ou alguém muito próximo do vendedor.

Para 76% dos inquiridos, o preço de venda de uma carrada (Toyota Dyna 280) de areia é de 7000$00 a 8000$00 (circa 64 a 73€). 20% dos inquiridos vende a areia por mais de 8000$00 e apenas 4% a vende por valores entre 6000$00 (circa 55€) e 7000$00.

Cerca de dois terços (68%) dos inquiridos referem que vendem a areia a camionistas, 40% vende a empreiteiros de construção civil e todos vendem a particulares.

Os camionistas são os grandes beneficiários desta actividade, revendendo a areia dentro da localidade por 15000$00 (circa 135€), isto é, praticamente o dobro do preço pago a quem extrai a areia.

No que concerne à capacidade de carga, a Toyota Dyna 280 equivale a metade de um camião Volvo. Um camião Volvo de areia da praia de Cuba é vendido por 10000$00 (circa 90€) (Lopes, 2010) enquanto, em Ponta de Calhetona, uma carrada de areia de uma Toyota Dyna 280, custa no máximo 8000$00 (circa 73€). Verifica-se, assim, que para se adquirir a quantidade areia equivalente a um camião Volvo na praia de Calhetona é necessário desembolsar 16000$00 (circa 145€), ou seja, a carrada é 60% mais cara nesta praia do que na praia de Cuba.

A preferência pela Toyota Dyna 280 para o transporte de areia em Ponta Calhetona deve-se à capacidade destas viaturas se deslocarem facilmente pelas vielas da localidade, apanhando o material com rapidez, e fugindo facilmente às autoridades, devido às velocidades que consegue atingir com o seu motor turbo.

Relativamente à percepção quanto aos impactes resultantes da respectiva actividade extractiva na praia de Calhetona, todos os inquiridos revelam estar plenamente cientes de que esta tem diversos impactes ambientais e económicos negativos.

Genericamente, os inquiridos concordam que a sua actividade contribui para o aumento da erosão marinha e consequente recuo da linha da costa, é responsável pela perda da qualidade de areia da praia, é prejudicial para a nidificação das tartarugas e para o turismo balnear e provoca a salinização das águas subterrâneas nas áreas próximas da praia. No entanto, os inquiridos também são unânimes em afirmar que, para manterem as condições de vida das suas famílias, não encontram outra alternativa que não seja a extracção ilegal de areia.

Esta consciência de que a actividade extractiva que desenvolvem é prejudicial para o ambiente é comum à maioria dos apanhadores de areia da ilha de Santiago (Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010).

3.2. Evolução da praia de Calhetona A extracção de areia na praia de Calhetona terá tido início na década de 70 do século passado. Contudo, nessa altura, os impactes ambientais eram pouco significativos.

A partir do final dos anos 80, com a migração das populações rurais para as cidades e o consequente crescimento da indústria da construção civil, a extracção intensificou-se e prolongou-se, sem qualquer regulamentação, até 1997, tendo deixado marcas profundas na praia. Após a implementação do Decreto-Lei 69/97, de 3 de Novembro, que visava disciplinar a extracção e a exploração de areia, a praia, segundo os habitantes locais, recuperou um pouco das características anteriores com a reposição natural de areia, mas ficou sempre distante do seu aspecto original, até porque a extracção clandestina de areia nunca deixou de ocorrer.

cerca de meio século, a praia de Calhetona estava repleta de areia basáltica, com ausência total de cascalheiras, cavas e penedões, e na maré baixa, a água do mar ficava longe do grande afloramento rochoso que actualmente divide a praia aproximadamente a meio (Fig. 5).

Actualmente observa-se na praia de Calhetona a existência de penedões e de uma extensa lagoa permanente, de água salgada, paralela à costa, e o recuo da linha de costa, particularmente visível durante a maré alta, quando as ondas passam o referido afloramento rochoso, dividindo a praia ao meio (Fig. 6B). Mesmo na maré baixa, dificilmente se consegue atravessar de um lado para outro sem se tocar na água, uma vez que as ondas batem directamente no sopé do afloramento (Fig.

6A). Ao longo do tempo, com a contínua actividade extractiva, o nível da areia da praia sofreu um desnivelamento considerável, verificando-se o aumento significativo da quantidade relativa de cascalho e a existência de cavas resultantes da extracção recente de areia (Supporting Information III).

Figura 5 - Aguarela de Sidney Zego representando a reconstituição do aspecto físico da praia de Calhetona nos anos 60, durante a maré baixa. R - Grande afloramento rochoso usado como referência para evidenciar o recuo da linha de costa.

Figura 6 - Aspecto físico actual da Praia de Calhetona. A - Nível do mar na maré baixa; B - Nível do mar na maré alta e lagoa permanente; R - Grande afloramento rochoso usado como referência para evidenciar o recuo da linha de costa.

Outro impacte negativo da extracção de areia sobre o ambiente refere-se à desova da tartaruga. Actualmente, a praia de Calhetona, praticamente um amontoado de cascalheiras, não apresenta condições para a desova das tartarugas, pois estes animais necessitam de praias com areia abundante para depositar os seus ovos. Segundo testemunhos de habitantes locais, no passado, as tartarugas depositavam uma quantidade significativa de ovos na praia de Calhetona, mas actualmente quase não se observa a sua presença na praia.

A formação da lagoa permanente acima referida, frente ao mar, tem facilitado a intrusão salina, que os agricultores identificam pelo actual sabor amargo da água de rega, e a consequente salinização dos solos que se localizam nas proximidades da praia. A qualidade de recursos hídricos a jusante da ribeira de Flamengos inspira cuidados das entidades competentes, no sentido de preservar e garantir a sustentabilidade agrícola na bacia hidrográfica dos Flamengos. Neste momento, propriedades agrícolas nas proximidades da praia que deixaram de produzir devido à salinização da água e vários agricultores locais têm revelado a sua preocupação em relação aos investimentos feitos nas suas propriedades agrícolas, cujos rendimentos vêm diminuindo gradualmente ao longo dos anos.

A extracção de areia na praia de Calhetona tem também impacte económico negativo, nomeadamente sobre as actividades turísticas. No passado, a praia de Calhetona era muito frequentada por locais e turistas. A quantidade e a qualidade da areia que ali existia proporcionavam momentos agradáveis às pessoas, as quais depois do banho de mar praticavam diversas modalidades desportivas na praia. Actualmente, a única actividade de lazer que se realiza nesta praia é a celebração anual do Dia de Cinzas, com música, bancas de comes e bebes e, por vezes, feira de produtos agrícolas.

A extracção de areia realizada no areal é a causa principal da degradação das características da praia de Calhetona. No entanto, a extracção realizada noutros locais também contribui para essa degradação, ao limitar a reposição natural da areia. A extracção de areia no interior da bacia hidrográfica de Flamengos reduz a quantidade de sedimentos que é transportada para a praia pelas torrentes e a extracção nas praias a norte de Calhetona reduz a quantidade de areia arrastada para a praia, de norte para sul, pela deriva litoral.

4. Considerações finais A extracção ilegal de areia em Cabo Verde é tradicionalmente dominada por mulheres, uma vez que são elas que chefiam os grupos familiares que se dedicam a esta actividade, no entanto, quem principalmente beneficia com esta actividade são homens, os camionistas que revendem a areia pelo dobro do preço que pagam às mulheres extractoras.

O balanço entre os impactes positivos e negativos resultantes desta actividade extractiva pende claramente para o lado negativo. Os únicos impactes positivos são económicos, fornecimento de areia para a indústria da construção civil e criação de emprego. Os impactos negativos são principalmente ambientais, a degradação da praia, o aumento da erosão marinha, a perda de biodiversidade e a salinização das propriedades agrícolas vizinhas, mas também económicos, a redução da produtividade agrícola e a redução das receitas do turismo, ambos directamente relacionados com os impactes ambientais, e a perda de receita fiscal. Infelizmente, os impactes económicos positivos, de curto prazo, não são suficientes para recuperar os impactes ambientais negativos, de longo prazo, como os acima referidos.

O presente estudo revela, assim, o domínio do económico sobre o sustentável, algo que tem gerado uma relação conflituosa entre a satisfação dos interesses individuais, a preservação dos recursos naturais e a legislação ambiental. Neste sentido, torna-se urgente a criação de alternativas eficazes, visando a resolução da situação das famílias que efectuam a extracção clandestina de areia, mas também atender à demanda desse inerte pela indústria da construção civil.

Embora o Programa de Luta Contra a Pobreza, que tinha como objetivo promover a redução sustentada e durável da pobreza no país, tenha envolvido famílias que se dedicam à extracção de areia, as medidas do Governo, como a fiscalização das praias e a legislação ambiental, o incentivo aos investidores privados para importarem areia de países vizinhos ou os investimentos na indústria de produção de inertes, não foram ao encontro das reais necessidades da população. De facto, estas medidas visavam acabar com a extração ilegal de areia, mas não criavam alternativas de sobrevivência para quem se dedica a essa actividade. E assim sendo, a extracção clandestina de areia manteve-se bem activa.

A própria fiscalização, seja por falta de meios, falta de pessoal, ou simplesmente porque os agentes têm consciência de que quem se dedica a esta actividade o faz por não ter outras alternativas de sustento, não é eficaz.

Por exemplo, apesar da praia de Calhetona, onde a fiscalização é muito maior do que noutros locais da ilha, dispor de guarda permanente e onde facilmente se conseguiria identificar os infractores, pois praticamente todos se conhecem, a areia continua a desaparecer.

O Governo, através do ministério que tutela a área do ambiente, as autarquias e a sociedade civil têm papel preponderante na preservação dos recursos naturais, no sentido de promover uma visão sustentável em qualquer exploração. Para que tal aconteça, é necessário o acompanhamento sistemático das actividades susceptíveis de provocar impactes ambientais e a definição de políticas claras vocacionadas ao poder local, envolvendo, assim, o maior número possível de intervenientes chaves nos projectos de desenvolvimento comunitário. A exploração de recursos naturais requer, acima de tudo, princípios ancorados na ética ambiental. É necessário apostar fortemente na educação e consciencialização dos indivíduos para a utilização racional de recursos naturais, mas não deixando de identificar e penalizar os infractores. Em suma, é necessário assegurar a divulgação e o cumprimento da legislação ambiental e criar alternativas para os indivíduos que procuram o sustento na extracção clandestina de areia.


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