ACIDIFICAÇÃO DE MOSTOS E VINHOS. O ÁCIDO L(+)LÁCTICO EM ALTERNATIVA AO ÁCIDO L(+)-TARTÁRICO1
INTRODUÇÃO
A acidificação de mostos e vinhos são práticas enológicas autorizadas na UE,
por utilização do ácido L(+)-tartárico. Apresenta este ácido como principal
vantagem a sua forte capacidade de acidificação (pK1 = 3,12), e como
inconveniente principal a sua elevada instabilidade físico-química. É ainda
possível, no âmbito da UE, o recurso ao ácido cítrico, limitado dentro de
alguns condicionalismos e normalmente utilizado para pequenas correcções
de acidez antes do engarrafamento de vinhos brancos; apresenta alguma
instabilidade biológica, mas tem a vantagem de complexar o ião férrico.
A possível utilização dos ácidos málico e láctico, para correcção ácida de
mostos e vinhos, tem vindo a ser discutida, designadamente no âmbito do
Office International de la Vigne et du Vin -OIV (Vilavella et al., 1996; Bertrand,
1999; Delfini et al., 1999). Em 1999, aprovou duas resoluções que vêm
permitir a utilização dos ácidos L(+)-láctico, DL-láctico, L(-)-málico, DLmálico e L(+)-tartárico na acidificação química dos mostos e de todos estes
e ainda do ácido cítrico na acidificação química dos vinhos. Ainda segundo
estas resoluções, os níveis de acidificação deverão ser fixados até à Assembleia
Geral do OIV de 2001.
Contudo, a possibilidade de recurso a todos estes agentes acidificantes continua
a ser polémica, levantando-se em discussão diversos aspectos favoráveis ou
desfavoráveis a essa possibilidade, designadamente a maior ou menor eficácia
dos diversos agentes e a eventual eliminação das características de tipicidade
dos vinhos.
Neste sentido, pretendeu-se neste trabalho comparar, sob os diferentes aspectos
em discussão, a acidificação de mostos e vinhos por recurso aos ácidos L(+)tartárico e L(+)-láctico.
MATERIAL E MÉTODOS
Ensaios tecnológicos
Foram realizados ensaios de acidificação em mostos brancos e em vinhos
brancos e tintos.
Consideraram-se três modalidades para cada ensaio: testemunha; acidificação
com ácido L(+)-tartárico e acidificação com ácido L(+)-láctico. Todas as
modalidades foram realizadas em triplicado.
-Os mostos de cada modalidade foram submetidos à análise físico-química.
As vinificações processaram-se em microvinificadores de aço inox de 60 L
de capacidade, tendo sido efectuado o controlo diário de fermentação.
A fermentação dos mostos brancos, sulfitados na ordem de 80 mg/L, foi
realizada após defecação a 4ºC durante 48 horas, no sistema de bica-aberta
com temperatura controlada a 19ºC.
Os vinhos tintos foram obtidos por vinificação no sistema de curtimenta, a
26 ºC, com sulfitação prévia na ordem de 60 mg/L.
Em todos os vinhos, realizaram-se duas trasfegas, tendo sida efectuadas
correcções de dióxido de enxofre (adições de 40 mg/L).
Em todos os vinhos foi efectuada a análise físico-química e sensorial, cerca
de 3 meses depois de terminada a fermentação alcoólica.
O esquema das modalidades dos ensaios e respectiva nomenclatura está
representado no Quadro I.
No ensaio A, o mosto foi acidificado após defecação. No ensaio B, o vinho
foi acidificado após fermentação, sendo proveniente do mesmo mosto
testemunha do ensaio A. O vinho tinto, do ensaio C, foi acidificado após a
primeira trasfega.
As correcções ácidas foram feitas com ácido L(+)-tartárico com grau de
pureza de 99.5% (MERCK) e com ácido L(+)-láctico, HQN, 90% (PURAC).
Análise físico-química
Foram efectuadas as seguintes determinações analíticas: pH (CEE, 1990),
acidez total (CEE, 1990), potássio (CEE, 1990), cálcio (CEE, 1990), ácido
L(+)-tartárico (Costa et al., 1998), ácido L(-)-málico (Curvelo-Garcia e
Godinho, 1988a), ácido L(+)-láctico (Curvelo-Garcia e Godinho, 1988a),
açúcares redutores (Curvelo-Garcia e Godinho, 1988b), alcalinidade de
cinzas (CEE, 1990), A420 (OIV, 1990), A280 (Ribéreau-Gayon et al., 1982),
características cromáticas - intensidade e tonalidade (OIV, 1990).
Análise Sensorial
Os vinhos dos ensaios A, B e C foram submetidos a provas de teste triangular
(8 provadores), para comparação entre as diferentes modalidades de ensaio,
e a prova descritiva com avaliação da intensidade do gosto ácido e de
apreciação geral.
Análise estatística
A análise estatística foi feita segundo o programa Statgraphics Statistical
System (vers. 5.0) , tendo sido executada a análise de variância e efectuado
o teste de comparação de médias.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No Quadro II, apresenta-se as determinações analíticas dos mostos MT
(testemunha), MTA (acidificado com ácido L(+)-tartárico) e ML (acidificado
com ácido L(+)-láctico), referentes aos ensaios A e B
De acordo com os resultados obtidos, observa-se que o mosto ML apresenta
valores de pH, de acidez total e de ácido L(+)-tartárico, intermédios entre o
mosto MT e o mosto MTA, evidenciando que o poder acidificante do ácido
L(+)-láctico é menor que o do ácido L(+)-tartárico.
O valor de potássio é mais elevado no mosto acidificado com ácido L(+)láctico, sendo mesmo superior ao da testemunha. Este aspecto, associado aos
valores encontrados para os teores de ácido L(+)-tartárico, deixa sugerir que
a acidificação com ácido L(+)-tartárico induz a ocorrência de precipitações
de hidrogenotartarato de potássio. Parece que os teores de cálcio não são
afectados.
O controlo de fermentação permitiu concluir que não há desvios significativos
nas curvas de fermentação entre as três repetições para cada modalidade,
facto que muitas vezes ocorre em microvinificações com uso de vasilhas
diferentes, embora do mesmo material. Assim, efectuadas as médias das
repetições, observa-se na Figura 1 que também não existem variações
significativas entre a testemunha e os mostos acidificados.
Relativamente à análise físico-química dos vinhos, verificámos que todos os
valores obtidos nas repetições dos ensaios, em cada modalidade, não
apresentavam desvios significativos, pelo que optámos por determinar a média
aritmética dos resultados
No Quadro III, apresenta-se o resumo de análise de variância e do teste de
comparação de médias entre as modalidades dos ensaios. Nos vinhos brancos,
-as diferenças encontradas para as médias dos parâmetros ácido L(-)-málico,
A420 e A280 não são significativas. No vinho tinto, as diferenças entre as
médias não são significativas para os parâmetros ácido L(-)-málico, açúcares
redutores, cálcio, A280 e intensidade de cor. Para estas determinações
analíticas, não há efeito do factor acidificação (com os acidificantes estudados,
e aos níveis empregues), como seria de esperar e facilmente se explica.
Os teores de açúcares redutores demonstraram que a fermentação alcoólica
foi suficientemente completada. Os teores de cálcio indicam que as
modalidades de acidificação utilizadas não induzem modificações na ocorrência
de precipitações de tartarato de cálcio - na acidificação de vinhos tintos, isso
é completamente claro, como aliás facilmente se admite tendo em consideração
a cinética química subjacente a essa ocorrência.
As modalidades de acidificação utilizadas, e aos níveis em que foram
empregues, não influenciam nem a constituição fenólica, como seria de esperar,
nem as características cromáticas dos vinhos, com excepção da tonalidade
dos vinhos tintos cujo valor diminui com a acidificação, sobretudo no caso
da acidificação com ácido L(+)-tartárico; este facto parece ser explicável pela
sensível diminuição de pH.
Ensaio A (acidificação em mosto branco)
Os vinhos obtidos com acidificação dos mostos (LM e TAM) apresentam
variabilidade para o conjunto dos parâmetros estudados.
Nos vinhos obtidos após acidificação dos mostos com ácido L(+)-láctico, os
resultados obtidos para os diferentes parâmetros (com excepção da alcalinidade
das cinzas) são significativamente diferentes dos correspondentes à testemunha.
Verifica-se alguma eficácia da acidificação, quer no que se refere à diminuição
do pH quer quanto ao aumento da acidez total. Verifica-se um aumento do
teor de potássio, confirmando-se assim que esta modalidade de acidificação
contribui para minimizar a precipitação de hidrogenotartarato de potássio
durante a fermentação alcoólica.
Os resultados obtidos para os diversos parâmetros são também
significativamente diferentes dos correspondentes aos vinhos obtidos a partir
de mostos acidificados com ácido L(+)-tartárico. Nesta modalidade, a eficácia
da acidificação é mais intensa (quer no que se refere à diminuição do pH
quer quanto ao aumento da acidez total), como seria de esperar tendo em
consideração os pK dos dois ácidos: pK1=3,12 para o ácido L(+)-tartárico e
pK=3,95 para o ácido L(+)-láctico, a 25 ºC e a 10% V/V alc. (CurveloGarcia, 1988). Os baixos teores de potássio dos vinhos resultantes da
acidificação com ácido L(+)-tartárico confirmam, mais uma vez, que esta
modalidade de acidificação contribui significativamente para a precipitação
de hidrogenotartarato de potássio durante a fermentação alcoólica, facto
confirmado pelos valores de alcalinidade das cinzas.
Ensaio B (acidificação em vinho branco)
Os vinhos obtidos (LV e TAV) apresentam variabilidade para o conjunto dos
parâmetros estudados.
A acidificação com ácido L(+)-láctico, comparativamente com a efectuada
com ácido L(+)-tartárico, apresenta uma maior eficácia quanto ao aumento
da acidez total, embora tal se não verifique quanto à diminuição de pH. Tal
facto é explicado pelos valores de potássio, de ácido L(+)-tartárico e de
alcalinidade das cinzas que, e ainda mais uma vez, demonstram a ocorrência
de precipitações de hidrogenotartarato de potássio nos vinhos acidificados
com este ácido.
Comparação dos ensaios A (acidificação em mosto branco) e B
(acidificação em vinho branco)
No que se refere ao efeito sobre a diminuição de pH, a acidificação, mais
eficiente com ácido L(+)-tartárico, é superior quando realizada em vinho.
Por outro lado, o efeito da acidificação sobre o aumento da acidez total, é
mais eficiente com o emprego de ácido L(+)-láctico, e é superior quando
realizada antes da fermentação (em mosto).
Os teores encontrados para os dois ácidos, bem como para o potássio e para
a alcalinidade das cinzas explicam perfeitamente estes factos, como
anteriormente se referiu: a acidificação com ácido L(+)-tartárico está sempre
associada à precipitação de hidrogenotartarato de potássio, conduzindo pois
a uma quebra de eficácia do seu poder acidificante, que pode inclusivamente
ser inferior ao correspondente ao ácido L(+)-láctico, cujo emprego parece
não afectar a estabilidade fisico-química do meio.
Por outro lado, nenhum dos agentes acidificantes parece originar precipitações
de tartarato de cálcio de imediato, o que seria de esperar tendo em consideração
a conhecida cinética associada a estas precipitações, bem como o facto das
determinações analíticas nos vinhos terem sido realizadas muito cedo (apenas
3 meses após a vinificação).
Ensaio C (acidificação em vinho tinto)
O efeito sobre o aumento da acidez total é idêntico para os dois agentes
acidificantes, sendo o ácido L(+)-tartárico mais eficiente no que se refere ao
efeito sobre a diminuição do pH, embora não tanto como seria de esperar
tendo em consideração os valores de pK dos dois ácidos em questão. Os
teores destes ácidos, de potássio e de alcalinidade das cinzas encontrados nos
diferentes vinhos mais uma vez explicam este facto, demonstrando de novo
a ocorrência de precipitações de hidrogenotartarato de potássio sempre
associadas à acidificação com ácido L(+)-tartárico, facto que também Bertrand
(1999) recentemente observou e que poderá também explicar alguns dados
apresentados por Delfini et al. (1999).
Análise sensorial
Os resultados da análise sensorial são apresentados sumariamente no Quadro
IV. Nos ensaios de acidificação de mostos e vinhos brancos, na avaliação do
gosto ácido, os provadores apenas distinguiram significativamente as amostras
acidificadas em mosto com ácido L(+)-láctico, a que corresponde a maior
acidez total. Esta mais elevada sensação ácida, em termos gustativos, poderá
ser explicada exactamente pelo elevado teor de acidez total e pelo seu mais
elevado poder tampão. Contudo, os provadores não foram afectados por este
facto na apreciação geral dos vinhos.
Nos ensaios de acidificação de vinhos tintos, os provadores também só
encontraram diferenças significativas, no que se refere á acidez, entre o vinho
testemunha e o vinho acidificado com ácido L(+)-láctico, o que terá uma
explicação idêntica. Relativamente à apreciação geral, não foram encontradas
quaisquer diferenças significativas.
CONCLUSÕES
Verifica-se que a acidez dos mostos (em termos de acidez total e de pH)
acidificados com ácido L(+)-tartárico é superior à dos mostos acidificados
com ácido L(+)-láctico, embora, de acordo com os respectivos valores de pK,
fosse de admitir que essas diferenças fossem superiores, facto que se
demonstrou ser devido a que a acidificação com ácido L(+)-láctico minimiza
a ocorrência de precipitações de hidrogenotartarato de potássio. A esta mesma
conclusão se chega com a análise dos resultados obtidos para os vinhos
brancos, o que significa uma efectiva redução do poder acidificante do ácido
L(+)-tartárico.
No que se refere à acidificação dos vinhos brancos, a utilização de ácido
L(+)-láctico, comparativamente com a de ácido L(+)-tartárico, apresenta
mesmo uma maior eficácia quanto ao aumento da acidez total, embora tal se
não verifique quanto à diminuição de pH. Tal facto é também explicado pela
ocorrência de precipitações de hidrogenotartarato de potássio nos vinhos
acidificados com ácido L(+)-tartárico.
No que se refere à acidificação de mostos e vinhos brancos, o efeito sobre
a diminuição de pH, mais eficiente com ácido L(+)-tartárico, é superior quando
realizada em vinho. Por outro lado, o efeito da acidificação sobre o aumento
da acidez total, é mais eficiente com o emprego de ácido L(+)-láctico, e é
superior quando realizada antes da fermentação (em mosto). A acidificação
com ácido L(+)-tartárico está sempre associada à precipitação de
hidrogenotartarato de potássio, conduzindo pois a uma quebra de eficácia do
seu poder acidificante, que pode inclusivamente ser inferior ao correspondente
ao ácido L(+)-láctico, cujo emprego parece não afectar a estabilidade fisicoquímica do meio.
Na acidificação de vinhos tintos, o efeito sobre o aumento da acidez total é
idêntico para os dois agentes acidificantes, sendo o ácido L(+)-tartárico mais
eficiente no que se refere ao efeito sobre a diminuição do pH, embora também
não tanto como seria de esperar tendo em consideração os valores de pK dos
dois ácidos em questão. Este facto demonstra de novo a ocorrência de
precipitações de hidrogenotartarato de potássio sempre associadas à
acidificação com ácido L(+)-tartárico.
A análise sensorial, confirmando de certa forma estas conclusões, evidencia
contudo que nenhuma modalidade de acidificação conduz a significativas
diferenças de qualidade (apreciação geral). A comparação entre essas
modalidades, aos níveis utilizados nos ensaios (22 meq/L), deverá assim
centrar-se na comparação do poder acidificante dos dois agentes e na maior
ou menor instabilidade fisico-química que poderão originar.
Por outro lado, as modalidades de acidificação utilizadas, e aos níveis em que
foram empregues, não influenciam nem a constituição fenólica, como seria
de esperar, nem as características cromáticas dos vinhos, com excepção da
tonalidade dos vinhos tintos cujo valor diminui com a acidificação, sobretudo
no caso da acidificação com ácido L(+)-tartárico, o que parece ser explicável
pela sensível diminuição de pH.
Nenhum dos agentes acidificantes parece originar precipitações de tartarato
de cálcio de imediato, o que seria de esperar tendo em consideração a
conhecida cinética associada a estas precipitações e o facto dos vinhos
analisados serem muito jovens.
Assim, e tendo em consideração todos estes aspectos, o recurso ao ácido
L(+)-láctico como agente acidificante em Enologia poderá ser uma alternativa
de interesse, relativamente à utilização clássica do ácido L(+)-tartárico.