O ruralismo em Eça de Queiroz
O ruralismo em Eça de Queiroz
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José Eduardo Mendes Ferrão
2
Depois de um pedido de desculpas muito sincero e bem justificado por não ter
sido capaz de, num espaço de tempo tão curto que me foi concedido ir para além
de brevíssimos apontamentos sobre o tema que me propus tratar, começarei esta
minha intervenção com um pequeno mas, a meu ver, bem significativo episódio.
Numa Sexta-feira Santa, já lá vão alguns anos, com a primavera instalada nas
calendários e nos campos, quando a vista se regala numa vegetação renascida e
renovada, os ouvidos sentem o suave ondear das searas ou o marralhar da
folhagem nova das árvores, o odor das múltiplas flores beijadas pelas abelhas
nos encanta e conforta e nos faz esquecer os efeitos desgastantes da poluição e
do «stress», sucedeu termos passado a noite em três quartos com janelas para o
mesmo lado numa simpática estalagem integrada nas planuras alentejanas, um
engenheiro electrotécnico, um professor de agronomia e um licenciado em
direito.
Nasceu o dia com um sol radioso contrastante com a tristeza dos corações dos
católicos nesse dia, levantámo-nos cedo, já que a tarefa que nos esperava nesse
dia era pesada, e vimo-nos os três, às janelas dos nossos respectivos quartos,
olhando como mesmo cenário os campos alentejanos de vista alargada.
Não trocámos palavra para além da circunspecta e tradicional saudação matinal.
Ao pequeno-almoço o primeiro considerou-se muito reconfortado porque, ao olhar
da janela do seu quarto essas planuras do sul do país, vira muitos postes de
alta e baixa tensão e linhas eléctricas que se estendiam em todas as direcções.
A sua luta pela electrificação do país em que andava empenhado começava a dar
resultados. O professor de agronomia replicou que nem sequer reparara nos
postes e nos fios mas que concentrou a sua atenção no aspecto das searas que
prometiam para esse ano uma boa produção de trigo. O licenciado em direito
confessou que ao chegar à janela sentiu frio, não olhou para nada e voltou para
a cama.
Eis a mesma paisagem avaliada e apreciada por personalidades com preocupações
diferentes.
Confesso que me impressiono muito ao percorrer as estradas deste país galgando
quilómetros à desfilada, na companhia de um citadino com a atenção concentrada
na fita negra do asfalto que nunca terá visto um boi senão no Campo Pequeno,
não é capaz de distinguir um nabo dum espinafre, um pinheiro de um carvalho,
conhece as hortaliças tal como as vê na banca do seu mercado de bairro.
Este meu companheiro de viagem não pode ter sensibilidade para sentir a força
criadora da terra, o cheiro da leiva revolvida, o perfume do feno que se sega,
nunca saboreou o gosto inigualável duma pêra colhida madura da árvore que a
criou, nunca sujou os sapatos na terra empapada pela chuva benfazeja, nunca foi
capaz de sentir e olhar o homem do campo que trabalha a terra, que conduz o
tractor, que colhe as uvas, como um seu igual numa sociedade diversificada de
funções.
Confesso que tenho pena do citadino nascido na Maternidade Alfredo da Costa que
cresceu rodeado de confortos, carinhos e brinquedos, perfumado com água-de-
colónia que tem como horizontes imediatos o supermercado e a sala do cinema e
que nunca pôde apreciar o encanto da sombra acolhedora de uma árvore em dia de
canícula ou o quentinho oloroso da fogueira que crepita na lareira enquanto se
faz a ceia.
Naturalmente que as pessoas com esse passado e esse presente dificilmente
sentirão o Eça rural, o Eça contrastante, o Eça mordaz ao delicada mas
firmemente comparar a «seca» das comodidades da ultima moda do 202 dos Champs-
Elisées com o «caldo de galinha» que rescendia com pedaços de fígado e moela
que Jacinto saboreou com inesperado prazer no dia da sua chegada à sua mansão
de Tormes na companhia do Zé Fernandes de Guiães.
Em toda a obra de Eça de Queiroz se pode admirar o primor e o rigor das suas
descrições e de tal forma que quem o lê sente-se integrado naquilo que descreve
quer seja a sala de jantar do lisboeta, a alcofa onde o Primo Basílio se
deliciava em amores ilícitos, o complexo e diversificado instrumental do
palácio parisiense, o adro de uma igrejinha, «centro de devoção e romaria de
léguas em redor», o ambiente calmo mas abafado dum fim de tarde estival numa
pequena cidade de província quando os seus grandes senhores foram para águas ou
se acolhem nas suas quintas dos arredores para acompanharem as vindimas.
Ficamos impressionados com o pormenor das suas Notas Contemporâneas, parece que
estivemos com ele a assistir à abertura do canal de Suez.
Nos seus escritos procura os termos certos e é notável nele o ajustamento que
faz nos nomes das pessoa e das coisas. Criticam-no pelo uso e abuso de
galicismos. Por um lado, ele nunca perdeu a influência dos salões de Paris e
para esses ambientes escolheu nos seus escritos as palavras inseridas no meio.
Também tenho pena que ele não fosse capaz de se libertar dessa muleta quando se
integrou em portuguesíssimos cenários.
Na obra de Eça de Queiroz, muito diversificada, mas sempre rica e profunda,
encontramos por vezes temas algo escabrosos, daqueles que todos sabiam que
existiam mas sobre os quais se fazia um silêncio comprometedor. Lembro-me dos
tempos da minha juventude e do seu enquadramento social em que alguns dos seus
livros não eram aconselháveis a menores ou nem sequer a sua leitura autorizada.
Eça explorou alguns desses factos raros mas possíveis de acontecer, mas a tudo
e a todos ele deu um enquadramento e um envolvimento que dá consistência aos
episódios que de excepcionais quase se tomam como vulgares.
Vivendo nas cidades, nas tertúlias e nos ambientes requintados da diplomacia,
com fugidias passagens por cidade de província que havia de ser o palco de um
dos seus livros, nunca esqueceu nem menosprezou os agricultores. Nas obras em
que os refere ou integra, com linguagem rica e certeira, até faz ressaltar que
mesmo os grandes senhores rurais, ricos mais com o que lhes deixaram do que
pelo fruto do seu trabalho, no meio das suas prepotências e distanciamentos,
têm assomos de actos importantes e interessantes, algumas vezes autênticos
hinos de solidariedade, de carinho inimaginável, de humanismo que o autor
pretende fazer ressaltar nos confrontos que faz.
Da sua obra vasta três livros marcam pelos temas ligados ao meio rural que
diga-se é bem diferente e muito mais abrangente que a agricultura e os
agricultores: O Crime do Padre Amaro, a Ilustre Casa de Ramires e a Cidade e as
Serras, este último para mim um livro admirável que durante muitos anos foi meu
livro de cabeceira.
Naturalmente que no tempo que vou ter disponível não poderei chamar à colação
tantos e tantos aspectos em que Eça descreve magistralmente o ambiente rural.
Por uma decisão, sempre discutível, mas que a escassez de tempo impõe, farei
uma brevíssima apresentação dos dois primeiros e concentrar-me-ei no último no
tempo que me resta.
No Crime do Padre Amaro o autor traz à ribalta a história de um padre, saído de
famílias humildes como tantos que na flor da idade e na pujança do seu vigor
físico, vai exercer o seu múnus sacerdotal numa pequena freguesia rural dos
arredores de Leiria e onde acabou por trair os seus votos de castidade num meio
em que era respeitado e querido, onde o trabalho paroquial lhe deixava muitas
horas sem ocupação, muito tempo de ócio e isolamento, onde a necessidade de
convívio o projectou para ambientes em que a tentação se revelou superior às
suas forças e o ânimo e as boas intenções frequentemente se afogam noutras
solicitações mais fortes e mais tentadoras de seguir.
Mas veja-se a dignidade com que o autor trata os seus personagens, mesmo
inseridos numa sociedade tradicionalista, acompanhando-os na evolução dos
acontecimentos e das tentações progressivamente aumentadas logo que se cede no
primeiro combate, compreendendo e exaltando o seu sofrimento interior e
dificuldade de gerir uma vida dúbia, em que os personagens reconhecem o erro
sem encontrarem maneira de se libertaram de uma situação em que o prazer e
satisfação carnais se misturam com o forte remorso do dever e do compromisso
solene a que se faltou. Mesmo assim o autor não atira para o monturo um homem
faltoso mas nem por isso deixou de o ser. Exalta-o pela coragem e dignidade de
assumir as suas responsabilidades, de garantir a vida do fruto que criou, de
assumir os riscos da crítica acerba dos seus concidadãos.
O Crime do Padre Amaro não é um livro pornográfico nem de maus costumes e tem o
condão de poder mostrar à juventude, o que deve conhecer em idade própria, que
a vida tem muitas ratoeiras. Entendo-o como um aviso a todos aqueles que se
julgam fortes na sua fraca carne e como uns momentos muito curtos de prazer
custam por vezes uma eternidade de sofrimento.
Penso eu que, devidamente acompanhado, este livro deveria ser conhecido e
meditado por muitos dos nossos jovens para que compreendam e entendam que, de
um momento para o outro, cai a casa.
Na Ilustre Casa de Ramires conta-se a história de Gonçalo Mendes Ramires,
conhecido no povo como «fidalgo da Torre», solteirão na sua casa de Santa
Ireneia, com torre fortificada vinda dos tempos anteriores à fundação da
nacionalidade «o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal» cuja casa
«entroncava em Ordonho Mendes, senhor de Treivedo que casou em 967 com D.
Elduarda, condessa de Carrion, filha de Bermudo o Gottoso rei de Leão» contando
entre os seus antepassados fidalgos que resistiram à invasão castelhana, outros
que ajudaram os reis na conquista como D. Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e
Alferes-mor de D. Sancho I, outros que andaram nas cruzadas, outros que
combateram no norte de África, outros que foram nas armadas dos descobrimentos.
Senhor de casa e quinta com eido, com feitor e jornaleiros, com terras
arrendadas e parcelas longínquas que mal conhecia, integra-o Eça na paisagem
luxuriante dos arredores da cidade de Oliveira, nesse tempo sede de grande
actividade política. Vivendo dos seus rendimentos, com a sua roda de amigos e
alguns outros com quem não tem ou não deseja ter relações ou estas são tensas,
tentam-no os amigos aduladores no seu amor próprio para escrever uma crónica,
mesmo que historicamente pouco exacta, dos actos e feitos notáveis dos seus
antepassados a publicar numa revista dirigida por um seu amigo que lhe daria
guarida e que aparecia nos escaparates da capital.
Essa tarefa que o fidalgo aceitou como um compromisso de honra à memória dos
seus antepassados tê-lo-á tornado muito mais sensível ao bichinho da política
para onde os amigos o iam empurrando- poucos o podiam ser melhor que ele,
segredavam-lhe ao ouvido e ele tudo foi fazendo para obter a suprema ventura de
se sentar numa cadeira do poder político. Para isso não recusou retractar-se
fazendo as pazes com antigo adversário só porque ele tinha os cordelinhos na
mão, de se passear de braço dado e em sinal de grande amizade nas tertúlias de
Oliveira onde dias antes o crucificara e ridicularizara, de colocar no caminho
de sua própria irmã, esposa de Barrolo, o homem que brevemente roubaria a
fidelidade que ela prometera a seu marido.
Como o tempo que tenho é muito pouco, vou pegar num dos muitos trechos de
excelente e profunda descrição de uma paisagem rural, discutível entre tantas
outras e todas elas profundamente significativas. Vamos meter-mo-nos com o
autor numa cena curiosa e significativa.
Gonçalo Mendes Ramires era fidalgo. Naquele tempo palavra de fidalgo era
palavra de rei, era compromisso sagrado. O povo tinha pelo fidalgo consideração
e respeito pela condição social que reconhecia, pela casa que habitava, pela
empregadoria que as suas posses concediam numa terra rural e pobre.
Um dia, sem feitor nas suas terras da Torre, foi abordado pelo José Casco, um
lavrador de Bravaes respeitado em toda a freguesia pela sua seriedade e força
espantosa, que lhe queria tomar de renda a referida propriedade. O fidalgo,
talvez contente por sair de uma enrascadela, apressou-se a aceitar a oferta de
910 mil réis. À maneira antiga, o fidalgo «apertou a mão ao lavrador que entrou
na cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esfregando na testa nas endoveias
rijas do pescoço o suor ansiado que o alagava».
Alguns dias mais tarde o fidalgo foi abordado pelo velho e experimentado
agricultor da região, o Pereira, com o mesmo objectivo. O fidalgo, vendo em
perspectiva um bom negócio, fez-se esquecido do compromisso anteriormente
tomado e pediu ao lavrador uma renda de 950 mil réis. Um significativo aumento.
O Pereira ficou hesitante, estava no meio do negócio o José Casco com o qual
não desejava conflitos «porque ele era um homem violento e assomado». O fidalgo
tranquilizou-o. Pela parte dele não houvera compromisso mas apenas se falou. O
Pereira «tirou da algibeira do colete a caixa de tartaruga e sorveu detidamente
uma pitada com o carão pendido para a esteira, hesitava depois da palavra
trocada pelo fidalgo».
O fidalgo desculpou-se porque «não lavrara escritura» com o Casco e «não
confirmara decisivamente a palavra de Gonçalo Mendes Ramires». Ele tinha na sua
frente os oitenta mil reis de diferença das duas propostas. Mas a consciência
não o apoiava.
O fidalgo, «depois de um momento em que pestanejava nervosa e tremulamente»,
estendeu a mão aberta ao Pereira: agora ficava definitivamente a palavra dada.
Algum tempo mais tarde o fidalgo passeava pelos campos, «uma girândola de
foguetes estalou ao largo para os lados de Bravães onde no domingo se fazia a
romaria celebrada da Senhora das Candeias. Depois das chuvas daqueles três dias
uma frescura descia da céu amaciado e lavado sobre os campos mais verdes. Pela
vereda silenciosa e ainda húmida, o fidalgo chegara à esquina do muro da quinta
onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divida do pinheiral e da mata. Do
portão nobre, que outrora se erguera nesse recôndito com lavores e brasão de
armas restam apenas os dois umbrais de granito amarelados do musgo, cerrados
contra o gado por uma cancela de tábuas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos
anos. E nesse momento da azinhaga funda, apagada em sombra, subia, chiando
carregado de mato, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava. O carro
passou lento. E logo atrás surdiu um homem esgrouviado e escuro trazendo ao
ombro o cajado, donde pendia um molho de cordas. O fidalgo reconheceu o José
Casco dos Bravaes. E seguia como quem desatento pela orla do pinheiral
assobiando, raspando com a bengalinha as silvas floridas do valado. O outro
porém estugou o passo esgalgado e lançou duramente no silêncio do arvoredo e da
tarde o nome do fidalgo. Então, com um pulo do coração Gonçalo Mendes Ramires
parou forçando um sorriso afável: olá é você José. Então que temos?»
Casco ficou furioso. Se o fidalgo como era tinha dado a sua palavra isso para
um fidalgo deveria ser tudo. «O Casco engasgara com as costelas a arfar sob a
encardida camisa de trabalho.
Por fim, desenfiando as cordas do marmeleiro que cravou no chão pela choupa:
Temos que eu falei sempre claro com o fidalgo e não era para que depois
faltasse à palavra. Gonçalo Mendes Ramires levantou a cabeça como se levantasse
uma massa de ferro e lá se tentou justificar dizendo que não havia entre eles
escritura assinada.
Perante esta resposta o Casco emudeceu assombrado. Depois com uma cólera em que
lhe tremiam os beiços brancos, lhe tremiam as secas mãos cabeludas fincadas no
cabo do varapau retorquiu: Temos que eu falei sempre claro com o fidalgo e não
era para que depois me faltasse à palavra».
O fidalgo sente-se em maus lençóis. Escuda-se que ali não era lugar para
conversarem sobre essas coisas, que o receberia em sua casa e então tratariam
do assunto.
Gonçalo, «enfiado, já endireitava para o pinhal com as pernas moles, um suor
arrepiado na espinha quando o Casco num rodeio, num salto leve, atrevidamente,
se lhe plantou diante, atravessando o cajado. O fidalgo tem de se justificar
ali e agora.
Gonçalo relanceou esgaseadamente em redor na ânsia de um socorro. Só o cercava
solidão, arvoredo cerrado, Na estrada apenas clara sob o resto da tarde, o
carro de lenha, ao longe chiava mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam
com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos já se adensava sombra e
névoa». Então estarrecido Gonçalo tentou um refúgio na ideia da justiça e da
lei que aterra os homens do campo. E como amigo que aconselha um amigo, com
brandura e «com os beiços ressequidos e trémulos» ameaçou o Casco como tribunal
e a cadeia.
«Então de repente o Casco cresceu todo no solitário caminho, negro e alto como
um pinheiro, num furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados quase
sangrentos interroga o fidalgo que ainda por cima o ameaça com a justiça e
avança para o fidalgo: então, com os diabos, primeiro que entre na cadeia lhe
heide-lhe esmigalhar os ossos.
Erguera o cajado. Mas num lampejo de razão e respeito ainda gritou com a cabeça
a tremer para trás através dos dentes cerrados: fuja fidalgo que me perco».
E o fidalgo, o corajoso Ramires, «correu à cancela entalada nos velhos umbrais
de granito pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla
o muro numa carreira furiosa de lebre acossada.
Ao fim da vinha junto aos milheirais uma figueira-brava, densa em folhas,
alastrara dentro de um espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse
esconderijo de rama e pedra se alapou o fidalgo da Torre arquejando. O
crepúsculo descera sobre os campos e com ele uma serenidade em que adormeciam
frondes e relvas. Afoutado pelo silêncio, pelo sossego, Gonçalo abandonou o
cerrado abrigo recomeçou a correr, num correr manso, na ponta das botas
brancas, sobre o chão mole das chuvadas até ao muro da Mãe de Água e julgando
vir gente pediu socorro».
E eis que tudo vira.
Respirou «agasalhado no pomar vedado para onde entrou rebentando furiosamente a
cancela» e caminhou para casa sem conseguir ver ninguém. Finalmente aparece o
pessoal de sua serventia. O Casco bêbedo rompendo com ele sem o conhecer «com
uma foice enorme a berrar: morra que é marrão». E ele na estrada apenas com a
bengalinha. « Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de
pinheiro, então arremete desabaladamente brandindo a bengala e ataranta o Casco
que recua se some pela azinhaga a cambalear e a grunhir». Eis a versão que o
valente contou aos seus criados do encontro com o colérico Casco naquele fim de
tarde na azinhaga deserta.
E assim se fazem as verdades.
Daí a pouco o Fidalgo já acrescentava que o Casco trazia uma espingarda no
carro.
E depois começa a descrição da cena de valentia do fidalgo que deu uma lição
num bêbado que sem o conhecer o queria matar numa viela erma e sombria.
Para termo deste episódio a pressão política do Fidalgo faz prender o Casco.
Eis a exploração da cobardia e do poder feita pelo Eça. Mas logo a seguir o
fidalgo atende a mulher do Casco que lhe pede para interceder para que o marido
saia da cadeia e vai ao ponto de levar para sua casa a filha doente daquele com
quem tivera o desentendimento.
A Cidade e as Serras foi o último livro publicado cuja edição o autor já não
chegou a rever na sua totalidade. Dos três referidos é aquele em que o autor
contrasta mais o citadino e o rural.
Vamos acompanhar Eça de Queiroz em algumas das passagens deste livro.
Eça leva-nos a Paris que muito bem conhecia, instala-nos no 202 dos Champs
Elisées onde nascera e vivia «o fidalgo Jacinto, descendente de D. Jacinto
Galião apoiante de D. Miguel que não quis ficar na terra perversa donde
partira, esbulhado e escorraçado, aquele rei de Portugal que levantava na rua
os Jacintos, quando aquele desejado infante com dois baús amarados sobre um
macho tomara o caminho de Sines e do final desterro».
Jacinto cresceu e fez-se homem em Paris e nos anos que já levava de vida nunca
viera a Portugal. Vivia com os rendimentos das suas terras do Douro entregues
aos cuidados do procurador Silvério e as terras de Tormes entregues aos
cuidados do caseiro Melchior.
«Não teve sarampo e não teve lombrigas. As letras, a taboada, o latim entraram
por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça».
Jacinto concebeu a ideia de que «o homem só é superiormente feliz quando é
superior-mente civilizado».
Exalta a felicidade do homem que, colocando nos olhos um binóculo de corridas,
é capaz de ver o que está dentro da montra da mercearia do outro lado da rua.
Como se isso fosse felicidade
Rodeia-se de todas as comodidades e inventos, monta um elevador, apesar do 202
ter apenas 2 andares e «para entreter os passageiros durante os 7 segundos da
viagem, instala um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris e
prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmara manda instalar um
sistema de aquecimento onde um criado mais atento ao termómetro que o piloto à
agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. A biblioteca,
atravancada com uma pilha monstruosa de novos livros, ficava iluminada por uma
coroa de lumes eléctricos comandada por um simples toque na parede, nas
estantes monumentais repousavam mais de 30 mil volumes encadernados em branco,
em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua
autoridade como doutores num concílio.
No seu gabinete de trabalho Jacinto munira-o de tapetes sombrios onde os passos
perdem os sons, luzes, chaminés, cortinados, biombos e toda uma máquina
sumptuosa de tubos, engrenagens, hastes, friesas, rigidesas de metais. Na sua
imensa mesa de trabalho uma estranha e miúda legião de instrumentosinhos de
níquel, de aço, de cobre, de ferro, de gumes, com argolas, com tenazes, com
ganchos, com dentes, todos de utilidades misteriosas. Toca o telefone, noutro
canto ouve-se
o tic-tic-tic açodado quase ansioso do telégrafo que anunciava que a fragata
russa Azzoff entrara em Marselha com avaria. No lado da cadeira da secretária
pendiam gordos tubos acústicos para Jacinto soprar as ordens através do 202,
cordões tímidos e moles que corriam para os recantos de sombra à maneira de
cobras assustadas. Sobre a banquinha uma máquina de escrever, adiante uma
máquina de calcular, uma estante repleta de dicionários, outra de manuais,
outra de atlas, outra de guias, um aparelho composto de lâminas de gelatina
onde desmaiavam meio chupadas as linhas de uma carta, outro erguia sobre um
livro brochado como para o decepar um cutelo funesto, outro avançando a boca
duma tuba toda aberta para as vozes do invisível e nem sequer faltavam as penas
eléctricas.
Como zumbido de um insecto de asas harmoniosas, um funil de marfim debitava em
voz muito mansa mas muito decidida uma conferência sobre metafísica positiva.
Noutro sitio um aparelho que arranca as penas velhas, outro numerava
rapidamente as páginas de um manuscrito, aqueloutro raspava emendas, outro
colava estampilhas, outro imprimia datas, outro derretia lacre, outro contava
documentos.
A sua mesa de toilette, por causa dos micróbios, estava atulhada de utensílios
de tartaruga, marfim, madrepérola, aço, prata, escovas largas como as rodas de
um carro sabino, estreitas e mais recurvadas que o alfange de mouro, côncavas
em forma de telha aldeã, pontiagudas em feitio de folha de hera, rijas que nem
cerdas de javali, macias que nem penugem de rola, máquinas monumentais com dois
jactos de água graduados de 0 a 100, dois duches, fino e grosso, para a cabeça,
uma fonte esterilizada para os dentes, repuxos borbulhantes para a barba,
botões discretos que roçados desencadeavam esguichos, cascatas cantantes ou um
leve orvalho estival, toalhas de felpa, toalhas de linho, toalha de corda
entrançada para restabelecer a circulação».
Ao jantar serviam-se «diversas águas engarrafadas, ostras clássicas, de
Marennes, sopa de alcachofras, ovas de carpa, frangos e túberas, filetes de
veado macerado em Xerez com geleia de noz e laranjas geladas com éter».
Zé Fernandes, regressado das durezas do Douro, depois de 5 anos de ausência dos
ambientes parisienses, estava estupefacto com tão complexo e diversificado
equipamento.
Eis a civilização, eis o príncipe da Grã-Ventura.
Mas um dia num banquete especialmente preparado e com a casa cheia de
convidados,
o peixe da refeição ficou parado no elevador que trazia a comida da cozinha
para a sala de jantar. Para uns foi uma festa, para outros uma diversão.
Para Jacinto «foi uma maçada» uma seca, uma desilusão. Toda a alta técnica
falhava, até se rebentara na casa de banho a tubagem de água quente e lançara o
pânico no 202.
Jacinto, envolvido neste conjunto de progressos da técnica que ele confundia
como civilização, rodeado de amigos e de figuras simbólicas que sempre aparecem
e frequentam os lugares de mundanismo e onde se come bem, sente o tédio da
insatisfação. Nada enchia a sua alma sensível. Queria sempre mais. A vida
tornou-se «uma seca, o corpo ficou flácido e transparente iluminado pela luz
artificial dos candeeiros e a pele a sentir a necessidade dos afagos de um bom
sol meridional».
Zé Fernandes, regressado da sua viagem a Portugal, impressionou-se com a
prostração de Jacinto. E foi o Grilo, o criado preto e que a seu lado o
acompanhava no cenário de uma vida de mundanismo, que melhor definiu o estado
de alma do seu amo: «O senhor padece de fartura».
Mas de um momento para o outro deu-se uma grande mudança.
Recebe-se em Paris uma carta do procurador Silvério das terras de Tormes
anunciando que devido a uma tempestade, a capela onde repousavam os «preciosos
restos» dos antepassados de Jacinto fora arrastada pela força das águas e das
terras e com ela «as respeitáveis relíquias». Que ele «já recolhera os despojos
com todo o respeito e lhes dera uma morada provisória e pedia instruções a
Jacinto quanto à reconstrução da capela».
No fundo da alma de Jacinto acordou o passado e os Jacintos todos seus
antepassados. Jacinto até aí concentrado e absorvido pelo mundanismo de Paris
volta a sua atenção para as suas origens, recorda-se que «nunca entrara numa
igreja» mas a sua corda sensível vibra de respeito pelos antepassados que lhes
deram o ser e a fortuna com a qual vivia opulentamente na Cidade-Luz. Deu
ordens para a reparação que se impunha.
Começa a impacientar-se porque os aparelhos, maravilha da técnica e da
civilização, avariavam-se ou não funcionavam, os que lhe dão informações
supérfluas irritam-no, o pó incomoda-o, a Cidade de Paris, vista do alto do
Sacré Coeur, mostrou outros interiores que ele nunca desvendara e em que nunca
pensara.
Os referenciais do seu espírito vão mudando. Paris já não era para ele o centro
da cultura, do progresso e da intelectualidade. Paris era «uma seca».
Jacinto caíra numa prostração e num pessimismo irritado. Isola-se dos seus
amigos e conhecidos, tudo o aborrece. Toda a sua postura «é como a de um boi
inconsciente que marcha sobre a canga e o aguilhão, os jornais saturam-no, na
sua rica biblioteca não encontra nada que lhe interesse ler, aos criados
recomenda que àqueles que o procuram os informe que não está em Paris, que
abalou para o campo, que abalou para Marselha, que morreu».
A lembrança de Portugal continua a roêlo e a dominá-lo e no fim de um inverno
escuro e pessimista Jacinto assomou à porta do quarto de Zé Fernandes e dispara
como um tiro: «Vou partir para Tormes».
Zé Fernandes ficou abismado e preocupado com a decisão. A casa de Tormes estava
inabitável, «os caseiros que lá vivem há 30 anos dormem em catres, comem o
caldo à lareira, usam as salas para secar o milho e os únicos móveis
sobreviventes são um armário e uma espineta de charão coxa e já sem teclas».
Jacinto não recua. Partiria em Abril e entretanto mandaria arranjar a casa e
levaria para lá de Paris os confortos necessários a uma estadia de alguns
meses.
E começou desde logo a tomar providências. Chamou um agente da Companhia
Internacional de Transportes para fazer a remessa das mobílias e outros
apetrechos e ficou espantado quando este declara saber muito bem onde era
Tormes, essa pequena aldeia enterrada nas serranias do Douro. Infeliz ou
felizmente para o fidalgo havia outra Tormes e essa é que o agente conhecia e
foi para aí que fez o despacho das coisas de Jacinto.
Começa então no 202 o encaixotamento de todos os confortos necessários «para um
mês na serra áspera».
Jacinto dá um passeio de despedida pelo Bois de Boulogne, olha os jardins e as
ruas , os fiacres dos amigos e conhecidos, pensa na grande viagem que o espera.
Descendo os Campos Elísios há nele uma hesitação: «é muito grave deixar a
Europa».
A grande viagem começa. O Anatole e o Grilo seguem à frente num fiacre atulhado
de livros, de estojos, de paletós, de impermeáveis, de travesseiras, de águas
minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas, mais atrás um omnibus rangia
sob a carga de 23 malas e na Estação, antes do embarque, Jacinto ainda comprou
todos os jornais, todas as ilustrações, horários, mais livros e um saca-rolhas
de forma complicada e hostil
E meu caro Zé Fernandes: que aventura».
A viagem longa e cansativa pelas Espanhas foi reconfortada pelas deferências
dos chefes das estações por onde iam passando avisados como estavam da passagem
do príncipe da Grã-Ventura.
O comboio chegou atrasadíssimo e em noite chuvosa a Medina, mal dando tempo a
uma transferência rápida para o comboio de Salamanca que viria para terras
portuguesas e estava prestes a sair.
Jacinto perdeu os criados, perdeu a bagagem e Zé Fernandes apenas salvou um
jornal e um «paletot».
E assim chegaram a Portugal tão distantes do conforto de Paris. «Um fardeta,
com imensa doçura pergunta se não tinham bagagem a declarar». Que não. Pudera,
ficara tudo com os criados que se perderam na mudança precipitada de Medina.
Chegam a Portugal como a terra prometida. «Cheira bem. Num largo e doce
silêncio aparece uma estação sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas
trepando pelas paredes e outras rosas em moitas num jardim onde um tanquesinho
abafado de limos dormia sob mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido de
paletot cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava
pensativamente o comboio. Agachada diante da sua cesta de ovos, uma velha
contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima
rebrilhava o profundo rico e macio azul de que os meus olhos andavam aguados.
Atravessa os penhascos que desabavam até largos socalcos, cultivados de
vinhedos, numa esplanada branquejava uma casa nobre de opulento repouso, com a
capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio descia com vela cheia
um barco lento carregado de pipas».
Fazendo planos para a vida das serras com os confortos mandados de Paris e com
o pessoal contratado pelo Melchior «chegam à estação de Tormes, clara, simples,
à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um
jardinsinho breve, duas altas figueiras assombreando o pátio e por trás a serra
coberta de velho e denso arvoredo».
Do pessoal a aguardar o senhor de Tormes não estava ninguém, nem vivalma além
do Pimentinha, «chefe da Estação, de imensa barriga e bochechas menineiras».
Ninguém esperava o Fidalgo. O Silvério «estava há meses para o Alentejo para
ver a mãe que apanhara uma cornada de um boi, o Melchior não aparecia por ali
há meses não havia cavalos para a jornada pelos contrafortes da serra».
E o senhor de Tormes e o seu amigo Zé Fernandes, depois de horas de espera e de
recados, lá conseguiram «uma égua e um burro em pelo cedidos por um caseiro do
fidalgo que vivia nas redondezas da Estação, um rapaz e um podengo como guias».
E assim se admirou esse Portugal amado, onde tudo que se via se admirava e
espantava nessas serras benditas. «Atravessaram uma trémula ponte de pau sob um
riacho quebrado por pedregulhos, admiraram a robustez das oliveiras e os bandos
de arvoredo. Por toda a parte a água sussurrante a água fecundante».
Deixemos os nossos viajantes subirem lentamente a serra e extasiarem-se com a
bonita e variegada paisagem das montanhas que subiam.
Vamos esperá-los à avenida das faias. «Aí o rapaz, atirando uma vergastada no
burro e na égua, gritou: Aqui é que estemos meus amos». E assim Jacinto, o
parisiense habituado a todos os confortos e a recusar beber outra água que não
fosse a engarrafada, apareceu diante da casa dos seus avós.
«Ao fundo via-se o portão da quinta com o seu brasão de armas de secular
granito que o musgo retocava e envelhecia».
Toca-se à porta, ladram os cães, vem o caseiro. Pasmado, olha as visitas. Que
não, que ninguém sabia de nada, que Silvério estava para Castelo de Vide, que
não tinham chegado nenhuns caixotes que as obras iam-se fazendo lentamente, que
só esperavam o fidalgo para as vindimas.
Jacinto ficou como fulminado. Perdido mo meio da serra sem quaisquer dos seus
confortos de Paris. Zé Fenandes oferece a sua casa em Guiães mas está distante
«duas horas fartas a cavalo», aconselha Jacinto a ver o casarão, comer a boa
galinha que «o nosso Melchior nos assa no espeto», dormir nessa noite numa
enxerga e depois para sua casa pelo fresco da manhã.
Subiram as escadas até ao salão nobre do casarão que Jacinto contemplava com
horror, com um «monte de canastras a um canto e algumas enxadas entre paus»
noutro, no tecto viam-se «manchas no céu», as janelas não tinham vidraças, as
tábuas podres do soalho rangiam e cediam.
Mas noutras salas que visitaram já tinha entrado o carpinteiro. O soalho estava
remendado, as paredes tinham «a alvura da cal fresca», as janelas já tinham
vidros. A reparação recomendada por Jacinto estava em curso. A última divisão,
um grande salão «rasgado por 6 janelas», estava mobilado por um armário e a um
canto uma enxerga parda.
Ali acamparam. Jacinto «caiu esbarrondado» pelo desastre que lhe sucedera.
Levantase, vem à janela, olha. «É uma lindeza» diz. «E que paz».
«Sob a janela vicejava fartamente uma horta com repolhos, feijoal, talhões de
alfaces, gordas folhas de abóboras rastejando. Uma eira velha e mal alisada
dominava o Vale. Toda a esquina do casario se encravava num laranjal. E duma
fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e
rutilante fio de água».
Jacinto embevecido desceu ao quintal. Tudo para ele era novo e era belo. Deu-
lhe a fome, passou pela cozinha onde no meio do negrume da fuligem secular
«refulgia a um canto sobre o chão de terra negra a fogueira vermelha lambendo
os tachos e panelas de ferro». O pessoal emudeceu diante do fidalgo: «o
jantarinho para suas incelências não demora um credo».
Quanto a camas, bem, há «uma enxergazinha no chão» que é o que se pode
arranjar. Lá pela limpeza dos lençóis responde o Melchior.
Jacinto entusiasmado continuou a viagem, bebeu água da fonte e esqueceu as
águas engarrafadas, «atirou pulos aos ramos copados de uma cerejeira carregada
de cerejas», apeteceu as alfaces que viu na horta, percorreu os milharais com
pasmo e admirou os vetustos carvalhos plantados pelos seus antepassados.
Voltaram a casa que agora, depois deste passeio reconfortante, já não pareceu
tão sombria, entram no salão, Jacinto aprecia o doce sossego, contempla as
estrelas.
Daquela janela aberta sobre as serras Jacinto apercebeu-se que havia outra
forma de viver a vida e suspirou, mas suspirou como quem descansa.
Vem aí o jantarinho. O príncipe ficou «estarrecido com a mesa encostada ao muro
enegrecido, coberta por uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais
de lata, grossos pratos de louça amarela, colheres de estanho, garfos de ferro,
os copos de um vidro áspero que ainda conservavam a cor roxa do vinho, uma
malga atestada de azeitonas pretas».
A comida vem a caminho. Jacinto «esfregou energicamente com a ponta da toalha o
garfo negro e a fosca colher», aparece a sopa a fumegar., «desconfiado provou o
caldo que era de galinha e rescendia». Provou, arregalou os olhos e sorrindo
gostou.
Estava feita mais uma conversão do nosso Jacinto ao meio rural.
Três vezes comeu aquela preciosa e perfumada sopa com fígado e moela e depois
atirase ao arroz de favas, a comida dos jornaleiros das suas propriedades. Em
Paris abominava as favas. Aqui provou e gostou. Destas sim. Destas favas «nem
em Paris». Bateu-se com um «louro frango» acompanhado da salada que tinha
apetecido no quintal. Tudo «divino». O vinho de Tormes, «um vinho fresco
esperto e seivoso» caia de alto «duma bojuda infusa» e mereceu-lhe rasgados
elogios.
Jantaram deliciosamente e voltaram para as janelas desvidraçadas a contemplar o
sumptuoso céu de verão. Jacinto sente sono. Despojado de tudo aquilo que em
Paris lhe era indispensável, os chinelos de quarto são substituídos por uns
tamancos e o pijama cómodo e macio pela «camisa enorme de estopa áspera como
uma estamenha de paciente» e dorme como um justo.
O tempo que dispunha para vos falar esgotou-se. Deixemos o Jacinto a admirar e
a integrar-se no novo mundo que lhe trouxe uma felicidade que ele nunca
sentira.
Jacinto fez-se lavrador, administrou os bens que os seus antepassados lhe
deixaram, casou-se com a prima do Zé Fernandes, teve filhos. Finalmente
chegaram os caixotes que durante muito tempo ficaram encalhados na Tormes
espanhola. Jacinto só mandou abrir alguns para dar comodidades ao seu casarão
mas a maior parte deles que continham dentro todos os primores da técnica e os
avanços da civilização nem sequer foram abertos.
Jacinto quer levar a mulher e os filhos a Paris para conhecerem a cidade em que
durante tantos anos viveu e onde, no meio de todos os avanços da técnica e da
civilização, ele nunca encontrara a verdadeira felicidade. Mas voltaria para
Tormes para as suas terras onde pode ver as plantas crescerem e frutificarem e
à noite tem o espectáculo inigualável do céu estrelado e o aconchego da
família.
Eu ao pensar como nasci e me criei, em pleno meio rural, sentindo de manhã a
acordarem-se as chilreadas dos pássaros, acompanhando com alegria o rebentar
das árvores e pleno de tristeza quando os frios de Outono as despiam, que me
consolava em subir às arvores para colher deliciosos frutos, tendo bebido a
água da nascente por um pedaço de telha, comido a sopa à lareira fabricada
lentamente numa fogueira que nunca se apaga, sentindo o cheiro atraente da
terra quando se fazem as sementeiras, passando noites de calças arregaçadas a
guiar a água que rega o milheiral, consolando-me com a fresca melancia nas
tardes escaldantes de Agosto, aconchegando o estômago com sopa de castanhas nos
dias frios de Inverno, criando uma alma nova quando chega a primavera com as
flores, a rebentação das árvores e as expressões de vitalidade e alegria da
natureza, dou graças a Deus pela felicidade que me deu em saber amar a natureza
e não ser escravo do dinheiro.
Infelizmente o mundo está cheio de Jacintos parisienses que julgam que a
felicidade é ter muito e cada vez mais e assim não entenderão aquele pastor da
fábula que guardando o rebanho, conversando com as ovelhas e com as árvores, se
considerava inteiramente feliz apesar de não ter uma camisa para vestir
Eça neste romance dá-nos uma lição e mostra-nos um caminho. Quando encontramos
a felicidade deixemos encaixotados os nossos bens e vivamos a paz das coisas
simples.
1 Conferência apresentada no Centro de Estudos Eça de Queiroz
2 Prof. Catedrático jubilado de Agronomia Tropical do Instituto Superior de
Agronomia, Lisboa.
Recepção/Reception: 2007.06.25
Aceitação/Acception: 2007.07.18