Efeito da digestão anaeróbia e da estabilizção com cal na mineralização do
carbono e do azoto de lamas de ETAR
Efeito da digestão anaeróbia e da estabilizção com cal na mineralização do
carbono e do azoto de lamas de ETAR
INTRODUÇÃO
A aplicação de lamas das estações de tratamento de águas residuais (lamas de
ETAR) a solos agrícolas é uma prática recomendável, uma vez que estas lamas
contêm na sua composição quantidades apreciáveis de nutrientes vegetais e
matéria orgânica (Epstein, 2003; Dias, 2004). Esta aplicação reveste-se de
particular importância no caso dos solos das regiões da bacia mediterrânica
onde, resultado das condições edafo-climáticas dominantes e do uso inadequado
de certas práticas culturais tem ocorrido uma degradação da qualidade dos solos
agrícolas, com o consequente declínio do seu teor em matéria orgânica (Ribeiro
et al., 2010a).
Contudo, as lamas de ETAR podem conter quantidades apreciáveis de agentes
patogénicos e matéria orgânica não estabilizada, pelo que deverão ser
submetidas a tratamento adequado, antes da sua aplicação ao solo. Para este
efeito podem ser utilizados diferentes tipos de tratamentos como a digestão
anaeróbia, a compostagem, a secagem térmica, a irradiação e a estabilização
química (Espinosa e Vasilind, 2001; Arthurson, 2008).
O tratamento das lamas de ETAR altera as suas características químicas e
biológicas, podendo modificar o seu comportamento quando estas são aplicadas ao
solo, afectando, entre outros aspectos, a dinâmica da mineralização do azoto e
do carbono presentes na lama (Fernandez et al., 2007; Tarrasón et al., 2008).
Uma vez que é escassa a informação disponível sobre a relação entre o tipo de
tratamento e o valor fertilizante das lamas tratadas, torna-se importante
estudar esta relação, nomeadamente o efeito do tratamento da lama na posterior
disponibilização de azoto para as culturas e sua contribuição para o sequestro
de carbono no solo. Com este objectivo realizaram-se dois ensaios laboratoriais
de incubação, tendo-se monitorizado a dinâmica de mineralização do azoto e do
carbono de lamas de ETAR, resultantes de diferentes tratamentos, aplicadas a um
Arenossolo Háplico.
MATERIAL E MÉTODOS
Neste trabalho utilizou-se a camada superficial (0-20 cm) de um Arenossolo
Háplico (Dístrico) (IUSS Working Group WRB, 2006), cujas principais
características se apresentam no Quadro 1.
Quadro 1 - Principais características do solo usado no ensaio.
As lamas foram recolhidas na Estação de Tratamento de Águas Residuais de
Beirolas, que trata um volume de águas residuais urbanas correspondente a uma
população de 213500 habitantes equivalentes. Utilizaram-se 3 lamas com
diferentes características (Quadro 2):
Quadro 2 ' Composição da lama mista (LM), lama digerida anaerobicamente (LD) e
lama digerida anaerobicamente estabilizada com cal (LDcal), sendo os resultados
expressos na matéria seca.
· LM ' lama mista, recolhida no tanque de mistura de lamas primárias
(resultantes da decantação primária) e lamas secundárias (decantação
secundária, após o tratamento secundário por lamas activadas), antes da entrada
no digestor anaeróbio e após parcial desidratação por centrifugação;
· LD ' lama obtida após a digestão anaeróbia das lamas mistas, recolhida
depois de desidratada por centrifugação;
· LDcal ' lama digerida anaerobicamente e desidratada estabilizada com cal
(óxido de cálcio, CaO), na proporção 300 g CaO para 1 kg da lama digerida,
mantendo-se o pH da lama com um valor superior a 12 durante 48 horas.
Efectuaram-se duas incubações aeróbicas, em condições de temperatura (25ºC) e
humidade do solo (65% da capacidade máxima de retenção de água) controladas,
durante 140 dias, uma para avaliar a mineralização do C e outra para avaliar
a mineralização do N das lamas. Em ambas as incubações as lamas foram
misturadas com a camada superficial do Arenossolo Háplico numa quantidade
equivalente a 0,33 g de matéria seca de lama por kg de solo (Quadro 3) que
corresponde a 10 Mg de matéria seca por hectare. Para que as características
biológicas e bioquímicas não se alterassem de forma significativa, as lamas
foram sujeitas a uma prévia liofilização, com o objectivo de reduzir o teor de
humidade das lamas originais.
Quadro_3
' Quantidade de lama, expressa em matéria seca, e respectivas quantidades de
azoto e carbono aplicados por kg de solo
A avaliação da mineralização do carbono foi efectuada através de uma incubação
aeróbia estática em sistema fechado, de acordo com a metodologia descrita em
Zibilske (1994) e Ribeiro et al. (2010a). Misturaram-se 60 g de solo com 0,20 g
(matéria seca) de lama e 7,8 mL de água destilada, colocaram-se as misturas
solo/lama em reactores estanques com 1,5 L de capacidade onde o CO2 libertado
foi fixado numa solução de NaOH 1 M. Periodicamente, procedeu-se à abertura dos
reactores para substituição da solução fixadora do CO2 e promover o arejamento.
O CO2 fixado na solução de NaOH foi quantificado por titulação.
A mineralização do azoto foi avaliada através de incubação aeróbia, sem
lixiviação, em condições controladas de acordo com a metodologia descrita em
Ribó et al. (2003) e Ribeiro et al. (2010b). Misturaram-se 600 g de solo com
2,0 g (matéria seca) de lama e 78 mL de água destilada. As misturas solo/lama
foram colocadas em recipientes plásticos e incubadas durante 140 dias.
Periodicamente os recipientes foram abertos, recolheram-se amostras das
misturas e quantificou-se o N-NH4+ e o N-NO3-, após extracção com KCl 2M (1:
5 p/v), por espectrofotometria de absorção molecular usando os métodos de
Bertholet e da Sulfanilamida (Houba et al., 1989), respectivamente.
Os dados obtidos foram sujeitos a uma análise de variância (ANOVA), seguida do
teste da diferença mínima significativa (LSD) para comparação de médias (Zar,
1996).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mineralização do carbono
A emissão de CO2 a partir do solo e das misturas solo/lama apresentou uma
evolução gradualmente crescente ao longo do tempo, em todas as modalidades
(Figura 1).
Figura_1 ' Evolução da emissão de CO2 (mg C-CO2 kg-1 solo) nas diferentes
modalidades, durante 140 dias de incubação.
Na modalidade "solo" (sem aplicação de lamas), que contém um teor de carbono
orgânico de 6,3 g kg-1 (1,09% de matéria orgânica), observaram-se sempre os
valores mais baixos de emissão de CO2, tendo-se atingido, no final da
incubação, um valor de CO2 emitido de 337,1 mg C-CO2 kg-1 solo. Este valor é
bastante inferior ao obtido por Ribeiro et al. (2010a), numa incubação aeróbia
a 25ºC de 19 semanas, com um solo arenoso contendo 9,3 g kg-1 de carbono
orgânico (1,6% de matéria orgânica), que obtiveram uma emissão de CO2 de 637 mg
C-CO2 kg-1 solo. No entanto, para além do teor de carbono orgânico mais elevado
no solo utilizado, Ribeiro et al. (2010a) utilizaram um solo recentemente
convertido à Agricultura Biológica ao qual, nos anos anteriores à realização do
ensaio, se tinha aplicado quantidades apreciáveis de matéria orgânica. Contudo,
Fernandez et al. (2006) e Walters et al. (1992), utilizando solos arenosos com
teores de matéria orgânica de 1,2 e 0,7% respectivamente, obtiveram valores de
emissão de CO2 idênticos aos obtidos no presente ensaio.
A adição de lamas ao solo, originou um aumento significativo da emissão de CO2,
quando comparada com o solo sem lamas, com os valores mais elevados a serem
obtidos na LM (866,8 mg C-CO2 kg-1 de solo), seguidas da LDcal (681,8 mg C-CO2
kg-1) e da LD (531,4 mg C-CO2 kg-1).
Como a quantidade de C aplicado foi diferente nas várias modalidades (Quadro
3), apresentam-se no Quadro 4 os valores de mineralização aparente do carbono
das lamas, que correspondem à percentagem do carbono total veiculado pela lama
que é mineralizado durante o período de incubação e que permitem avaliar a
biodegradabilidade desse carbono (Ribeiro et al., 2010a).
Quadro 4 ' C-CO2 emitido a partir da lama (mg C kg-1 solo), quantidade de C
aplicado (mg C kg-1 solo) e mineralização aparente do C da lama (%)
A LM foi a que a que apresentou uma percentagem de mineralização do carbono
mais alta (46,5%), enquanto que a LD foi a que apresentou uma percentagem de
mineralização do carbono mais baixa, observando-se que do carbono total
aplicado através da LD apenas 17,6% se mineralizou durante os 140 dias de
incubação. Efectivamente, durante o processo de digestão anaeróbia há a
conversão da matéria orgânica "fresca" em biogás (metano, dióxido de carbono) e
matéria orgânica "estabilizada" (Espinosa e Vasilind, 2001; Arthurson, 2008).),
o que justifica as diferenças observadas entre as duas lamas. Desta forma, para
igual quantidade de C aplicado ao solo, a LD é aquela que mais contribui para o
sequestro de C no solo.
A calagem da LD (LDcal) originou um aumento da percentagem de mineralização do
carbono da lama para 40,4%, o que corresponde a um aumento de 130%
relativamente à LD (17,6%). Na bibliografia consultada não se encontram
referências relativas ao efeito da calagem das lamas na posterior mineralização
do seu carbono. No entanto, observou-se que a aplicação das lamas com calagem
originou uma melhoria das propriedades do solo, nomeadamente o pH, que poderá
ter favorecido a actividade dos microrganismos do solo. O pH do solo aumentou
de 5,14 para 6,71 com a aplicação de lama digerida com calagem, enquanto que na
lama digerida sem calagem o pH final foi de apenas 5,50. Por outro lado, é
também possível que a acção directa da cal sobre as lamas origine a
decomposição química de alguns compostos orgânicos, tornando-os mais facilmente
utilizáveis pelos microrganismos do solo.
Mineralização do azoto
Na Figura 2 observa-se a evolução do N mineral (N-NH4+ + N-NO3-) no solo e nas
diferentes misturas de solo com lamas. Nos primeiros 28 dias de incubação, as
diferentes modalidades com lamas apresentaram dinâmicas de mineralização do
azoto relativamente distintas (Quadro 5).
Figura 2 ' Evolução do azoto mineral (mg N kg-1 solo) nas diferentes
modalidades, durante 140 dias de incubação.
Quadro_5
- Valores médios do N mineral (mg N kg-1 solo) nas diferentes modalidades, em
diferentes tempos de amostragem.
A LM originou um decréscimo do azoto mineral de 44,9 mg N kg-1 no tempo zero
para 37,6 mg N kg-1 solo ao fim de 3 dias de incubação, valor inferior ao do
solo (sem aplicação de lamas), originando uma imobilização inicial do azoto no
solo, o que na prática corresponde a uma diminuição das disponibilidades de
azoto para a cultura que for instalada no terreno. Esta imobilização de N está
de acordo com os resultados obtidos relativos às emissões do CO2, onde se
observaram maiores emissões iniciais de CO2 a partir da LM, quando comparadas
com as lamas digeridas (Figura_1). A LM, constituída por matéria orgânica que
não foi sujeita a um processo de estabilização, originou um aumento acentuado
da actividade dos microrganismos do solo, os quais terão utilizado o azoto
mineral do solo no seu próprio metabolismo. Por outro lado, vários autores
defendem que a mineralização do N é, para o mesmo tipo de material orgânico,
condicionada pela razão C/N do material aplicado ao solo (Chadwick et al.,
2000, Flavel e Murphy, 2006; Fangueiro et al., 2008). Em concordância com os
referidos autores, verifica-se que a LM tem uma razão C/N (14,7) mais elevada
do que a observada nas lamas digeridas (9,2 e 10,8, para LD e LDcal,
respectivamente).
No caso das duas modalidades com lamas digeridas anaerobicamente (LD e LDcal) o
teor de azoto mineral aumentou durante todo o período da incubação, tendo sido
sempre superior ao da modalidade solo (sem aplicação de lamas). No tempo zero,
o azoto mineral na modalidade LD (54,6 mg N kg-1 solo) foi significativamente
superior ao da modalidade LDcal (45,2 mg N kg-1). Estes resultados são,
sobretudo, consequência das diferenças observadas nos teores de N-NH4+ nestas
modalidades: 14,1 e 4,7 mg N-NH4+ kg-1 solo para a LD e LDcal, respectivamente
(Quadro 6). A estabilização de lamas com cal provoca um aumento de pH e promove
a volatilização de NH3 a partir da lama, reduzindo o seu teor de NH4+
(Arthurson, 2008). De facto, a LDcal utilizada neste ensaio tinha um teor de N-
NH4+ de 0,2 g kg-1, muito inferior ao da LD, 2,5 g kg-1, o que justifica as
diferenças observadas no tempo zero.
Quadro 6 - Valores médios do N amoniacal (mg N-NH4+ kg-1 solo) nas diferentes
modalidades, nos primeiros 28 dias de incubação.
Na modalidade LDcal, ocorreu um aumento acentuado do azoto mineral nos
primeiros 3 dias de incubação, tendo passado de 45,2 (tempo zero) para 62,1 mg
N kg-1 no terceiro dia (Quadro_5). Assim, a estabilização da lama digerida com
cal criou condições para uma mais rápida mineralização do azoto orgânico
presente nessa lama, o que está em concordância com a maior actividade
microbiana observada na modalidade LDcal no início da incubação, quando
comparada com a modalidade LD (Figura_1).
A mineralização líquida aparente do azoto (MLAN), corresponde à quantidade de
azoto orgânico aplicado através das lamas que é mineralizado durante o período
em que decorre a incubação e, neste trabalho, foi expressa em percentagem do
azoto orgânico veiculado pelas lamas. No Quadro 7 apresentam-se os valores
médios obtidos para as diferentes lamas ao fim de 140 dias de incubação.
Quadro 7 - Quantidade de N orgânico (Norg) aplicado através das lamas (mg N kg-
1 solo) e mineralização líquida aparente do azoto (MLAN, %)
A LM foi a que apresentou uma menor percentagem de mineralização do N (8,7%).
Este facto, está de acordo com os resultados anteriormente obtidos e resulta do
facto de se tratar de material orgânico não estabilizado com uma razão C/
N superior à das restantes lamas. A LD apresentou uma percentagem de
mineralização do azoto de 20,8% durante 20 semanas de incubação. O valor obtido
está dentro das gamas de valores referidos por diferentes autores para a
mineralização do azoto orgânico presente em lamas de ETAR. Presley et al.
(2009) referem uma gama de 10 a 50%, Dias (2004) refere, para lamas anaeróbias,
taxas de mineralização de azoto de 20 a 40%, enquanto que Epstein (2003)
observou percentagens de mineralização de azoto que variaram entre 14 e 25% em
incubações de lamas anaeróbias durante 13 semanas. No entanto, o valor obtido é
inferior ao referido por Cogger (2007) que recomenda que nos planos de
fertilização se considere uma taxa de mineralização entre 30 e 40% para lamas
anaeróbias frescas.
Relativamente à LDcal, verifica-se que a estabilização com cal aumentou a
mineralização do azoto orgânico para 39,2%, valor que é cerca do dobro do
obtido para a LD (20,8%). Apesar de na bibliografia consultada não se terem
encontrado referências relativas ao efeito da estabilização com cal na
mineralização do azoto das lamas, à semelhança do referido para a mineralização
do carbono, a estabilização da lamas com cal poderá ter provocado uma
decomposição química de alguns compostos orgânicos, tornando-os mais facilmente
mineralizáveis pelos microrganismos do solo, e uma melhoria das propriedades do
solo, que terá favorecido a actividade dos microrganismos decompositores.
CONCLUSÕES
Dos 3 tipos de lamas estudados neste ensaio, a lama digerida anaerobicamente
(LD) foi a que, após a aplicação ao solo, originou menores emissões de CO2 e,
consequentemente, a que mais contribuiu para o sequestro de carbono no solo.
Por outro lado, o solo tratado com LD apresentou teores de azoto mineral
elevados durante todo o período de incubação, o que corresponde a uma elevada
disponibilidade de N para as plantas.
A estabilização da lama digerida anaerobicamente com cal (LDcal) reduziu o seu
teor de teor NH4+ e consequentemente, o teor de azoto mineral no solo
imediatamente após a aplicação desta lama (tempo zero). No entanto, a
estabilização com cal estimulou a mineralização do azoto orgânico da lama, o
que se traduziu em teores minerais de azoto no solo tratado com LDcal idênticos
aos do solo tratado com LD, logo a partir do terceiro dia de incubação.
Contudo, a contribuição da LDcal para o sequestro de C no solo foi bastante
inferior à da LD.
As elevadas emissões de CO2 e a imobilização inicial de azoto observadas no
solo tratado com LM, indicam que estas lamas contêm quantidades apreciáveis de
matéria orgânica não estabilizada. Por este motivo será recomendada uma prévia
estabilização destas lamas, antes da sua aplicação ao solo.