Cancro da próstata: afinal qual o valor do rastreio?
CLUBE DE LEITURA
Cancro da próstata: afinal qual o valor do rastreio?
Célia Silva
USF da Cova da Piedade ACES de Almada
Sandblom G, Varenhorst E, Rosell J, Löfman O, Carlsson P. Randomised prostate
cancer screening trial: 20 year follow-up. BMJ 2011 Maar 31; 342: d1539. doi:
10.1136/bmj.d1539
Introdução
A questão do uso do PSA como marcador de detecção precoce do cancro da próstata
tem vindo a gerar controvérsia, especialmente após um estudo escandinavo que
comparou a prostatectomia radical com uma abordagem expectante, concluindo
ambos como aceitáveis. Outros dois grandes estudos - PLCO (The Prostate, Lung,
Colorectal and Ovarian Cancer Screening Trial) e ERSPC (European Randomised
Study of Screening for Prostate Cancer) - propuseram-se a encontrar evidência a
favor ou contra ao rastreio com vista a diminuir a mortalidade por cancro da
próstata, mas não encontraram evidência inequívoca para o uso do PSA. No ERSPC
foi demonstrada uma melhoria na mortalidade específica por cancro da próstata,
mas com uma elevada taxa de sobrediagnóstico e sobretratamento. No entanto, no
PLCO não foi demonstrado benefício no rastreio (através da diminuição da
mortalidade), possivelmente pela curta duração de follow up. No sentido de
esclarecer a utilidade do rastreio do cancro da próstata, em 1987 (ainda antes
do surgimento do PSA) foi iniciado na Suécia o estudo que agora apresenta os
seus resultados, inicialmente apenas realizando o rastreio através do toque
rectal. Só posteriormente foi introduzido o PSA como método de rastreio
combinado com o toque rectal. O principal outcome utilizado foi a mortalidade
20 anos após o início do estudo.
Métodos
Em 1987 foram identificados, através do Registo Populacional Nacional Sueco,
todos os homens com idade entre 50-69 anos na cidade de Norrköping (Suécia),
correspondendo a um total de 9026 homens. Desses, 1494 integraram o grupo de
intervenção e os restantes o grupo controlo. O rastreio foi aplicado em quatro
períodos de rastreio distintos. No primeiro e segundo o rastreio foi realizado
através de toque rectal. O PSA foi introduzido como método adicional no 3.o e
4.o períodos de rastreio, admitindo-se um cutt off <4µg/L.
Na última série de rastreios realizados foram incluídos apenas os homens que
nessa altura tinham idade igual ou inferior a 69 anos (N=606). Na análise
final, foram incluídos todos os homens.
Quando após rastreio havia suspeita de cancro da próstata os homens eram
submetidos a biopsia aspirativa. Se existisse um nódulo palpável, procedia-se a
biópisa directa. Naquelas com citologia positiva era programado seguimento por
um urologista, realização de PSA, ecografia prostática transrectal e
cintigrafia óssea. O tratamento foi realizado de acordo com o preconizado na
região.
Resultados
No primeiro período de rastreio (1987) foram efectivamente rastreados 78%
(1161/1492) dos homens; em 1990, 70% (957/1363); em 1993, 74% (895/1210) e, em
1996, os homens nascidos antes de 1927 não foram incluídos. Assim, foram
incluídos 606 dos quais apenas 74% foram rastreados (446/606).
No grupo rastreado foram detectados 85 casos de cancro da próstata (43 na
altura do rastreio e 42 no período inter-rastreio) e 292 no grupo de controlo.
A percentagem de tumores localizados foi significativamente maior no grupo
rastreado (p< 0,001). A percentagem de tumores invasivos foi de 2,5% no grupo
rastreado e de 2,8% no grupo de controlo (p=0,44).
A mortalidade específica por cancro da próstata foi 35% nos homens rastreados e
de 45% nos homens do grupo de controlo.
Não houve diferença significativa na sobrevida após cancro da próstata (p=
0,065) ou na mortalidade global (p=0,14) no grupo rastreado.
Discussão
Neste estudo, o rastreio do cancro da próstata não revelou ter efeito
significativo na mortalidade, após um período de seguimento de 20 anos. A
população do estudo foi mais pequena do que a dos estudos com que se compara.
No entanto, o follow up foi maior, assim como a adesão.
No grupo rastreado a incidência do cancro de próstata foi mais elevada (à custa
de muitos tumores subclínicos, o que não se reflete na sobrevida) mas os
tumores foram mais pequenos e localizados que no grupo de controlo. Assim,
apesar do toque rectal e do PSA serem efectivos na detecção precoce do cancro
da próstata, conduzem a uma elevada taxa de sobrediagnóstico, que deve ser
considerada no custo do rastreio.
O risco relativo de morte específica por cancro prostático obtido neste estudo
(1,16, com 95% confiança para um intervalo de 0,78-1,73) permite concluir que o
rastreio e o tratamento não reduzem a mortalidade em mais de 1/3 em relação ao
grupo de controlo, tendo como efeitos colaterais elevadas taxas de
sobrediagnóstico e sobretratamento (também verificado no ERSPC e PLOT).
Em suma, para prevenir uma morte por cancro da próstata teremos que rastrear
141 homens e tratar 48.
Assim, antes de rastrear, o homem assintomático deve ser informado acerca das
consequências do tratamento se for diagnosticado um cancro da próstata, bem
como das implicações da biópsia (efeitos psicológicos, falsos positivos, etc.).
O desafio é encontrar métodos de rastreio que distingam tumores agressivos dos
indolentes, desenvolvendo formas terapêuticas menos agressivas para estes.
Conclusão
O risco relativo para a morte devida a cancro da próstata (1,16) não indica que
haja benefício no rastreio. Fica a ressalva de que a população no estudo não
permite retirar conclusões definitivas mas tem força para demonstrar diferenças
na sobrevida por cancro da próstata.
Comentário
De acordo com o Portal da Oncologia Português, o cancro da próstata é o tipo de
cancro mais frequente no homem (cerca de 4000 novos casos), em Portugal. Um em
cada seis homens terá o diagnóstico numa qualquer fase da sua vida mas só um em
33 virá a morrer por esse motivo. A sobrevida aos cinco anos aproxima-se dos
100%.1 A discrepância entre incidência e mortalidade parece resultar do facto
do comportamento do tumor ser variável e na maior parte dos casos ser indolente
e não causar manifestações clínicas
Grande parte dos cancros de próstata não se torna clinicamente evidente, de
acordo com dados de autópsias em que o cancro de próstata é detectado em mais
de 1/3 dos homens com 70-79 anos e 2/3 dos homens com mais de 80 anos.2 Assim,
o crescimento tumoral pode ser tão indolente que a causa de morte acabará por
ser outra.
A disseminação da informação relativa aos rastreios de cancro tem sido
crescente e o apelo para que seja solicitado um PSA anual acompanha esse
crescimento. O medo de ter cancro, ou de morrer de cancro, potencializado pela
informação que vai sendo veiculada, faz com que ao médico de família cheguem os
pedidos para que seja feito o rastreio, solicitando o PSA.
A introdução do PSA (inicialmente utilizado como marcador tumoral) conduziu ao
aumento da incidência de cancro da próstata, na sua maioria localizado.3 No
entanto, isso condicionou aumento das intervenções terapêuticas dirigidas ao
tratamento destes tumores que possivelmente não iriam ter tradução clínica.
Alguns estudos demonstram as desvantagens do tratamento agressivo: disfunção
eréctil, incontinência urinária e problemas intestinais. Estes também
demonstram que a elevação do PSA pode preceder o tumor em 5-10 anos, mas a sua
ocorrência pode verificar-se noutro grande conjunto de doenças.3 A realização
de biopsias prostáticas em homens com PSA elevado pode detectar incidentalmente
tumores que não eram a causa da elevação do PSA. Uma revisão considera mesmo
que 25% dos tumores detectados em biópsias motivadas por elevação do PSA não
eram a causa de elevação deste.4
Um outro achado relevante é que medições seriadas do PSA diminuem o seu valor
preditivo positivo (30%, se PSA>4ng/mL) e valor preditivo negativo (85% se PSA
≤ 4ng/mL). A resposta ao apelo dos utentes para doseamento seriado do PSA
(anual) é um dos maiores desafios da prática clínica.4
São várias as técnicas que foram desenvolvidas para aumentar a acuidade do PSA
no rastreio do cancro da próstata: PSA livre, PSA total, densidade do PSA, etc.
No entanto, não há consenso relativamente ao uso de uma destas formas no
rastreio, assim como nenhuma mostrou reduzir o número de biópsias
desnecessárias ou melhoria dos outcomes.3 O desafio parece ser encontrar novos
marcadores que tenham maior acuidade para distinguir as formas agressivas que
justificam intervenção também mais agressiva.4