Rastreio de cancro do pulmão com TAC de baixa-dose: redução da mortalidade
contrabalançada por danos importantes
CLUBE DE LEITURA
Rastreio de cancro do pulmão com TAC de baixa-dose: redução da mortalidade
contrabalançada por danos importantes
Lung cancer screening with low-dose CT: reduction in mortality counterbalanced
by important harm
Bruno Heleno*
*General Practice Research Unit, Universidade de Copenhaga
The National Lung Screening Trial Research Team. Reduced Lung-Cancer Mortality
with Low-Dose Computed Tomographic Screening. N Engl J Med. 2011 Jun;365(5):
395–409.
O 'National Lung Screening Trial' (NLST) foi realizado para
determinar se o rastreio com TAC de baixa-dose podia reduzir a mortalidade do
cancro do pulmão.
Métodos
753.454 pessoas com risco elevado de cancro do pulmão (grandes-fumadores,
actuais ou ex-fumadores, sem sintomas, sinais ou antecedentes de cancro do
pulmão, com idade compreendida entre os 55 e os 74 anos), sem TAC torácica nos
18 meses anteriores, foram aleatorizadas (sem descrição da ocultação da
sequência de aleatorização) a três rastreios anuais (1 de prevalência e 2 de
incidência), ou com TAC de baixa dose (grupo TAC: 26.722 participantes) ou
radiografia do tórax posteroanterior simples (grupo RX: 26.732). As imagens
foram interpretadas por radiologistas muito experientes em unidades académicas.
Os nódulos não calcificados com 4mm na TAC ou qualquer nódulo ou massa não
calcificados no RX eram considerados suspeitos para neoplasia (embora, no
terceiro ciclo, se as imagens fossem estáveis, seriam consideradas como
alteração minor). O resultado principal era a mortalidade por cancro do pulmão,
que era avaliada através de questionários anuais aos participantes (com
contacto a parentes próximos caso os questionários não fossem devolvidos) e
ligação ao registo nacional de óbitos. Entre os resultados secundários,
salienta-se a mortalidade global, a incidência de cancro do pulmão e os
procedimentos a montante do rastreio. Uma comissão independente, sem
conhecimento do método de rastreio, verificou todos os óbitos.
Resultados
Os participantes do NLST eram mais jovens, mais escolarizados e com maior
proporção de ex-fumadores que a generalidade da população americana. A mediana
do seguimento foi de 6,5 anos. A adesão ao rastreio foi de 95% no grupo-TAC e
93% no grupo-RX. As perdas do seguimento foram de 3% no grupo-TAC e 4% no grupo
RX. Dos participantes no grupo-RX, 4,3% fizeram um TAC fora do ensaio clínico.
Trinta e nove por cento dos participantes no grupo-TAC e 16% no grupo-RX
tiveram pelo menos um exame positivo. A maioria dos testes eram falsos
positivos (96,4% no grupo-TAC e 94,5% no grupo-RX). A incidência de cancro do
pulmão foi significativamente mais alta no grupo-TAC (razão de taxas 1,13;
Intervalo de Confiança a 95% [IC95], 1,03 a 1,23) com 1060 cancros (645 casos
por 100.000 pessoas-ano) versus 941 cancros (572 casos por 100.000 pessoas-ano)
no grupo-RX. A mortalidade por cancro do pulmão era menor no grupo TAC (RRR
20,0%; IC95 6,8 a 26,7%; P = 0,004; 247 mortes por cancro do pulmão por 100.000
pessoas ano no grupo-TAC e 309 mortes por 100.000 pessoas anos no grupo-RX). A
redução relativa da taxa de morte por todas as causas foi menor no grupo-TAC
(6,7%; IC95 1,2 a 13,6; P=0,02; 1877 mortes no grupo-TAC e 2000 mortes no
grupo-RX).
Conclusões
O rastreio com TAC de baixa dose reduz a mortalidade por cancro do pulmão.
Comentário
Este artigo apresenta a primeira análise a longo prazo de um programa de
rastreio de cancro do pulmão com TAC de baixa dose numa população de alto
risco.1 Convertendo os resultados deste ensaio clínico para frequências
naturais,2 ao fim de 6,5 anos após início de rastreio do cancro do pulmão com
TAC de baixa dose, em 1000 fumadores (actuais ou ex-fumadores) entre os 55 e 74
anos haverá 70 mortes, das quais 13 serão devidas a cancro do pulmão. Desses
1000, 40 serão diagnosticados com cancro do pulmão (24 desses diagnósticos
serão consequência do rastreio, 2 após um exame de rastreio negativo e os
restantes 14 fora do programa de rastreio); mas 391 terão tido pelo menos um
exame de rastreio positivo, 37 submeter-se-ão a um exame diagnóstico invasivo,
27 serão operados e 9 terão uma complicação não-fatal decorrente de um exame ou
da cirurgia.
Quando comparado com a alternativa estudada, rastreio com RX, isto significa
menos 5 mortes, das quais 3 relacionadas com cancro do pulmão. No entanto,
existirão mais 231 pessoas com pelo menos um falso positivo, mais 22 submeter-
se-ão a um exame diagnóstico invasivo (das quais, pelo menos 8 em pessoas sem
cancro), 18 cirurgias adicionais (das quais, pelo menos 4 em pessoas sem
cancro) e mais 6 complicações não fatais de procedimentos a montante do
rastreio. Além disso, ao fim de 6,5 anos de seguimento, mais quatro pessoas
saberão que têm um cancro do pulmão. Desconhecem-se as consequências
psicossociais e o impacto na qualidade de vida.
Metodologicamente, os autores procuraram evitar a maioria dos vieses
identificados noutros ensaios clínicos relacionados com programas de rastreio
(viés de detecção, desempenho, contaminação, de avanço de tempo, etc.). A
exclusão de indivíduos com TAC torácica nos 18 meses anteriores permite evitar
a diluição do efeito do rastreio (o TAC torácico prévio funcionaria como
detecção oportunística prévia). Todavia, exclui também pessoas com
comorbilidades que necessitam de TAC, acentuando o efeito de "voluntário
saudável", já de si presente no viés de auto-selecção e reconhecido pelos
autores. É difícil prever o sentido deste viés, mas é admissível que uma
população mais saudável pode subestimar a magnitude do benefício e do dano.
O principal problema deste ensaio é a escolha do comparador: o RX de tórax
anual. Este procedimento não representa os "cuidados habituais", o
que dificulta a generalização destes resultados. Por outro lado, existe prova
científica que não tem qualquer benefício na mortalidade e está associado a
dano (aumento de mortalidade global).3 Por este motivo, apesar de não levar a
uma subestimativa do benefício, pode levar a uma subestimativa dos danos. Por
exemplo, o Mayo Lung Project foi um ensaio clínico sobre o papel do RX de tórax
no rastreio de cancro com pulmão e é um dos principais exemplos do conceito de
sobrediagnóstico.4,5 Considera-se sobrediagnóstico a detecção de cancros que
nunca teriam manifestação clínica, ou por serem de tal forma indolentes que não
causariam sintomas, ou por existirem causas alternativas de morte (por exemplo,
um doente com cancro da próstata morre de AVC antes da neoplasia se manifestar
clinicamente).
Neste ensaio, as películas eram examinadas em centros de referência, por
imagiologistas muito experientes. As consequências da implementação de um
programa de rastreio não regulamentado e sem uma estrutura de garantia de
qualidade são imprevisíveis. Quando comparados com os resultados preliminares
de outros ensaios clínicos do rastreio com TAC,6,7 observamos que a incidência
de resultados positivos varia extraordinariamente (NLST 39,1%, DANTE 15,6%,
DLCST 7,9%). Possivelmente, estas diferenças estão relacionadas com os
protocolos de interpretação de imagem ou com práticas mais ou menos defensivas.
No NLST o protocolo considerava positivas imagens ≥4mm e os exames eram vistos
por um único imagiologista. No Danish Lung Cancer Screening Trial (DLCST) eram
consideradas positivas imagens ≥5mm e por consenso de 2 imagiologistas. De
qualquer forma, as consequências do rastreio dependerão muito do desempenho do
TAC de baixa dose (sensibilidade, especificidade, concordância inter-
observador). No contexto português, com a realização dos exames dispersa em
múltiplas entidades convencionadas, será um desafio para as entidades
reguladoras conseguirem estabelecer critérios de qualidade uniforme.
Mais uma vez, na medicina preventiva, para que poucos beneficiem muito (5
mortes evitadas em 1000), muitos vão ter danos de gravidade variável (231
pessoas em 1000 com pelo menos um falso positivo vão ter procedimentos a
montante). Espera-se que as associações profissionais e as de doentes comecem a
fazer recomendações pró ou contra o rastreio de acordo com a sua interpretação
da prova científica, valores dominantes ou outros interesses. Independentemente
da adopção do rastreio pelas organizações governamentais, a tecnologia está já
disponível e pode ser "comprada". Isto significará mais desafios
para o médico de família: ajudar os cidadãos a fazer escolhas que reflictam os
seus valores, a lidar com os resultados positivos dos exames, acompanhar nas
consequências do diagnóstico de cancro (sobrediagnosticado ou não).8 Isto para
além de lidar com mal-entendidos (por exemplo, pedidos de TAC de alta definição
para rastreio) ou com diferenças de ponto de vista entre especialidades.