Anti-hipertensor no doente diabético, qual o melhor período do dia para a sua
toma?
CLUBE DE LEITURA
Anti-hipertensor no doente diabético, qual o melhor período do dia para a sua
toma?
Influence of time of day of blood pressure-lowering treatment on cardiovascular
risk in hypertensive patients with type 2 diabetes.
Mara Galhardo,* Joana Barros**
*Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde
Familiar Dunas, ULS Matosinhos
**Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde
Familiar Maresia, ULS Matosinhos
Hermida RC, Ayala DE, Mojón A, Fernández JR. Influence of time of day of blood
pressure-lowering treatment on cardiovascular risk in hypertensive patients
with type 2 diabetes. Diabetes Care 2011 Jun; 34 (6): 1270-6.
Introdução
O ritmo circadiano contribui para a variação do padrão de pressão arterial (PA)
ao longo das 24 horas, assim como interfere nos mecanismos farmacocinéticos e
farmacodinâmicos de vários fármacos. Deste modo não é surpreendente que o
período do dia na toma de um determinado anti-hipertensor possa influenciar de
diferente forma este padrão. Este mesmo efeito já foi verificado em várias
classes terapêuticas, nomeadamente inibidores da enzima de conversão da
angiotensina e antagonistas dos receptores da angiotensina, cuja toma no
período da tarde em comparação com a toma de manhã resultou num melhor controlo
terapêutico da pressão arterial média nocturna (PAMN), independentemente da
semi-vida do fármaco. O impacto da cronoterapia na PAMN parece ser clinicamente
importante, já que vários estudos prospectivos têm vindo a demonstrar que a
PAMN é um melhor preditor do risco cardiovascular relativamente à pressão
arterial média diurna (PAMD) e à pressão arterial média nas 24 horas. Este
facto ganha maior relevância na população com diabetes mellitus tipo 2 (DM 2),
na qual a hipertensão arterial nocturna não é apenas extremamente frequente
como altamente prevalente (atingindo cerca de 70 % da população de acordo com
alguns estudos).
Todos os estudos previamente realizados, na tentativa de avaliar o efeito da
cronoterapia no risco cardiovascular, baseavam-se apenas numa avaliação inicial
da monitorização ambulatória da pressão arterial de 24 horas (MAPA), não
contando por isso com as variações do padrão e do nível da PA durante os
períodos de follow-up, e desta forma não permitindo esclarecer qual a
influência da cronoterapia no risco cardiovascular.
O principal objectivo deste estudo foi investigar se em doentes hipertensos e
com DM 2 a ingestão de pelo menos um anti-hipertensor ao deitar permite um
melhor controlo da PA e uma redução do risco cardiovascular comparativamente à
terapêutica convencional (ingestão de toda a medicação anti-hipertensora ao
acordar).
Métodos
Neste sub-estudo, do estudo MAPEC (Monitorización Ambulatória para Predicción
de Eventos Cardiovasculares) foram incluídos indivíduos pertencentes à
população activa (no período diurno) espanhola, com 18 ou mais anos de idade,
diagnóstico de DM 2 e Hipertensão Arterial (HTA) de acordo com os critérios de
diagnóstico por MAPA. Foram critérios de exclusão: gravidez, história pessoal
de abuso de drogas ou álcool, actividade laboral por turnos, HTA secundária,
diabetesmellitus tipo 1, doença cardiovascular (nomeadamente angina instável,
insuficiência cardíaca, arritmia grave, nefropatia, retinopatia grau III-IV) e
intolerância à realização da MAPA.
Participaram neste estudo 448 indivíduos. Foi estabelecido pelos investigadores
um período mínimo de follow-upde 6 meses para cada doente e um médio de 5 anos.
O diagnóstico de HTA na avaliação inicial foi baseado nos critérios da MAPA e
incluía também uma história clínica detalhada, realização de electrocardiograma
e colheita de amostras de sangue e urina.
Este é um estudo prospectivo, aleatorizado, ocultado apenas para o end-point
primário, em que os participantes foram distribuídos por dois grupos
terapêuticos: um constituído por 232 doentes que ingeriram toda a medicação
anti-hipertensora ao acordar e outro constituído por 216 doentes que ingeriram
pelo menos um anti-hipertensor ao deitar. Esta aleatorização foi feita
separadamente para cada classe de medicação anti-hipertensora o que assegurou
que a proporção de doentes tratados com cada classe de anti-hipertensor fosse
semelhante nos dois grupos terapêuticos.
A reavaliação, com procedimentos semelhantes à avaliação inicial, era agendada
trimestralmente no caso de mau controlo tensional com necessidade de ajuste
terapêutico, caso contrário efectuava-se anualmente, momento em que a adesão ao
esquema terapêutico era também avaliada por entrevista pelos investigadores.
A avaliação da morbilidade e mortalidade cardiovascular era feita através do
registo dos eventos de morte, enfarte do miocárdio, angina de peito,
revascularização coronária, insuficiência cardíaca, oclusão arterial aguda dos
membros inferiores, oclusão trombótica da artéria retiniana, acidente vascular
cerebral isquémico e hemorrágico e acidente isquémico transitório.
Resultados
Na avaliação inicial, entre os dois grupos terapêuticos não existiam diferenças
estatisticamente significativas relativamente à prevalência de apneia
obstrutiva do sono, síndroma metabólico, microalbuminúria ou outras variáveis
antropométricas e laboratoriais. Relativamente aos parâmetros de PA também não
se verificaram diferenças significativas.
Estabelecendo uma comparação entre a avaliação inicial e a última avaliação
após follow-up, verificou-se que o grupo tratado com pelo menos um anti-
hipertensor ao deitar apresentou uma PAMN significativamente inferior à do
grupo tratado com todos os anti-hipertensores ingeridos pela manhã. Esta
diferença permitiu um melhor controlo da PA em ambulatório no grupo com
ingestão de pelo menos 1 anti-hipertensor ao deitar (62.5 %) em comparação com
o grupo que ingeria toda a medicação de manhã (50.9%), uma vez que entre os
dois grupos não se verificaram diferenças no que diz respeito à PAMD. Outra
importante diferença encontrada no padrão de PA diz respeito ao perfil não-
dipper, verificando-se uma menor proporção de doentes não-dipper no grupo
terapêutico que ingeria pelo menos um anti-hipertensor ao deitar (49.5%) versus
o grupo terapêutico que ingeria toda a medicação anti-hipertensora ao acordar,
diferença esta estatisticamente significativa.
Relativamente ao objectivo primário do estudo, verificou-se que o grupo tratado
com pelo menos um anti-hipertensor ao deitar apresentava um risco inferior de
eventos cardiovasculares totais, diferença particularmente relevante nos
eventos cardiovasculares major (acidente vascular cerebral isquémico ou
hemorrágico, enfarte agudo do miocárdio e morte por eventos cardiovasculares):
hazard ratio 0.25 [intervalo confiança 95%: 0.10'0.61] comparativamente com
grupo tratado com toda a medicação anti-hipertensora ao acordar.
A análise por regressão de Cox da influência das alterações da PA ambulatória
no risco cardiovascular, ajustada para a idade e sexo, revelou que a diminuição
progressiva da PAMN estava mais significativamente associada a uma sobrevida
livre de eventos (12 e 23% de redução do risco por cada 5 mm Hg de redução na
PAMN sistólica e diastólica respectivamente, p<0.001) que qualquer um dos
outros parâmetros de PA avaliados.
Conclusão
A utilização de pelo menos um anti-hipertensor ao deitar permitiu um melhor
controlo da PA avaliada por MAPA em doentes hipertensos e com DM 2. Os efeitos
da cronoterapia, com melhor controlo da PAMN, revelaram-se associados a um
menor risco cardiovascular e a um aumento da sobrevida livre de eventos
cardiovasculares. De facto a redução progressiva da PAMN quando comparada com
os outros parâmetros de PA mostrou ser o factor preditor de sobrevida mais
significativo. Este estudo vem assim corroborar alguns já anteriormente
publicados, que apresentam a cronoterapia como o mecanismo mais custo-efectivo
e uma estratégia simples para um melhor controlo da PAMN e o restabelecimento
do padrão normal de variação da PA ao longo das 24 horas. Conclui-se também
deste estudo, e de acordo com o seu objectivo principal, que a maior taxa de
sobrevida sem eventos verificada no grupo com ingestão de pelo menos um anti-
hipertensor ao deitar, se relaciona inevitavelmente com o melhor alcance destes
novos alvos terapêuticos na HTA.
Comentário
O período do dia de ingestão de medicação anti-hipertensora nunca foi
investigado como uma variável com potencial para influenciar o risco
cardiovascular, faltando por isso evidência científica que consubstancie o seu
uso preferencial de manhã, um hábito tão usual na nossa prática clínica. O
padrão de variação da PA ao longo das 24 horas, com níveis pico após acordar e
níveis nocturnos mais baixos, pode ser visto como uma justificação para o
tratamento com preferência pela ingestão matinal. Contudo, este padrão não
caracteriza todos, nem sequer a maioria dos doentes hipertensos. Um padrão não-
dipper não é só comum como altamente predominante nos idosos, diabéticos e
doentes com hipertensão arterial resistente.1,2,3,4
Este estudo mostra-se interessante por demonstrar pela primeira vez que, em
doentes com DM 2, a administração de pelo menos um medicamento anti-hipertensor
ao deitar em comparação com a ingestão de toda a medicação anti-hipertensora ao
acordar não melhora apenas o controlo da PA em ambulatório, mas reduz
significativamente o risco cardiovascular essencialmente pelo seu feito na
PAMN. Esta última pode então emergir como um novo alvo terapêutico.
Alguns aspectos apresentam-se como potenciais limitações: o reduzido tamanho
amostral (apesar de suficiente de acordo com os cálculos elaborados à priori)
condiciona a impossibilidade de tirar qualquer tipo de conclusões relativamente
ao efeito das diferentes classes ou associações terapêuticas na redução do
risco cardiovascular com ingestão de anti-hipertensor ao deitar. O desenho de
estudo prospectivo, apenas ocultado para o end-point primário, pode ser
encarado também como um ponto menos forte neste estudo ainda que paradoxalmente
uma das suas mais-valias, dado que mimetiza a nossa prática clínica diária.
Importante ainda salientar que os autores do estudo não declaram qualquer tipo
de conflito de interesses.