Alterações climáticas na Europa: efeito nas doenças parasitárias humanas
Introdução
A compreensão dos principais impactes das alterações climáticas na saúde humana
a médio e longo prazo é fundamental para o desenvolvimento de medidas de
adaptação que permitam ao Homem precaver-se e minimizar esses impactes.
Neste sentido, no presente trabalho pretendeu-se fazer uma revisão da
literatura científica, com vista a determinar quais os impactes nas doenças
parasitárias humanas na Europa resultantes da mudança global do clima. Tendo em
conta o vasto número de doenças parasitárias, a presente revisão incidirá
naquelas cujo impacte das alterações climáticas se estima que venha a ser mais
significativo.
1. Alterações climáticas
Desde sempre a Terra tem estado sujeita a variações climáticas que se
manifestam em ciclos relativamente definidos, variando entre períodos glaciares
frios e períodos interglaciares relativamente quentes. A origem destas
variações tem sido associada a causas naturais, como pequenas variações na
órbita da Terra em torno do Sol, variações na posição do eixo de rotação da
Terra, flutuações na actividade solar e períodos de maior actividade vulcânica
(Santos e Miranda, 2006).
No entanto, nos últimos 100 anos, tem-se verificado um aumento anormal da
temperatura, tanto no valor como na rapidez com que este tem ocorrido,
excedendo largamente as variações climáticas naturais dos últimos 1000 anos.
Segundo a definição do Quarto Relatório de Avaliação do Painel
Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), entendem-se por
alterações climáticas (AC) qualquer alteração do clima ao longo do tempo, quer
seja devido a variabilidade natural ou como resultado da actividade humana
(Solomon et al.,2007). De acordo com este relatório, a origem do aquecimento
global observado a partir da segunda metade do século XX tem estado associada à
intensificação do efeito de estufa. Esta intensificação tem por base o aumento
da emissão de gases com efeito de estufa resultante da actividade
antropogénica.
Com a revolução industrial, a concentração atmosférica de gases com efeito de
estufa (GEE) aumentou acentuadamente. Gases como o dióxido de carbono (CO2), o
metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) são alguns dos GEE cuja concentração mais
tem aumentado ao longo dos anos. Segundo dados do IPCC (2007a), a concentração
global de dióxido de carbono aumentou de um valor pré-industrial de 280 ppm
(partes por milhão) para 379 ppm em 2005, devendo-se este aumento
principalmente à queima de combustíveis fósseis - carvão, petróleo e gás
natural - e outras alterações no uso dos solos, como a deflorestação. O
aumento global da concentração de metano e óxido nitroso ocorreu principalmente
devido à agricultura, registando-se para o metano uma concentração atmosférica
em 2005 que excede de longe a variação natural dos últimos 650 000 anos
(Solomon et al.,2007).
Como consequência da intensificação do efeito de estufa, as diferentes
variáveis climáticas são afectadas, sendo projectadas várias alterações no
sistema climático global. Para 2100, projecta-se um aumento da temperatura
média global entre os 1,4°C e 5,8°C relativamente à média de 1961 e 1990,
aumento este que será mais acentuado nas regiões continentais do que nos
oceanos, perturbando o actual regime de monções e as chuvas que lhe estão
associadas. Projecta-se ainda o aumento do nível médio do mar e o aumento da
frequência de fenómenos extremos, como ondas de calor ou de frio, episódios de
precipitação muito intensa e secas mais frequentes e severas, assim como
ciclones tropicais mais intensos (Santos e Miranda, 2006).
Como têm sido verificadas nas últimas décadas, algumas dessas tendências são já
evidentes, sendo inequívoco o actual aumento das temperaturas médias globais do
ar e do oceano, a ampla distribuição global do degelo e o aumento do nível
médio do mar por meio da expansão térmica das camadas superficiais do oceano e
da fusão dos gelos das regiões montanhosas (Solomon et al., 2007).
Dado que as AC de origem antropogénica foram inevitáveis no século XX e que os
seus impactes sobre os sistemas naturais e sociais serão na maior parte dos
casos negativos, torna-se urgente elaborar e pôr em prática respostas adequadas
que minimizem esses efeitos. Essas respostas terão de passar inevitavelmente
pela mitigação das emissões actuais e futuras de GEE e por medidas de adaptação
que minimizem os impactes negativos das AC.
2. Alterações climáticas na Europa
Face a modelos matemáticos que simulam o sistema climático terrestre, incluindo
a atmosfera e os oceanos, tendo por base as interacções existentes entre os
diversos processos físicos, químicos e biológicos que determinam o clima,
prevê-se que quase todas as regiões da Europa sejam afectadas pelas AC, sendo
previsível que os impactes negativos sejam superiores aos positivos e que, duma
maneira geral, se traduzam em diferenças regionais mais acentuadas.
Como principais impactes negativos, é expectável a continuação do aumento da
temperatura, o aumento do risco de cheias rápidas e de inundação da costa, o
aumento de erosão provocado por tempestades e aumento do nível do mar, o
retrocesso dos glaciares nas regiões montanhosas, bem como a redução da área
coberta por neve e a associada diminuição do turismo de Inverno (Parry et al.,
2007). Relativamente aos ecossistemas terrestres e à sua biodiversidade,
espera-se que haja, em geral, um deslocamento dos ecossistemas para Norte e
para maiores altitudes e uma perda de biodiversidade mais acentuada no Sul do
que no Norte da Europa, o que resultará muito provavelmente numa diminuição da
capacidade de migração e adaptação dos ecossistemas às AC (Santos e Miranda,
2006).
No Sul da Europa, prevê-se que as AC tornem as condições adversas (temperaturas
altas e seca) mais rigorosas, que haja diminuição da quantidade de água
disponível, de energia hídrica e do turismo de Verão, bem como o aumento de
risco da degradação das condições de saúde devido a ondas de calor e ao aumento
da frequência de incêndios (Parry et al., 2007).
Para a Europa Central e de Leste, está associada a diminuição da pluviosidade
de Verão, causando maior stresshídrico, o aumento de risco da degradação das
condições de saúde devido a ondas de calor, diminuição da produtividade
florestal e o risco de aumento da frequência de incêndios das culturas (Parry
et al., 2007).
No Norte da Europa, prevê-se, numa primeira fase, que os impactes sejam
positivos, com a necessidade de gastar menos energia em aquecimento, com o
aumento da produtividade das colheitas e com o crescimento florestal. No
entanto, à medida que as AC se intensificarem, prevê-se que os impactes
negativos se sobreponham aos positivos, traduzindo-se em cheias de Inverno mais
frequentes, ecossistemas em perigo e o aumento da instabilidade do solo (Parry
et al., 2007).
3. Impacte das alterações climáticas na saúde
As alterações no clima global influenciam o funcionamento de muitos
ecossistemas e das suas espécies, como tal, é expectável que as AC ao longo das
próximas décadas venham a ter consequências na saúde das populações humanas.
Apesar de ser considerada uma prioridade para a investigação e para a
elaboração de medidas de acção do século XXI, ainda se sabe muito pouco sobre o
potencial impacte das AC na saúde humana.
Do que se sabe, prevê-se que, embora alguns desses impactes sejam positivos,
como a diminuição da mortalidade associada a invernos menos rigorosos (Langford
e Bentham, 1995; Martens, 1997), os impactes negativos venham a exceder os
positivos (McMichael e Githeko, 2001).
Os principais impactes das AC na saúde resultam da ocorrência de fenómenos
extremos, como ondas de calor, cheias e secas, da poluição atmosférica e da
incidência de doenças infecciosas (Parry et al.,2007).
Estima-se que a ocorrência de fenómenos extremos se traduzirá num aumento da
taxa de morbilidade e mortalidade na Europa (Parry et al.,2007). A ocorrência
de ondas de calor está associada ao aumento de casos de hipertermia e da taxa
de mortalidade global, particularmente, quando a temperatura ultrapassa o
limite fisiológico das populações e quando esse aumento é acompanhado pelo
aumento de humidade. Em Agosto de 2003, a onda de calor que atingiu a Europa
provocou um acréscimo de 35 000 mortes (Kovats, Wolf e Menne, 2004; Borrell et
al.,2006; Fouillet et al.,2006).
Alterações de temperatura e humidade diárias e sazonais podem ainda deteriorar
a qualidade do ar, tornando as condições mais favoráveis para o aumento da
concentração de poluentes atmosféricos e de partículas em suspensão, como
aeroalergenos (Beggs, 2004; Garcia-Mozo et al.,2006). Face a estas condições,
estima-se que um dos impactes previsíveis das AC venha a ser o aumento da
incidência de doenças cardio-respiratórias associadas à poluição (Watson,
Zinyowera e Moss, 1997; Parry et al.,2007).
Outro dos impactes que se prevê que ocorra ao nível da saúde é o aumento da
incidência de doenças infecciosas, nomeadamente, de doenças originadas pela
deficiente qualidade da água e dos alimentos e de doenças transmitidas por
vectores e roedores (Parry et al.,2007). O potencial aumento destas doenças
está relacionado com a sensibilidade que os seus sistemas biológicos têm às
variáveis climáticas (por exemplo, temperatura, precipitação e humidade), as
quais são condicionantes de factores como a distribuição geográfica e a
dinâmica do ciclo de vida dos seus agentes.
Para prever a influência das condições climáticas futuras nas doenças
infecciosas, torna-se crucial conhecer a relação existente entre as condições
climáticas e a epidemiologia das doenças. Tendo em conta o vasto número de
doenças infecciosas, optou-se por, daqui em diante, fazer uma breve revisão dos
factores que se sabem condicionar as doenças transmitidas pela água e pelos
vectores e analisar o previsível impacte das AC nestas doenças.
Doenças transmitidas pela água
Uma elevada percentagem das doenças que afectam o Homem e que causam a sua
morte está associada à deficiente qualidade da água e de saneamento, sendo os
principais afectados as sociedades mais desfavorecidas, os imuno-comprometidos
e as crianças com idade inferior a 5 anos (Prüss e Havelaar, 2001).
A exposição do Homem a infecções associadas com a qualidade da água ocorre pela
ingestão de água contaminada, pelo contacto com água de deficiente qualidade em
zonas de recreio ou ainda pela comida e pode ter origem em vários agentes
infecciosos, como vírus, bactérias ou parasitas (Tabela I).
Tabela_I
Exemplo de doenças transmitidas pela água com importância clínica: agentes
patogénicos, modo de transmissão e sintomas clínicos (adaptado de Hunter, 2003)
Salvo quando por acção humana, a deterioração da qualidade da água resulta, na
maior parte dos casos, de variações na precipitação e na temperatura. A
ocorrência de episódios de pluviosidade intensa pode conduzir ao aumento do
risco de cheias e à consequente contaminação de aquíferos, à deterioração da
qualidade de águas superficiais (podendo afectar a saúde dos que têm contacto
com água em actividades de recreio) e ao aumento da florescência de organismos
plantónicos, consequência do aumento da concentração de nutrientes disponíveis
na água (Reynolds, 1984 in Hunter, 2003; Albay, Matthiensen e Codd, 2005). O
aumento da temperatura está associada à proliferação de microorganismos
plantónicos, como as cianobactérias (Amé, del Pilar Díaz e Wunderlin, 2003), e
à multiplicação de agentes patogénicos na comida, como, por exemplo, a
contaminação com salmonelas, frequente nos meses de Verão (Kovats et al.,
2004).
Alguns exemplos da forte relação que existe entre a pluviosidade intensa e
surtos de doenças transmitidas pela água nos meses que se seguem aos episódios
de chuva são já visíveis nos dias de hoje (Anon, 2000; Curriero et al.,2001),
provavelmente como consequência da alteração da epidemiologia dos seus agentes
patogénicos. Os episódios de pluviosidade intensa já foram associados a uma
maior probabilidade de detectar oocistos de Giardia ou Cryptosporidium na água
dos rios (Atherbolt et al.,1998), ao elevado número de bactérias presentes na
água dos rios e das marinas (O'Shead e Field, 1992; Crowther, Kay e Wyer,
2001) e ao crescimento de coliformes nos sistemas de distribuição de água
(LeChevallier, Schulz e Lee, 1991).
Nos países desenvolvidos, a incidência de doenças transmitidas pela água ocorre
predominantemente por surtos associados à contaminação de abastecimentos de
água privados e públicos (Craun, Calderon e Nwachuku, 2002; Stanwell-Smith et
al.,2002 inHunter, 2003), na maioria dos casos por Cryptosporidium e
Campylobacter (Hunter, 2003). Estes agentes patogénicos, ao contrário de muitos
outros que se encontram restritos a determinadas regiões tropicais (e.g. Vibrio
cholerae,vírus da Hepatite E e Schistosoma sp.), encontram-se geralmente
distribuídos por todas as regiões do globo, pelo que faz deles a causa mais
comum de surtos associados ao abastecimento de água (Meinhardt, Casemore e
Miller, 1996; Stanwell-Smith et al.,2002 in Hunter, 2003).
Impacte das alterações climáticas nas doenças transmitidas pela água
De acordo com as alterações climáticas previstas até ao final do século XXI,
parece provável que o aumento da temperatura e da ocorrência de cheias e de
secas regionais aumentem o risco de doenças transmitidas pela água (Watson,
Zinyowera e Moss, 1997; Parry et al.,2007).
No entanto, para a Europa, a manterem-se as condições de saneamento básico e de
abastecimento público actuais, prevê-se que (a não ser que haja o risco de um
colapso económico) o risco de aumentarem as doenças transmitidas pela água seja
ligeiro (Hunter, 2003). O maior risco pode advir de postos de abastecimentos
privados de má qualidade que, associado a episódios de pluviosidade intensa
mais frequentes, possam deteriorar as condições já existentes. Existe ainda
alguma preocupação relativamente a populações da Europa de Leste que, por terem
actualmente restrições no acesso de água potável em casa, possam estar
sujeitas, no futuro, ao agravamento da qualidade de água motivada por mudanças
climáticas (Bartram et al., 2002). Em qualquer uma das situações mencionadas,
prevê-se que o maior risco na Europa esteja associado à ocorrência de surtos de
Criptosporidiose (Watson, Zinyowera e Moss, 1997; Menne e Ebi, 2006).
Aos factores acima descritos pode ainda acrescentar-se um possível aumento de
doenças derivadas da utilização de água de zonas de recreio associado com o
crescente aumento de eutrofização que se tem observado na Europa (Ottesen e
Lassen, 1997; Fastner et al., 1999; Hunter, 2003; Peperzak, 2005). Tendo em
conta que o maior impacte das AC nas doenças transmitidas pela água na Europa
se deverá à infecção por Cryptosporidium, seguir-se-á uma breve descrição da
doença causada por este parasita.
Criptosporidiose
A Criptosporidiose é uma doença causada por um protozoário do género
Cryptosporidium, que se aloja no aparelho gastrointestinal do hospedeiro (que
podem ser mamíferos, aves, peixes ou répteis), provocando-lhe sintomas como
diarreia, dores abdominais, perda de apetite, náuseas e vómitos. Ao contrário
dos restantes Apicomplexa, a transmissão deste parasita ocorre pelo estadio de
oocisto e só envolve um hospedeiro.
É considerada uma ameaça à saúde pública, quer por ser uma das principais
causas de doenças transmitidas pela água em diferentes países e pelas
consequências que causa na população, especialmente em crianças e em indivíduos
imuno-comprometidos (Cacciò et al., 2005), quer pela dificuldade em eliminar o
parasita através dos meios usuais de desinfecção (Campbell et al., 1982).
A transmissão ocorre através do contacto com fezes contaminadas, tanto pelo
contacto directo pessoa-a-pessoa ou zoonótico ou, indirectamente, por água ou
comida contaminada. Após a ingestão ou inalação de oocistos (estadio
infectante) pelo hospedeiro, o parasita invade as células epiteliais do
aparelho gastrointestinal (ou de outros tecidos, como do aparelho respiratório)
onde se multiplica, primeiro passando por uma fase esquizogónica e de seguida,
por uma fase de gametogénese e de fertilização. A partir do estadio de zigoto,
o parasita diferencia-se em duas formas de oocistos diferentes, um, de parede
fina, que permanece no hospedeiro e outro, de parede espessa, que é excretado
do hospedeiro pelas fezes, estando assim apto para ser transmitido a um novo
hospedeiro.
O facto do parasita ser constituído por uma parede externa muito resistente,
permite-lhe sobreviver, por longos períodos de tempo, fora do hospedeiro (no
solo ou na água) em condições de temperatura mais extremas e ser insensível à
desinfecção por cloro (Smith, 1989).
Apesar de parecer existir uma forte associação entre as variáveis climáticas e
a incidência de Criptosporidiose, esta relação não está ainda muito bem
compreendida, possivelmente fruto da escassez de estudos realizados sobre o
tema.
Na literatura existente, a Criptosporidiose tem sido relacionada com episódios
climáticos extremos, em especial com o aumento da temperatura máxima no Verão.
No estudo realizado por Hu et al. (2007), a temperatura máxima e a humidade
relativa mostraram-se determinantes na transmissão da doença, coincidindo com
os elevados picos de Criptosporidiose. Segundo Rose (1997), a maior prevalência
da doença parece ocorrer nos meses quentes, frios ou em épocas de chuvas, não
sendo ainda compreendida a razão de tal heterogeneidade.
A Criptosporidiose está largamente distribuída, sendo prevalente em cerca de 90
países distribuídos pelos diferentes continentes (Cacciò et al., 2006). Das
cerca de 7 espécies que infectam o Homem, Cryptosporidium hominis e
Cryptosporidium parvumsão a principal causa de Criptosporidiose humana,
provocando aproximadamente 90% dos casos (Cacciò et al., 2006). Cryptosporidium
hominis é maioritariamente prevalente na América do Sul e do Norte, na
Austrália e África e C. parvum é mais prevalente na Europa, especialmente no
Reino Unido (Cacciò et al., 2005). Usualmente a ocorrência de surtos de
Criptosporidiose tem sido associada a instituições de saúde e a lares de dia, a
praticantes de desportos aquáticos em lagos e piscinas e a municípios com
abastecimento, público ou privado, de água contaminada.
Na Europa, a infecção encontra-se prevalente na população em geral, atingindo
valores próximos dos 15% (Cacciò et al., 2005). Segundo dados da European Basic
Surveillance Network, em 2005, foram registados na Europa cerca de 7960 casos
de Criptosporidiose, tendo a maior taxa de incidência ocorrido na Irlanda
(Semenza e Nichols, 2007). Apesar do elevado número de casos registados, é
previsível que estes valores correspondam a uma subestimação dos casos reais,
dado serem referentes a apenas 60% dos países europeus. Para os restantes
países (onde está incluído Portugal), não existem dados disponíveis, o que
poderá reflectir, possivelmente, limitações na monitorização.
Tal como referido anteriormente, prevê-se, no futuro, que o risco de
Criptosporidiose possa aumentar, particularmente por transmissão indirecta pela
água, face ao previsível aumento de fenómenos extremos na Europa, como
episódios de pluviosidade intensa e cheias. Ao alterarem-se os padrões
climáticos, podem também variar os limites geográficos do parasita, resultando
num potencial aumento da exposição e risco de infecção para os humanos. Crê-se,
no entanto, que este risco seja ligeiro devido ao eficiente sistema de
saneamento básico vigente na Europa.
Doenças transmitidas por vectores
Do ponto de vista da entomologia médica, consideram-se vectores os artrópodes
hematófagos que asseguram a transmissão biológica (ou mecânica) activa de
agentes patogénicos entre diferentes hospedeiros vertebrados (Rodhain e Perez,
1985). De uma forma geral, os representantes mais importantes deste grupo são
os mosquitos e as carraças e o modo mais significativo de transmissão ocorre
por transmissão biológica através da alimentação do sangue do hospedeiro.
Actualmente, as doenças transmitidas por vectores estão entre as doenças que
causam maior morbilidade e mortalidade. Estas podem ser causadas por uma grande
variedade de agentes patogénicos, como vírus, bactérias e parasitas (Tabela
II),os quais se multiplicam no interior do vector e são posteriormente
transmitidos para o hospedeiro vertebrado na refeição sanguínea seguinte.
Tabela_II
Exemplo de doenças transmitidas por vectores com importância clínica: agentes
patogénicos, vectores, distribuição geográfica e sintomas clínicos (adaptado de
Hunter, 2003)
Para que a transmissão ocorra com sucesso e a doença se estabeleça, factores
como a abundância dos vectores e dos seus hospedeiros, a prevalência de agentes
patogénicos adaptados aos vectores e aos seus hospedeiros, o estado imunitário
da população humana e as condições ambientais locais são determinantes neste
processo (WHO, 1990).
Está bem estabelecido que as variações de temperatura, pluviosidade e humidade
são factores cruciais na distribuição espacial e temporal dos vectores e dos
agentes patogénicos (Parmesan et al.,1999; Kuhn, Campdell-lendrum e Davies,
2002).
A temperatura é um factor crítico na distribuição do vector, na medida em que
acelera a sua taxa metabólica, aumenta a taxa de crescimento da população e a
frequência de refeições sanguíneas (Mellor e Leake, 2000), mas também pode
afectar a eficiência pelo qual o vector transmite o agente patogénico,
influenciando o período de incubação do agente patogénico no vector e a
extensão da época de transmissão (Gubler et al.,2001).
A pluviosidade, por seu lado, actua principalmente ao nível dos locais de
criadouros dos vectores e dos habitats dos hospedeiros vertebrados (Gubler et
al.,2001. Na sequência de episódios de pluviosidade intensa, o aumento de águas
superficiais pode proporcionar locais de criadouro para os vectores e, ao mesmo
tempo, aumentar a densidade de vegetação e permitir assim a expansão da
população de hospedeiros vertebrados. No caso de cheias, estas podem, por um
lado, eliminar os habitats dos vectores e dos hospedeiros vertebrados e, por
outro, "forçar" o contacto mais próximo entre o hospedeiro
vertebrado e o Homem. Em situações de pluviosidade fraca, também pode ocorrer o
aumento de locais de criadouro dos vectores devido ao fluxo dos rios ficar mais
lento (Gubler et al., 2001. Em condições relativamente húmidas, os habitats
tornam-se mais favoráveis, contribuindo para o aumento da distribuição
geográfica e da abundância sazonal dos vectores.
As doenças transmitidas por vectores são, de uma forma geral, prevalentes nos
trópicos e nos subtrópicos, sendo relativamente raras nas zonas temperadas. Com
as AC crê-se que esta situação seja alterada, podendo levar ao reaparecimento
ou introdução generalizada de algumas doenças nas zonas temperadas. Este facto,
juntamente com um conjunto de situações como o desenvolvimento de resistência a
insecticidas e fármacos, a diminuição de recursos para monitorização, prevenção
e controlo das doenças transmitidas por vectores, a deterioração das infra-
estruturas de saúde pública necessárias para lidar com estas doenças,
crescimento populacional sem precedentes, alteração das práticas agrícolas,
deflorestação e o aumento de viajantes podem agravar esta situação (Gubler,
1997).
Tendo em conta a relação das doenças transmitidas por vectores com os factores
climáticos e face às evidências actuais de que o clima está a mudar, torna-se
importante determinar qual o impacte das AC nestas doenças.
Impacte das alterações climáticas nas doenças transmitidas por vectores
De acordo com as actuais evidências e com os cenários de AC previstos para a
Europa, o principal impacte nas doenças transmitidas por vectores parece
traduzir-se na alteração da distribuição geográfica dos seus vectores (e.g.
carraças) e na extensão do período de época de transmissão, potenciando assim o
risco de aumentar a transmissão destas doenças (Watson, Zinyowera e Moss, 1997;
Lindgren e Gustafson, 2001; Kuhn et al.,2005).
Segundo o relatório do IPCC (1997; Parry et al.,2007), as maiores preocupações
para a Europa estão focadas na potencial re-introdução de Malária na Europa de
Leste, na introdução do vector do Dengue, Aedes albopictus, em alguns dos
países do Sul da Europa, nomeadamente Portugal, no aumento do risco de
infecções por Leishmania e no aumento do risco de infecções transmitidas por
carraças, como de Encefalite Europeia e da Doença de Lyme.
No âmbito desta revisão, serão de seguida abordadas mais em pormenor as doenças
parasitárias transmitidas por vectores cujos impactes previstos pelas AC se
estima que possam vir a ser mais significativos na Europa - a Malária e a
Leishmaniose.
Malária
A Malária é uma das principais causas de mortalidade no mundo, estimando-se que
seja responsável pela morte de mais de um milhão de pessoas por ano (WHO,
2006). A Malária tem um ciclo de transmissão complexo, envolvendo três
organismos: um hospedeiro vertebrado, um protozoário do género Plasmodium e um
mosquito vector do género Anopheles que é responsável por transmitir a doença
entre hospedeiros vertebrados no acto de o picar para uma refeição sanguínea.
A fase do ciclo de vida que ocorre no hospedeiro vertebrado (esquizogonia)
inicia-se com a alimentação de um mosquito fêmea infectado e a inoculação de
esporozoítos para a corrente sanguínea do hospedeiro. Uma vez no hospedeiro,
alguns desses esporozoítos vão migrar e invadir os hepatócitos, iniciando assim
uma fase de replicação dos parasitas em merozoítos invasivos. Ao se romperem os
hepatócitos, os merozoítos vão invadir os glóbulos vermelhos e iniciar uma fase
de multiplicação assexual, na qual os merozoítos se diferenciam em trofozoítos
e estes em esquizontes. Este ciclo ocorre de uma forma periódica, sendo
responsável pelos sintomas típicos de uma infecção de malária, como picos de
febre, seguidos por arrepios de frio e sudação.
Após várias repetições do ciclo eritrocitário, alguns dos merozoítos irão
diferenciar-se em gametócitos masculinos e femininos, estando assim aptos para
serem ingeridos pelo mosquito na próxima alimentação.
Uma vez no mosquito, inicia-se o desenvolvimento esporogónico, fase onde ocorre
a reprodução sexuada do parasita. Após a maturação dos gametócitos no estômago
do mosquito, ocorre a fertilização. O zigoto formado diferencia-se num oocineto
móvel que atravessa o epitélio do estômago, alojando-se entre este e a lâmina
basal. Aí diferenciar-se-á num oocisto, no qual serão produzidos no seu
interior milhares de esporozoítos. Com o rompimento do oocisto, os esporozoítos
serão libertados na hemolinfa e migrarão posteriormente para as glândulas
salivares, onde estarão aptos para serem nova-mente inoculados no hospedeiro
vertebrado.
A duração do ciclo de vida do parasita é específico da espécie e depende de
factores como a temperatura. No Homem existem quatro espécies do género
Plasmodium que podem causar Malária, Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax,
Plasmodium ovale e Plasmodium malariae, sendo a primeira a que causa as formas
mais graves da doença.
A distribuição geográfica da Malária é muito vasta, sendo actualmente endémica
em 100 países de diferentes regiões do mundo, como a Índia, Sudeste asiático,
América Central e do Sul e, principalmente, na África sub-sahariana. De entre
os vários factores que estão na origem desta distribuição estão factores
climáticos como a temperatura, humidade e precipitação, os quais influenciam os
diferentes componentes do ciclo de vida e, por isso, são determinantes na
distribuição geográfica e na sazonalidade da doença. A temperatura é crucial no
desenvolvimento do mosquito, na medida em que temperaturas mais elevadas podem
encurtar a duração do ciclo gonotrófico e do ciclo ovo-adulto e aumentar a
sobrevivência da fêmea (Rodhain e Perez, 1985). Da mesma forma, também a
duração do ciclo esporogónico do plasmódio é encurtada pelo aumento da
temperatura, o que aumenta a probabilidade do ciclo se completar no interior da
fêmea e de assim ocorrer transmissão. As temperaturas óptimas para o
desenvolvimento de Anopheles variam de 20-27°C e para o desenvolvimento do
parasita entre 22-30°C (22°C para P. malariae, 25°C para P. vivax e 30°C para
P. falciparum). Nas condições em que a altitude seja superior a 3000 metros ou
que a temperatura se mantenha abaixo dos 15°C ou acima dos 38°C, a transmissão
fica comprometida. Se a humidade relativa for inferior a 52%, verifica-se uma
redução notável no número de picadas do mosquito (revisto em López-Vélez e
Moreno, 2005). Como referido anteriormente, a pluviosidade é crucial para a
presença de locais de criadouro do mosquito, atribuindo-se que a transmissão de
Malária se encontra dependente duma pluviosidade mínima mensal entre 50 e 80 mm
durante alguns meses consecutivos (Craig, Snow e Le Sueur, 1999).
No passado, a Malária era endémica em toda a Europa, atingindo uma taxa de
mortalidade bastante elevada, sobretudo na Itália, Espanha e Portugal. Em
Portugal, era uma doença comum, principalmente no Verão, chegando a atingir na
década de 1940, cerca de 70000 casos por ano devido a P. vivax (revisto em
Santos e Miranda, 2006).
A partir da segunda metade do século XIX, a Malária desaparece do Norte da
Europa e começa a declinar no Centro, onde acaba por desaparecer no fim da
Primeira Guerra Mundial. Crê-se que este declínio esteve maioritariamente
associado à melhoria das condições de drenagem, ao cultivo de zonas pantanosas
e a novos métodos usados na agricultura, uma vez que nesta altura não se
assistiu a alterações significativas do clima. Por esta altura, a Malária
continua prevalente no Sul da Europa, com a presença de várias espécies de
vectores competentes, abundantes locais de criadouro dos mosquitos, verões
longos e condições socioeconómicas pouco desenvolvidas, condições propícias à
sua transmissão. Só em 1975, com a aplicação de uma campanha antimalárica
multifacetada, envolvendo o uso de DDT, é que a Malária é declarada como
oficialmente erradicada de todo o continente europeu (WHO, 1978).
Nos anos 90 do século XX, surgiram novos casos da doença nas novas Repúblicas
do Sul da ex-União Soviética, importados pelas tropas presentes no Afeganistão
(revisto em López-Vélez e Moreno, 2005). Actualmente, a situação é problemática
na Turquia (20 905 casos autóctones registados em 1999), no Azerbaijão e no
Tajiquistão, com a ocorrência de epidemias massivas, enquanto na Arménia,
Rússia, Turkmenistão e Uzbequistão são caracterizados por ocorrerem,
esporadicamente, surtos da doença (Sabatinelli, Ejov e Joergensen, 2001). Os
restantes países da Europa, apesar de estarem fora da região endémica, têm
vindo a registar, nos últimos anos, um aumento de casos de malária importada e
de "aeroporto", atingindo os 13 000 casos de malária importada
durante o ano de 1999 (Sabatinelli, Ejov e Joergensen, 2001) e os 75 casos de
Malária de "aeroporto" no período compreendido entre 1977-2000
(Mouchet, 2000).
Face a esta situação e aos cenários climáticos previstos para o futuro, com o
aquecimento global e a ocorrência de episódios de pluviosidade intensa, a
Malária tem sido fruto de alguma preocupação. Estima-se que as AC aumentem o
risco de re-introdução de Malária na Europa de Leste, a não ser que surjam
novos pro-gramas de controlo de vectores e/ou que os programas actuais sejam
mantidos a funcionar eficientemente (Kovats et al.,1999). Quanto à Europa
Ocidental e, dado que o vector não se encontra actualmente infectado, o
principal risco parece estar limitado ao aumento de casos de Malária de
"aeroporto", associado ao aumento do turismo para países onde a
Malária é endémica (Watson, Zinyowera e Moss, 1997; Guilet et al.,1998; Kovats
et al.,1999).
Leishmaniose
A Leishmaniose é causada por parasitas do género Leishmania e é transmitida
pela picada de dípteros da sub-família Phlebotominae. O parasita tem como
reservatório animais silváticos, o cão e o Homem, existindo mais de 21 espécies
de Leishmania que infectam humanos.
A transmissão inicia-se com a picada de uma fêmea infectada do género
Phlebotomus, no "Velho Mundo", ou do género Lutzomyia, no
"Novo Mundo", num hospedeiro vertebrado. Durante a refeição
sanguínea são inoculados promastigotas na pele. Estes são fagocitados por
macrófagos e transformam-se em amastigotas. Os amastigotas multiplicam-se
dentro da célula em diferentes tecidos (a depender da espécie de Leishmania),
provocando lesões. Assim que uma nova fêmea flebotomíneo se alimenta do
hospedeiro infectado vai ingerir com a refeição sanguínea os macrófagos
infectados com amastigotas. Uma vez no estômago do insecto, os amastigotas vão
diferenciar-se em promastigotas, multiplicar-se e migrar para o probóscis,
estando assim preparados para serem transmitidos a um novo hospedeiro
vertebrado na próxima refeição sanguínea.
A infecção humana por Leishmania pode resultar em formas diferentes de doença,
Leishmaniose Cutânea (LC), Muco-cutânea e Visceral (Kala-azar), dependendo da
espécie de parasitas que a causa, da localização geográfica e da resposta imune
do hospedeiro. A Leishmaniose Cutânea é caracterizada por lesões cutâneas nas
zonas onde o vector picou para se alimentar, a Muco-cutânea por lesões
secundárias na mucosa nasal e bucal e a Leishmaniose Visceral é caracterizada
por causar febre, perda de peso, anemia e hepato-esplenomegalia.
A Leishmaniose Visceral encontra-se distribuída por aproximadamente 88 países,
estando estes, na sua maioria, localizados nos trópicos e subtrópicos (WHO,
2000). Na Europa, a Leishmaniose Visceral é actualmente endémica na bacia
mediterrânica, em países como Portugal, Espanha, França, Itália e Malta (WHO,
2000), sendo na maioria dos casos causada por Leishmania infantume transmitida
por Phlebotomus perniciosus ePhlebotomus ariasi(Rodhain e Perez, 1985). Atinge
preferencialmente crianças e imuno-comprometidos, tendo-se tornado uma infecção
oportunista importante em doentes infectados pelo VIH (Dedet, Lambert e
Pratlong, 1995; WHO, 2000).
Os surtos de Leishmaniose têm estado, muitas vezes, associados a movimentos
populacionais (Mansour et al.,1989), à disponibilidade de reservatórios
zoonóticos (Ashford, 1997) e a modificações ambientais, como a deflorestação
(Molyneux, 1997). Tal como noutras doenças transmitidas por vectores, existe
uma forte associação entre o clima e a transmissão de Leishmaniose, como são
exemplo as epidemias de LC no Brazil entre 1986 e 1990 (Broutet et al., 1994)
ou os surtos de 1985 e 1986 no Sudão onde a forte pluviosidade terá favorecido
a reprodução dos insectos flebotomíneos (el-Safi e Peters, 1991).
Os flebotomíneos são sensíveis a humidades baixas e a temperaturas extremas,
ficando o seu desenvolvimento e sobrevivência comprometidos nestas condições.
Estudos laboratoriais demonstraram que P. ariasi sobrevive bem a temperaturas
compreendidas entre 5°C e os 30°C (Rioux et al.,1985), enquanto P. perniciosus
é activo a temperaturas compreendidas entre 15°C e 28°C (Casimiro et al.,2006).
Sabe-se ainda, que a densidade do vector diminui em função da altitude, sendo
raramente observado em altitudes superiores a 600 ou 700 metros (Añez et
al.,1994) e que é fortemente influenciada pela pluviosidade (el-Safi e Peters,
1991).
A temperatura é ainda crucial para o desenvolvimento do parasita no insecto, na
medida em que temperaturas mais elevadas (dentro dos limites de tolerância)
aceleram a maturação do parasita e aumentam a probabilidade da fêmea sobreviver
tempo suficiente para que o desenvolvimento do parasita se dê no seu interior.
A temperatura mais favorável para o desenvolvimento de L. infantum nos vectores
é de 25°C (Santos e Miranda, 2006).
Na sequência do aumento generalizado de Leishmaniose Visceral verificado nos
últimos 20 anos, em parte atribuído na Europa ao aumento da co-infecção
Leishmania/VIH (Kuhn et al.,2005), e face aos cenários climáticos previstos
para o futuro, o interesse por este problema tem sido renovado. Como previsível
impacte das AC, estima-se que, no futuro, os limites actuais da distribuição do
vector e da doença se estendam para o Norte da Europa, consequência do
aquecimento global do clima acima dos limites actuais da distribuição da doença
(Watson, Zinyowera e Moss, 1997; Menne e Ebi, 2006).
4. Impacte das alterações climáticas em Portugal
Em Portugal, a maior parte da investigação relacionada com as AC tem sido
desenvolvida no âmbito do Projecto SIAM (Scenarios, Impacts and Adaptation
Measures), o qual tem como principal objectivo avaliar os possíveis impactes
das AC e sugerir medidas de adaptação multissectoriais para Portugal. O
projecto foi dividido em duas fases, uma que decorreu entre 1999 e 2002 e que
teve orientação nacional, constituindo o primeiro estudo de um país do Sul da
Europa onde se fez uma avaliação deste tipo (Santos, Forbes e Moita, 2002) e
outra, de orientação regional que incluiu também as regiões Autónomas da
Madeira e dos Açores e cujos resultados foram publicados em 2006 (Santos e
Miranda).
No Projecto SIAM foi analisado o impacte das AC nos diferentes sectores
socioeconómicos e biofísicos de Portugal, nomeadamente, no da saúde. Neste
sector, foram identificados em Portugal, com base em programas de controlo e de
monitorização nacionais anteriores, cinco potenciais impactes das AC: aumento
da mortalidade associada a ondas de calor, doenças associadas com a poluição do
ar, doenças transmitidas por vectores e roedores, doenças transmitidas pela
água e pela comida e efeitos associados com a ocorrência de cheias e secas
(Casimiro e Calheiros, 2002; Casimiro et al.,2006).
Seguindo a mesma tendência da generalidade da Europa, também para Portugal a
relação entre o aumento da mortalidade e ondas de calor tem sido evidente
(Garcia, Nogueira e Falcão, 1999; Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral
da Saúde, 2007), estimando-se que, para o futuro, a taxa de mortalidade anual
associada a ondas de calor na cidade de Lisboa aumente entre 5,8 e 15,1 (por
100 000) em 2020 e entre 7,3 e 35,6 em 2050 (Dessai, 2003). As doenças
respiratórias são outra causa de preocupação, dado que se verificam muitas
vezes nas regiões urbanas, limites de Dióxido de Azoto (No2) e de Ozono (O3)
acima dos valores aceitáveis (Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
Saúde, 2000) e que cerca de 16% da mortalidade global em Portugal ocorre por
deficiências respiratórias (Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
Saúde, 2001). Os restantes grupos de doenças (e.g., transmitidas por vectores)
foram considerados de potencial risco, na generalidade dos casos, pela sua
história passada ou recente de endemismo e pela existência de vectores
competentes e de hospedeiros disponíveis no país (Casimiro et al., 2006).
O estudo do impacte das AC nas doenças infecciosas, focou-se, numa primeira
fase, em tentar estabelecer uma relação entre o clima e a actividade dos
hospedeiros e/ou desenvolvimento dos agentes patogénicos e, posteriormente, na
aplicação dessa relação a diferentes cenários climáticos. Os cenários para
Portugal foram criados a partir de dois modelos regionais: um para a Península
Ibérica (PROMES) e outro para a Europa (HadRM2), diferindo entre si no período
estimado e nas futuras concentrações de CO2.
Inserido nos cenários climáticos previstos para o Sul da Europa, as projecções
para Portugal indicam que, até ao final do século XXI, haja aumento da
temperatura média em todas as regiões, aumento das temperaturas máximas de
Verão, variando entre os 3°C nas regiões costeiras e os 7°C no Interior, e que
haja incremento da frequência e intensidade de ondas de calor e da frequência
de dias com precipitação intensa no Inverno (Casimiro et al.,2006; Santos e
Miranda, 2006).
Face às condições previstas para Portugal, o risco para a saúde das populações
pode ser severo. Deste modo, como medida de adaptação foi criado em 2004 um
plano de contingência para as ondas de calor, articulado pelas instituições
responsáveis pelas áreas da Meteorologia, Protecção Civil e Saúde (Portugal.
Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2007). Mas até ao momento, é o
único exemplo concreto de uma medida de adaptação ao impacte das AC.
Após se estabelecer a relação entre as condições climáticas previstas para
Portugal e a epidemiologia das doenças, nomeadamente, na densidade populacional
dos vectores adultos e na potencial prevalência dos organismos patogénicos,
obtiveram-se cenários de risco, indicativos do potencial impacte a curto e
longo prazo, nestas doenças.
Em Portugal, apesar das condições climáticas actuais serem favoráveis à
transmissão de Malária por P. vivax e do vector competente Anopheles atroparvus
ser abundante e estar largamente distribuído (Galão et al., 2002), o risco
actual é muito baixo, pois não existem dados que indiquem que o mosquito esteja
infectado com o parasita. Em termos futuros, os cenários de AC estimam um
aumento do número de dias com temperaturas médias adequadas para a
sobrevivência de A. atroparvus (10-40°C), P. vivax (14,5-35°C) e de P.
falciparum (16-35°C) em Portugal (Casimiro et al.,2006). Mas, nova-mente, a não
ser que haja infecção dos vectores, as projecções futuras indicam um risco
muito baixo de contrair P. vivax e um risco quase nulo de contrair P.
falciparum, também motivado pelo facto de A. atroparvus ser experimentalmente
refractário a estirpes de P. falciparum africanas (Ribeiro et al.,1989) e ter
baixa antropofilia (Sousa et al.,2001). Face às condições ambientais actuais
serem favoráveis à sobrevivência dos flebótomos e à elevada prevalência de
Leishmaniose canina em várias regiões de Portugal (Campino, 1998; Pires, 2000),
o risco actual de ocorrer transmissão de Leishmaniose em Portugal é médio
(Casimiro et al.,2006). Como cenário futuro, prevê-se que este risco se torne
elevado devido ao aumento significativo de dias com temperaturas favoráveis
para a actividade de P. pernicious (15-28°C) em todas as regiões do país
(Casimiro et al.,2006).
Apesar de não ser mencionada como uma doença que possa vir a ser afectada pelas
AC na Europa, o seu possível impacte na Schistosomose foi avaliado para
Portugal (Casimiro et al.,2006), dada a sua história de endemismo por
Schistosoma haematobium na região do Algarve (Grácio, 1981). À semelhança da
Malária, o risco actual de transmissão de Schistosomose é muito baixo, o que
está associado com o facto da doença estar actualmente limitada a casos
importados e de, apesar das condições ambientais serem propícias à sua
transmissão, o reservatório não estar infectado (Casimiro et al.,2006).
Assumindo a introdução focal de uma população de caracóis infectados com o
parasita e um cenário futuro de aquecimento global, é previsível que, com o
aumento do período de temperaturas favoráveis para a sobrevivência do parasita
(15-39°C), a população de caracóis infectados possa com o tempo expandir a sua
distribuição geográfica e assim, o risco de transmissão da doença em Portugal
aumentar para o nível médio (Casimiro et al.,2006).
Quanto à Criptosporidiose, apesar da importância realçada anteriormente, não se
encontraram para Portugal dados sobre o possível impacte das AC nesta doença e
os dados encontrados sobre a sua epidemiologia são escassos, havendo apenas
algumas referências às taxas de prevalência em doentes com SIDA em Lisboa
(Matos, 2002). Uma das possíveis razões para a lacuna existente poderá estar
relacionada com o facto de não ser uma doença de notificação obrigatória no
país.
Em resumo, prevê-se que, de uma forma geral, as doenças que são actualmente
endémicas em Portugal, sejam mais sensíveis a variações na temperatura,
enquanto as que não são endémicas, sejam mais susceptíveis à introdução de
vectores infectados.
5. Considerações finais
É previsível que as medidas incluídas no protocolo de Quioto para a redução das
emissões de GEE venham a ter um efeito reduzido no aumento da temperatura
projectado para os próximos 50 anos (Parry et al.,1998). Como tal, e tendo em
conta que alguns dos efeitos das AC estão já presentes e que se prevê que os
impactes climáticos negativos na Europa sejam significativamente maiores que os
positivos, as populações deverão procurar adaptar-se para minimizar os efeitos
que daí possam ocorrer ao nível da saúde e da sociedade.
Ficou patente do trabalho de pesquisa efectuado que, apesar do efeito das AC na
saúde ser uma área de investigação prioritária, o conhecimento sobre este
assunto é ainda muito limitado e que a literatura existente é escassa,
dificultando em alguns casos uma análise pormenorizada dos temas.
No que diz respeito às doenças transmitidas pela água, verificou-se que o papel
do clima na dinâmica das doenças está pouco aprofundado e que o impacte das AC
a este nível na Europa está muito pouco estudado. Na origem desta lacuna pode
estar o facto das doenças transmitidas pela água, à excepção de surtos
esporádicos, não constituírem actualmente um grave problema de saúde pública na
Europa face às boas condições de saneamento básico e de abastecimento público
vigentes na maioria dos países europeus. No entanto, é de realçar que, apesar
das boas condições actuais, os impactes negativos das AC previstos para a
Europa e o aumento de indivíduos imuno-comprometidos, os principais afectados
por estas doenças, alertam para a possibilidade destas doenças poderem vir a
tornar-se problemáticas na Europa, devendo merecer assim mais atenção das
entidades responsáveis. É neste sentido que se considera, no presente trabalho,
que algumas das medidas futuras de mitigação destas doenças deverão passar pela
implementação de sistemas de monitorização e de alerta precoce a serem
disponibilizados às autoridades de saúde pública.
Relativamente às doenças transmitidas por vectores, ficou patente da análise
efectuada que o conhecimento existente sobre as doenças em causa e a sua
possível relação com o clima está relativamente bem documentada, possivelmente
motivada pelo impacto que estas têm em termos de saúde pública e pela sua
recente história de endemismo na Europa. Do ponto de vista das doenças
parasitárias transmitidas por vectores, a Malária e a Leishmaniose são as que
suscitam maior preocupação. A Malária tem sido objecto de estudo, estando
relativamente bem documentados os possíveis impactes que possam advir das AC.
Quanto à Leishmaniose, apesar da sua dinâmica ser relativamente bem conhecida,
ainda são poucos os estudos que relacionam o efeito das AC nesta doença. No
entanto, para ambos os casos, os estudos apontam para um impacte significativo
com um consequente aumento do risco de transmissão.
Na tentativa de colmatar algumas destas lacunas, o impacte das AC na saúde
começa já a ser objecto de estudo de alguns projectos internacionais, como o
Projecto EDEN (Emerging Diseases in a changing European eNvironment, http://
www.edenfp6project.net). Este é um projecto financiado pela Comissão Europeia
que reúne a investigação levada a cabo em 24 países, incluindo Portugal, e que
visa compreender o impacte das actuais mudanças ambientais sobre a difusão de
novas doenças, emergentes ou reemergentes, no território europeu.
Dentro do contexto europeu, os previsíveis impactes das AC em Portugal são bem
conhecidos, em grande parte, graças aos avanços significativos levados a cabo
nos últimos anos pelo projecto SIAM e actual-mente pelo Projecto EDEN. À
semelhança da restante situação europeia, a grande lacuna encontrada em
Portugal prende-se com o efeito das AC nas doenças transmitidas pela água, para
o qual não se encontraram estudos publicados. No caso particular da
Criptosporidiose, esta lacuna é bem evidente, podendo estar relacionada com a
dificuldade inerente em prever o impacte das AC na dinâmica da doença quando se
sabe muito pouco sobre a prevalência da doença em Portugal. Como referido
anteriormente, a Criptosporidiose não é de notificação obrigatória em Portugal
e não integra as redes europeias de monitorização Med-Vet-Net e European Basic
Surveillance Network analisadas neste trabalho.
Da presente revisão ficou patente a necessidade de um conhecimento mais
aprofundado sobre a dinâmica das doenças transmitidas pela água e a sua relação
com o clima e, no caso das doenças transmitidas por vectores, de uma
incorporação eficiente da informação existente em sistemas de alerta precoce, o
passo seguinte para que o Homem possa minimizar os impactes negativos das AC
revistos neste trabalho.