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EuPTCVHe0870-90252010000100007

EuPTCVHe0870-90252010000100007

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0870-9025
Year2010
Issue0001
Article number00007

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Qual a importância da violência contra mulheres na Revista Portuguesa de Saúde Pública?

Introdução Desde a década de 1960, a partir das denúncias do movimento feminista, a violência doméstica contra mulheres é reconhecida como uma violação dos Direitos Humanos (Azambuja e Nogueira, 2008; Monteiro, 2005). Entretanto, a Saúde Pública apenas reconheceu o problema na década de 1980 e, mais intensamente, na década de 1990 (Minayo, 2006). Em Portugal, diversas medidas foram adoptadas, tais como os três Planos Nacionais de Combate à Violência Doméstica (1999, 2003 e 2007), as qualificações das forças policiais ou as acções de organizações não-governamentais (Azambuja, 2008; Azambuja, Nogueira e Saavedra, 2007). Ainda assim, as informações oriundas das instituições criminais e de apoio às vítimas e os inquéritos nacionais mostram um progressivo aumento de casos, o que representa, mais do que um aumento na incidência, uma maior visibilidade do fenómeno (Portugal. APAV, 2003, 2006, 2007; Portugal. Direção Nacional da PSP, 2006; Lisboa et al., 2003; Lisboa, Barroso e Marteleira, 2003; Lisboa, Vicente e Barroso, 2005; Lourenço, Lisboa e Pais, 1997).

A violência doméstica não constitui, por si, um problema de Saúde Pública.

Todavia, as repercussões na saúde física e psicológica das vítimas, os gastos públicos com tratamentos das lesões e os dias perdidos de trabalho mostram a abrangência e a magnitude do problema e reforçam a necessidade de políticas públicas para seu enfrentamento e prevenção. Apesar de muitas vezes as vítimas não buscarem tratamento para as sequelas da violência conjugal ou não as apresentarem como motivo de consulta, o sistema de saúde é um local crucial para identificação, tratamento e acompanhamento de situações de violência conjugal, sendo, muitas vezes, o primeiro ponto de contacto com uma mulher que sofre violência (Ertürk, 2005; Garimella et al., 2000; WHO, 2008). Considerando a Revista Portuguesa de Saúde Pública(RPSP) a publicação mais importante da especialidade no contexto nacional e, diante dos factos acima discutidos, realizamos um estudo do tipo «revisão sistemática» para identificar o modo como a violência contra mulheres tem sido abordada na RPSP.

Métodos Universo: todas as edições da Revista Portuguesa de Saúde Públicadisponíveis no sítio informático da Revista na altura do estudo (02 a 05 de Outubro de 2007), o que corresponde ao período compreendido entre os anos 2000 e 2007.

Metodologia:estudo observacional, transversal e exploratório, pela Revisão Sistemática (Dantas-Torres, 2006; Espíndola e Blay, 2007; Hallal et al., 2007; Montenegro, 2006) de todos os artigos da RPSP quanto à presença ou ausência do descritor «violência», efectuada através da ferramenta «localizar» do programa informático Adobe Acrobate Reader. A escolha por esse descritor deve-se ao facto de permitir, de modo amplo, identificar as diferentes formas de agressão praticadas contra as mulheres, geralmente designadas a partir de expressões como: violência doméstica, violência conjugal, violência contra mulheres, violência de género, violência entre parceiros e violência na intimidade. Em um segundo momento, o material foi organizado e categorizado a partir dos passos propostos por Braun e Clarke (2006) para a Análise Temática. A Análise Crítica do Discurso (Burr, 1995; Phillips e Jorgensen, 2002; Stubbe et al., 2003; Van Dijk, 2001) foi utilizada para a discussão aprofundada dos resultados.

Apresentação dos resultados A análise das 19 edições da RPSP disponíveis no sítio informático da Revista na altura do estudo (Outubro de 2007) compreendeu um total de 169 artigos. Destes, apenas 24 (14,2%) continham o descritor «violência», distribuindo-se em 13 informes da secção «Legislação» e 11 artigos propriamente ditos (Quadro I).

Quadro I Artigos com o descritor "Violência"

Nas páginas seguintes, procedemos a um exame pormenorizado de todos os artigos que apresentaram o descritor «violência» em seu texto, estejam ou não relacionados à violência doméstica contra mulheres. Para isso, utilizamos como ferramenta a desconstrução (Hepburn, 1999) dos discursos e saberes, procurando reconstruí-los de modo mais sensível às especificidades e necessidades femininas quanto às vivências de violência doméstica.

Discussão dos resultados Os informes legislativos compõem uma importante secção da revista na qual são compiladas as principais Leis, Decretos e Resoluções nacionais, sendo também agrupadas por temas. Ao longo dos anos analisados, encontramos 13 informes sobre as principais medidas adoptadas no âmbito da violência doméstica contra as mulheres em Portugal, tais como: Lei sobre o regime jurídico especial para a protecção de vítimas de crimes violentos, medidas de protecção às vítimas, Decreto que regulamentou o quadro-geral da rede pública de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica e as Resoluções que aprovaram os Planos Nacionais de Combate à Violência Doméstica. Pelo seu carácter exclusivamente informativo (e restrito), não foi possível realizar maiores análises sobre o material publicado nesta secção. Ainda assim, ressaltamos a importância desta iniciativa, pois permite dar a conhecer as medidas que têm sido tomadas no campo legal e normativo no país, visto ser o desconhecimento um dos principais factores que impedem ou dificultam o enfrentamento de situações de violência doméstica.

No que diz respeito aos artigos, destacamos o facto de nenhum abordar o tema da violência doméstica, seja esta praticada contra mulheres, crianças ou idosos, da invisibilidade deste problema na Revista Portuguesa de Saúde Pública.De modo geral, os artigos em que foi encontrado o descritor «violência» utilizavam-no apenas para efectuar descrições sobre contextos ou situações causadoras de sofrimento, sem qualquer análise do problema, conforme veremos nas páginas que se seguem.

Miguel Trigo (2000), em um artigo sobre modelos em saúde, afirma que a violência faz parte do processo de desenvolvimento humano, marcado por mecanismos de controlo, relações e lutas por poder, sem mais nada acrescentar a este respeito. O fragmento de texto em que o descritor foi localizado pode ser visualizado abaixo: «Neste longo percurso de hominização podem delimitar-se cinco períodos caracterizados por uma especificidade própria: a pré-história, a cultura greco- romana, a Idade Média, o Renascimento e a idade das luzes. Naturalmente, porém, que em todo este trajecto da história humana se evidenciam os contornos e a estrutura de uma complexa teia de mecanismos de controlo, de relações e lutas pelo poder, de ambição pelo domínio, do recurso à força e do uso da violência» (Trigo, 2000. 5, itálico nosso).

No ano seguinte, Maria Antónia Frasquilho (2001) apresenta uma reflexão sobre a importância das doenças mentais na actualidade, em consonância com a proposta da OMS de colocar a saúde mental em foco no ano 2001. A autora lembra que as doenças mentais são dos mais importantes contributos para a sobrecarga geral de doenças e incapacidades, causadas principalmente pela depressão, alcoolismo e psicoses. A OMS apela para que, além de responder com qualidade às necessidades daqueles que sofrem de doença mental, se tenha «como prioridades as crianças e os adolescentes privados de cuidados adequados, os idosos isolados, as mulheres vítimas de abuso e todos os que estão traumatizados pela guerra, violênciae discriminação, bem como aqueles que sobrevivem em condições de extrema pobreza» (Frasquilho, 2001. 3, itálico nosso).

A tónica geral do artigo está na chamada de atenção para a importância do adoecimento psíquico como um dos principais problemas de saúde da actualidade, devendo ser enfrentado não com medidas terapêuticas, mas também com estratégias voltadas para a sensibilização da opinião pública para acabar com a exclusão e a estigmatização social ligadas às doenças mentais. Constatamos, contudo, que a necessidade de dar prioridade às mulheres vítimas de abusos, apontada pela autora, não se manifesta na RPSP, dado a total inexistência de artigos sobre a temática no período analisado.

Por outro lado, a consideração dos factores socioculturais envolvidos nos processos de saúde-doença se faz presente nesta mesma edição da RPSP, com o artigo de Maria Isabel Gomes (2001) sobre um estudo dos comportamentos de jovens adolescentes de diversas origens étnico-culturais relativo à identidade, à ocupação dos tempos livres, aos hábitos alimentares e ao consumo de substâncias tóxicas e factores àqueles associados. Neste contexto, a palavra violênciaé usada duas vezes. Primeiro, para falar na «actual crise de valores» que, entre outras coisas, leva ao desenvolvimento do consumo de drogas, «aumento da violência,criminalidade e terrorismo» (Gomes, 2001. 41). Em seguida, afirma que os adolescentes são autores das principais epidemias da actualidade: «abuso de drogas, doenças sexualmente transmitidas, violênciasocial, suicídio, acidentes de viação» (Gomes, 2001. 42, itálicos nossos).

Apesar de este artigo não abordar directamente o tema de nossa análise, tem como mérito o facto de demonstrar uma abertura para uma compreensão mais abrangente do conceito de saúde, a qual inclui, entre outros factores, questões relacionadas à origem étnica e ao género. A inclusão destas variáveis no pensamento em saúde permite uma ampliação de foco e, consequentemente, a adopção de abordagens menos individualizantes, mais voltadas para a prevenção das doenças e para a promoção da saúde. A este respeito, Germano e Temporini (2001) apresentam um estudo sobre as percepções de uma equipa escolar sobre as acções educativas de prevenção da AIDS realizadas em unidades do sistema estadual de ensino na cidade de São Paulo, Brasil. A palavra violência é aqui utilizada em um contexto caracteristicamente brasileiro, em que muitos professores sentem-se ameaçados pelo entorno violento em que estão inseridos, tal como se pode visualizar no seguinte excerto: «[...] foram expostas dificuldades inerentes às pessoas em tratar desse tema, sobretudo de professores. Assim, nem todos sentiam-se preparados para abordar questões relacionadas à sexualidade, além do que receavam entrar em conflito com os valores da família ou despertar a sexualidade latente dos alunos; em outras unidades, em comunidades sujeitas à violênciae tráfico de drogas, sentiam-se intimidados pelos alunos» (Germano e Temporini, 2001. 53, itálico nosso).

Ainda que o contexto seja outro, este artigo demonstra a importância da inclusão de aspectos socioculturais no planeamento das acções de saúde. Em nossa análise, desconsiderar os pré-conceitos e valores dos professores em um projecto de promoção de saúde junto a seus alunos, fatalmente, conduzirá a iniciativa ao fracasso. Marcelo Silva (2003), em outro estudo sobre o contexto brasileiro, nomeadamente da economia da saúde no país, cita entre as recentes alterações nos indicadores de saúde o crescimento da violência, exacerbado pelas tensões sociais no meio urbano e rural (Silva, 2003. 48).

O foco muda completamente no artigo de António Carlos Correia de Campos (2003) sobre as vantagens introduzidas pelo modelo de gestão dos «hospitais SA» (ou «hospitais-empresa»). Falando sobre a avaliação da satisfação dos cidadãos portugueses quanto ao atendimento em saúde, refere que esta se situa entre as piores da Europa. Na sua perspectiva, a violência praticada pelos profissionais sobre os utentes colabora para os elevados níveis de insatisfação, uma vez que «registam-se casos frequentes de rudeza de trato, com reciprocidade entre pessoal e utilizadores, e em alguns locais registos de violêncialarvar ou até consumada.» (Campos, A. C., 2003. 25, itálico nosso).

A violência é citada mais uma vez no editorial de Constantino Sakellarides (2003) sobre a capacidade prospectiva da saúde pública, ou seja, a necessidade do planeamento das acções em saúde levar em consideração o que se prevê para um futuro mais ou menos próximo. No contexto nacional, Portugal preparava-se para sediar o Campeonato Europeu de Futebol 2004, a respeito do que o autor afirmava: «[...] será um acontecimento de massas, com um grande número de visitantes dos diversos países europeus participantes. Os efeitos do consumo excessivo de álcool, o aumento de acidentes rodoviários, a violênciapor «hooliganismo» ou terrorismo, surtos da «doença do legionário», são algumas das ameaças com aumento de riscos para a saúde que é possível perspectivar» (Sakellarides, 2003. 3, itálico nosso).

Nada mais é falado sobre o assunto (violência). Contudo, este artigo apresenta uma importante chamada de atenção para a necessidade da Saúde Pública se antecipar aos problemas. Acreditamos que as estatísticas nacionais sobre mulheres vítimas de maus-tratos permitem concluir que este é um fenómeno de grande dimensão, sendo necessárias mais acções no campo da saúde para seu tratamento e prevenção. Ainda que existam no país diversas iniciativas, principalmente no campo da justiça e da segurança social, ainda falta uma intervenção de saúde.

Maria Adelaide Brissos (2004), em um artigo sobre o planeamento em saúde no contexto da imprevisibilidade, apresenta algumas ideias que poderiam facilitar o processo de reconhecimento da violência de género como um problema de saúde.

Apesar de apenas se referir à violência quando descreve o contexto social actual (Brissos, 2004. 47), a autora considera que o planeamento em saúde deve equacionar o contexto em que se actua, os múltiplos interesses e as relações de poder, de influência ou de conflitualidade entre os vários actores sociais.

Assim, a saúde deve ser vista com uma abordagem mais alargada, associada directamente à qualidade de vida, valorizando-se, além das dimensões tradicionais, também a relacional, cultural, ambiental e espiritual. Desta forma, a saúde também é vista como vector de desenvolvimento, através de uma estratégia de intervenção multi-sectorial e fundamentada numa análise integrada das necessidades da população, com novas perspectivas de acção. A actuação integrada pode ser desenvolvida em parceria, onde se envolvam não os serviços estatais, mas outros da sociedade civil. No que diz respeito à violência de género, consideramos que esta parceria com a sociedade civil poderia ser extremamente produtiva, visto ser este o sector que mais tem intervindo sobre o problema na actualidade, tal como foi comprovado na avaliação do I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (Portugal. APAV, 2003).

Ainda no plano da promoção da saúde, Isabel Loureiro (2004) apresenta um artigo sobre a importância da educação alimentar e o papel das «escolas promotoras de saúde», cujos princípios de fundamentam na «Carta de Otawa», da OMS. Em Portugal, desde 1998, são aplicados questionários às escolas participantes da iniciativa «Rede Nacional de Escolas Promotoras de Saúde» para identificar suas prioridades. Apesar do foco do artigo ser a promoção da alimentação saudável, destacamos alguns resultados deste levantamento apresentados pela autora (Loureiro, 2004. 49).

No ano lectivo 2000/2001, as escolas identificaram como prioridades: 1) Segurança e higiene; 2) Educação Sexual; 3) Dependências; 4) Alimentação e 5) Competências sociais e relacionais (dentro da qual estão inseridas a agressividade e a violência). Estes dados nos mostram que as escolas sentem necessidade de abordar temas que, sob nosso ponto de vista, poderiam ser utilizados para a promoção da saúde também no que diz respeito à violência contra mulheres/violência conjugal. Assim, a educação sexual, para além de abordar os métodos contraceptivos e doenças sexualmente transmissíveis, deveria promover a reflexão sobre as desigualdades de género, os estereótipos associados à feminilidade e à masculinidade, ao amor e à conjugalidade, propiciando a «mudança de mentalidades» das gerações mais novas. Igualmente, acreditamos que a intervenção sobre competências sociais e relacionais deveria promover a adopção de práticas igualitárias, reflectindo sobre os estereótipos e preconceitos, não de género, mas também de raça/etnia, bem como questionamento da utilização da violência como uma forma aceitável de resolução de conflitos.

Outro artigo de Maria Antónia Frasquilho (2005) altera novamente o foco do tema «violência», examinando-o no contexto de trabalho dos médicos. A autora apresenta um artigo sobre estresse e burnout nesta categoria profissional, considerada como uma das que mais sofre deste problema e cujas consequências podem ser sentidas não na saúde do profissional, mas também no atendimento dispensado aos seus pacientes. Contribuem para o sofrimento emocional dos médicos o silenciamento e a denegação do problema, o que acaba por acarretar em ainda mais sofrimento. São apontados como estressores médicos aspectos ligados à ideologia profissional, formação profissional, expectativas/representação social, condições de trabalho, tarefa e carga física e mental e organização do trabalho. Ainda que este não seja o tema principal do artigo, a violência é citada como um importante factor desencadeante de estresse, como podemos identificar no seguinte fragmento do artigo: «Aumenta a violênciasobre os médicos, o que é outro importante factor de stress. Na Grã-Bretanha um terço dos médicos considera a violênciaum grave problema no trabalho: 95% foram vítimas de agressões nos últimos doze meses (Reuters, 2003, citado por Frasquilho, 2005). Em Portugal a DGS realizou uma pesquisa em que 81% de unidades hospitalares e 77% dos centros de saúde revelaram ter registado casos de violênciasobre profissionais de saúde e as vítimas são predominantemente médicos (66%). A maioria assenta na ameaça e agressão verbal; no entanto, a agressão física está também patente em 54% dos casos, assim como os danos contra o património pessoal. Cerca de metade dos profissionais inquiridos conta de pelo menos um episódio de violênciapessoal nos últimos doze meses; contudo,   2% a 4% reportam oficialmente o problema» (Portugal, 2004, citado por Frasquilho, 2005. 92-93, itálicos nossos).

Por fim, o último artigo da RPSP onde foi identificado o descritor «violência» é de autoria de Nunes e Branco (2006), sobre acidentes domésticos e de lazer.

Neste contexto, «violência» é utilizada apenas para definir o que são «acidentes domésticos e de lazer» (ADL), nomeadamente: «ao falarmos de lesões, englobamos num vasto leque, situações que vão desde os vários tipos de acidentes (domésticos e de lazer, ocupacionais e rodoviários), a todo o tipo de violências,incluindo as auto-inflingidas [...] os acidentes domésticos e de lazer definem-se por exclusão. São todos aqueles que não se classificam como acidentes de trabalho, acidentes rodoviários e violênciasocorridas com indivíduos de 10 ou mais anos de idade. Nos ADL incluem-se os acidentes escolares e violênciasdecorrentes de confrontos entre crianças com menos de 10 anos [...] registos de todos os atendimentos nos serviços de urgência das unidades de saúde do sistema ADELIA, cuja causa de entrada não foi doença, acidente ocupacional ou rodoviário, ou violência»(Nunes e Branco, 2006. 15-17, itálicos nossos).

Conclusões A análise de discurso dos artigos da Revista Portuguesa de Saúde Públicaincluídos neste estudo mostra que, apesar de utilizarem a palavra «violência», em nenhum momento se referiram àquela vivida por mulheres no contexto de relacionamentos íntimos e, tampouco, à praticada no contexto doméstico contra crianças, adolescentes, idosos ou pessoas portadoras de deficiências. Tal constatação nos leva a concluir que a violência doméstica/ familiar não tem sido considerada como um problema de Saúde Pública no contexto português, apesar das diversas orientações da OMS (Heise e Garcia-Moreno, 2002; Minayo, 2006; WHO, 2005) a este respeito e, mesmo, de normativas nacionais, tal como o Plano Nacional de Saúde 2004-2010 (Portugal. Ministério da Saúde. DGS, 2004) ou os três Planos Nacionais contra a Violência Doméstica (1999, 2003, 2007). Esta invisibilidade tem importantes consequências sociais, particularmente se levarmos em consideração o papel desempenhado pela Saúde Pública no desenvolvimento de acções de prevenção e de promoção da saúde. Deste modo, encerramos com algumas indicações para que, no futuro, a violência contra mulheres seja integrada nas reflexões da Saúde Pública portuguesa:   Utilizar uma concepção ampliada de saúde, onde aspectos como origem étnica, género e assimetrias de poder sejam considerados tal como proposto em textos encontrados na própria RPSP, tal como o de Maria Adelaide Brissos (2004), que propõe o rompimento com o modelo biomédico dominante; ou, como sugerem Gérvas (2006) e Melo (2007), evitando os «excessos da medicina»;   Considerar o género como determinante da saúde: iniciativas neste sentido começam a surgir, tal como demonstra a existência do «Projecto Saúde, Sexo e Género PROSASGE», que está sendo desenvolvido na Direcção-Geral de Saúde desde Maio de 2006 (Laranjeira et al., 2007). Para que isso ocorra, é também necessário que as pesquisas utilizem dados desagregados por sexo, não considerando que o padecimento feminino e masculino é assexuado (ou sexuado apenas no que diz respeito à saúde reprodutiva);   Incluir a violência doméstica contra as mulheres no campo da saúde: apesar de seus efeitos concretos ainda não terem sido sentidos, o Plano Nacional de Saúde 2004-2010 (Portugal. Ministério da Saúde, 2004) inclui a violência doméstica contra mulheres, crianças, jovens e idosos como «um dos problemas mais importantes entre os que afectam a qualidade de vida» (p. 106), assumindo- se que «as respostas da saúde para a violência têm sido manifestadamente inadequadas, contemplando, essencialmente, aspectos de emergência médica, sem contemplar adequadamente as vertentes mais preventivas» (p. 106). De modo semelhante, o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007) coloca entre suas prioridades e orientações estratégicas a qualificação dos profissionais de saúde;   Criar formas de registo e acompanhamento de casos de violência doméstica atendidos no sistema de saúde: em Portugal, até o momento, os dados sobre o problema são provenientes do sistema de justiça e de (algumas) organizações sociais que prestam atendimento às mulheres. A utilização de dados epidemiológicos mais precisos permitirá encarar o problema a partir de uma «linguagem comum» ao sector saúde, tal como as «doenças de notificação obrigatória» (Marques e Freitas, 2007). Além disso, a vigilância epidemiológica é uma ferramenta fundamental para o planeamento das acções em saúde (Dias, Freitas e Briz, 2007), devendo ser utilizada também no combate à violência contra mulheres;   Promover uma maior comunicação entre a Saúde Pública e os Cuidados de Saúde Primários, os quais, em Portugal, ainda são considerados domínios distintos e independentes (Silva, 2007);   Trabalhar com a prevenção e a promoção da saúde: investir na «mudança de mentalidades» das gerações mais novas, tal como fez o «Projecto Novos Olhares, Novas Causas, desenvolvido pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) em 2005/2006 (informações disponíveis em http://www.umarfeminismos.org/ projectos/novos_olhares.html). Colocar em prática a educação sexual em todas as escolas do país e incluir a temática das relações de género nestas acções;   Incorporar o foco comunitário no planeamento em saúde, trabalhando não apenas com dados epidemiológicos localmente construídos, mas estabelecendo também parcerias com as organizações sociais existentes. Neste sentido, a saúde deve ser encarada a partir de uma perspectiva multi-sectorial;   Promover o «desocultamento» da violência doméstica, procurando romper com o estigma social a que está associada: estimular as mulheres a falarem sobre suas vivências com outras mulheres, tal como os «grupos de mulheres para o enfrentamento da violência» descritos por Meneghel et al. (2005);   Trabalho em equipa interdisciplinar: a violência doméstica é um problema complexo que requer uma acção integrada entre profissionais de diversas especialidades. A reforma dos cuidados de saúde primários actualmente em curso pode ser uma importante oportunidade para a inclusão de novos atores no campo da saúde através das «Unidades de Saúde Familiar» (USF) e das «Unidades de Apoio à Comunidade». Contudo, para que esta transformação se efective, é importante alterar o modelo de formação profissional (Biscaia, 2006a; Biscaia, 2006b; Covita, 2006; Ferrão e Biscaia, 2006), incluindo as perspectivas aqui desenvolvidas nos currículos dos cursos. Uma iniciativa deste tipo está presente no curso de Medicina da Universidade do Minho. Entre as suas características distintivas, está a concepção de que a medicina é um acto social, o que implica em uma ampla inserção da Faculdade e dos estudantes na comunidade. Igualmente, as diferentes áreas curriculares promovem essa inserção (Portugal. Escola de Ciências da Saúde, 2007). Além das actividades práticas, no módulo teórico «Saúde, Família e Sociedade», professores da Psicologia e da Sociologia são convidados a ministrar workshopssobre temas relacionados à diversidade sociocultural;   Investir nos cuidados de saúde primários: assim como Célia Afonso Gonçalves (2006) discute com relação à violência contra idosos, acreditamos que o escasso conhecimento sobre a prevalência, detecção e referenciação destas situações torna-se um grande obstáculo para a sua prevenção e intervenção. Todavia, como a autora, acreditamos que os profissionais actuantes nos cuidados de saúde primários, nomeadamente os médicos de família, representam uma importante «porta de entrada» para situações de violência doméstica/familiar, uma vez que estabelecem contacto com toda a família, acompanhando-a ao longo do tempo e por um período prolongado (Azambuja, 2008);   Por fim, todas essas propostas implicam numa ampla reorganização da estrutura organizacional e dos processos de trabalho, onde a actuação em equipa e o respeito pelos(as) usuários(as) dos serviços são fundamentais. É preciso reflectir sobre os aspectos que levam ao estresse e à insatisfação dos profissionais (Granja, 2005; Granja, 2007; Silva, 2007), quanto ao tempo dispendido para as consultas e sua qualidade, sobre a necessidade da actualização profissional constante e as reais possibilidades de ser exercida, sobre o papel o e o perfil do(a) médico(a), questionando sua infalibilidade e sua posição de poder, bem como sobre a importância da humanização do cuidado (Nunes, 2006) e do desenvolvimento de uma «escuta activa» (Souza, 2006).


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