A crise do modelo biomédico e a resposta da promoção da saúde
A crise do modelo biomédico e a resposta da promoção da saúde
Crisis and response of the biomedical model of health promotion
Cipriano Justoa
aProfessor catedrático convidado, Universidade Lusófona, Lisboa, Portugal,
cjusto@netcabo.pt
O modelo biomédico de prestação de cuidados, qualquer que seja a natureza da
organização em que são prestados, não estando esgotado, encontra-se
particularmente vulnerável às restrições orçamentais, desde os anos setenta do
século passado, em consequência da variação dos seus custos serem
sistematicamente superiores às variações do PIB. Essa é uma razão para a crise
do modelo biomédico. Porém, o que melhor explica as limitações da sua eficácia
são as alterações que se verificaram no padrão epidemiológico da doença a
partir da segunda metade do século xx. Se é verdade que os gloriosos 30 anos a
seguir à Segunda Guerra Mundial foram os principais responsáveis pela
construção do modelo social europeu, é no ocaso deste período, em Abril de
1974, que é publicado pelo então ministro da saúde do Canadá, Marc Lalond, o
estudo que ficará a servir de referência para todas as políticas de saúde,
antecedendo em quatro anos a Conferência de Alma-Ata sobre os cuidados de saúde
primários. De facto,A New Perspective on the Health of Canadians 1, representou
para as futuras políticas de saúde o queDe Humana Corpis Fabrica representou no
século xvi para a medicina escolástica. Ambos, Vesálio e Lalond, procedem a um
corte epistemológico nos saberes e nos modelos de prestação de cuidados.
Vesálio inaugura a era do conhecimento médico baseado na evidência anatómica, a
que se lhe seguem as contribuições do anatomopatologista Morgagni e dos
histologistas Bichat e Laennec, e Lalond dirige a sua atenção para a relevância
da promoção da saúde no aumento da esperança de vida sem incapacidade ou
doença.
Cronologicamente situado a meio caminho entre Hipócrates e Lalond, deve-se a
Pedro Julião, ou Pedro Hispano, ou João XXI, o médico e teólogo do século xiii
referido por Dante Alighieri no canto XII da Divina Comédia, uma das primeiras
obras sobre a promoção da saúde. De facto, oLiber de Conservanda Sanitate 2,
divido em duas partes, coisas que fazem bem e mal, no qual trata das
substâncias com propriedades benéficas para todos os órgãos, e preservação da
saúde, na qual aborda os estilos de vida considerados saudáveis na época, é um
trado exaustivo sobre o que está e não está indicado para manter a saúde. Por
exemplo: " Deve comer-se uma só vez, em todas as estações, porquanto morrem
muitíssimos de excesso de saturação, e poucos de inanição. Por isso diz Galeno:
a gula é uma das causas da morte. Pois matou mais gente do que a espada ou o
cutelo. Por isso os modernos são filhos da gula".
De alguma maneira os caminhos apontados por Lalond representam um regresso a
Hipócrates, levando agora na bagagem todo o arsenal de conhecimentos técnicos,
tecnológicos e organizativos proporcionados por cinco séculos de exercício
biomédico da medicina. Mas esse regresso é, também, uma manifestação dos
limites e das limitações do modelo. A expressão mais representativa desses
limites reside na circunstância de intervir exclusivamente sobre a doença e
sobre uma fracção menor do ciclo vital, e a manifestação que melhor caracteriza
as suas limitações é a de não garantir a erradicação da doença, sobretudo
quando se trata de doenças crónicas. A revolução francesa ao proceder à
transformação dos hospitais doancien regime em organizações medicalizadas onde
além do diagnóstico e do tratamento também se passou a produzir conhecimento,
proporcionou ao modelo biomédico uma infra-estrutura estável e identificável
que não deixou se diferenciar constantemente tendo passado a representar o
exemplo de organização profissional mais complexa e sofisticada. É a esse facto
e à missão em que estão investidos de salvar vidas que se deve a sua associação
à representação social que se continua a ter da saúde.
Contudo, foi a descoberta da vacina por Jenner em 1789 e da penicilina por
Fleming em 1928 que vieram alterar radicalmente o panorama epidemiológico da
doença humana. Num caso, prevenindo, e noutro curando, estes dois avanços
científicos continuam a representar as respostas mais eficazes para as doenças
agudas, e aquelas que contribuem, no plano das tecnologias médicas, para
maiores ganhos em esperança de vida. No entanto, foi fora da esfera da
intervenção médica que se verificaram as alterações que vieram a demonstrar-se
decisivas para a melhoria do nível de saúde das comunidades: a diminuição da
dimensão das famílias, o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos, a
melhoria do ambiente físico, o acesso à instrução e a invenção do frigorífico.
Em conjunto, estes são os determinantes sociais que explicam que actualmente a
esperança de vida dos europeus seja de oitenta anos e que, em média, só um
sexto seja passado com doença ou incapacidade. Sendo inegavelmente um indicador
invejável quando comparado com o das populações de outros continente e regiões,
o desafio ao qual não está a ser conseguida dar uma resposta satisfatória
consiste na dificuldade em controlar e reverter a expansão das doenças
crónicas, responsáveis por 80 % da morbilidade nos países de rendimento médio/
elevado.
Sendo, por definição, doenças de lenta progressão e longa duração, as doenças
crónicas são o resultado de um complexo multicausal em que estão presentes
várias combinações de excesso de peso, sedentarismo, tabagismo, alcoolismo,
hipertensão e dietas monótonas, traduzidas em doenças cardiovasculares, cancro,
diabetes, e doenças pulmonares crónicas, por sua vez responsáveis em todo o
mundo por 60 % dos óbitos. Dada a necessidade desta entidade ter uma abordagem
multisectorial e pluridisciplinar sob a forma detracers, as organizações de
saúde têm vindo a desenvolver uma linha de resposta na qual são aplicados os
diferentes saberes das ciências da gestão, dado os vários ambientes e os
múltiplos actores que nela intervêm.
Na adopção de estilos de vida saudáveis estando em causa escolhas individuais,
mas também colectivas, ostrade-off,para se tornarem úteis, terão sempre de ser
feitos em contextos promotores da tomada de decisões sustentadas por informação
credível, acessível e ajustada às características sócio-demográficas de cada
população, seja ela jovem, adulta ou idosa; rural ou urbana; estudante,
exercendo uma profissão ou reformada. O que se tem em vista na promoção da
saúde é a expectativa de se obterem padrões sempre mais elevados de saúde e
bem-estar uma vez que é para aí que aponta a Organização Mundial de Saúde
quando ousou incluir o "estado de completo bem-estar físico, moral e social" na
definição que fez de saúde e que desde 1948 tem servido de guia a todas as
políticas de saúde.
Ao contrário do tratamento da doença, a infra-estrutura da promoção da saúde
não tem um número de telefone fixo, nem um endereço, nem uma placa a sinalizá-
la. O seu capital é exclusivamente composto por conhecimento, essa matéria
intangível cuja distribuição ainda é bastante assimétrica e irregular mas à
qual é desejável que todos tenham acesso de maneira a que o agenciamento da
saúde tenda para zero. Enquanto na doença a aversão ao risco em tomar decisões
próprias está plenamente justificado, na protecção e promoção da saúde o risco
está em não tomar as decisões que mais contribuam para a conservar. Daí que a
infra-estrutura que melhor responde a essa necessidade seja representada pelas
redes sociais, sejam elas familiares, profissionais ou de lazer, formais ou
informais, interactivas ou relacionais. Promover, expandir e reforçar essas
redes é, por essa razão, garantir à promoção da saúde a única infra-estrutura
capaz de contribuir para uma esperança de vida mais saudável.