Os 50 anos da guerra colonial, a lusofonia, a cooperação e a saúde pública
Os 50 anos da guerra colonial, a lusofonia, a cooperação e a saúde pública
The 50'year colonial war, lusophony, cooperation and public health
Luis Graçaa
aDirector Revista Portuguesa de Saúde Pública, luis.graca@ensp.unl.pt
A guerra colonial (1961/75) terá sido possivelmente o acontecimento mais
marcante da sociedade portuguesa do Séc. xx (Em rigor dever-se-ia falar em
guerras coloniais, já que há um sucessão de intervenções militares portugueses
nos territórios ultramarinos, da Guiné a Timor, desde finais do Séc. xix, ou
seja , desde a expansão colonial europeia, na sequência da Conferência de
Berlim , em 1884/85).
O seu desfecho levou não só à restauração da democracia em Portugal, com o 25
de Abril de 1974, mas também ao desmantelamento do velho império colonial
(Índia Portuguesa, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola,
Macau, Timor), e ao aparecimento de novas nações lusófonas, mais de cento e
cinquenta anos depois da independência do Brasil (em 1822).
Pela primeira vez na sua história, Portugal via-se reduzido, em 1975, aos seus
89 mil quilómetros quadrados de meados do Séc. xv, à sua dimensão atlântica,
continental e europeia. E hoje, no seio da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP), é um país respeitado e prestigiado, em paz (e cooperação)
com as suas antigas colónias.
O enorme esforço de guerra, ao longo de 14 anos (1961/75), teve consequências,
relevantes para a demografia, a economia, a política e até a saúde pública: a
mobilização de quase um milhão de homens (800 mil do recrutamento
metropolitano), e nomeadamente para três teatros de operações, muito distantes
da rectaguarda: Guiné (a 5 mil quilómetros), Angola (a 8 mil), Moçambique (a 12
mil); uma despesa militar que chegou a ultrapassar mais de metade do orçamento
de Estado (em 1969); o isolamento e o desprestígio a nível internacional, etc.
Em 25 de Abril de 1974, os efectivos das Forças Armadas Portugueses
ultrapassavam os 230 mil, três quartos dos quais estavam nos citados teatros de
guerra. Segundo historiógrafos militares, o esforço humano despendido por
Portugal na guerra colonial, àquela data, terá sido 4 a 5 vezes superior ao do
EUA que, com uma população 23 vezes maior, teve no máximo cerca de 540 mil
homens no Vietname (em 1969).
Estima-se em 200 mil o número de refractários e em 3 mil o de desertores. Cerca
de 9 mil combatentes morreram, em consequência de ferimentos em combate,
acidente ou doença. Os feridos terão sido cerca de 30 mil. Mais difícil é
contabilizar as vítimas de stress pós-traumático de guerra (cerca de 140 mil,
ou seja, 15% dos efectivos metropolitanos), os que morreram precocemente, os
que se suicidaram ou tentaram o suicídio, as vítimas de violência, abandono,
pobreza e exclusão social (incluindo dezenas de milhares de africanos - cerca
de 70 mil, no final da guerra - que combateram nas fileiras do exército
português, como soldados do recrutamento local ou como milícias, e cujos
direitos - a começar pela sua vida e segurança - não foram devidamente
acautelados, para não dizer que foram pura e simplesmente ignorados,
desprezados ou escamoteados).
Mais difícil ainda é hoje fazer a estimativa das vítimas, de todo o tipo, entre
os combatentes dos movimentos de libertação e as populações africanas, de um
lado e do outro. Para não falar da destruição e desarticulação das estruturas
materiais e simbólicas das sociedades africanas. E, enfim, está-se longe de
saber o impacto, na saúde física e mental das famílias portuguesas que
aguardavam o regresso dos seus filhos, sãos e salvos, sendo o único elo de
ligação o serviço postal militar (Eram distribuídos anualmente pelo Movimento
Nacional Feminino, criado em 1961, cerca de 32 milhões de aerogramas, nos
últimos anos de guerra). Talvez cerca de 80 mil mulheres e outros familiares de
ex-combatentes possam ainda hoje ser vítimas da chamada Pertubação Secundária
de Stress Traumático (PSST).
Portugal nunca fez (ou está agora a fazê-lo, tardia e lentamente) esse balanço
(global) de uma guerra que, contrariamente a outras (invasões estrangeiras,
guerras civis...) se passou a muitos milhares de quilómetros de distância da
Pátria, em regiões tropicais. Portugal nunca fez o luto da guerra colonial (ou
está agora fazê-lo, tardia e lentamente). Mas o mesmo se passa com os novos
países que combateram o exército colonial português e que, depois das suas
independências, se viram envolvidos em guerras civis (Guiné-Bissau, Angola,
Moçambique, Timor)...
Cinquenta anos do início da guerra colonial (em 1961, em Angola), tem vindo a
aumentar a literatura memorialística, a produção ficcional, a produção
bloguística, a investigação científica, o interesse dos media (cinema,
televisão, imprensa escrita) pela guerra colonial... Mas não há, por exemplo,
estudos de epidemiologia histórica sobre a morbimortalidade dos combatentes da
guerra colonial... Nem sabemos, ao certo, quanto médicos passaram pelos teatros
de operações (entre 1400 a 1600, com base dum rácio de 1 médico por 600
militares, operacionais e não operacionais). Ou a efectividade do papel dos
serviços de saúde militar no apoio às populações africanas durante a guerra.
Só em 2000 foi criada "a rede nacional de apoio aos militares e ex-militares
portugueses portadores de perturbação psicológica crónica resultante da
exposição a factores traumáticos de stress durante a vida militar" (D. L. nº
50/2000, de 7 de Abril), rede essa que é constituída pelas instituições e
serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, no Sistema de Saúde Militar e
pelas organizações não governamentais com as quais sejam celebrados protocolos.
No entanto, esta rede tem sido acusada de ter um funcionamento demasiado
burocrático. Igualmente o Serviço Nacional de Saúde é alvo de críticas pelas
dificuldades de resposta, rápida e eficaz, a estes casos de Perturbação Pós-
Stress Traumático (de acordo com a terminologia portuguesa consensualizada). E
muitas dos potenciais beneficiários da rede desconhecem a sua existência.
Há associações da sociedade civil como a Apoiar que fazem acompanhamento
gratuito (clínico, médico e social) às vítimas de Stress Pós-Traumático de
Guerra, necessitando apenas que o interessado peça ao seu médico de família o
Modelo 1 devidamente preenchido e assinado por ele, de acordo com o disposto na
Circular Normativa nº 11/DSPSM, de 13/08/2001, da Direcção Geral de Saúde...
Esta circular dirigida aos técnicos dos serviços de saúde e destinada a
divulgar os impressos para admissão na rede e a clarificar os procedimentos a
ter na elaboração dos processos clínicos.
Talvez nenhum país europeu, em meados dos anos 70, em plena guerra fria, tem
operado tantas mudanças, institucionais, jurídicas, políticas, económicas,
sociais, sanitárias, epidemiológicas, demográficas e culturais, desde o fim da
guerra colonial à descolonização e à integração dos chamados retornados, da
criação do Serviço Nacional de Saúde à drástica redução da mortalidade
infantil... Fica-nos a dúvida se não poderíamos ter feito mais, e sobretudo
melhor, pela plena reabilitação e reintegração dos combatentes da guerra
colonial (aos diferentes níveis, e nomeadamente sanitário, psicossocial e
sócio-familiar). Teremos também perdido aqui uma excelente oportunidade de
mostrar que cooperação, saúde pública e lusofonia falam (ou devem falar) a
mesma língua... e que, afinal, "em bom português nos entendemos".
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