Qualidade do ar interior em estabelecimentos da restauração após a entrada em
vigor da lei portuguesa de controlo do tabagismo
Introdução
Segundo a Agência Internacional de Investigação em Cancro (International Agency
for Research on Cancer - IARC), está demonstrado que a exposição ao Fumo
Ambiental do Tabaco (FAT) causa cancro em humanos, devido ao facto de conter na
sua composição cerca de cinquenta substâncias cancerígenas. Por esse motivo, o
FAT foi classificado, pela Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos
(US Environmental Protection Agency), no Grupo A de carcinogéneos 2. Sendo o
principal carcinogéneo humano presente no ar, o FAT constitui uma importante
causa de cancro - em particular de pulmão - e de outras patologias,
responsáveis pela morte de milhares de pessoas 2,3. Os níveis de nicotina para
os quais se verificaram efeitos carcinogéneos situam-se entre 1 e 10 μg/m 3 de
nicotina 4. Actualmente, a evidência de que a exposição ao FAT é prejudicial à
saúde, em todos os estágios da vida humana, é consistente, robusta e consensual
5.
O relatório do US Surgeon General, de 2006, refere que as actuais evidências
sugerem que um não fumador exposto ao FAT, em casa ou no local de trabalho,
apresenta um risco acrescido de 20 % a 30 % de vir a sofrer de cancro do pulmão
e de cerca de 25 % a 30 % de padecer de uma doença cardíaca 6.
Um estudo efectuado em 2004 pela Cancer Research UK, a European Respiratory
Society, o Institut National du Cancer e a European Heart Network estima que,
em 2002 e na Europa dos 25, o FAT tenha sido responsável pela morte de mais de
79000 adultos (7000 em resultado da exposição ao FAT no local de trabalho e
72000 mortes devidas à exposição no domicílio). O mesmo estudo apresenta
estimativas que indicam que o FAT terá sido responsável pela morte de mais de
16600 não fumadores expostos no domicílio e mais de 2800 mortes em pessoas não
fumadoras expostas no local de trabalho 7. Neste estudo, estima-se que a
mortalidade em Portugal devido à exposição ao FAT tenha sido de 1519 pessoas
num ano (1450 devido à exposição em casa e 79 devido à exposição no local de
trabalho).
A mortalidade em Portugal, só de fumadores passivos, é estimada em 457 (432
devido à exposição em casa e 27 devido à exposição no local de trabalho) 7.
Com o objectivo principal de proteger os trabalhadores da exposição ao FAT,
vários países têm adoptado legislação de proibição total ou parcial do consumo
de tabaco em locais públicos, incluindo o sector da restauração.
Neste sector, as políticas que têm sido aplicadas vão desde a proibição total,
à proibição parcial e à permissão de fumar.
A 1 de Janeiro de 2008, entrou em vigor, em Portugal, a lei n.º 37/2007 de 14
de Agosto, com o principal objectivo de reduzir os efeitos negativos da
exposição ao FAT em locais públicos. No que diz respeito ao sector da
restauração e similares (bares, discotecas, etc.), a lei portuguesa estipula
que, em geral, é proibido fumar nestes locais, com as seguintes excepções:
"6 Nos locais mencionados na alíneaq)[locais da restauração e similares] do
n.º 1 do artigo anterior com área destinada ao público inferior a 100 m 2, o
proprietário pode optar por estabelecer a permissão de fumar desde que obedeça
aos requisitos mencionados nas alíneasa), b) ec) do número anterior.[ou seja:
a) Estejam devidamente sinalizadas, com afixação de dísticos em locais visíveis
(...); b) Sejam separadas fisicamente das restantes instalações, ou disponham
de dispositivo de ventilação, ou qualquer outro, desde que autónomo, que evite
que o fumo se espalhe às áreas contíguas; c) Seja garantida a ventilação
directa para o exterior através de sistema de extracção de ar que proteja dos
efeitos do fumo os trabalhadores e os clientes não fumadores].
7 Nos locais mencionados na alíneaq) do n.º 1 do artigo anterior com área
destinada ao público igual ou superior a 100 m 2 podem ser criadas áreas para
fumadores, até um máximo de 30 % do total respectivo, ou espaço fisicamente
separado não superior a 40 % do total respectivo, desde que obedeçam aos
requisitos mencionados nas alíneasa),b) ec) do n.º 5, não abranjam as áreas
destinadas exclusivamente ao pessoal nem as áreas onde os trabalhadores tenham
de trabalhar em permanência" 8.
Um estudo observacional levado a efeito no sector da restauração da cidade de
Braga, em Portugal, no ano de 2008 (em que foram avaliados 14 restaurantes com
mais de 100 m 2; 16 restaurantes com menos de 100 m 2; 29 cafés ou similares; e
10 bares, pubs e discotecas), revelou que 76,8 % dos locais da restauração e
similares optaram por se declarar espaços sem fumo. A maior taxa de adesão
encontra-se nos restaurantes com mais de 100 m 2 (85,7 %) e a menor nas
discotecas e bares nocturnos (70,5 %). Constata-se que há ainda muitos
restaurantes, cafés e bares com menos de 100 m 2 e discotecas que permitem que
se fume no interior. Algumas discotecas com mais de 100 m 2 optaram pela
instalação de cortinas de ar a separar a zona de fumadores da zona de não
fumadores 9. Percentagens semelhantes de adesão à proibição de fumar no
interior dos estabelecimentos da restauração e similares portugueses foram
encontrados num estudo mais amplo, realizado por Reis et al. 10.
Os resultados dos estudos observacionais anteriores levam a questionar qual a
qualidade do ar nos restaurantes ou similares que permitem que se fume no
interior, uma vez que supostamente deveriam ter sido instalados dispositivos de
remoção do fumo do tabaco.
Objectivos
Determinar a qualidade do ar interior em estabelecimentos do sector da
restauração e similares; avaliar o impacte da lei Portuguesa de controlo do
tabagismo, na protecção de uma população especialmente vulnerável
(trabalhadores da restauração).
Método
O estudo foi efectuado em Braga, Portugal, durante o mês de Março de 2009. A
qualidade do ar foi avaliada em 6 locais de restauração e similares: 2
restaurantes com menos de 100 m 2 que permitem que se fume no interior; 2 cafés
com menos de 100 m 2 (um café que permite que se fume no interior e outro que
proíbe o consumo); um bar nocturno com menos de 100 m 2 para fumadores e uma
discoteca com mais de 100 m 2 com uma área para fumadores e outra para não
fumadores, separadas por uma cortina de ar. A amostra foi de conveniência, mas
respeitou os seguintes critérios: locais sem cozinha aberta ou outra fonte
importante de combustão; mínimo de 5 pessoas no local no momento da medição;
nos restaurantes, as medições foram feitas depois do almoço ou do jantar; nos
cafés, foram feitas a meio da tarde e no bar nocturno e discoteca, foram feitas
após a meia-noite. Foi obtida autorização prévia dos proprietários dos
estabelecimentos participantes. Em todos os locais foram colhidas amostras de
ar dentro e fora do estabelecimento e, na discoteca, foram colhidas amostras de
nicotina no ar na zona de fumadores e de não fumadores. A medição da fase de
vapor de nicotina foi feita por monitorização activa. Para medir a fase de
vapor de nicotina foram utilizados monitores passivos e utilizado o método
seguido por Hammond 1, utilizado em estudos semelhantes realizados na Europa
11,12.
As amostras de nicotina no ar foram recolhidas através de um dispositivo de 37
mm de diâmetro, de plástico (monitor), contendo um filtro tratado com
bissulfato de sódio. Estes monitores, quando prontos, foram acoplados a uma
bomba através de um tubo com um fluxo de 2ml/min (fig. 1). A média de
amostragem foi de 30 minutos. Para cada amostra foram registados os seguintes
dados: o código da amostra; o tipo de estabelecimento (restaurante com mais de
100 m 2, com menos de 100 m 2, etc.); a localização do monitor no local; a data
da amostragem; o tempo de início e fim da amostra de ar e a política de fumo
(permissão de fumar, proibição completa de fumar ou proibição parcial com áreas
para fumadores). Registou-se ainda informação sobre o tipo de ventilação
existente em cada estabelecimento.
Figura 1 ' Dispositivo utilizado para monitorizar a nicotina no ar (bomba de
vácuo e monitor).
Para efeitos de controlo de qualidade, foram colocados filtros dentro de
monitores/dispositivos de amostragem (brancos) que não foram utilizados.
A análise de nicotina foi realizada no Laboratório de Saúde Pública da Agência
de Barcelona, utilizando o método de cromatografia gasosa/espectrometria de
massa.
Resultados
Conforme se pode ver na figura 2 e na tabela 1, a média da concentração de
nicotina presente no interior dos dois restaurantes e no café com menos de 100
m 2, em que se permite fumar, é de 6,29 μg/m 3, enquanto o valor registado no
interior do café onde é proibido fumar é de 1,1 μg/m 3. Estas concentrações são
em geral maiores que os valores encontrados no estudo anterior, onde a
concentração nos locais da hotelaria com menos de 100 m 2 teve uma mediana de
1,54 μg/m 3 de nicotina no ar 13.
Figura 2 ' Média de concentração de nicotina em restaurantes e cafés com menos
de 100 m 2.
Tabela 1 ' Concentração de nicotina, no interior e exterior, de
estabelecimentos de restauração e similares.
A concentração de nicotina no bar nocturno (onde se permite fumar) apresenta um
valor bastante elevado (9,42 μg/m 3), sendo aproximadamente três vezes mais
elevada dentro do que fora do bar e muito superior à que se verifica nos
restaurantes (fig. 3).
Figura 3 ' Média de concentração de nicotina em restaurantes e cafés com menos
de 100 m 2.
As concentrações mais elevadas foram encontradas na discoteca, quer na área
onde era proibido fumar quer na zona para fumadores, sendo os valores
respectivamente de 19,1 μg/m 3e de 10,2 μg/m 3. Constata-se ainda que a
contaminação do ar era superior na zona de não fumadores do que a registada na
área onde é permitido fumar (fig. 4).
Figura 4 ' Média de concentração de nicotina na zona de não fumadores e de
fumadores, de uma discoteca, com mais de 100 m 2.
Estes resultados estão em concordância com os dados obtidos por Nebot et al. 14
após a aplicação da lei espanhola, onde se constatou que, nos estabelecimentos
do sector da restauração e similares em que os proprietários optaram pela
permissão de fumar, a concentração de nicotina no ar era muito mais elevada do
que a que se registou nos locais onde os proprietários proibiram o consumo.
Conclusões
Os resultados sugerem que em locais da hotelaria (restaurantes e similares) com
menos de 100 m 2, onde é permitido fumar, há uma elevada contaminação do ar por
FAT. Em resultado desta contaminação, pode inferir-se que um número elevado de
trabalhadores está exposto ao FAT.
Os proprietários que permitiram o consumo de tabaco dentro dos estabelecimentos
não instalaram dispositivos eficientes para eliminar o fumo de tabaco no
interior (a maioria dispunha apenas de aparelhos de ar condicionado). O estudo
também sugere que as cortinas de ar usadas para separar as zonas onde é
permitido fumar e as áreas para não fumadores não são eficientes.
O relatório do US Surgeon General 6 refere que a evidência científica indica
que não há um nível de exposição ao fumo passivo sem risco para a saúde.
Os dados apresentados neste estudo sugerem a necessidade de reforçar a
implementação de políticas sem fumo nos estabelecimentos da restauração e
similares, especialmente em benefício da saúde dos trabalhadores e como medida
de reforço de um ambiente que torne mais fácil para os fumadores pararem de
fumar. Só uma proibição total de fumar parece ser eficiente para criar uma
atmosfera livre de tabaco no interior dos estabelecimentos da restauração. Mais
estudos, com mais participantes, são necessários para validar estas conclusões.