Poderá o efeito terapêutico da oração ser avaliado científicamente?
Poderá o Efeito Terapêutico da Oração ser Avaliado Científicamente?
Serafim Guimarães
Professor Catedrático Emérito da Faculdade de Medicina do Porto
Hoje avalia-se tudo, mede-se tudo. mas, às vezes, sem régua apropriada.
Em Biologia e em Medicina surge, frequentemente, a necessidade de quantificar
efeitos, quase sempre com o fim de os comparar. Mas, para se poder comparar
resultados é indispensável, primeiro, que eles tenham sido obtidos de forma
correcta e, segundo, que sejam comparáveis!
A variabilidade das respostas biológicas, a irrepetibilidade das condições
experimentais, a interferência de factores imprevisíveis, obrigam não só a um
enorme rigor na execução das experiências, mas também à sua paciente repetição
até que os resultados atinjam um significado que não deixe dúvidas. Não vai
muito longe o tempo em que para tirar conclusões bastava uma experiência que
convencesse quem a fizesse, em que as comparações eram feitas a ôlho e as
impressões funcionavam como o mais seguro dos métodos estatísticos. E até as
boas revistas aceitavam estes trabalhos, desde que eles fossem assinados por
autores com créditos firmados!
A maior atenção que a ciência tem vindo a merecer por parte dos diferentes
públicos, a maior consciência da necessidade de ser rigoroso, a maior
competição entre os cientistas pela obtenção de fundos elevou muito o nível de
exigência que hoje se coloca a quem investiga e publica. Há quem pense, mesmo,
que esse nível de exigência é, em alguns aspectos exagerado e poderá ser, em
parte responsável por certos desvios de conduta, talvez mais frequentes hoje do
que no passado. É certo que o número de investigadores cresceu exponencialmente
nos últimos anos e que as notícias correm mundo com uma celeridade e uma
difusibilidade quase inacreditáveis, levando a toda a parte e mais depessa a
notícia desses desmandos de comportamento, mas também não é de excluir que, por
força da necessidade de mostrar serviço, se tenha gerado uma certa quebra no
grau de honestidade de quem investiga.
Por outro lado, quando está em jogo comparar duas grandezas ou dois efeitos, a
comparação só poderá ser feita quando for idêntica a natureza daquilo que se
compara e quando tiverem sido excluídos os factores exógenos que podem
interferir na avaliação que se vai fazer.
Em suma, executar com rigor e avaliar com ética são exigências básicas para que
um resultado possa ser validado e assim constituir um passo em frente no
domínio do conhecimento ou fornecer uma conclusão segura que permita escolher
entre alternativas.
Quando o que se pretende é determinar ou comparar a acção de agentes
terapêuticos, os cuidados terão de ser redobrados, primeiro porque, qualquer
incorrecção que se cometa pode ter consequências imprevisíveis sobre esse bem
inestimável que é a saúde, segundo, porque está em jogo uma matéria propícia à
intervenção de interesses poderosos que podem modificar a essência do estudo,
quer aligeirando procedimentos, quer silenciando interferências que não
convenham e possam perturbar conclusões pré-estabelecidas.
Há que ter consciência de que, neste tipo de pesquiza podem intervir factores
controláveis uns, incontroláveis outros, capazes de distorcer os resultados,
mesmo que não haja interesses em jogo da parte de quem patrocina, gere ou
realiza a investigação: a fragilidade de quem depende, a expectativa de quem
aguarda, a superstição de quem imagina criam uma pré-disposição psicológica
que, favorecendo manipulações maldosas ou criando realidades falsas, podem
contribuir para fazer vingar conclusões erradas.
É por isso que é necessário evitar, tanto quanto possível, esse fenómeno que
tantas vezes dá cobertura ao embuste criado pela mente, a que se chama efeito
placebo.
Há, assim, a necessidade de acompanhar , com o maior cuidado possível, a
determinação do coeficiente eficácia/ risco dos medicamentos. Por extensão,
tem-se feito ou desejado fazer idêntica verificação da eficácia de outros meios
terapêuticos não medicamentosos tendo havido, até, quem tenha tentado avaliar o
efeito da oração na evolução das doenças.
No universo das ciências, a Farmacologia surgiu no fim do século XIX, como uma
extensão da Fisiologia e, por isso, os métodos de estudo que adoptou na sua
marcha investigacional foram, durante muitos anos, os da ciência-mãe de que
proveio. Só recentemente, com o alargamento das fronteiras do conhecimento
próprio e por força da diversificação dos seus objectivos, foi necessário criar
novas metodologias de estudo que, específicas a princípio foram, depois,
partilhadas ou aproveitadas por outras ciências. A técnica de marcação de
receptores com radioligandos e a técnica de validação do efeito terapêutico dos
medicamentos são invenção e património da Farmacologia. Na breve reflexão que
desejo fazer interessa considerar a segunda dessas técnicas de estudo, isto é,
a técnica dos ensaios clínicos nas suas diferentes modalidades (ensaio simples,
ensaio ocultado e ensaio duplamente ocultado) e estabelecer, para cada uma
delas, os limites da sua aplicabilidade, tendo em mente que nem tudo que é
possível é legítimo, nem tudo que é legítimo é lógico, nem tudo que é lógico é
possível! Aplicado a um medicamento para lhe avaliar a eficácia, o ensaio
simples, que consiste em verificar de forma aberta, portanto com conhecimento
de todos os intervenientes do que se vai passar, serve para pouco e só tem
sentido em situações raras e com um raríssimo número de medicamentos. O ensaio
ocultado, que consiste em esconder a natureza do medicamento que se vai
ministrar a quem o vai receber, sendo embora um método relativamente inseguro,
porque não permite excluir a influência, ainda que não intencional, de quem o
ministra pode, mais do que o anterior, servir de teste em determinadas
circunstâncias; e o ensaio duplamente ocultado que, não garantindo uma
segurança absoluta, uma eliminação total das influências estranhas
potencialmente actuantes, é aquele que oferece maior grau de fiabilidade,
porque permite esconder a natureza do medicamento a quem o recebe e a quem o
ministra. Por tudo isto, é esta terceira modalidade aquela que o rigor
científico exige e que, portanto, os cientistas elegeram para validar os
resultados dos estudos que realizam. Contudo, apesar da blindagem que oferece
quanto à interferência de factores exógenos potencialmente perturbadores da
validade das conclusões, este método não permite testar a acção de todo e
qualquer agente terapêutico. A sua aplicabilidade é necessariamnete
condicionada pela natureza desse agente. Assim e tendo em mente o tipo de
agente terapêutico a testar e a circunstância da sua utilização, podemos
considerar três situações ou três graus de exequibilidade: 1) exequibilidade
teórica e prática; 2) exequibilidade teórica e inexequibilidade prática, 3)
inexequibilidade teórica e prática.
Quando está em jogo o estudo da acção terapêutica de um medicamento para lhe
determinar o coeficiente eficácia/risco, esse é um objectivo que pode ser, deve
ser, e é reconhecidamente atingível. E hoje ninguém admite que haja um
medicamento que não tenha passado por essa pesagem cega, por esse crivo
discriminador. Os raros produtos medicamentosos que por aí andam sem ter sido
objecto desse julgamento imparcial têm os dias contados.
Noutros casos a utilização do método é teoricamente possível, mas praticamente
irrealizável. Quem é que não gostaria de ver demonstrada, com a força da
irrefutabilidade científica, a acção das águas mineromedicinais, nas diferentes
patologias para que, há séculos, vêm sendo empiricamente recomendadas? Contudo,
essa tarefa racionalmente coerente e baseada numa metodologia lógica na sua
concepção é, praticamente, impossível. Às dificuldades que têm de ser
ultrapassadas para levar a bom termo um estudo desta natureza, no caso de um
medicamento, como coleccionar dois grupos de doentes numericamente
representativos, com as mesmas patologias e com um grau semelhante de
gravidade, do mesmo sexo, com pesos semelhantes, as mesmas idades, etc., seria
necessário submeter esses doentes a um regime de internamento que desse a
garantia de disciplina durante todo o decurso do estudo. Seria indispensável
uma equipa de médicos, enfermeiros e outros auxiliares dos serviços de saúde
capazes do desempenho requerido. Mas, mais do que isso, e dado que as águas
minero-medicinais só são detentoras de todas as suas qualidades terapêuticas à
saida da fonte o contacto com a atmosfera introduz-lhes alterações mais ou
menos profundas consoante o seu tipo químico e, por isso, se diz que as águas
minero-medicinais começem a morrer logo que brotam da fonte -, seria
indispensável criar qualquer coisa como um hospital bem apetrechado na estância
termal onde se desejasse fazer esse tipo de estudo. Contudo, no fim do ensaio e
qualquer que fosse o resultado obtido, ele nunca seria generalizável a todas as
águas minero-medicinais. Assim como é necessário fazer a demonstração de
eficácia relativamente a cada medicamanto seria, também, necessário fazer essa
demonstração para cada uma das diferentes águas minero-medicinais, porque cada
uma delas só se representa a si própria - há águas mineromedicinais de um mesmo
tipo químico, mas não há duas águas minero-medicinais iguais! Assim, este
estudo quase impossível de ser posto em prática, só seria válido para uma única
estância termal, aquela onde foi realizado! Seria, pois, necessário repetir
tudo o que acima se disse relativamente à selecção dos doentes e, mais ainda,
construir, em cada uma das estâncias, um hospital termal que reunisse todas as
condições necessárias à validade do estudo, de modo a que todas as exigências
metodológicas pudessem ser inequivocamente satisfeitas.
Teoricamente possível, praticamente irrealizável!
A trerceira situação é praticamente impossível porque é teoricamente absurda.
Tem havido algumas tentativas para estudar o efeito da oração na cura ou nas
melhoras de quem sofre. Num excelente artigo publicado na revista Brotéria, o
Prof. João Lobo Antunes refere várias tentativas de estudo sobre o efeito
curativo da oração e nomeia dois deles em que os autores investigaram, de forma
mais ou menos controlada, o efeito da oração na evolução de doenças chegando a
conclusões antagónicas. Num deles demonstrou-se uma correlação positiva entre
oração e uma evolução clínica favorável e no outro chegou-se à conclusão
contrária: a evolução das doenças não foi significativamente diferente nos dois
grupos.
Não sei se nesses estudos a técnica usada foi correcta. Não é difícil admitir
que tenha sido e, aparentemente, do ponto de vista técnico não parece haver
razões conceptuais que o entravem.
Aparentemente a técnica da ocultação poderia ser adoptada e os cuidados a ter
seriam os exigidos para o estudo do efeito de qualquer medicamento. Doentes com
patologias semelhantes e equiparados, também, nas outras condições, seriam
divididos em dois grupos, tanto quanto possível, semelhantes. Metade desses
doentes constituiria um grupoprotegido, isto é um grupo por quem familiares,
amigos e eles próprios fariam as suas preces e a outra metade seria constituida
por doentes sem Fé e que, portanto, nem por si mesmos nem por qualquer
interferência vinda de fora, iriam beneficiar de qualquer apoio sobrenatural.
Ora é aqui que surge o obstáculo intransponível. Primeiro, porque o valor desta
ou daquela oração é indeterminável. Nunca ninguém saberá quanto vale esta ou
aquela oração. É do Evangelho: Nem todo aquele que diz Senhor, Senhor,
entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus (Mt. 7, 21) É o mesmo que, de modo claríssimo, se repete na parábola do
fariseu e do publicano (Luc, 18; 9) que é, dolorosamente explícita
relativamente a este aspecto : Subiram dois homens ao templo para orar: um era
fariseu , o outro publicano; ambos foram fazer as suas preces, cada um à sua
maneira. Contudo, o publicano saiu justificado e o fariseu não. Segundo, porque
s e admitimos o valor da oração, como é que podemos excluir o apoio dado
pelas incontáveis orações que a todo o momento são lançadas no incomensurável
pool onde vão parar as preces de quem reza pelos mais abandonados, desse pool
onde, provavelmente, vão cair as orações mais valiosas por serem esponâneas,
anónimas, liberais, aquelas que, aos nossos olhos, parecem poder reflectir a
mais pura, autêntica e heróica generosidade? Como controlar ou pesar essas
influências?
Como é sabido em todas as igrejas de todas as religiões muitos crentes
individualmente e muitas comunidades em conjunto oram pelos mais abandonados,
por quem não têm quem interceda por eles. Ora este capital de oração que os
milhões de crentes vão acrescentando em todas as horas de todos os dias, vai
interferir de forma incontrolável nesse estudo comparativo, anulando qualquer
veleidade de rigor e retirando todo o valor estatístico ao estudo por mais
teoricamente independente e cientificamente organizado.
A oração de uma só pessoa que ore bem pode ser mais válida do que a de muitas
que orem mal!
Além disso, estará alguém à espera de um resultado positivo num ensaio de dupla
ocultação para alcançar a Fé? Quantos cientistas encontraram a Fé na senda das
suas descobertas? O que é que um hipotético resultado estatisticamante
significativo a favor de uma influência favorável acrescentaria a tantos e
eloquentes testemunhos relatados nos Evangelhos e a tantos sinais que a vida
todos os dias mostra a quem andar atento?
Em Julho de 1903, no mesmo comboio, rumo a Lourdes seguiam dois descrentes:
Émile Zola, escritor e Alex Carrel, médico que acompanhava Marie Ferrand uma
jovem francesa, minada por uma peritonite tuberculosa em estado terminal e que
se dirigia àquele Santuário, agarrada à última esperança - a de um milagre! Ao
inteirar-se da situação e vendo com os seus olhos de leigo o estado da doente,
que a morte ameaçava vencer a qualquer momento, Zola exclamou para o seu amigo,
com uma adesão aparentemente total e comprometida da inteligência -Se esta
doente se curar, eu acreditarei. Em Lourdes, do banho onde entrou moribunda
Marie Ferrand saiu curada. Nem Alex Carrel nem Émile Zola entenderam o
fenómeno, mas enquanto que Carrel, que não tinha feito qualquer jura se
converteu, Zola, que tinha apostado, permaneceu descrente.
A Fé não depende de modas, não provém de um capricho, nem sai na lotaria. A Fé
tem pouco a ver com o saber, com a inteligência, com a cultura e também não se
resolve com uma aposta! Tem a ver, sobretudo, com o propósito sincero de a
alcançar e com o criar as condições para que ela surja e se conserve. Ser
humilde é a porta de entrada, amar é a condição para que permaneça.