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EuPTCVHe0871-34132005000300006

EuPTCVHe0871-34132005000300006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0871-3413
Year2005
Issue0003
Article number00006

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As faculdades de medicina e a formação dos médicos: algumas reflexões sobre certezas incertas As Faculdades de Medicina e a Formação dos Médicos.

Algumas Reflexões Sobre Certezas Incertas Francisco Carneiro Chaves Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Submersos por uma avalanche de textos, muitos deles destituídos de qualquer originalidade ou interesse, por múltiplas interrogações, dúvidas e incertezas a que a esses textos não dão resposta , reflectir sobre o ensino médico é tarefa difícil.

De uma tentativa de reflexão teórica sobre o tema , provavelmente, iria resultar mais um desses textos que apenas contribuiria para a retórica das boas intenções, a que muita da literatura nesta área nos habituou. Por isso o objectivo que pretendo é apenas transmitir aquilo que considero certezas adquiridas ao longo de quarenta anos de actividade docente, de vida profissional e de estudo destes problemas.

Dizer certezas num terreno tão movediço como é o do ensino médico é pretensioso mas como não é possível agir sem convicções atrevo-me a assim qualificar as afirmações que irei a seguir apresentar. Entenda-se que ao afirmar que para mim, neste momento, existem certezas ou dados adquiridos, o faço sem esquecer que ninguém está de posse da verdade definitiva. Tudo o que aceito e em que baseio a minha actividade é questionável, tem um valor relativo e pode ser em cada momento posto em causa quer pelos outros quer por mim próprio. A verdade é relativa e efémera e ao longo do tempo poderemos pensar de forma diferente porque a experiência a isso nos obrigou ou porque a nossa circunstância também se modificou, sem que isso possa ser considerado incoerência ou, muito menos, oportunismo ou modismo.

A formação dos médicos estará sempre em questão, a necessidade de sobre ela reflectir e a sua avaliação deverão ser sempre preocupação dos que nela estão envolvidos, mas nenhuma dessas actividades poderá exercer-se de forma a por em causa a eficácia do que vai sendo feito. Por outras palavras não poderá de uma actividade reflexiva levada ao extremo resultar uma atitude espectante que ponha em causa a sobrevivência das Instituições.

Um outro ponto prévio que deverá servir de pano de fundo ao que chamo certezas adquiridas e que por isso deve estar sempre presente, é a afirmação de que essas certezas devem ser vistas na perspectiva de um reformismo. Para Instituições com uma longa história, é a única via aceitável de mudança, ainda que com dificuldades e limitações reconhecidas.

Convém a este respeito lembrar aos que assumem uma posição crítica que ao longo de muitos anos estas Instituições têm formado muitas gerações de médicos, entre os quais se incluem aqueles que no momento actual garantem de uma forma eficaz os cuidados às populações, o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde e a formação de novos profissionais.

As afirmações a que adiante me irei referir são princípios em que, a meu ver, deve alicerçar-se um projecto de ensino/aprendizagem seja ele de uma disciplina, de uma Área ou de uma Faculdade.

1. A formação do médico é um contínuo que , iniciadono primeiro ano do Curso, se deve prolongar durante toda a sua vida profissional.

Nesse contínuo inclui-se a formação pré-graduada, que entre nós se pretende completar com o Internato Geral, a formação pós-graduada que conduz à especialização, a sub-especialização e a formação profissional continua, designação que julgo preferível à de educação contínua ainda utilizada.

Daqui decorre que a formação pré-graduada é apenas uma etapa da formação dos médicos, um tempo e um espaço no qual se inicia a formação que inevitavelmente tem de ser completada e continuada. Durante essa fase deverão construir-se os alicerces sobre os quais irá assentar toda a restante formação. Creio ser neste momento um ponto assente, nesta parte do mundo em que nos inserimos, que a formação pré graduada confere, apenas, a formação básica que a formação pósgraduada irá completar e a formação profissional contínua permitirá actualizar e quando necessário corrigir.

O licenciado em Medicina não é ainda um profissional médico mas dispõe da formação básica que lhe permitirá adquirir a qualificação profissional.

2. Se a formação pré-graduada é da exclusiva competência das Faculdades de Medicina elas devem inter-vir também de uma forma institucionalizada na formação pós-graduada e na formação profissional contínua.

Esta afirmação não exclui a intervenção de outras Instituições nestas fases da formação, mas o que pretendo é realçar que o planeamento da formação não deverá ser feito sem o concurso das Faculdades de Medicina, da mesma forma que estas aceitam a participação de outras Instituições no planeamento e prática dessa formação. Referimo-nos ao Ministério da Saúde e à Ordem dos Médicos Instituições que têm, entre nós, a responsabilidade da formação pós-graduada.

A criação de uma estrutura que envolvesse as Faculdades de Medicina, o Ministério da Saúde e a Ordem dos Médicos permitiria um espaço de diálogo e uma coordenação da formação dos médicos que entendemos indispensável.

A atitude crítica frequentemente assumida que pretende atribuir dificuldades ou erros na formação dos médicos às Faculdades de Medicina é inaceitável se tivermos presente que elas apenas são responsáveis pela formação pré-graduada.

Ao centrar as críticas nesta fase da formação, procura fazer-se esquecer ou ocultam-se os problemas e dificuldades relativos à formação pós-graduada e à formação profissional contínua cuja programação e prática não são da responsabilidade das Faculdades de Medicina.

Planear e por em prática toda a formação dos médicos é tarefa demasiado vasta e complexa para que alguém ou alguma Instituição isolada a pretenda solucionar. A participação das Faculdades de Medicina, das organizações responsáveis pela prestação de cuidados médicos e a representativa dos profissionais que os vão prestar é indispensável se pretendemos que o sistema funcione de uma forma harmónica, eficiente e eficaz. Convém ter presente que a prática médica e o funcionamento de todo o sistema de cuidados de saúde, público ou privado, depende em larga medida da formação dos médicos que nele trabalham.

3. A formação dos médicos inclui dois componentes :a educação e o treino.

Embora a educação e o treino devam sempre estar presentes seja qual for a fase da formação, o realce deverá ser diferente consoante essa fase. Na formação pré-graduada a prioridade será dada à educação enquanto o treino será apenas iniciado.

A importância da educação será facilmente aceite se pensarmos que ela se destina a ensinar a aprender e é para toda a vida enquanto o treino poderá ser adquirido durante a pós-graduação ou em qualquer momento da vida profissional.

O treino sem a educação conferirá apenas a capacidade de execução de gestos que embora indispensáveis para a vida profissional pouco serão sem os conhecimentos e as atitudes que definem a profissão.

Na formação pós-graduada o ênfase será posto no treino, embora sem perder de vista a educação sempre indispensável.

Será também da educação que nascerá o estimulo que irá conduzir à procura da formação profissional contínua em que os médicos deverão participar de uma forma activa e crítica que lhes permitirá reconhecer as acções de formação dignas de crédito. médicos educados saberão reconhecer em cada momento as suas carências ou dificuldades e saber procurar onde, quando e como as solucionar.

4. As disciplinas básicas são um componente indis-pensável da formação.

É através do ensino de Áreas como a Morfologia, a Fisiologia, a Bioquímica, a Farmacologia, a Imunologia, a Microbiologia, a Genética e outras que se incluem nas chamadas disciplinas básicas que o futuro médico adquire as bases científicas da sua formação.

A aprendizagem não será apenas dos conhecimentos, mas irá também incluir o método científico que irá permitir ao futuro médico adquirir o rigor e a capacidade crítica para a sua acção na vida prática. Desta forma o ensino das disciplinas básicas não se deverá limitar à transmissão de conhecimentos mas terá um lugar importante no domínio das atitudes.

Toda a informação constantemente posta em questão deverá ser avaliada através da investigação. Abrem-se assim as portas para a investigação clínica e para a atitude crítica que define o médico educado. Creio ser pelo ensino/aprendizagem destas Áreas que se irá transmitir a importância da investigação nos diferentes domínios, cujos resultados se reflectem na prática médica.

O futuro médico aprenderá a rapidez com que os conhecimentos se tornam obsoletos, fácil de demonstrar perante os avanços da ciência e o contributo que o progresso científico traz para a prática clínica.

Apesar da enorme importância que temos de reconhecer ao ensino das Áreas básicas, os responsáveis destas Áreas nunca poderão deixar de ter em conta que estão a contribuir para a formação de futuros médicos. Penso que este é um desafio permanente à capacidade dos Professores para definir o essencial e separar o acessório.

Conhecer o essencial para os futuros profissionais, não creio ser possível por pessoas que não tiveram formação médica, o que conduz a uma conclusão a meu ver inevitável - o ensino destas Áreas nas Faculdades de Medicina deve ser feito sob a responsabilidade de licenciados em Medicina que obviamente se diferenciaram nessas Áreas. A colaboração, também indispensável, de pessoas com formação diferente - morfologistas, bioquímicos, biólogos, farmacologistas, imunologistas, microbiologistas, geneticistas - penso que deverá ser feita sob a orientação de Professores com formação médica o que irá permitir a noção dos limites e da distância que entre o médico e os cultores não médicos dessas Áreas.

Assumida esta posição, necessariamente devo concluir que no modelo de Faculdade que defendo, a aprendizagem deve entender-se como um todo sem uma separação rígida entre um ciclo básico e um ciclo clínico. A Faculdade será também um todo com um objectivo único: a formação de futuros médicos.

Tão precocemente quanto possível, o futuro médico deverá entender a razão porque necessita dos conhecimentos das Áreas básicas para o exercício da sua profissão e à medida que progride na aprendizagem clínica , deverão os conhecimentos e atitudes que aprendeu nas Áreas básicas ser recordados.

5. O Curso de Medicina é um curso profissionalizante.

Ao fazer esta afirmação não esqueço o que afirmei antes sobre o que constitui a formação médica em que a formação básica adquirida durante o curso de Medicina se insere. Não esqueço também o que afirmei a propósito do ensino das Áreas básicas, mas o que pretendo neste momento é lembrar que a grande maioria dos alunos de medicina tem como objectivo a aprendizagem de uma profissão.

Creio que a melhor forma de conseguir esta aprendizagem é, no momento actual, o ensino por Blocos ou Rotações. Nesta forma de organização da aprendizagem, o aluno concentra durante uma ou mais semanas a sua aprendizagem numa disciplina clínica, em regra identificada com uma especialidade.

A organização do ensino por Blocos foi a consequência do ratio docente/discente imposto de uma forma indiscriminada que não teve em conta a especificidade do ensino clínico. Contudo ainda que essa forma de organização do curriculum tivesse resultado de uma necessidade teve a virtude de, com todas as dificuldades conhecidas, ter permitido o ensino tutorial, a integração dos alunos na vida prática e um maior respeito pelos direitos dos doentes que as aulas práticas com turmas mais ou menos numerosas não permitiam. A aprendizagem é assim possível no seio da vida profissional, o que permite afirmar que o percurso para a profissão, a via que o aluno iniciou no primeiro ano, se aproxima do que será a sua actividade futura.

Necessariamente por em prática esta forma de organização é possível pelo recurso aos profissionais que desempenham a prática em que o aluno se insere, isto é, que não ensinam abstracções mas fazem parte da realidade que será a do futuro médico.

Reconhecer ou aceitar este facto não implica que a Faculdade perca a sua característica primordial de estrutura universitária ou académica, indispensável para transformar o que poderia ser a simples aprendizagem de um ofício, o que pode ser feito de forma artesanal, na aprendizagem de uma profissão que exige uma formação superior Por isso, aos responsáveis a quem deve competir a organização desta forma de ensino deverá ser exigida para além da qualificação profissional, a qualificação académica que irá permitir manter o espírito universitário que a formação dos médicos exige.

6. O curso de Medicina deve ter como estrutura fundamental de apoio um Hospital.

Este Hospital que pode ser designado de maneiras diferentes- Hospital Universitário, Hospital Escolar, Hospital de Ensino, Hospital Nuclear- constitui a estrutura fundamental em se apoia a formação dos alunos. A designação pouco importa desde que se reconheça a especificidade destes Hospitais.

Porque o ensino clínico é orientado para o doente, como em todos os hospitais a função assistencial terá prioridade sobre todas as outras. Contudo, o facto de estes hospitais serem um local de aprendizagem de futuros médicos que iniciam a sua formação confere-lhes particular responsabilidade. A excelência que se exige porque é o modelo em que se apoia a aprendizagem, deve abranger todas os aspectos da prestação de cuidados e constituirá o suporte indispensável para a investigação clínica, um outro objectivo que justifica a existência destes hospitais.

A presença dos alunos que devem ser esclarecidos desde a sua entrada na Faculdade das regras de comportamento exigíveis a todos os que exercem a sua actividade num hospital, tem necessariamente repercussões na própria estrutura física traduzida pela necessidade de espaços, anfiteatros e na atitude de outros profissionais de saúde que reconheçam como indispensável a presença dos alunos.

A criação nestes hospitais de um quadro único em que a carreira hospitalar e a carreira académica se articulem é indispensável e por isso deve ser considerada uma prioridade. A criação deste quadro ao alargar o número de participantes no ensino dos alunos , permitirá resolver os problemas dos ratios e manter o ensino tutorial que se deseja.

O reconhecimento da especificidade deverá também ser recordado a propósito das chefias médicas dos Serviços e Departamentos que devem respeitar a qualificação profissional mas ter em conta que essa qualificação não confere qualificação académica. A obtenção desta qualificação deve ser estimulada, o que irá contribuir para o desenvolvimento da investigação clínica que com o apoio, muitas vezes necessário, das Àreas básicas irá fortalecer a coesão da Faculdade. A obtenção de titulos profissionais sem a prestação das provas que a carreira profissional exige é tão indesejável como a obtenção de titulos académicos sem que as provas da carreira académica tenham sido prestadas. Um e outro caminho não são prestigiantes para as Instituições.

A gestão e o financiamento destes Hospitais terão também de ter presente esta especificidade sob pena de toda a organização poder ser posta em causa por não poder respeitar os princípios em que baseia o seu funcionamento. Desde que estes sejam aceites e as regras claramente definidas, a legislação adequada que até este momento não existe surgirá sem dificuldades e de forma clara permitirá o funcionamento destas instituições Hospitais/Faculdades, sem a conflitualidade que a indefinição e a ambiguidade acarretam.

7. O ensino dos alunos de Medicina deve completar-se fora do Hospital.

Um dos objectivos fundamentais do Curso deverá ser por os alunos em contacto com a realidade que é a prática da Medicina clínica. Esta não se limita à prática hospitalar e toda a medicina do ambulatório que muito parcialmente pode ser vivida nas consultas hospitalares. O contacto com a Clínica Geral realizada nos Centros de Saúde, quer em meio urbano quer em meio rural, é uma experiência que considero da maior importância para a formação dos futuros médicos.

A possibilidade de alargar esta experiência aos consultórios privados seria enriquecedora mas não creio que seja possível pô-la em prática a curto prazo.

Quem tem experiência da vida clínica sabe que se vive uma realidade diferente que faz parte do todo da nossa organização social.

8. Novas Áreas devem ser incluídas na formação prégraduada.

Não me refiro aqui aos progressos das ciências biológicas que compete às Áreas básicas incluir nos seus programas o que de resto tem sido feito, nem aos progressos tecnológicos que a Medicina clínica incorpora na sua prática.

Refiro-me às profundas mudanças da sociedade em que vivemos a que as Faculdades de Medicina têm de estar atentas, pelas profundas repercussões que sobre elas se fazem sentir. A melhor forma de manter as Faculdades abertas a essas mudanças reside, a meu ver, na criação de um serviço ou Departamento de Sociologia Médica cuja função mais importante seria servir de alerta para toda a Instituição das mudanças económicas, sociais e políticas que influenciam, de forma impossível de evitar, todo o funcionamento das Instituições e se reflectem também na prática da Medici-na. As actividades de um Serviço ou Departamento organizado com este objectivo, que incluiria um Gabinete de Formação Médica, poderiam constituir o motor capaz de estimular as mudanças indispensáveis para que as Faculdades de Medicina exerçam as funções para que estão vocacionadas e que a Sociedade lhes exige.

Conclusão As certezas que afirmei ao longo deste escrito constituem princípios que entendo podem servir como referência à acção dos que têm responsabilidade na formação pré-graduada de futuros médicos. Como princípios procurei explicitá- los de uma forma que julgo clara de modo a que possam ser úteis para a solução de problemas que urge resolver.

Como afirmo no título, são certezas incertas. Como todas as afirmações têm um grau de incerteza maior ou menor, consoante quem as avalia, e o momento em que são avaliadas. São, por isso passíveis de críticas que podem conduzir a outras certezas, também elas incertas, de novo abertas a novas formulações.

Seja como for, em cada momento é indispensável partir de um certo número de princípios que permitam ultrapassar a fase contemplativa que a reflexão indispensável exige, para passar à acção no sentido de resolver problemas desde muito equacionados.

Correspondência: Prof. Carneiro Chaves Av. dos Combatentes da Grande Guerra, nº33 4200-188 Porto


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