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EuPTCVHe0871-34132005000400004

EuPTCVHe0871-34132005000400004

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0871-3413
Year2005
Issue0004
Article number00004

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A Manobra de Carnett

INTRODUÇÃO Os síndromos dolorosos abdominopélvicos crónicos têm causas e apresentações clínicas muito variadas explicando a longa e interminável lista de exames auxiliares e complementares de diagnóstico a que em regra cada um destes pacientes é submetido. A tendência para considerar as vísceras abdominais como ponto de partida de toda a dor abdominal crónica, particularmente quando em ausência de tumorações perceptíveis relega para plano secundário, com tendência ao olvido, as causas parietais. A minorização de algumas manobras exploratórias semiológicas em favor da plétora de exames subsidiários hoje disponível ajuda a complicar o conjunto e a atrasar o diagnóstico. Este facto faz com que se submetam doentes a exames não apenas dispendiosos, como incómodos e perfeitamente desnecessários e inúteis (1).

O propósito deste trabalho é chamar a atenção para a simplicidade e utilidade da manobra de Carnett na identificação de dores com origem na parede abdominal, onde se incluem as nevralgias dos perfurantes abdominais anteriores, problema frequentíssimo nas consultas de ginecologia mas que em regra passa desapercebido por não identificado.

DESCRIÇÃO A manobra de Carnett foi descrita em 1926 com a finalidade de diferençar as dores parietais das viscerais abdominais (2). Tal como proposta originalmente, du- rante o exame do doente, em posição supina, é identificado, com a maior precisão possível, o ponto de maior intensidade dolorosa abdominal. Depois e, enquanto se mantém a pressão, solicita-se ao paciente que cruze os braços sobre o peito e se mobilize para se sentar, sendo interrompido o movimento que realiza quando a meio do respectivo trajecto. A manobra é considerada positiva se a dor persistir ou, mais caracteristicamente, aumentar de intensidade.

Na prática, atendendo ao esforço a que obriga a descrição inicial, recorre-se a uma pequena modificação que consiste em solicitar ao paciente apenas a elevação da cabeça (1,3), sem apoio dos membros, com a vantagem de não distorcer a anatomia abdominal ao sentar-se (3).

Segundo Freeman (4) o simples pinçamento da pele e do tecido celular subcutâneo dará os mesmos resultados sem os seus inconvenientes.

CASO CLÍNICO Doente de sexo feminino, na quarta década da vida, que consulta por dor intermitente em picada na região baixa do abdómen, sempre localizada à mesma área. É portadora de um conjunto de exames realizados, todos normais, mas numa ecografia pélvica foi identificada uma formação cística ovárica, a qual se supõe poder ser a causa da dor.

O exame ginecológico não põe em evidência nenhuma alteração significativa, mesmo ao toque, verificando-se durante a realização de ultrassonografia que a compressão ovárica com a sonda transvaginal provoca desconforto, sensação que é porém totalmente distinta da picada que a doente sente espontaneamente e que motivou a realização do exame.

A exploração abdominal permite identificar um ponto de dor à compressão, na linha semilunar, 3 dedos de través acima do púbis, cuja intensidade aumenta significativamente com a manobra de Carnett modificada e regride quase totalmente com a infiltração com 15 cm3 de lidocaína a 1%.

DISCUSSÃO O caso descrito é exemplo paradigmático, o qual, com as previsíveis variações topográficas e de intensidade, se encontra com extrema frequência nas consultas de ginecologia, embora apenas ocasionalmente como sintoma predominante.

A chamada dor abdominal inespecífica define-se com base numa duração mínima de 7 dias e por se lhe não descobrir justificação orgânica, sendo o quadro doloroso abdominal mais frequente em cirurgia (5). Dentro deste grupo se insere a dor de origem parietal, definida como dor fixa ou localizada e superficial ou limitada a ponto ou área de diâmetro inferior a 25 mm ou um sinal de Carnett positivo (6), que representa entre 15 e 20% das situações de dor que recorrem a serviços especializados ou de urgência (7), e que não é diagnosticada com a devida frequência por não ser procurada. Representa, aliás, uma causa importante de consumo de meios complementares, que a sucessiva negatividade de uns origina o recurso a outros de forma sequencial mas quase interminável.

As causas parietais comuns que justificam uma manobra positiva são a lesão muscular, a miosite ou a compressão nervosa, sendo esta sem dúvida a predominante. Idênticos problemas podem justificar a existência de dor pélvica crónica (8).

Os nervos perfurantes abdominais anteriores são ramos parietais que correm perpendicularmente aos planos musculares da profundidade para a superfície. O seu trajecto originalmente rectilíneo ou em baioneta (9), pode modificar-se pela retracção musculo-aponevrótica que em menor ou maior grau ocorre após laparotomia. O uso de vestuário demasiado apertado pode funcionar como factor desencadeador (9). Os ramos mais frequentemente afectados pela compressão extrínseca são os que se localizam lateralmente aos músculos rectos a diversos níveis, sobretudo nas fossas ilíacas e hipocôndrio direito (1), e que motivam o que as consulentes frequentemente referem como picadas nos ovários, sobretudo em resposta ao movimento ou ao esforço.

Nas nevralgias crónicas por compressão, sobretudo nas pós-cirúrgicas, como após herniorrafia inguinal, a dor, ao contrário da pós-operatória, manifesta-se não de forma isolada mas em associação a parestesia, hipostesia e disestesia, podendo ter intensidade variável e ser mesmo perturbadora (10).

Aplicada às nevralgias dos perfurantes, a manobra de Carnett baseia-se na identificação dos pontos álgicos de maior intensidade que correspondem em princípio ao ponto de emersão dos nervos afectados, semiologicamente também chamado sinal de Tinel. É quase cerca de 4 vezes mais frequente na mulher do que no homem, e surge em particular nas que foram submetidas a laparotomia (1,6).

Deve salientar-se que o facto da manobra de Carnett evidenciar comprometimento da parede não exclui naturalmente as situações em que haja envolvimento do peritoneu parietal, o que não pode ser verdadeiramente considerado como resultado positivo falso (1).

A procura duma causa parietal deve ser cuidada particularmente quando os sintomas e os sinais não se enquadram num conjunto sugestivo de patologia intraabdominal (11). A técnica de localização do ponto doloroso com a ponta dum dedo é importante para sugerir uma causa parietal tanto mais que a maioria corresponderia aos locais de emergência dos ramos cutâneos anteriores dos nervos intercostais através da bainha dos rectos em situação medial em relação à linha semilunar (11). Segundo Hall e Lee (11) quando sob tensão pode mesmo sentir-se uma pequena depressão na bainha dos rectos a qual na sua opinião corresponderá ao orifício de emergência nervosa, mas que parece ser dificilmente perceptível.

Nos casos em que as manobras dão resultados duvidosos deve pesquizar-se sistematicamente a celulalgia abdominal, através da palpação suave mas firme da prega cutâneoadiposa suprapúbica, e que pode pôr à evidência um problema psicossomático (8).

TRATAMENTO A verdade é que a simples compreensão do problema pelo doente é suficiente como terapêutica em muitos dos casos (3), fenómeno suportado pelo facto de, segundo alguns autores, o quadro resultar fundamentalmente duma somatização de desequilíbrios psicológicos (8), o que reforça o interesse de se realizar um correcto diagnóstico. As aplicações quentes locais poderão ainda facilitar a descompressão neuronal pelo relaxamento muscular que induzem.

A terapêutica consiste preferencialmente na infiltração do ponto doloroso através duma agulha 21 gauge com uma mistura de 1 ml lidocaína e corticóide de acção prolongada. Serão de esperar respostas favoráveis em mais de 75% dos casos (1,6,12). Deve salientar-se que os pontos de atingimento nervoso se localizam num plano profundo em relação à bainha anterior dos rectos, o que é importante para que a infiltração de anestésico se realize adequadamente, sobretudo nos obesos (11).

Quando se pratica a infiltração anestésica do ponto doloroso devem realizar-se revisões cada 4 semanas com repetição do tratamento se necessário (1).

Nos casos de dor persistente relacionada com uma cicatriz cirúrgica deve realizar-se a sua remoção (1). A neurotomia é o tratamento mais agressivo e por isso em regra considerado de última linha, excepto nas nevralgias secundárias às herniorrafias inguinais em que parece consituir a modalidade de eleição.

CONCLUSÃO Em toda a paciente com dor persistente intermitente referida a um ponto ou área fixa da parede abdominal deve pôr-se a hipótese de a sua causa poder ser devida a dor neuropática. A realização da manobra de Carnett permite a identificação do problema que é facilmente confirmado pela repetição da prova após infiltração com anestésico local. Esta constitui-se frequentemente mesmo em solução terapêutica.


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