Angiomatose Bacilar em Doente Imunocompetente
A Propósito de um Caso Clínico
INTRODUÇÃO
As Bartonella são pequenos bacilos Gram-negativos,
intracelulares facultativos que aderem e invadem as
células endoteliais e os eritrócitos. São de crescimento
lento e requerem sangue (5 –10%) e um ambiente rico
em CO2 para o seu isolamento (1).
Incluem várias espécies, algumas patológicas para o
Homem, principalmente, Bartonella henselae, Bartonella
quintana, Bartonella bacilliformis...
A Bartonella henselae tem como reservatório os gatos,
principalmente aqueles com menos de um ano de idade,
causando-lhes bacteriémia, sem evidência de doença.
A transmissão humana de Bartonella henselae faz-se
através dos arranhões e mordidas desses gatos.
A Bartonella quintana tem como reservatório o
Homem e transmite-se através do piolho humano. A sua
infecção está associada a condições socio-económicas
precárias.
A Bartonella bacilliformis tem também como reservatório o Homem e transmite-se pela picada de Phlebotomus, um insecto existente na área geográfica dos
Andes.
Estes agentes causam um amplo espectro de doenças,
incluindo Verruga peruana, Angiomatose bacilar, Peliose
bacilar, Febre Oroya, Febre das trincheiras, Doença da
arranhadura do gato, endocardite e bacteriémia. A Doença
da arranhadura do gato é a manifestação humana mais
comum provocada pela infecção por Bartonella.
As manifestações da infecção variam com o estado
imunológico do doente (2,3). Assim, a Bartonella henselae, em doentes imunodeficientes geralmente causa uma
resposta angiogénica característica da Angiomatose
bacilar e, em doentes imunocompetentes, uma resposta
granulomatosa característica da Doença da arranhadura
do gato.
CASO CLÍNICO
Trata-se de um homem com 29 anos, sem antecedentes relevantes, sem viagens recentes ao estrangeiro, sem
medicação habitual e com dois animais domésticos (um
gato com mais de 1 ano de idade e um cão).
O doente apresentou quadro clínico de rinorreia serosa,
tosse não produtiva, odinofagia e mialgias generalizadas,
com duas semanas de evolução. Seguidamente, surgiu
uma primeira lesão eritemato-papular na falange distal
do 2º dedo da mão esquerda e, durante um mês, houve
extensão de lesões eritemato-papulares dolorosas pelo
corpo. O doente não apresentava outras queixas.
Foram-lhe pedidos vários exames auxiliares de diagnóstico, nomeadamente, análises com hemoglobina
de 15,5 g/dL, plaquetas de 238x109/L, TGO, TGP, ureia
e creatinina normais, proteína C reactiva ligeiramente
elevada (8,3 mg/L) e velocidade de sedimentação normal. O sedimento urinário era normal e as serologias de
rotina, isto é, anticorpo IgM para o vírus Herpes simplex
1 e 2, anticorpo IgM para Toxoplasma gondii, reacção
de T.P.H.A. e reacção de VDRL, anticorpo IgM do Citomegalovírus, anticorpos da Borrelia burgdorferi (Doença
de Lyme), reacção de Wright, anticorpo IgM do vírus
da Rubéola eram negativas. A radiografia torácica e o
electrocardiograma não mostraram alterações. O estudo
imunológico foi normal, com contagem de linfócitos T CD4+
de 1154/mm3. Os marcadores víricos para a Hepatite
B, nomeadamente, anticorpo anti-HBs, antigénio HBs,
anticorpos IgM e IgG anti-HBc foram negativos e para a
Hepatite C (anticorpo anti-VHC) também. Os anticorpos
para o VIH 1 e 2 foram negativos. A ecografia abdominal
mostrou, ao nível do hilo hepático, múltiplas adenomegalias, sem outras alterações.
O doente foi internado para estudo de lesões cutâneas
e adenomegalias.
À admissão hospitalar, apresentava-se com bom
estado geral, apirético, sem adenomegalias palpáveis e
com várias lesões cutâneas. Essas lesões apresentavam-se na forma de pápulas, placas e pústulas com sinais
inflamatórios, com tamanho variável de 0,5 a 1,5 cm de
maior diâmetro, nas mãos, pavilhão auricular esquerdo,
tronco, dorso, membros inferiores, alguns com halo
eritematoso e algumas também com halo descamativo,
algumas com ulceração, outras com crosta (Figura 1).
Apresentava também lesões papulares de cor vinosa no
1º e 5º dedos da mão esquerda e no 1º, 2º, 3º e 5º dedos
da mão direita (Figura 2) e duas lesões eritematosas
lineares, uma ao nível da região do apêndice xifóide e
outra ao nível da articulação metacarpofalângica do 4º
dedo da mão direita, segundo o doente, devido a arranhões do seu gato. A úvula apresentava uma pequena
lesão ulcerada.
Foi-lhe realizada TC cervico-toraco-abdomino-pélvico
que mostrou numerosas adenomegalias hipodensas
em conglomerado na região celíaca e região portocava,
estendendo-se desde o plano do tronco celíaco até ao
plano dos hilos renais, com diâmetro conjunto de cerca
de 25 mm, sem outras adenomegalias e fígado e baço
normais.
A primeira lesão cutânea que surgiu no doente foi
biopsada. O exame anatomo-patológico revelou infiltrado
mononuclear, sem saliência de vasos ou células endoteliais tumefactas; a pesquisa de microorganismos pela
coloração Warthin-Starry foi negativa; o exame bacteriológico cultural do tecido foi negativo e a pesquisa por
PCR de ADN de Bartonella spp. foi positiva. A serologia
para Bartonella spp por reacção de imunofluorescência
indirecta foi negativa e a pesquisa por PCR de ADN de
Bartonella spp no sangue foi positiva.
O doente foi medicado com doxiciclina 100 mg
12/12h, com melhoria das lesões cutâneas, logo após
início do antibiótico. Teve alta com indicação para manter
tratamento com doxiciclina durante três meses e evitar
mordidas e arranhões do gato. Após um mês de tratamento, as lesões cutâneas tinham desaparecido e a TC
abdominal de controlo, efectuada três meses após o fim
do tratamento, era normal.
DISCUSSÃO
Trata-se de um caso clínico de Angiomatose bacilar
com atingimento cutâneo (pele e mucosas) e ganglionar,
com bacteriémia.
A Angiomatose bacilar é uma doença rara, causada
por Bartonella henselae e Bartonella quintana. Neste
caso clínico, não houve identificação da espécie, mas o
agente etiológico mais provável é a Bartonella henselae,
que é transmitida pelo gato.
É uma doença sistémica de manifestação cutânea
frequente. As lesões cutâneas caracterizam-se como
papulosas, angiomatosas ou papulo-nodulares, de tamanho variável, eritemato-vinosas ou da cor da pele e
de superfície lisa ou com crostas. Podem ser isoladas ou
múltiplas, localizadas ou disseminadas, compressíveis,
tensas ou friáveis. As apresentações menos frequentes
são placas endurecidas e hiperpigmentadas. Algumas
vezes, acompanham-se de adenomegalias locais e,
geralmente, são extremamente dolorosas.
O quadro clínico pode ser precedido ou acompanhado
por febre, anorexia, emagrecimento, dor abdominal,
náuseas, vómitos e diarreia, especialmente quando há
comprometimento visceral, nomeadamente, fígado e
baço.
A Angiomatose bacilar é descrita essencialmente em
doentes imunodeficientes: medicados com imunossupressores, doentes com linfomas/leucemias ou infectados
pelo VIH. Foi em 1990, que Cokerell et al descreveram
o primeiro caso de Angiomatose bacilar em imunocompetentes (4). Este doente embora tivesse uma contagem
de linfócitos T CD4+ normal, no início da doença actual,
apresentou um quadro clínico compatível com síndrome
gripal, infecção viral que diminui transitoriamente as
defesas do organismo.
A clínica da Angiomatose bacilar orienta muitas vezes
para o diagnóstico, mas este deve ser confirmado por
exames auxiliares de diagnóstico.
O exame histológico, principalmente da biópsia das
lesões cutâneas, é o preferido. Tipicamente, à microscopia óptica, observa-se proliferação capilar disposta em
lóbulos, células endoteliais tumefactas e resposta inflamatória com neutrófilos (4). A coloração de prata como
Warthin-Starry identifica os bacilos, no interstício entre os
vasos, e, pela imunocitoquímica, diferencia-se Bartonella
henselae de Bartonella quintana (1). Neste caso clínico,
o resultado do exame histológico de biópsia cutânea não
foi característico, talvez porque a lesão biopsada, macroscopicamente, já apresentava sinais de necrose.
Os outros exames auxiliares de diagnóstico de Angiomatose bacilar são a pesquisa por PCR de ADN de
Bartonella spp., o exame cultural de sangue e dos tecidos
e a serologia para Bartonella spp.
A pesquisa por PCR de ADN de Bartonella spp. é
um exame que nem sempre está disponível, mas tem
sensibilidade elevada, principalmente, se a pesquisa for
realizada em tecido afectado (5-8). O exame cultural de
sangue e dos tecidos, pelas características do bacilo,
raramente permite isolar o microorganismo. A serologia
para Bartonella spp. (por reacção de imunofluorescência
indirecta ou pelo método de ELISA) tem sensibilidade e
especificidade baixas (7,8).
Os diagnósticos diferenciais de Angiomatose bacilar
incluem: Sarcoma de Kaposi (de salientar que a Angiomatose bacilar e o Sarcoma de Kaposi podem coexistir
num mesmo doente, principalmente doentes infectados
pelo VIH, com contagem de linfócitos T CD4+ baixa),
Granuloma piogénico, Verruga peruana (cuja etiologia é
a Bartonella bacilliformis), Linfoma cutâneo de células T,
Linfoma de Hodgkin e Linfoma não-Hodgkin e infecção
por micobactérias atípicas (9).
O tratamento consiste em antibioterapia: eritromicina
ou doxiciclina, e a resposta ao tratamento é, geralmente,
rápida. Embora a duração do tratamento ainda não tenha
sido definida, sabe-se que deverá ser longa - dois a
quatro meses (10).
A Angiomatose bacilar é uma doença com bom prognóstico que raramente recidiva se o tratamento for completo. Porém, em doentes não tratados, é potencialmente
fatal, principalmente, em doentes imunodeficientes (2).