A Medicina no "Discurso do Método" de Descartes: Um Breve Apontamento
"O espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do
corpo que se é possível encontrar qualquer processo de tornar todos os homens
mais sábios e mais hábeis, do que têm sido, creio que é na medicina
que se deve procurar" (1, p. 60).
René Descartes (1596-1650) é uma das personali
dades mais importantes da História, principalmente na Matemática-criador,
por exemplo, da geometria analítica - e na Filosofia - é um dos
primeiros a defender o racionalismo que mudará por completo o modo de pensar e,
consequentemente, o modo de se fazer ciência. O seu papel nestas duas áreas do
pensamento bem como para a ciência em geral é tão decisivo que, muitas vezes, é
relegado para segundo plano o facto de também ter sido médico e se ter
interessado bastante pela medicina. Descartes chegou mesmo a abordar esta
ciência à luz do seu novo método num dos seis capítulos da sua célebre obra
"Discurso do Método", tendo apresentado explicações, em particular,
para o funcionamento do coração humano bem como para a circulação do sangue.
Uma das grandes heranças deixadas por Descartes, para além dos seus trabalhos
científicos propriamente ditos, é o seu "método para bem conduzir a razão
e procurar a verdade nas ciências" que, em muitas das suas vertentes,
ainda é utilizado nos dias de hoje. Este seu método é apresentado num livro
publicado originalmente em 1637 denominado de"Discurso do Método",
mundialmente célebre, quanto mais não seja, pela bem conhecida frase
"Cogito, ergo sum" (Penso, logo existo)2. Nesta obra, Descartes
defende um método para determinar a verdade baseado no rigor da matemática, que
assenta, apenas e só, nos seguintes quatro "preceitos":
"O primeiro consiste em não tomar nenhuma coisa por verdadeira sem que a
conheça evidentemente como tal [...].
O segundo consiste em dividir cada uma das dificuldades a examinar em tantas
parcelas quantas as necessárias, e requeridas para melhor as resolver.
O terceiro consiste em conduzir os meus pensamentos por ordem, começando pelos
objectos mais simples [...] até ao conhecimento dos mais complexos [...].
E o último, em proceder sempre em numerações tão completas e a revisões tão
gerais, que pudesse estar certo de nada ter omitido" (1, p. 25).
Descartes afirma ainda que "estas longas cadeias de razões, todas simples
e fáceis, das quais os geómetras têm o costume de se servir para levar a cabo
as mais difíceis demonstrações, tinham-me dado ensejo deimaginar que todas as
coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens se ligam da mesma maneira e
que [...] não poderá haver nenhuma tão longínqua, à qual finalmente não se
chegue, nem tão escondida que não se descubra" (1, p. 25). Note-se que
aqui se encontra, de certo modo, uma visão optimista nas capacidades do
pensamento humano e, em particular, da ciência que culminará, já no século XIX,
no positivismo de Comte. Segundo afirma Descartes, "é possível chegar a
conhecimentos úteis à vida e que em vez desta filosofia especulativa que se
ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática pela qual [...]
poderíamos empregá-los em todos os fins para que são próprios, e deste modo
tornar-nos donos e possuidores da natureza" (1, p. 59). Por outro lado,
como se verá mais à frente, nesta obra surge ainda a defesa da experimentação e
de uma visão mecanicista da natureza e dos seus fenómenos, o que é essencial
para se proceder à matematizaçãoda ciência, na mesma linha do que pensava, por
exemplo, Galileu - "o Livro da Natureza está escrito em caracteres
matemáticos" - e que perdurará até aos dias de hoje.
Uma vez que influenciou o modo de fazer ciência, Descartes teria de influenciar a
medicina do seu tempo. Observe-se que nessa época estava a nascer o que se pode
designar por medicina científica que cortava com muitas das antigas concepções.
Segundo o Professor Tubiana, membro da Academia das Ciências e da Academia
Nacional de Medicina francesas, "os obstáculos que os primeiros
cientistas tiveram que vencer são os que se deparam aos médicosinovadores:
autoridade dos antigos, o temor do sacrilégio, aincompreensão e o cepticismo.
Os inícios da astronomia e da física permitem compreender os da medicina; a
vitória retumbante da mecânica, com Newton, no fim do século XVII, afirma a
superioridade do método científico e tanto abala a história da medicina como
modifica o curso da civilização" (2, p. 66). Note-se ainda que se
considera que "a primeira descoberta da medicina científica foi a da
circulação sanguínea por Harvey, em 1626. A primeira descoberta científica ficara
a dever-se a Copérnico cerca de um século antes. A descoberta de Harvey e a de
Copérnico opunham-se a uma tradição imemorial" (2, p. 69).
Contudo, a influência de Descartes na medicina não advém apenas da sua influência
no desenvolvimento da ciência em geral, mas é bastante mais directa uma vez que
existem, por exemplo, vários textos de Descartes sobre diversas temáticas da
medicina. Nos seus estudos de medicina, Descartes segue igualmente o seu método
e, "desde que se instala na Holanda, o filósofo dedica-se ao estudo da
anatomia e da fisiologia com a finalidade de construir uma medicina que se
distancie daquela que é praticada em sua época. Essa crítica está ligada a uma
rejeição, por parte de Descartes, de seguir sem questionar o que está escrito
nos manuais de medicina de acordo com as autoridades constituídas na tradição,
quais sejam, Hipócrates, Aristóteles e Galeno" (3, p. 324).
Um dos capítulos do próprio "Discurso do Método"3("Ordem das
Questões da Física") é quase completamente dedicado à medicina e, em
particular, ao funcionamento do coração e à circulação do sangue. Note-se que
Descartes já tinha tido um livro4quase pronto ("começava a revê-lo para o
entregar ao impressor" (1, p. 58) que falava destes assuntos mas, devido
aos problemas que Galileu enfrentou com a Igreja, optou por não o publicar e,
por isso, utiliza esta obra para difundir as suas ideias: "tentei
explicar as principais num tratado que certas razões me impedem de publicar,
não teria melhor maneira de as divulgar do que dizendo aqui, sumariamente qual
o seu conteúdo" (1, p. 44). Note-se que a medicina, para além da
matemática cujo rigor inspira todo o seu método, acaba por ser a ciência à qual
Descartes dedica mais espaço nesta obra5.
Vejam-se agora, de modo resumido algumas das ideias de Descartes em relação à
medicina. Uma das mais importantes é a separação entre o corpo e a alma,
condição essencial para se poder considerar o corpo, apenas e só, como uma
qualquer máquina, embora com um grau maior de complexidade. Segundo Descartes,
"a nossa alma, isto é, a parte distinta do corpo cuja natureza, como já
se disse, consiste somente em pensar, para isso contribua, e que essas funções
são sempre as mesmas, no que se pode dizer que os animais irracionais se nos
assemelham" (1, p. 47). Note-se que só a partir desta distinção entre o
corpo e a alma é possível inferir propriedades do corpo humano a partir do
estudo da anatomia animal. "Desejo dar aqui a explicação do movimento do
coração e das artérias o qual, sendo o que mais geralmente se observa nos
animais, se julgará mais facilmente o que se deve pensar dos outros e, a fim de
termos menos dificuldades em compreender o que vou dizer, desejava que os não
versados em anatomia se resolvessem, antes de ler, a colocar ante eles o
coração de qualquer grande animal que tenha pulmões, porque ele é em tudo
bastante semelhante ao do homem" (1, p. 47). A experimentação e a
observação directa da realidade é, de facto, um dos pilares do método
cartesiano e pode ser encontrado em muitos outros pontos desta obra. Descartes
alerta inclusive os seus leitores a procederem do mesmo modo: "quanto ao
resto, a fim de que os que não conhecem a força das demonstrações matemáticas e
não estão habituados a distinguir as razões verdadeiras das verosímeis, não
procurem negar sem examinar, desejo adverti-los que este movimento que acabo de
explicar resulta necessária e somente da disposição dos órgãos que se podem
observar a olho nu no coração, e do calor que lá se pode sentir com os dedos, e
da natureza do sangue que se pode conhecer por experiências, da mesma maneira
que o movimento de um relógio resulta da força, da situação e da forma dos seus
contrapesos e das rodas" (1, p. 50). De facto, a metáfora do relógio, a
máquina mais perfeita à época, é uma das mais recorrentes pelos que defendem
uma visão mecanicista da natureza, visão que será transportada para o corpo
humano e para a medicina.
A explicação de Descartes para o movimento do coração e da circulação do sangue
tem muitos pontos de contacto com as teorias do médico inglês William Harvey
(1578-1657). Harvey é um dos nomes mais importantes da medicina científica dado
que, "em torno da primeira grande descoberta médica, a da circulação
sanguínea, é o homem da passagem da anatomia, ciência da forma, à fisiologia,
ciência da função, embora esta só lentamente se desenvolva e só venha a tornar-
se predominante nos meados do século XIX" (2, p. 137). Como é natural, as
suas ideias inovadoras foram alvo de inúmeros ataques por parte dos seus pares:
"os médicos, fascinados por Galeno, tomam-no por louco; mas Harvey
persiste e o seu livro, editado em Frankfurt em 1628, Exercitatio anatomica de
motu cordis et sanguinis in animalibus, é para os médicos, o equivalente ao De
revolutionibusde Copérnico"(2, p. 139).Atítulo de curiosidade, faça-se
aqui
uma pequena referência ao judeu português João Rodrigues de Castelo Branco
(1511-1568), mais conhecido por Amato Lusitano, que terá tido um papel
importante no estudo do movimento do sangue, dado que "there's a
reasonable basis to assume that it was Dr. Amatus who first discovered the
"Blood circulation" phenomena. There is no doubt that he discovered
the valves in the veins, which enable blood from the arms and legs towards the
heart but disable flow in the opposite direction. [...] The discovery of the
valves was also attributed to Fabricius, the teacher of Harvey, who later
discovered the circulation of the blood" (4).
Apesar das semelhanças, no "Discurso do Método" existem diferenças,
algumas substanciais, em relação às teorias de Harvey. Descartes"accepted
the circulation but contradicted its discoverer on his first and fundamental
discovery, the motion of the heart. Harvey saw the heart as a hollow muscle, by
its beat propelling the blood out through the body. Descartes found it to be a
kind of bladder6, containing a hidden "fire without light" by which
entering drops of blood were subjected to rarefaction, so that they escaped as
the organ swelled and hardened. Harvey, Descartes remarked, would need some
obscure faculty to induce the heart beat and another to "attract"
blood into the heart" (5, p. 91). De facto, Harvey insistiu "no
papel do sangue; o coração e o sangue em conjunto formando uma única unidade de
funcionamento que é o próprio princípio vital, uma base que nada tem a ver com
mecanismos e matéria" (6, p. 90). Esta concepção de Harvey onde "o
sangue é um fluído espiritual, o portador do princípio vital do qual depende a
vida" (6, p. 91), ia frontalmente contra as ideias de Descartes que
eliminou "sistematicamente o vitalismo de Harvey, que ele considerava
como oculto" (6, p. 92).
Observe-se que a teoria de Descartes, apesar de errada, é coerente com a nova
visão mecanicista da natureza."Aexplicação cartesiana do corpo,
considerado como máquina, necessita de um motor que possibilite todas as
funções fisiológicas, e esse motor tem por base o fogo cardíaco
que, por um processo semelhante à fermentação, faz com que o sangue entre em
ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das artérias. A defesa da
fermentação, como estando na base do movimento do coração e do sangue, não
sofre alteração ao longo da obra de Descartes" (3, p. 328). Por esse
facto, apesar de tudo, considera-se que, entre os dois, "Harvey was the
more conservative thinker, while Descartes favored - and was a major
initiator of - the new (or newly fashionable) interpretation of living
things, including the human body, as machines, and no more than machines"
(5, p. 91).
Como se referiu atrás, existe uma grande diferença nas justificações para o
movimento do coração, mas ambos concordam com a circulação do sangue, onde
Descartes dá o mérito a Harvey de tal descoberta: "se me perguntarem como
o sangue das veias não se esgota ao passar continuamente para o coração, e como
as artérias nunca se chegam a encher, pois todo o que passa pelo coração se
dirige a elas, não responderei outra coisa senão que isto já foi escrito por um
médico de Inglaterra, ao qual se deve conceder o louvor por ter rompido com os
obstáculos neste campo, e ter sido o primeiro a ensinar que há várias pequenas
passagens nas extremidades das artérias, por onde o sangue que elas recebem do
coração, entra nos pequenos ramos das veias, de onde se lança directamente no
coração. De maneira que o seu curso é apenas uma circulação perpétua" (1,
p. 50).
Alerte-se que Descartes, em momento algum, se distancia da religião conseguindo
conciliar na perfeição a sua visão mecanicista da ciência com a existência de
Deus - aliás, um dos capítulos do seu "Discurso do Método"
trata das "Provas da Existência de Deus e da Alma Humana". Vejam-se
as palavras de Descartes e como ele concilia essas duas realidades, quer no
caso da analogia entre o corpo humano e as máquinas, quer no caso da separação
entre o corpo e a alma.
"Sabendo como os diversos autómatos ou máquinas moventes, que o engenho
humano pode conceber sem empregar muitas peças em comparação com a multidão de
ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as partes de que se compõe o
corpo de cada animal, considerar este corpo como uma máquina que, feita pelas
mãos de Deus, está incomparavelmente mais bem ordenada, e tem movimentos mais
admiráveis que qualquer uma das inventadas pelos homens" (1, p. 54).
"Alonguei-me sobre a questão da alma porque ela é das mais importantes,
dado que, após o erro dos que negam Deus, e que penso ter atrás refutado, nada
há que afaste tanto os espíritos fracos do caminho da virtude, como imaginar
que a alma dos animais é da mesma natureza que a nossa e que, por conseguinte,
nada temos a temer ou a esperar depois desta vida, tal como as moscas e as
formigas, ao passo que, sabendo como são diferentes, se compreendem melhor as
razões que demonstram que a nossa é de uma natureza inteiramente independente
do corpo e que, por isso, não se encontra sujeita a morrer com ele, pois, visto
que não se encontram outras razões que a destruam, somos levados imediatamente
a pensar que é imortal" (1, p. 57).
Descartes é ainda muito crítico em relação à medicina da sua época
afirmando: "estou certo de que não há ninguém, mesmo os que dela fazem
profissão, que não aceite que tudo o que nela se sabe, nada representa em
comparação com o que se torna necessário saber, e que nos poderíamos isentar de
uma infinidade de doenças" (1, p. 60). Talvez por ter sofrido de problemas
de saúde durante toda a sua vida, "as aplicações úteis da nova ciência
proposta por Descartes estão voltadas para uma medicina que se dirija,
efectivamente, para a cura dos pacientes" (3, p. 325). Observe-se ainda
que, apesar de defender a ruptura com os autores antigos, Descartes defende que
a medicina deve ser uma ciência cumulativa pois, "tendo decidido empregar
toda a minha vida a investigar uma ciência tão necessária" (1, p. 60) e
possuindo um método tão eficaz na obtenção de novos conhecimentos, sente-se
obrigado a"comunicar fielmente ao leitor todo o pouco que encontrei, e de
incitar os bons espíritos a procurarem mais além, contribuindo cada um conforme
a sua vocação e o seu poder [...] a fim de que os últimos, começando onde tinham
acabado os anteriores, assim juntando as vias e as obras de muitos, fossemos,
todos juntos, mais longe do que cada um em particular poderá ir" (1, p.
60).
Em conclusão, Descartes foiimportante para a ciência em geral mas teve
igualmente uma intervenção directa na medicina, cujas ideias mais relevantes
foram "a importância dada à experiência, o distanciamento da tradição e a
adopção de princípios mecânicos na explicação do funcionamento do corpo
humano" (3, p. 334).