Causas Genéticas de Acidente Vascular Cerebral Isquémico
Introdução
Os avanços na compreensão da doença cerebrovascular têm mostrado que
importantes factores de risco para o Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquémico
estão sob influência de factores genéticos (1-4).
A prevalência de doença cerebrovascular não-ateros-clerótica é mais elevada em
doentes mais jovens e o conceito de AVC jovem tem em conta esta circunstância
epidemiológica. Daqui resulta que o rastreio de factores monogénicos de AVC é
sobretudo reservado a doentes com AVC em idade jovem.
Assim, embora se saiba que a doença cerebrovascular não aterosclerótica é menos
frequente, é fundamental a compreensão de que determinadas doenças de carácter
hereditário explicam o fenómeno de vasculopatia associada aos eventos
vasculares (5). O padrão de hereditariedade associado à doença cerebrovascular
não é linear e assume alguma complexidade em patologias poligénicas ou de
heterogeneidade genética.
Neste trabalho de revisão pretende-se abordar as doenças monogénicas, em que é
possível identificar a mutação responsável pela doença em causa responsável
pela doença vascular cerebral. Além dos aspectos genéticos, salientam-se os
aspectos fundamentais ao diagnóstico precoce deste tipo de patologias.
Cadasil (cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and
leukoencephalopathy)
CADASIL, o acrónimo em inglês para Arteriopatia Cerebral Autossómica Dominante
com Enfartes Subcorticais e Leucoencefalopatia (Cerebral Autosomal Dominant
Arteriopathy with Subcortical Infarcts and Leukoencephalopathy), é uma causa
hereditária de AVC isquémico associado a lesões da substância branca. Trata-se
de uma vasculopatia autossómica dominante, reconhecida há mais de uma década,
mas provavelmente subdiagnosticada (7). Várias famílias em todo o mundo foram
identificadas como portadoras da mutação responsável por esta patologia.
Clinicamente o início de eventos vasculares (AIT/AVC) começa por volta dos 45
anos em doentes sem factores de risco relevantes para doença cerebrovascular;
em 85% dos casos é a primeira manifestação clínica e 2/3 dos casos traduzem-se
por síndromes lacunares clássicos (8). A deterioração cognitiva pode surgir
logo de início, relacionando-se directamente com o número e localização das
lesões vasculares, nomeadamente enfartes lacunares da substância branca (9).
Trata-se de uma demência subcortical, habitualmente dominada pela
sintomatologia frontal e alterações da memória. Em 10% dos casos o processo
demencial pode ser a única tradução clínica da doença. A enxaqueca com aura
surge frequentemente nestes doentes (30-40%), por volta dos 30 anos;
habitualmente trata-se de uma aura sensitiva ou visual e nos casos mais graves
pode manifestar-se com sinais e sintomas semelhantes a uma enxaqueca basilar ou
hemiplégica. As alterações do comportamento podem ser a clínica dominante em
alguns doentes, nomeadamente com quadros depressivos graves ou semelhantes à
doença bipolar. Menos frequentemente (6-10%), as crises epilépticas podem
surgir, focais ou generalizadas, com relação também com o número e localização
das lesões vasculares (8-11).
A Ressonância Magnética Cerebral é essencial ao diagnóstico de CADASIL,
mostrando sempre alterações nos doentes sintomáticos; lesões com hipossinal em
T1 e hipersinal em T2, punctiformes ou nodulares na substância branca e/ou
núcleos da base. Tipicamente estas lesões são periventriculares na região
frontal e temporal (pólos temporais) e ainda a contornar a cápsula externa.
Habitualmente não existem lesões a nível cortical ou do cerebelo e raramente
surgem lesões no tronco cerebral, mas se presentes localizam-se na
protuberância (12).
O processo patológico primário do CADASIL, ao estudo histológico, traduz uma
angiopatia não ateromatosa, não amiloidótica, que se caracteriza pela presença
na camada média de células de músculo liso degeneradas. O estudo histológico de
arteríolas leptomeníngeas ou cerebrais mostra o espessamento concêntrico da
parede arterial através do desenvolvimento de células anormais de músculo liso;
é este espessamento responsável pelo processo de isquemia e consequentemente de
desmielinização. Estas alterações vasculares observadas no cérebro também podem
ser detectadas noutros locais, nomeadamente nos pequenos vasos cutâneos, pelo
que a biópsia de pele pode ser bastante útil ao demonstrar as alterações
tipicamente descritas do endotélio arterial (11, 12). As alterações vasculares
típicas são identificáveis em microscopia electrónica ou por imuno-
histoquímica, na camada média da parede arterial / arteriolar, em relação com
as células musculares lisas.
A alteração genética associada ao CADASIL caracteriza-se por mutações no gene
notch3 (cromossoma 19q12) que levam à deposição da proteína notch3 no
citoplasma das células endoteliais. Em 90% dos casos estas mutações estão
localizadas entre os exões 2 e 6, mas recentemente têm sido relatadas mutações
localizadas a outros exões. Em Portugal os exões mais frequentes são: 4, 11,
18, 19, dados concluídos após análise epidemiológica retrospectiva na população
portuguesa, em casos que foram referidos com diagnóstico clínico de CADASIL
(13).
Assim, quando a clínica é muito sugestiva e o estudo genético é negativo para
os exões mais frequentes (e não encontrado nos polimorfismos já descritos), é
conveniente procurar estudar-se outros exões e complementar o estudo com
biópsia de pele. Em alguns centros de investigação já é possível fazer-se o
estudo imunohistoquímico, para pesquisa de notch3 na biópsia de pele, estudo
promissor, já que apresenta uma sensibilidade de 99% e uma especificidade de
100% no diagnóstico da doença (12).
O CARASIL, acrónimo em inglês para Arteriopatia Cerebral Autossómica Recessiva
com Enfartes Subcorticais e Leucoencefalopatia (cerebral autosomal recessive
arteriopathy with subcortical infarcts and leucoencephalopathyé), é igualmente
uma causa hereditária de AVC isquémico associado a lesões da substância branca
descrita inicialmente na literatura Japonesa, mas ainda pouco compreendida.
Recentemente foi identificada uma mutação no gene HTRA1 (gene 1 protease da
serina HtrA), que codifica uma protease da serina modeladora dos membros da
família do TGF-b (transforming growth factor-beta). Nas famílias descritas com
esta patologia além da doença vascular cerebral, existe caracteristicamente
doença de osso (espondilose) e alopecia (14).
Doença de fabry
A doença de Fabry é uma doença rara, ligada ao cromossoma X, que se caracteriza
por uma alteração no metabolismo dos glicoesfingolipídeos (GL) por actividade
deficiente da enzima lisossómica alfa-galactosidase. Surge uma acumulação de
GL-3 nos lisossomas do endotélio vascular com isquemia dos tecidos,
constituindo o mecanismo base da doença, com complicações multi-sistémicas
progressivas. Sendo uma doença ligada ao cromossoma X, os homens hemizigóticos
habitualmente apresentam uma maior expressão clínica da doença, enquanto as
mulheres portadoras são assintomáticas ou apresentam sinais e sintomas mais
frustres (15).
As manifestações mais precoces da doença traduzem-se pelas alterações cutâneas
- os chamados angioqueratomas -, pelas acroparestesias (dor das extremidades)
que podem surgir por crises episódicas de dor, pelos episódios aparentemente
inexplicáveis de febre, hipohidrose, e pelas opacidades da córnea e do
cristalino. Mais tarde, na terceira ou quarta década de vida, surgem as
complicações mais graves por disfunção renal, cardíaca e do sistema nervoso
central (16).
As complicações neurológicas não são só traduzidas por doença vascular
cerebral, podendo também surgir a nível do sistema nervoso periférico, com
neuropatia periférica e no sistema nervoso autónomo, com hipohidrose e
hipotensão ortostática. A idade média de aparecimento das complicações
vasculares cerebrais é os 32 anos. Em 56% dos casos a apresentação clínica
traduz isquemia do território vertebrobasilar, só em 20% dos casos atingindo a
circulação anterior. O estudo de imagem por ressonância magnética mostra lesões
hiperintensas de doença de pequenos vasos e a angiografia mostra vasos
intracerebrais doliectásicos, mais frequentemente da basilar e artérias
vertebrais (17). Foi muito recentemente publicado estudo de reastreio nacional
da mutação do GLA numa população de doentes adultos jovens com AVC, tendo sido
encontrado um valor de 2,4% (18).
Têm sido propostos vários mecanismos para tentar explicar a Doença Vascular
Cerebral associada à Doença de Fabry, nomeadamente: 1) doliectasia das artérias
cerebrais (deformidade dos vasos pela deposição dos GL no endotélio), gerando
turbulência, estase e trombose, podendo explicar o fenómeno de isquemia; 2)
oclusão progressiva das pequenas artérias, por espessamento da parede com
compromisso luminal; 3) embolismo cardiogénico, em consequência da patologia
cardíaca muitas vezes associada à doença (ex. doença valvular, cardiomiopatia
hipertrófica) (17).
Assim, 75% dos homens hemizigóticos, após o primeiro episódio de AVC isquémico,
vão apresentar eventos vasculares recorrentes (3/4 do território
vertebrobasilar), e nas situações mais graves a morte pode surgir 8 anos após o
primeiro evento.
Com o tratamento actualmente aprovado para a Doença de Fabry (alfa-
galactosidase A humana recombinante), o diagnóstico desta patologia torna-se
prioritário no estudo do AVC do adulto jovem com quadro sugestivo. Este
diagnóstico é feito pela demonstração do défice de alfa-galactosidase no
plasma, leucócitos ou em cultura de fibroblastos. Caracteristicamente a
actividade enzimática é inferior a 1% nos homens; no entanto cada vez mais são
detectadas variantes com maior percentagem de actividade enzimática. Nas
mulheres portadoras esta actividade pode assumir um nível baixo (50%) a normal,
pelo que deve ser efectuado o estudo genético para confirmação do diagnóstico.
O estudo de genética molecular identifica a mutação do gene da alfa-
galactosidase localizado no CrXq22.1 (19). A terapêutica com suplementação de
alfa-galactosidase A é comprovadamente eficaz na melhoria da função renal e nos
sintomas de neuropatia periférica, existindo até ao momento poucos estudos
sobre a eficácia na prevenção de eventos vasculares.
Coagulopatias / Estados Protrombóticos
Coagulopatias
As alterações hematológicas protrombóticas estão mais vezes associadas a
trombose venosa do que a trombose arterial. As coagulopatias hereditárias
habitualmente traduzem-se por deficiência de inibidores da coagulação,
anormalidades na fibrinólise, aumento dos níveis dos factores da coagulação,
síndromes com anticorpos antifosfolipídicos, alteração nos eritrócitos ou nas
plaquetas (20). O estado protrombótico hereditário mais frequente é a
resistência à proteína C activada por mutação do factor V de Leiden (21). Na
heterozigotia para o factor V de Leiden uma única mutação no gene do factor V
leva a que o factor Va se torne resistente à inactivação pela proteína C
activada. Os défices nos inibidores da coagulação, nomeadamente o défice de
proteína C e de proteína S, são as coagulopatias também comuns associadas ao
fenómeno de trombose. Em doentes com história de AVC isquémico, a resistência à
proteína C activada (5,2%), o défice de antitrombina III (4,5%), a mutação no
gene da protrombina (3,7%) são as coagulopatias autossómicas dominantes mais
frequentes (20, 21).
Homocisteinemia
A hiperhomocisteinemia é uma alteração metabólica que gera um estado
protrombótico por aumento dos níveis séricos de homocisteína (22). O risco de
eventos vasculares cerebrais isquémicos aumenta significativamente nos
indivíduos com homoscisteinúria (23,24).
A homocisteinemia moderada que não cursa com homocistinúria pode ocorrer como
resultado da redução dos níveis de ácido fólico, da vitamina B12 ou da vitamina
B6. A mutação (cromossoma 1p36.3) da enzima 5,10-metilenotetrahidrofolato-
reductase (5,10-MTHFR) é a alteração genética que resulta mais frequentemente
em hiperhomocisteinemia. A homocisteinemia grave (níveis séricos de
homocisteína > 100 µmol/L) com homocistinúria, surge na deficiência da
cistationina ß-sintetase, por uma mutação genética no locus 21q22.3. e nos
indivíduos homozigóticos para o défice da MTHFR.
Na deficiência da cistationina ß-sintetase o doente apresenta além das
alterações vasculares, alterações oculares e músculo-esqueléticas. As
manifestações oculares e esqueléticas são sugestivas de síndrome de Marfan, tal
como a subluxação do cristalino e o aspecto musculoesquelético do tipo
marfanoide. A nível cutâneo estes doentes apresentam tipicamente
hipopigmentação, sendo que na maioria dos pacientes a íris é de cor azul. Em
todos os casos suspeitos de Síndrome de Marfan, a homocistinúria deve ser
excluída através da análise de aminoácidos na urina e sangue.
Anemia das Células Falciformes
A anemia das células falciformes pode cursar com doença vascular cerebral
venosa ou arterial, por alteração da deformidade do eritrócito secundária a uma
mutação na cadeia alfa da hemoglobina (Hemoglobina S) (25). A hemoglobina S é
menos solúvel, tem tendência a polimerizar-se, levando pela consequente
deformidade do eritrócito à oclusão de pequenos vasa-vasorum. Esta provoca
isquemia da parede de grandes vasos, gerando proliferação da íntima e oclusão
gradual destes. As estenoses intracranianas secundárias a este mecanismo
deverão ser detectadas precocemente, já que as transfusões sanguíneas são o
tratamento preventivo que pode reduzir até 92% o risco de AVC (26). O Doppler
Transcraniano é o exame de eleição na vigilância destes doentes; velocidades de
fluxo elevadas nas artérias intracranianas (ex. velocidade média da artéria
cerebral média > 200 cm/s) traduzem uma probabilidade de risco de AVC de 40% em
3 anos (27).
Síndrome de Sneddon
A síndrome de Sneddon não tem até ao momento qualquer locus genético
identificado e só numa relativa minoria de casos existe história familiar e
padrão sugestivo de hereditariedade autossómica dominante. Clinicamente
caracteriza-se por livedo reticular, descoloração violácea da pele do tronco e
extremidades (tipicamente poupando a face) e eventos cerebrovasculares. Estes
eventos, mais frequentes em mulheres, surgem em média 10 anos mais cedo do que
quando associados a factores de risco clássicos, embora 60-80% destes doentes
também apresentem HTA e 36% tenham patologia cardíaca valvular. Os eventos
traduzem-se inicialmente por acidentes isquémicos transitórios múltiplos e
recorrentes em áreas córtico-subcorticais da circulação anterior e posterior
(28).
O mecanismo fisiopatológico desta síndrome não está totalmente esclarecido,
parecendo tratar-se de um estado de hipercoagulabilidade, já que 1/3 dos
doentes apresenta anticorpos antifosfolipídicos (anticardiolipina, beta2-
glicoproteína e anticoagulante lúpico); no entanto, há autores que justificam
as alterações cutâneas e os eventos vasculares através de uma vasculopatia
primária (arteriopatia de pequenos vasos) (29).
A angiografia é o exame de imagem que se preconiza após o estudo inicial, já
que permite a exclusão de outras vasculopatias. Pode ser normal, mas quando
surge com alterações mostra múltiplas oclusões de ramos distais principais, com
um padrão de Moya-Moya associado. A biópsia de pele também é útil ao
diagnóstico, podendo ser normal ou inespecífica, mas habitualmente mostrando
alterações que traduzem uma endarterite obliterante, ou seja, uma obstrução não
inflamatória de artérias musculares pela proliferação endotelial da íntima
(30).
Melas (mitocondrial miopathy, encephalopathy, lactic acidosis, stroke-like
episodes)
MELAS é uma síndrome multissistémica, geneticamente determinada, secundária a
mutações do ADN mitocondrial (ADNmt). A encefalopatia caracteriza-se por
episódios de crises epilépticas, enxaqueca com aura recorrente e processo
demencial; a miopatia é visualizada pela histologia de músculo com a presença
das ragged-red fibers; os eventos vasculares surgem em idade jovem, geralmente
após factores precipitantes (ex. febre, infecções). Esta síndrome apresenta
alguma variabilidade fenotípica devido ao fenómeno de heteroplasmia, isto é, a
proporção de ADN mutante varia de tecido para tecido, existindo um aumento das
mutações espontâneas com o envelhecimento (30,31).
O ADNmt é de transmissão materna e codifica mais de 80 proteínas da cadeia
respiratória. O mau funcionamento desta cadeia leva uma diminuição da produção
de ATP, preferencialmente atingindo áreas de grande gasto energético como o
músculo e o cérebro. A mutação descrita em 80% dos casos de MELAS é a A3243G;
esta análise de ADN pode ser feita na biópsia de músculo, numa amostra de
sangue e até mesmo em epitélio da cavidade oral. Na biópsia de músculo, além
das alterações histológicas do músculo (ragged-red fibers), há alterações no
estudo da cadeia respiratória, nomeadamente na actividade da citocromo C
oxídase. O doseamento do lactato sérico em repouso e após o exercício também é
útil ao diagnóstico (33,34).
Os doentes com episódios Stroke-likeapresentam sempre na RM cerebral
hipodensidades focais, com predomínio nos lobos occipitais e parietais.
Frequentemente apresentam atrofia cerebral e cerebelosa global, e calcificações
assimétricas dos núcleos da base, sempre com envolvimento do globo pálido, mas
sem tradução clínica (35).
Doenças do tecido conjuntivo
Apesar de contribuírem de forma pouco significativa para o AVC isquémico, as
doenças do tecido conectivo são de particular gravidade pelo envolvimento
generalizado vascular, traduzido pelas formações aneurismáticas e as dissecções
arteriais.
Síndrome de Marfan
A síndrome de Marfan cursa com as seguintes alterações fenotípicas major:
alterações esqueléticas, dilatação da aorta ascendente, ectasia da dura
lombossagrada e alterações oculares (subluxação do cristalino). As complicações
neurológicas são secundárias a: dissecção da aorta ascendente, carótidas e
artérias vertebrais; disfunção valvular que leva a eventos vasculares
cardioembólicos; ruptura de aneurismas intracerebrais; enfartes medulares.
Estão identificadas as mutações responsáveis por esta síndrome autossómica
dominante no gene que codifica a fibrilina-1, localizado ao cromossoma 15q21.1.
(34,35).
Síndrome de Ehlers-Danlos tipo IV
A síndrome de Ehlers-Danlos (SD) apresenta como características fenotípicas
major a hiperextensibilidade articular e a hiperelasticidade da pele. O SD tipo
IV cursa com uma deficiente produção de colagéneo tipo III, codificado no gene
COL3A1, localizado ao cromossoma 2. Apresenta complicações cerebrovasculares
frequentes, nomeadamente dissecções arteriais, aneurismas intracerebrais e
fístulas carótido-cavernosas. É frequente o aneurisma da artéria carótida
interna pelo desenvolvimento de uma fístula carótido-cavernosa, que pode surgir
de forma espontânea ou após traumatismo minor. O diagnóstico desta síndrome
pode ser confirmado não só pelo estudo de genética molecular, mas também pelo
estudo bioquímico em cultura de fibroblastos da derme (identificação do defeito
de síntese do colagéneo tipo III) (36,37).
Neurofibromatose tipo 1
A Neurofibromatose tipo 1 (NF1), também conhecida como doença de Von
Recklingausen, é uma das doenças mais frequentes do tecido conectivo,
autossómica dominante, caracterizando-se pelos neurofibromas da pele e pelas
manchas cor de café com leite. O gene da NF1 está identificado no cromossoma
17, sabendo-se que 50% dos casos descritos surgem com mutações espontâneas, com
história familiar negativa. As complicações cerebrovasculares traduzem-se pelo
AVC isquémico, hemorragias intracerebrais espontâneas e hemorragia
subaracnoideia. A manifestação clínica clássica é o hematoma laterocervical
secundário a ruptura de aneurisma da artéria vertebral. As lesões oclusivas, ao
contrário das oclusões ateroscleróticas, não ocorrem nos locais de maior
turbulência do fluxo sanguíneo. O local mais frequente de aparecimento dos
aneurismas é o polígono de Willis, podendo surgir ainda mais distalmente,
nomeadamente na artéria coroideia posterior. No estudo imagiológico podem
surgir vários padrões angiográficos: artérias hipoplásicas sem estenose, como
consequência da hiperplasia da íntima num trajecto longo; aneurismas fusiformes
bilaterais do sifão carotídeo; fístulas nas artérias vertebrais; padrão Moya-
Moya (38,39).
Doença de Moya-Moya
A Doença de Moya-Moya caracteriza-se por alterações vasculares típicas. Trata-
se de uma arteriopatia intracraniana de grandes vasos, com obliteração
progressiva dos principais ramos da artéria carótida interna, ou mesmo oclusão
terminal desta artéria, substituídos por pequenos colaterais (neovasos) na base
do cérebro.
Histologicamente, esta doença apresenta um processo não vasculítico nem
aterosclerótico de espessamento da parede arterial (músculo liso e endotélio),
atribuído a um aumento do factor de crescimento dos fibroblastos.
Podem distinguir-se duas entidades: a Síndrome de Moya-Moya e a Doença de Moya-
Moya. A síndrome de Moya-Moya surge associada a outras patologias, não sendo
uma doença arterial primária. Pode surgir, por exemplo, como um conjunto de
neovasos na base do cérebro secundário a um processo de oclusão aterosclerótica
dos grandes vasos intracranianos, sendo na maior parte das vezes unilateral. A
doença de Moya-Moya, com uma base genética heterogénea, é muito frequente no
Japão. Nas crianças manifesta-se por cefaleias tipo enxaqueca, crises
epilépticas e eventos vasculares (AVC/AIT) após hiperventilação/exercício
físico. No adulto jovem cursa inicialmente com AVC/AIT de repetição, resultando
em Demência Multienfartes; a hemorragia subaracnoideia e as hemorragias
intracranianas de repetição também são frequentes (predomínio no tálamo e
núcleos da base). Na doença de Moya-Moya as alterações vasculares são
tipicamente bilaterais. A RM cerebral com angioRM apresenta uma sensibilidade
de 92% e uma especificidade de 100% na detecção dos colaterais de Moya-Moya. O
Doppler transcraniano é bastante útil na monitorização da progressão da doença,
com vigilância da patência dos vasos intracranianos e estudo funcional da
reserva vascular. A evolução da perfusão cerebral pode ainda ser monitorizada
por SPECT. O EEG com prova de hiperpneia cursa com alterações típicas -
actividade delta por redução focal da perfusão sanguínea induzida pela
hiperventilação - também úteis ao diagnóstico da doença de Moya-Moya
(35,41,42).
Conclusão
A frequência e a morbilidade associadas ao AVC levaram a que a comunidade
científica procurasse cada vez mais factores não tradicionais predisponentes
para a lesão vascular. Neste contexto sabe-se que os factores genéticos parecem
modificar a resposta individual aos factores de risco clássicos para o processo
de lesão endotelial e aterosclerose. Por outro lado, têm sido identificadas
patologias nas quais o AVC integra o fenótipo habitual, e em que é possível
identificar o gene e o padrão de hereditariedade responsável pela doença. Este
grupo de patologias assume uma relevância primordial na investigação do AVC em
doente sem factores de risco para aterosclerose, nomeadamente no AVC do adulto
jovem. Assim, com esta revisão, as autoras pretendem alertar os clínicos para a
importância de se avançar na investigação genética em doentes cujo restante
estudo etiológico foi negativo, particularmente neste grupo etário. Para além
da importância prognóstica, o diagnóstico destas doenças genéticas tem muitas
vezes, como se referiu, implicações diagnósticas secundárias, preventivas e
terapêuticas específicas.