A Propósito de Iconoclasias
COMENTÁRIO
A Propósito de Iconoclasias
Manuel Cardoso de Oliveira*
*Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação, Universidade Fernando
Pessoa
Correspondência
Os cientistas da 2ª metade do Séc. XX , iconoclastas e com uma grande devoção
pelo método científico, consideraram este uma ferramenta essencial para avaliar
os desempenhos dos profissionais da Saúde. Na óptica daqueles cientistas só as
estruturas científicas formais e os métodos estatísticos robustos protegem a
mente humana dos seus próprios enviesamentos e ajustam influências ocultas não
controladas, dizendo-se que o método hipotético - dedutivo e as estatísticas
podem ser aplicados com escassos ajustamentos ao mundo da Clínica (Berwick,
2005).
Como é habitual nas inovações, os seus argumentos não foram inicialmente bem
acolhidos, mas presentemente os conceitos por eles defendidos estão totalmente
enraizados e no centro da avaliação dos Cuidados de Saúde. Os agentes de
mudanças têm sempre que pagar o preço do seu arrojo e da sua determinação. A
persistência de práticas clínicas sem qualquer fundamentação científica
esmoreceu à luz de ensaios clínicos bem desenvolvidos. Foi demostrado que nem
sempre as crenças e a evidência correspondiam, ganhando especial importância os
ensaios randomizados, duplamente ocultos, prospectivos e controlados, minorando
a influência de enviesamentos e outros métodos geradores de confusão. Neste
campo destacaram-se os contributos da Epidemiologia e da Bioestatistica,
ciências com desempenhos de avaliação bem conhecidos. Os benefícios da Medicina
Baseada na Evidência (MBE) foram imensos e a aposta na qualidade clínica
pressupõe a incorporação da evidência científica na pratica médica.
Nestes processos de mudança, mesmo quando desejados e com resultados
apreensíveis, há uma forte tendência para passar as marcas. Realmente
transformamos o compromisso com o estilo particular da MBE numa hegemonia
intelectual pode ficar caro se não a avaliarmos no que ela tem de excessivo ou
não aplicável. É necessário reconfigurar ou dimensionar mais adequadamente as
condições impostas pela MBE à publicação de artigos sobre Qualidade e Segurança
Clínicas, proporcionando uma compreensão nova e mais abrangente da evidência
necessária para a modernização dos Cuidados de Saúde. Este facto acarreta uma
alteração dos standardspara as referidas publicações, sabendo-se que não são
necessários nem tão pouco de custos aceitáveis os já referidos ensaios
randomizados para salientar muitos componentes da Qualidade Clínica. Num
paralelismo talvez excessivamente simples há quem diga que para se aprender a
andar de bicicleta ou dominar uma língua estrangeira não são indispensáveis os
tais ensaios.
Embora afastadas do modelo dos ensaios referidos, algumas destas propostas
oferecem boas garantias contra más interpretações, enviesamentos e
confundimento. No mundo da clínica, especialmente nos seus processos de
modernização, interrogamo-nos se este entendimento tem valor se devidamente
usado. E a resposta é afirmativa, como reconhece Berwick. Todavia, o sucesso do
movimento em direcção a métodos científicos formais que pontificam no
compromisso moderno da MBE criou uma barreira que excluiu muito do conhecimento
e prática que pode colher-se da experiência com naturais repercussões.
Os iconoclastas do passado correm agora o risco de poderem ser encarados como
iconoclastas no presente.
Os métodos de observação e reflexão que servem de base para grande parte da
aprendizagem humana e, francamente, na base dos quais muitas indústrias e
outras organizações modernas estão a construir o futuro, são sistemáticos,
teoricamente consistentes, muitas vezes quantificáveis e poderosos. Trata-se,
no dizer de Tom Nolan, de uma ciência pragmáticaem cujos componentes se destaca
o recurso a gráficos, o uso de conhecimentos nos locais de trabalho fazendo
medições, a integração de processos detalhados do conhecimento no trabalho de
interpretação, o uso de pequenas amostras e ciclos experimentais curtos. Esta
ciência pragmática está viva e bem viva. Prospera na modernização contínua nos
Cuidados de Saúde estimulando o interesse de milhares de líderes e
desenvolvendo-se também nos textos de teoristas brilhantes, o que não evita
estar encurralada por metodologistas, guardiões das revistas e de algumas
agências de acreditação, dos curricula e das mentes de muita gente.
Os Cuidados de Saúde têm muito a ganhar se as portas da ciência pragmática se
abrirem a métodos disciplinados de aprendizagem a partir da reflexão da
prática. Estes métodos de partilhar a aprendizagem mediante registos
transparentes têm sido enaltecidos por Davidoff e Batalden (2005), duas grandes
figuras mundiais destas áreas emergentes nos cuidados de saúde e na sequência
deles a versão SQUIRE (Standards for Quality Improvement Excellence) é um
complemento muito bem elaborado que contou com a colaboração de consagrados
especialistas (2008).
Correspondencia:
Prof. Dr. Manuel Cardoso de Oliveira
Escola de Estudos Pós-graduados e de Investigação, Universidade Fernando
Pessoa, Praça 9 de Abril, 349 4249-004 Porto. E-mail: maco0410@gmail.com