Infecções Urinárias na Criança: 5 anos de Dados clínicos e microbiológicos
Introdução
As infecções urinárias (IU) são uma causa frequente de febre nos dois primeiros
anos de vida. As infecções com envolvimento renal podem conduzir à formação de
cicatrizes (10-30%1), responsáveis por complicações a longo prazo como
hipertensão arterial e doença renal crónica2-8. A precocidade do diagnóstico e
o início imediato da terapêutica são importantes para controlo sintomático,
evitar cicatrizes nas IU altas e erradicar o agente do aparelho urinário3,8-12.
Para iniciar uma terapêutica empírica é fundamental conhecer a população
microbiana local e respectivo padrão de sensibilidade aos antibióticos. A
emergência de resistências a antibióticos de uso comum tem dificultado o
tratamento8. Sendo a Escherichia colio agente mais frequente(71%-90%8-13) o
tratamento deve ser eficaz para esta bactéria9,10, mas também para outros
microorganismos [Proteussp (3-26%), Klebsiellasp (2-8%) e Enterococcusspp. (1-
5,5%)6].
A avaliação imagiológica do tracto urinário permite detectar anomalias e
instituir medidas que reduzam o risco de re-infecção e lesão renal11,14.
Este trabalho tem como objectivos caracterizar a população de crianças
internadas ou observadas em consulta por pielonefrite aguda (PNA), avaliando a
adequação da abordagem terapêutica (face aos agentes infecciosos e respectiva
sensibilidade) e do estudo imagiológico em relação à evidência científica
actual, procurando contribuir para a criação de consensos nesta área.
Material e métodos
Estudo descritivo e retrospectivo através da consulta do processo clínico de
crianças do Departamento da Mulher, da Criança e do Jovem do Hospital Pedro
Hispano. A população alvo consistiu em 298 crianças (internadas ou observadas
em consulta) com o diagnóstico de PNA entre 1 de Janeiro de 2004 e 31 de
Dezembro de 2008. O critério de inclusão foi o diagnóstico de PNA -quadro
clínico caracterizado por febre, leucocitose com neutrofilia e elevação da
proteína C reactiva associados a sedimento urinário com leucocitúria e/ou
nitritúria e urocultura positiva. incluíram-se as primeiras PNA e as
subsequentes. Excluíram-se cistites, bacteriúria assintomática e urocultura com
dois ou mais agentes.
As uroculturas, identificadas pelo Serviço de Patologia Clínica, consideraram-
se positivas: qualquer crescimento na punção suprapúbica; > 104unidades
formadoras de colónias/ml (UFC/ml) por cateterismo vesical; > 105UFC/ml em
colheita por jacto médio (criança com controlo de esfíncteres) ou por 2 sacos
colectores esterilizados (criança sem controlo de esfíncteres ' saco aplicado
após lavagem correcta dos genitais externos e região perineal e substituído
cada 30 minutos). Considerou-se apenas uma urocultura por episódio de PNA e a
urocultura de controlo foi colhida 72 horas após antibioterapia. A
identificação das estirpes e o estudo das susceptibilidades antimicrobianas
realizou-se no sistema automático Vitek® 2 Systems(Biomérieux). A actividade
bacteriana aos antimicrobianos determinou-se por métodos automáticos e
interpretou-se segundo as tabelas Clinical and Laboratory Standards Institute,
Sociedade Francesa de Microbiologia e artigos científicos. O resultado
apresenta-se em três categorias: Sensível (S) ' microrganismo inibido pela
concentração atingida no local de infecção pelo antimicrobiano; Resistente (R)
' improvável boa resposta terapêutica às concentrações de antibiótico
atingidasno local de infecção e/ou concentração inibitória mínima (CIM) que
indicam a presença de mecanismos específicos de resistência; intermédio(i) ' a
CIM é próxima do valor que o antibiótico pode atingir no soro ou tecidos, no
entanto pode corresponder a eficácia clínica em locais onde atinge
concentrações elevadas (p. ex.: ß lactâmicos na urina) ou quando são usadas
dosagens superiores às normais.
O tratamento empírico da PNA baseou-se na idade das crianças:
• período neonatal: associação de aminoglicosídeos com ampicilina;
• 1-3 meses: cefalosporina de segunda ou terceira geração (frequentemente com
aminoglicosídeo);
• 3 meses: amoxicilina/ácido clavulânico (cefalosporinas de segunda e terceira
gerações reservadas para segunda linha).
No período em que decorreu o estudo foram considerados critérios de
internamento de PNA: idade inferior a 12 meses, suspeita clínica de sépsis,
intolerância da via oral, dúvidas na adesão terapêutica em ambulatório,
presença de nefropatia, uropatia ou imunodeficiência.
De acordo com a actuação do Serviço no período em estudo, nas crianças com
idade inferior a 24 meses realizava-se ecografia reno-pélvica, cisto-
ureterografia miccional seriada (CUMS) e cintigrafia com tecnésio 99 m ligado
ao ácido dimercaptosuccínico (DMSA). Dos 2 aos 5 anos realizava-se ecografia e
DMSA; a CUMS realizou-se nos casos de IU recorrentes (dois ou mais episódios de
PNA; um episódio de PNA e um ou mais episódio de cistite; três ou mais
episódios de cistite), ecografia ou DMSA anormal ou história familiar de
nefropatia.
Considerou-se ecografia anormalse havia alteração da ecogenicidade, má
diferenciação cortico-medular renal, diâmetro do parênquima renal abaixo do
percentil para a idade, volume renal acima do percentil para a idade15ou
assimetria renal. Considerou-se sinal ecográfico sugestivo de possível refluxo
vesico-ureteral a dilatação pielo-calicial (DPC) > 5 mm, caliectasias ou
dilatação do ureter. O DMSA, realizado entre 6 a 12 meses após a PNA, estava
anormal quando se detectaram cicatrizes (deformidade localizada no contorno
externo do rim ou perda de volume renal) e/ou alterações da função renal
diferencial16. A CUMS (efectuada em média 2 meses após a PNA) era anormal na
presença de Refluxo Vesico-ureteral(RVU).
Dos processos clínicos recolheram-se dados demográficos (sexo e idade), método
de colheita de urina, agente da PNA e respectiva sensibilidade aos
antibióticos, terapêutica instituída e eficácia e estudo imagiológico realizado
(ecografia reno-pélvica, CUMS e DMSA).
Os resultados foram apresentados em proporções, comparadas através do teste de
Qui-Quadrado ou teste exacto de Fisher, com nível de significância de 5%,
usando o programa SPSS16.0 para análise estatística.
Resultados
Durante o período de estudo registaram-se 348 casos de PNA, que corresponderam
a uma população de 298 crianças. Cinquenta casos correspondiam a uma segunda
(terceira ou até mesmo quarta) infecção durante o período de estudo (ou seja,
35 crianças tiveram mais de um episodio).trinta e uma crianças da população
total tinham alterações nefro-urológicas conhecidas e 20 apresentavam
antecedentes de PNA prévia. Nos casos em que não havia patologia conhecida,
apenas13 tiveram episódios anteriores de PNA. Cerca de 60% dos casos tinham
idade inferior a 1 ano. A partir dos 12 meses de idade a proporção de casos foi
maior no sexo feminino comparativamente a idades inferiores (Tabela_1
).
A Escherichia coli(E. coli) foi a bactéria isolada mais frequentemente (270/
348; 77,6%)(Gráfico_1
).
Cerca de 40% das amostras foram obtidas por cateterismo vesical. O
Enterococcusspp. foi o único agente cujo isolamento foi significativamente
inferior com este método (1,4% vs. 11,7%, p=0,004). Apenas se colheram duas
amostras por punção supra-púbica, não sendo possível encontrar resultados
estatisticamente significativos para este método.
O perfil de sensibilidade global foi praticamente sobreponível ao da E.coli. Na
totalidade da amostra constatou-se uma elevada sensibilidade às cefalosporinas
de 2ª e 3ª geração (96,3 a 99,2%) e aminoglicosídeos (98,8%), menor para
amoxicilina/ácido clavulânico (78,3%) (Tabela_2
). No momento do diagnóstico de PNA 31 crianças estavam sob profilaxia (23 com
trimetropim, 1 com nitrofurantoína, desconhecendo-se em 7 casos), não se
encontrando diferenças significativas no perfil de sensibilidade dos agentes de
PNA em relação ao antibiótico profiláctico.
Apenas se analisou o tratamento das crianças internadas (n=330) por não se
dispor de dados de ambulatório. Nas crianças com mais de 3 meses, em 72% usou-
se amoxicilina/ácido clavulânico e em 24% cefalosporinas de 2ª ou 3ª geração.
Em 87% dos casos a bactéria isolada era sensível ao antibiótico instituído,
8,8% tinha sensibilidade intermédia e 4,2% resistência. Alterou-se o
antibiótico em 5 casos (todos eles resistentes (5/14) e com febre > 72h após
início de antibioterapia). Em 98,5% das crianças internadas realizou-se
urocultura de controlo às 72h, sendo positiva em 3 doentes com infecção por E.
coli. No entanto como a sua evolução clínica foi favorável, não se alterou a
terapêutica e a segunda urocultura de controlo foi negativa. Os resultados do
estudo imagiológico referem-se somente às crianças sem alterações nefro-
urológicas estruturais conhecidas no momento do diagnóstico da PNA (267/298)
(Tabela_3
). Cerca de 96% das ecografias foram realizadas em internamento. A ecografia
mostrava dilatação pielo-calicial (DPC) ou caliectasias em 39 casos (79,6%),
alterações parenquimatosas sugestivas de PNA em cinco (10,2%), duplicações
pielocaliciais em três (6,1%), um caso de litíase e outro de nefrocalcinose. O
RVU era de grau I/II em dezasseis casos (42,1%), grau III em doze (31,6%) e
grau IV/V em dez (26,3%). Foi bilateral em 58%.
A sensibilidade da ecografia para o diagnóstico indirecto de RVU (presença de
DPC como seu marcador) foi de 26,3% e a especificidade de 87,3% (Tabela_4
). Não se estabeleceu a relação entre os achados ecográficos, nomeadamente
alterações parenquimatosas sugestivas de PNA e a presença de cicatrizes no DMSA
pois não se analisou os dados do DMSA em fase aguda (ou seja, os achados
referiam-se a cicatrizes permanentes em consequência da PNA).
A Tabela_5
relaciona a presença de RVU na CUMS com as cicatrizes renais no DMSA. Apesar
de se ter verificado aumento das taxas de cicatrizes renais com o grau de RVU
(6,2% no grau I/II, 16,7% no grau III e 30% no grau IV/V), as diferenças não
foram estatisticamente significativas (p = 0,139).
A maioria dos casos em que o DMSA inicial (realizado 6 a12 meses após o
episódio agudo) mostrava cicatrizes repetiu este exame (6 a 12 meses depois) e
30% deles já não tinham cicatrizes (provavelmente por corresponderem a
remanescentes da infecção aguda).
Discussão
As infecções urinárias em crianças são um assunto controverso quanto a
critérios de diagnóstico, antibioticoterapia empírica, internamento, estudo
imagiológico e profilaxia.
Neste trabalho verificou-se que cerca de 60% das crianças com PNA tinham menos
de12 meses, o que está de acordo com a literatura (incidência de 1% no primeiro
ano de vida)3,4, verificando-se maior prevalência no sexo feminino após os 12
meses.
A E.colifoi o principal agente etiológico (77,6%)2,6,9-12e a taxa de
sensibilidade à amoxicilina/ácido clavulânico da totalidade da amostra foi
sobreponível à desta bactéria (78,3% vs 76%). Alguns trabalhos de investigação
revelam sensibilidades entre 71% e 98%5,8,10,12. A E. colifoi altamente
sensível às cefalosporinas de segunda e terceira geração (95,2 a 98,4%),
semelhante à bibliografia (86-100%)8-10. Face ao perfil de sensibilidade
encontrado discute-se a utilização da amoxicilina/ ácido clavulânico como
antibiótico de primeira escolha nas PNA, questionando-se a necessidade de mudar
a antibioticoterapia empírica no nosso Serviço. Apesar das percentagens
encontradas, a evolução clínica foi maioritariamente favorável (apenas se
alterou o antibiótico em 5 dos 14 casos de resistência). Os TSA (testes de
susceptibilidade aos antimicrobianos) fornecem aos clínicos uma orientação
sobre a susceptibilidade mas a resposta clínica é a prova final de
susceptibilidade in vivo. Dado o reduzido tamanho da amostra não foi possível
concluir se, quando a bactéria era resistente ou apresentava sensibilidade
intermédia, o risco de novos episódios de IU foi maior quando se manteve
antibioterapia.
A constatação de que a colheita de urina por cateterismo vesical reduz as
contaminações (menor número de isolamentos de Enterococcussp.) conduziu ao uso
mais frequente deste método ao longo dos anos em estudo. Os dados relativos à
urocultura de controlo foram consistentes com os da literatura17, mostrando
queé desnecessária.
Em crianças sem nefro-uropatia conhecida, a alteração imagiológica mais
frequente foi o RVU (23,2%), seguido das alterações ecográficas (20,2%) e das
cicatrizes (13,3%). No entanto, nem todas as crianças completaram o estudo
imagiológico, o que poderia alterar estes resultados. As alterações ecográficas
foram ligeiramente mais prevalentes (20,2%) do que as apresentadas na
bibliografia (9-15%6,11,12,18-23,25-27). A importância da ecografia RP no
rastreio de mal formações subjacentes ou complicações associadas à PNA, como a
pionefrose, tem sido realçada12,23,24. Nos últimos anos vários
autores14,23defendem que a ecografia RP realizada na fase aguda da pielonefrite
tem pouco significado diagnóstico20e nesta amostra não influenciou as atitudes
terapêuticas durante o internamento, parecendo desnecessário realizála antes da
alta face a boa evolução clínica. Há trabalhos14,23que chegam mesmo a
questionar o seu papel após a primeira IU, uma vez que os achados clinicamente
relevantes (modificadores da abordagem subsequente, como necessidade de
correcção cirúrgica) são inferiores a 1%. Contudo, estudos mais recentes voltam
a realçar a importância da ecografia (detecta anomalias que necessitam de
correcção em 3-4% dos casos)25-27.
Nas crianças sem patologia nefro-urológica, a prevalência de cicatrizes neste
estudo foi de 13,3% (vs10-30% na literatura6,11,12,14,18-23) e a prevalência de
RVU foi de 23,2% (vs 20-30% na literatura), sendo o moderado mais prevalente no
nosso trabalho do que na bibliografia (31,6% vs 10%), mas semelhante para RVU
grave (26,3% vs 20%)6,11,12,14,18-23,25. É mais provável que a ecografia seja
normal quando não existe RVU (especificidade 87,3%) do que alterada na presença
deste (sensibilidade 26,3%), de acordo coma bibliografia20,24. Pimentel S.24
conclui o seu trabalho afirmando que ecografia RP pode ser usada como método de
exclusão de RVU. Assim, questiona-se a necessidade de realizar CUMS perante uma
ecografia RP sem alterações.
Vários estudos 12,18,22 são consistentes com o facto deque lesões renais mais
graves sejam geralmente encontradas em crianças com refluxos de grau mais
elevado. Resultados anteriores apontam para que haja uma relação positiva entre
o grau de RVU e a gravidade da lesão renal12, o que foi encontrado no nosso
estudo (apesar de as diferenças não serem estatisticamente significativas, o
que poderá dever-se ao reduzido número de casos analisados). Por outro lado,
nem todas as crianças com RVU desenvolvem cicatrizes renais e a ausência de RVU
não exclui cicatriz19,20, o que se conclui que CUMS e DMSA são exames que
isoladamente não se podem substituir um ao outro.
Conclusão
As IU são uma importante causa de febre sem foco, sobretudo em crianças com
idade inferior a 2 anos, nas quais a clínica é escassa e o risco de lesão renal
maior. Sendo a Escherichia colio principal agente de IU na infância, o seu
perfil de sensibilidade vai determinara escolha empírica do antibiótico. Neste
estudo a amoxicilina/ ácido clavulânico foi o antibiótico usado com maior
frequência e a taxa de sensibilidade da amostra para esta associação foi de
78,3%.
A colheita de urina por cateterismo vesical permitiu reduzir os agentes
contaminantes de forma significativa. A realização de urocultura de controlo é
desnecessária.
Face à prevalência de nefro-uropatias encontradas é importante que existam
normas orientadoras para a avaliação imagiológica após o primeiro episódio de
pielonefrite aguda. A ecografia reno-pélvica revelou-se desnecessária na fase
aguda de pielonefrite, contudo, continua a ter um papel importante no
seguimento. A ausência de dilatação pielo-calicial na ecografia exclui com
alguma segurança a presença de refluxo vesico-ureteral de grau moderado/grave
(dilatante). A existência de RVU não significa necessariamente lesão renal e as
cicatrizes podem estar presentes mesmo na sua ausência, pelo que a CUMS e DMSA
são exames que isoladamente não se podem substituir um ao outro.