Metemoglobinemia: Revisão a Propósito de um Caso
Introdução
A metemoglobinemia é uma forma de anemia funcional que pode ser causada por
fármacos de prescrição comum, como por exemplo os nitratos, a dapsona e a
benzocaína (utilizada como spray anestésico).
Descrição do caso
Doente do sexo feminino, nacionalidade portuguesa, 35 anos de idade, com
diagnóstico de infecção VIH em 2005, recorreu a 1 Outubro de 2007 ao Hospital
de Dia de Doenças Infecciosas do Hospital são João por um quadro de febre,
dispneia progressiva e tosse não produtiva com cinco dias de evolução. A doente
havia abandonado terapêutica antiretrovírica cerca de 5 meses antes. Em 4/09/07
a determinação de linfócitos t CD4+ era de 145/mm3. A doente encontrava-se
desde há 16 dias medicada com dapsona (100mg peros/dia) para profilaxia de
pneumonia por Pneumocystis jirovecii. Apresentava história de alergia a
trimetoprim/sulfametoxazol, penicilina, marisco e morangos. Na admissão
apresentava-se consciente, colaborante e orientada. pálida. Sem cianose.
Pressão arterial: 80/50mmHg, frequência cardíaca:100 bpm, temperatura auricular
39.6ºC, frequência respiratória de 30 cpm. A saturação de oxigénio medida por
oximetria de pulso era de 86%. A auscultação cardíaca e pulmonar era normal e o
restante exame objectivo não revelava alterações. Com suplementação de oxigénio
por máscara de alto débito a doente apresentava saturação de oxigénio de 89% em
oximetria de pulso e a gasometria arterial efectuada revelou: pH 7.437, paCO231
mmHg, paO2336 mmHg, saturação O2: 97%. A co-oximetria mostrou uma fracção de
metemoglobina (FMethHb) de 11%, oxihemoglobina (FO2Hb) de 86%,
desoxihemoglobina (FHHb) de 2,6% e uma fracção de carboxihemoglobina (FCOHb) de
0%. Analiticamente apresentava: hemoglobina 9.5 g/dl, leucócitos 3140/mm3,
plaquetas 144000/mm3. A aminotransferese de aspartato (Ast) e a
aminotransferese de alanina (Alt) encontravam-se elevadas; 79 U/l e 115U/
l respectivamente (normal entre 10-31U/l), bem como a desidrogenase láctica:
489 U/l (normal entre 135 ' 225 U/l). Os valores séricos de bilirrubina, ureia
e creatinina encontravam-se dentro dos parâmetros da normalidade. A radiografia
torácica revelou um infiltrado intersticial bilateral difuso. A doente foi
internada com o diagnóstico de presunção de pneumocistose e metemoglobinemia,
presumivelmente secundária a dapsona. A doente iniciou tratamento com
pentamidina e recebeu suporte transfusional com três unidades de glóbulos
rubros. por bradicardia sintomática a terapêutica com pentamidina foi
interrompida e a doente completou tratamento de pneumocistose com atovaquona. A
confirmação de pneumocistose foi feita pela identificação do Pneumocystis
jiroveciipor técnica de imunofluorescência em amostras de lavado
broncoalveolar. A evolução foi favorável, com redução progressiva da
metemoglobinemia para 1% ao 5º dia de internamento. A doente teve alta
assintomática e aos seis meses de seguimento mantinha-se assintomática, sob
tratamento profiláctico com atovaquona.
Metemoglobina
Definição
Cada subunidade do tetrâmero da molécula de hemoglobina é constituída por uma
cadeia de globina e um grupo heme que consiste numa porfirina complexada a um
átomo de ferro ferroso (Fe2+). A metemoglobina é um derivado da hemoglobina
caracterizada pela presença do ferro no estado férrico (Fe3+) em vez do estado
ferroso normal (Fe2+)1.
Formação da metemoglobina
Durante a formação da oxihemoglobina a partir da desoxihemoglobina e de
moléculas de oxigénio, um electrão é parcialmente transferido da molécula de
ferro para o oxigénio, formando-se um complexo férrico/anião superóxido (Fe3+/
O2-). Na reacção de desoxigenação a maior parte do oxigénio abandona o complexo
na forma de oxigénio molecular, de modo que o electrão que havia sido
emprestado regressa à molécula de ferro. Porém, uma pequena quantidade de
oxigénio sai na forma de radical superóxido (O2-), deixando o ferro no estado
férrico (metemoglobina). Este processo de auto -oxidação (ilustrado na Figura_1
) ocorre espontaneamente em indivíduos normais, convertendo diariamente cerca
de 0,5 a 3% da hemoglobina em metemoglobina2,3. A metemoglobina é também gerada
em reacções de oxidação em que participam compostos endógenos como o óxido
nítrico e peróxido de hidrogénio ou compostos exógenos, por acção directa ou
por intermédio de metabolitos.
Redução da metemoglobina
Uma vez formada, a acumulação de metemoglobinemia é prevenida pela acção de
vários mecanismos que reduzem a metemoglobina a hemoglobina, numa cadeia de
transferência de electrões (ilustrado na Figura_2
).O mecanismo fisiológico mais importante (responsável por 95% da redução da
metemoglobina) é levado a cabo pela citocromo b5 reductase, previamente
conhecida como diaforase, numa reacção dependente de NADH (dinucleotídeo de
nicotinamida adenina). A citocromo b5 reductase encontra-se ligada de forma não
covalente a um dinucleotídeo de flavina e adenina (FAD) que actua como
aceitador de electrões. Assim, o NADH gerado pela glicólise reduz o FAD que por
sua vez reduz a citocromo b5 reductase. A citocromo b5 reductase transfere os
electrões para a metemoglobina, que ao reduzir o ferro ao estado ferroso se
transforma em hemoglobina4. Uma via alternativa para a redução da metemoglobina
é mediada pela reductase da metemoglobina. Nesta reacção é utilizado o NADpH
(gerado pela desidrogenase da fosfato da glicose 6 na via das pentoses) como
fonte de electrões. No entanto não existem aceitadores fisiológicos para estes
electrões, sendo que esta depende de aceitadores exógenos, como é exemplo o
azul-demetileno5,6,7.Denotar que nos indivíduos com défice da desidrogenase da
glicose 6 fosfato o azul-de-metileno pode ser ineficaz (ou mesmo deletério como
se discutirá adiante). A metemoglobina pode ainda ser reduzida por mecanismos
não enzimáticos (por acção directa de compostos como o ácido ascórbico ou
glutationa) mas são reacções lentas e pouco significativas.
Significado fisiológico
Em condições normais os mecanismos de formação e de redução descritos mantêm a
fracção de metemoglobina estável, correspondendo a cerca de 1% da hemoglobina
total.
A metemoglobinemia (concentração de metemoglobina superior a 1%) surge quando
ocorre um desequilíbrio na produção ou na redução da metemoglobina, induzindo
um estado de anemia funcional. Não só o heme férrico é incapaz de se ligar ao
oxigénio como também induz alterações conformacionais que aumentam a afinidade
dos outros heme ferrosos do tetrâmero pelo oxigénio, desviando a curva de
dissociação para a esquerda. Assim, com fracções aumentadas de metemoglobina
assistimos a um efeito combinado de menos oxigénio sendo transportado e menos
oxigénio sendo libertado aos tecidos6.
Causas de metemoglobinemia
Na maioria das vezes a metemoglobinemia é adquirida, pela acção de vários
agentes oxidantes. Embora raras, as formas hereditárias merecem pelo seu
interesse histórico e características singulares, uma breve referência. são
três as formas de metemoglobinemia hereditária. Duas obedecem a um padrão de
transmissão autossómico recessivo: a deficiência do citocromo b5 reductase
(cb5R) e a deficiência do citocromo b5 (note-se que o citocromo b5 reductase é
um duplo sistema enzimático composto pelo citocromo b5 reductase e pelo
citocromo b5). O terceiro tipo, designado de Doença da Hemoglobina m é
transmitido de forma autossómica dominante e é caracterizado por uma mutação na
cadeia globina.
1) Deficiência do citocromo b5 reductase (cb5R) - são descritas duas formas de
deficiência do citocromo b5 reductase (cb5R): tipo I e tipo II. No tipo I há um
défice funcional da Cb5R. Ocorrem mutações que conduzem a produção de uma
enzima instável, facilmente degradada. Apesar de todas as células possuírem a
cb5R anormal só os eritrócitos maduros, anucleados, são incapazes de a
sintetizar e substituir. Esta forma de metemoglobinemia tem uma distribuição
global mas é endémica na população dos índios Navajo e nos nativos Yakutsk da
sibéria8,9. Os indivíduos homozigóticos ou heterozigotos compostos têm
concentrações de metemoglobinemianaordemdos10-35%eapesarde cianóticos são
assintomáticos. De facto a sua esperança de vida não é diferente da população
geral e a cianose tem apenas significado cosmético3,6. Pelo contrário, os
heterozigóticos correm o risco de desenvolver um quadro de metemoglobinemia
aguda sintomática, após exposição a agentes oxidantes. A descrição clássica de
metemoglobinemia aguda associada a profilaxia da malária em militares Norte-
Americanos a prestar serviço no Vietname demonstrou pela primeira vez que os
heterozigóticos para uma doença autossómica recessiva podem, em determinadas
circunstâncias, desenvolver doença clinicamente mais exuberante que os seus
pares homozigóticos10. Na deficiência do citocromo b5 reductase (cb5R) do tipo
II ocorrem mutações que resultam numa diminuição da actividade catalítica da
enzima ou num défice de produção. Para além da metemoglobinemia os doentes
apresentam atraso de desenvolvimento psicomotor. A esperança de vida é
significativamente diminuída e é comum a morte na infância. Os sintomas
neurológicos parecem dever-se a alteração do metabolismo lipídico no sistema
nervoso central, onde a cb5R parece desempenhar um papel importante11,12. Estas
formas de deficiência de cb5R distinguem-se pelos eufenótipo clínico e são
confirmadas pela análise da actividade enzimática em diferentes células. O
azul-de-metileno ou o ácido ascórbico melhoram a cianose mas não têm qualquer
efeito sobre as manifestações neurológicas.
2) A deficiência do citocromo b5 é uma causa extremamente rara de
metemoglobinemia congénita, descrita apenas em um doente Israelita13.
3) A Doença da Hemoglobina m engloba um grupo variado de mutações nas cadeias
de globina. Na prática todas elas provocam uma alteração na conformação
espacial do local de ligação ao grupo heme, conduzindo à oxidação espontânea do
ferro. As diferentes variantes podem distinguir-se por eletroforese,
espectrometria de massa, espectro de absorção ultravioleta e sequenciação
molecular. Actualmente não existe tratamento eficaz para estes distúrbios1.
A exposição a agentes oxidantes pode aumentar subitamente os níveis de
metemoglobina acelerando a taxa de formação até 1000 vezes, sobrecarregando os
sistemas enzimáticos de protecção. Os doentes com deficiência da desidrogenase
de fosfato glicose 6 têm risco aumentado de desenvolver metemoglobinemia uma
vez que a glutationa actua como anti-oxidante fisiológico14,15. As crianças são
um grupo particularmente susceptível uma vez que a actividade eritrocitária da
cb5R é de apenas 50 a 60% do adulto. Nas áreas rurais a preparação de leite de
fórmula com água do poço contaminada com nitratos corresponde a uma das formas
mais frequentes de metemoglobinemia adquirida na infância16. De entre os
agentes oxidantes mais frequentemente implicados como causa de metemoglobinemia
(Tabela_1), contam-se alguns fármacos de uso ubiquitário no contexto hospitalar
e ambulatório, como os nitratos, a dapsona, a benzocaína (utilizada como spray
anestésico em técnicas como broncoscopia, ecocardiograma transesofágico) e os
corantes de anilina14. A dapsona é um antibiótico que inibe a síntese do ácido
fólico. Uma vez ingerida é rapidamente absorvida e atinge níveis plasmáticos
máximos em cerca de 2-6h. É metabolizada no fígado por reacções de acetilação e
hidroxilação, formando-se hidroxilaminas, responsáveis pela produção da
metemoglobina. A semi-vida destas moléculas excede as 30h15,17,18. Vários casos
de metemoglobinemia secundária a dapsona estão descritos na literatura, e
embora alguns deles sejam resultado de ingestão excessiva acidental, a
ocorrência de metemoglobinemia associada a dapsona em doses terapêuticas parece
ser mais frequente. Num estudo retrospectivo de 138 casos de metemoglobinemia
secundária, a dapsona foi o agente responsável em cerca de 42% dos casos, e em
quase todos estava prescrita para profilaxia de pneumocistose em doentes
imunocomprometidos14.
Diagnóstico
Como já referimos, quando a concentração de metemoglobinemia aumenta sobrevém
um estado de anemia funcional e os doentes podem apresentar sintomas atribuídos
a uma entrega inadequada de oxigénio aos tecidos.
Doentes jovens e sem anemia são geralmente assintomáticos com níveis de
metemoglobinemia inferiores a15%.Níveis de 20-30% causam frequentemente
sintomas como alteração do estado de consciência, cefaleias, fadiga, tonturas e
síncope. Níveis superiores a 50% podem resultar em arritmias, convulsões, coma
e mesmo morte19,20. Obviamente doentes com comorbilidades como anemia, doença
cardiovascular, patologia pulmonar ou com presença de espécies anormais de
hemoglobina podem apresentar sintomas com níveis de metemoglobina inferiores
aos acima descritos. A suspeita de metemoglobinemia deve ser colocada na
presença de cianose com pressão parcial de oxigénio (paO2) normal na
gasometria.
A cianose é aparente quando o nível de metemoglobinemia excede 1,5g/dl3. por
outro lado, a causa mais comum de cianose que se deve à presença de hemoglobina
na forma desoxigenada (desoxihemoglobina) observa-se quando os níveis absolutos
de desoxihemoglobina excedem 4 g/dl. Uma forma simples de distinguir a
metemoglobina da desoxihemoglobina consiste em colocar uma ou duas gotas de
sangue do doente num papel de filtro: o aspecto cor de chocolate da
metemoglobina não se altera com o tempo, ao contrário da desoxihemoglobina que
adquire um aspecto mais claro no contacto com o ar19,20. Uma outra pista que
pode alertar para a presença de metemoglobinemia é o saturation gap, que
corresponde à disparidade entre diferentes técnicas frequentemente usadas para
medir a saturação arterial de oxigénio, nomeadamente a oximetria de pulso e a
gasometria arterial21. A saturação de oxigénio pode ser medida de três formas
diferentes: oximetria de pulso, gasometria arterial e co-oximetria. Em
indivíduos sem dishemoglobinas os valores são virtualmente sobreponíveis. No
entanto, na presença de fracções anormalmente elevadas de determinados tipos de
hemoglobinas os diferentes métodos têm limitações que importa conhecer.
As moléculas de hemoglobina possuem um espectro de absorção de luz
característico que possibilita a determinação da concentração dos diferentes
derivados de hemoglobina. Os métodos de análise por espectrofotometria baseiam-
se no princípio que a absorção de luz é proporcional à concentração de
soluto21.
1) A oximetria de pulso é um método espectrofotométrico não invasivo que
utiliza apenas luz com dois comprimentos de onda e mede a contribuição de
apenas duas espécies de hemoglobina: oxihemoglobina e desoxihemoglobina. Os
oxímetros de pulso são concebidos de forma a conterem fonte de luz numa das
extremidades e um fotodetector na outra. São capazes de emitir luz vermelha,
com um comprimento de onda de 660nm e infra-vermelha a um comprimento de onda
de 940nm. A desoxihemoglobina absorve mais energia a 660nm enquanto a
oxihemoglobina absorve mais energia a 940nm. A razão entre a absorção dos
diferentes comprimentos de onda durante a fase pulsátil e estática é convertida
em saturação de oxigénio a partir de uma curva de calibração programada no
aparelho. Na ausência de outras formas de hemoglobina (que não a oxi ou a
desoxihemoglobina) uma razão de absorção de 1 corresponde a uma saturação de
85%. Os oxímetros de pulso são muito susceptíveis a interferências externas
(pex arrepios que simulam pulsações) ou internas (diferentes formas de
hemoglobina com espectros de absorção sobreponíveis). A metemoglobina tem dois
picos de absorção, aproximadamente a 630nm e a 960nm. Desta forma a sua
presença é interpretada pelo oxímetro como uma fracção quer de
desoxihemoglobina quer de oxihemoglobina, fazendo aumentar o numerador e o
denominador da razão de absorção 660/940nm, aproximando-o da unidade (um) e
dessa forma obtendo um valor de saturação de oxigénio próximo de 85%. De facto,
a partir de um determinado valor, concentrações crescentes de metemoglobina não
fazem variar a saturação de oxigénio obtida por oximetria, que atinge um
plateau mínimo de 84-86%21,22.
2) Os aparelhos de gasometria estimam a saturação de oxigénio a partir de
equações empíricas que usam os valores de pH e de paO2. Eléctrodos de alta
impedância medem alterações na voltagem e determinam pH e paCO2, enquanto a
paO2é determinada a partir de alterações de corrente num eléctrodo de Clark.
mais uma vez a presença de formas diferentes de hemoglobina interferem no
cálculo da saturação de oxigénio21.
3) A co-oximetria é um método mais complexo e também mais fiável de
determinação de saturação de oxigénio uma vez que mede absorção de luz a quatro
ou mais comprimentos de onda, correspondentes aos diferentes padrões de
absorção dos derivados de hemoglobina. Assim é determinada a percentagem das
diferentes formas de hemoglobina: oxihemoglobina (cO2Hb), desoxihemoglobina
(cHHb), metemoglobina (metHb), carboxihemoglobina (COHb) e sulfahemoglobina
(sHb). Na presença de dishemoglobinas a co-oximetria é a forma mais fiável de
avaliar a oxigenação sanguínea, calculando a fracção de oxihemoglobina (FO2Hb)
em relação ao total de hemoglobina presente, que inclui todas as hemoglobinas
non-oxygen binding22. FO2Hb=cO2Hb+cHHb+cmetHb+cCOHb+csHb
Ainda assim existem algumas potenciais fontes de erro que devemos conhecer.
Alguns co-oxímetros não são capazes de medir a sulfahemoglobina directamente,
de modo que a sua presença pode traduzir-se numa falsa elevação do valor de
metemoglobina e redução do valor de carboxihemoglobina, que pode até vir
indicado como negativo! Neste contexto todos os esforços em reduzir os níveis
de metemoglobina revelar-se-ão infrutíferos. A presença de azul-de-metileno
pode também ser causa de falsa metemoglobinemia, o que coloca um desafio
adicional na monitorização dos níveis de metemoglobinemia após tratamento com
azul-de-metileno. Neste contexto a metemoglobina detectada por co-oximetria
deve ser confirmada pelo método de Evelyn 'malloy. Neste procedimento a adição
de cianeto elimina o pico de absorção da metemoglobina, ao ligar-se a ela. A
adição subsequente de ferricianeto converte toda a amostra em
cianometemoglobina, permitindo a determinação da concentração total de
hemoglobina. A metemoglobina é depois expressa em percentagem da concentração
total de hemoglobina23,24. Uma outra interferência pode dever-se à presença de
Hemoglobina m. Nesta forma de metemoglobinemia a co-oximetria pode revelar
valores normais de metemoglobinemia e valores de carboxihemoglobina ou
sulfahemoglobina aumentados! Isto porque nesta forma de metemoglobinemia a
hemoglobina encontrase estruturalmente modificada e com um espectro de absorção
que difere significativamente da metemoglobina típica.
Tratamento
O tratamento da metemoglobinemia depende do contexto clínico. Nas formas
hereditárias to-dos os doentes devem ser aconselhados a evitar a exposição a
agentes capazes de induzir a formação de metemoglobina. Como já referido não
existe tratamento eficaz para a Hemoglobina m e o tratamento da cianose nos
indivíduos com deficiência da cb5R prende-se apenas com razões cosméticas.
Relativamente às formas adquiridas e nos casos ligeiros, os doentes são
tratados apenas com a suspensão do agente oxidante e com oxigénio suplementar
para maximizar a capacidade transportadora de oxigénio da hemoglobina normal.
Assumindo que a produção de metemoglobinemia é interrompida, a redução pela via
da citocromo b5 reductase é capaz de fazer diminuir o nível de metemoglobinemia
em cerca de 15% por hora25. Perante a presença de sintomas moderados/graves
deve considerar-se a utilização adicional de azul-demetileno. Este antídoto é
geralmente utilizado nas formas sintomáticas e com metemoglobina superior a
20%. No caso de indivíduos com condições pré-existentes que comprometam
adicionalmente a correcta oxigenação dos tecidos, o limiar para utilização de
azul-de-metileno é mais baixo, sendo frequentemente administrado se
metemoglobinemia for superior a 10%26. A dose recomendada é de 1mg/kg, em
administração por via endovenosa e em perfusão de cinco a dez minutos. A via
intra-óssea também pode ser utilizada. Pode ser necessário repetir
administração ao fim de uma hora se os níveis de metemoglobina forem superiores
a 60% ou na ausência de melhoria. A dose total não deve exceder os 7mg/kg
devido ao aumento da incidência de efeitos adversos como náusea, vómitos,
diarreia ou hipersudorese. Deve ser utilizado de forma cautelosa em doentes com
insuficiência renal grave ou em doentes com défice da desidrogenase de fosfato
glicose -6. Nestes doentes o azul-de-metileno é ineficaz, uma vez que não
existe NADpH necessário para reduzir o azul-de-metileno à sua forma activa.
Aliás, neste contexto ou mesmo em indivíduos sem défice enzimático mas em que
doses superiores a 15mg/kg são administradas, o azul-de-metileno pode funcionar
como um agente oxidante, capaz de precipitar uma anemia hemolítica ou induzir,
paradoxalmente, a formação de metemoglobina! Nestes doentes o tratamento mais
eficaz passa pelo suporte transfusional. O ácido ascórbico (100 a 300mg/dia)
pode também ser considerado no tratamento da metemoglobinemia, embora a
resposta seja lenta e pouco ampla. De notar que tal como acontece com o azul-
de-metileno, nos doentes com défice desidrogenase de fosfato glicose-6 pode
funcionar como oxidante. Em casos extremamente graves a exsanguinotransfusão e
a administração de oxigénio hiperbárico podem ser opções terapêuticas, embora
sem clara demonstração da sua eficácia. No contexto particular de
metemoglobinemia secundária à dapsona, a cimetidina pode contribuir para a
redução da metemoglobina, inibindo a hidroxilação da dapsona e a sua
transformação no metabolito oxidante. No entanto, apesar de prevenir o
agravamento da metemoglobinemia nos doentes submetidos a terapêutica crónica
com dapsona, o seu modo lento de actuação torna o uso da cimetidina ineficaz no
contexto de metemoglobinemia aguda sintomática27,28.
Discussão
A metemoglobinemia adquirida é descrita como uma patologia comum14. No entanto
desconhece-se a sua prevalência, nomeadamente em clínicas de ambulatório de
doentes com Infecção VIH, local onde face à prescrição frequente de fármacos
considerados agentes comuns de metemoglobinemia se esperaria uma prevalência
elevada. Este foi o primeiro caso de metemoglobinemia descrito no serviço de
Doenças Infecciosas do Hospital são João, onde cerca de 1800 doentes com
infecção VIH se encontram em consultas de seguimento. O facto de muitos dos
casos de metemoglobinemia poderem corresponder a formas ligeiras e cursarem
clinicamente de forma silenciosa pode parcialmente justificar este facto.
O diagnóstico é dependente de um nível elevado de suspeição, sobretudo em
doentes onde a cianose não é evidente. No nosso caso a presença do saturation
gap foi a pista mais relevante. De facto a discrepância entre a saturação de
oxigénio obtida por oximetria (89%) e por gasometria arterial (97%) foi o dado
que alertou para a presença de metemoglobina, confirmada por cooximetria. Face
à percentagem de metemoglobina (11%), à sintomatologia dominada pela dispneia e
à presença concomitante de anemia (Hb 9,5g/dl) optou-se por aumentar a
capacidade de transporte de oxigénio recorrendo a oxigénio suplementar e ao
suporte transfusional. A contribuição da pneumocistose para o quadro de
dispneia, provavelmente até o principal determinante foi também um factor tido
em conta na opção de não utilizar azul-de-metileno.
Conclusão
A metemoglobinemia é uma causa de anemia funcional cuja prevalência exacta se
desconhece mas se admite ser elevada e que se atribui na maioria dos casos à
utilização de fármacos de prescrição frequente, quer em ambiente hospitalar
quer em regime de ambulatório. O diagnóstico é simples mas dependente de um
elevado índice de suspeição. É fundamental o reconhecimento precoce de uma
patologia associada a importante morbilidade e potencialmente fatal, para a
qual existe tratamento eficaz.