Internamentos por Intoxicação com Pesticidas em Portugal
Introdução
As intoxicações são uma causa importante de mortalidade. Em 2004, ocorreram 346
milhões de mortes no Mundo,das quais 30,9% na Europa1.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, os pesticidas são compostos químicos
utilizados para eliminar pragas. Pela sua natureza, são potencialmente tóxicos
para outros organismos, incluindo os seres humanos2.
A exposição do homem aos pesticidas pode ocorrer de vária formas3. A
intoxicação intencional por pesticidas constitui um problema de saúde pública,
essencialmente nos países em desenvolvimento e representa cerca de um terço dos
suicídios à escala mundial4. Num estudo prospectivo chinês, com dez anos de
duração, os pesticidas representaram a maior causa de morte por intoxicação
(38,7%) e a sua ingestão intencional foi a causa mais comum de suicídio por
intoxicação5.Um estudo turco retrospectivo, comba se em resultados de
autópsias, mostrou que os insecticidas contribuíram para 17,0% das intoxicações
fatais por pesticidas6. Na Venezuela, em 20,6% dos 1938 doentes que recorreram
ao centro toxicológico em 2006 2007, o motivo foi a intoxicação por
pesticidas7.
Ao comparar com os restantes países da União Europeia, verifica-se que em
Portugal, no ano de 2001, a utilização de pesticidas por área agrícola (3,7kg/
hectare) foi superior aos valores médios europeus (2,1kg/ hectare), sendo
apenas ultrapassada pela holanda, Bélgica e Luxemburgo8.
Em Portugal, os estudos sobre intoxicações por pesticidas são escassos, no
entanto sabe-se que a situação é comum na maioria dos Serviços de urgência9,10.
Tendo em conta os dados da delegação de Coimbra do Instituto de nacional de
Medicina Legal, a intoxicação por pesticidas continua a ser uma causa
importante de morte. Entre 2000 e 2002, foram efectuadas 639 análises de
intoxicação por pesticidas, sendo os agentes mais frequentemente envolvidos o
quinalfos e paraquato9. Entre 1989 e 2001, foram admitidos nos hospitais da
universidade de Coimbra (HUC) 1570 casos de intoxicação, com 132 mortes por
intoxicação, dos quais 81,0% por pesticidas. Este mesmo estudo apurou que a
intoxicação voluntária foi a causa mais predominante, correspondendo a 76,2%dos
casos11.
Ao longo de três anos (1989 a 1991) foram internados, na unidade de urgência
Médica do hospital de São José, 143 doentes com intoxicação aguda por
organofosforados, representando 2,5% dos doentes internados nessa unidade
nesses anos. A taxa de mortalidade hospitalar foi 37,0% e a intoxicação
voluntária a mais comum (92,0%)10. Dos 37 casos de intoxicação por paraquato
internados num Serviço de Medicina Interna dos HUC entre Janeiro de 1987 e
Janeiro de 2000, observou-se uma mortalidade de 51,4%12. Assim, não existem
publicados estudos de casuística nacional capazes de fornecer informação
detalhada do número e características das intoxicações por pesticidas em
Portugal. Este estudo observacional transversal descritivo visa responder a
estas questões, contabilizando e caracterizando as intoxicações agudas por
pesticidas ocorridas em Portugal nos anos de 2006-2007.
Métodos
Foram obtidos os dados nacionais e de oito instituições hospitalares, relativos
aos internamentos por intoxicações com pesticidas (organoclorados,
organofosforados e carbamatos e outros pesticidas, codificados, de acordo
com a Classificação Internacional de Doenças 9ª revisão, como 989.2, 989.3 e
989.4, respectivamente), ocorridos entre Janeiro de 2006 e Dezembro de 2007. A
Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) disponibilizou os
internamentos a nível nacional e os hospitais em estudo foram: hospital São
João, hospital geral de Santo António, Centro hospitalar de Vila Nova de Gaia,
unidade Local de Saúde de Matosinhos, hospital São Sebastião, hospital São
Teotónio, Centro hospitalar de Trás-Os-Montes e Alto Douro e Centro hospitalar
Tâmega e Sousa. De acordo com a área de influência de cada instituição13,14 e
da superfície das culturas permanentes por localização geográfica15, os
primeiros cinco hospitais foram considerados como de predomínio urbano (área de
influência com menos de mil hectares de culturas permanentes), e os restantes
foram tidos como predominantemente rurais (áreas de influência com mais de
cinco mil hectares de culturas permanentes). Os dados recolhidos incluem idade,
sexo, agente, motivo (causa externa) e tempo de internamento. Os dados
fornecidos pela ACSS classificam o agente usado em organoclorados,
organofosforados e carbamatos ou paraquato. Os dados fornecidos pelos
hospitais em estudo dividem o agente em organoclorados, organofosforados e
carbamatos e outros pesticidas. O Centro hospitalar Tâmega e Sousa não
forneceu o tempo de internamento. Foram apurados, na ACSS e no Instituto
nacional de Estatística, os dados relativos ao número de internamentos em 2005
nos Serviços de Medicina Interna de cada hospital16 e a população residente nas
respectivas áreas de influência, de acordo com o Censo Demográfico de 200615.
Os dados recolhidos foram analisados com os programas Microsoft Excel 2010® e
SPSS 15.0®.
A recolha e processamento dos dados decorreram após devida aprovação,
respeitando as normas éticas e de confidencialidade.
Resultados
No biénio 2006-2007, ocorreram 899 internamentos por intoxicação com pesticidas
em Portugal, dos quais 476 em 2006 e 423 em 2007. Os 476 internamentos
decorridos em 2006 representam 13,3% dos 3586 internamentos por intoxicações e
efeitos de drogas registados nesse ano16. Segundo os Censos Demográficos de
2006, pode ser calculada uma incidência populacional de internamentos por
intoxicações com pesticidas em Portugal de 4,5 e 4,0 por 100000 habitantes em
2006 e 2007, respectivamente.
A análise descritiva dos resultados nacionais encontra-se detalhada na Tabela
1. A média de idade foi 51 anos, com uma amplitude interquartis de 30 anos (38-
68 anos), e 61,3% dos internamentos ocorreram em indivíduos do sexo masculino.
Verifica-se que 44 intoxicações (4,9%) ocorreram em idades inferiores a 18 anos
e destas, 26 (59,1%) em crianças com menos de 4 anos de idade. Da totalidade
dos casos em idade pediátrica, 10 (23,0%) ocorreram na sequência de acidentes,
12 (27,0%) foram tentativas de suicídio e as restantes 22 (50,0%) foram
classificadas como outra no que respeita à causa externa. O histograma da
distribuição da idade de acordo com a causa externa encontra-se representado na
Figura_1.
A causa externa mais frequentemente observada foi a intoxicação intencional
(85,5%). Na Tabela_2, encontra-se a distribuição do sexo e do agente, segundo a
causa externa, nos internamentos nacionais durante o biénio em estudo.
Nos oito hospitais em estudo, foram registados 297 internamentos (33,0% do
total nacional), sendo reprodutíveis dos dados nacionais quanto ao sexo, idade
e causa externa. O tempo de internamento nos hospitais em estudo foi mais curto
(média: 10 dias, desvio-padrão: 12,6). Em 54,9% dos internamentos nestes oito
hospitais, o agente foi classificado como organofosforados e carbamatos, em
43,1% como outros pesticidas e em 2,0% como organoclorados. Estes dados
diferem dos encontrados a nível nacional, onde a classificação do agente é
distinta Tabela_1.
Das 249 intoxicações em que foi possível apurar o mês de internamento, não se
verificou predominância de nenhuma época sazonal específica. Na Tabela_3,
encontra-se descrita a distribuição dos internamentos por hospital em estudo,
com cálculo da respectiva incidência populacional.
Segundo os dados da ACSS relativos aos internamentos nos Serviços de Medicina
Interna de 2005, as intoxicações por fitofarmacêuticos foram responsáveis por
0,85% dos internamentos nos hospitais de predomínio rural (195/22924
internamentos) e 0,32% nos hospitais predominantemente urbanos (102/31182
internamentos). Este cálculo baseia-se no pressuposto de que os doentes com
intoxicação por pesticidas são internados nos Serviços de Medicina Interna e
que o número de internamentos se manteve constante entre 2005 e 2007.
Discussão
Este estudo, através da análise dos internamentos hospitalares por intoxicações
com pesticidas, demonstra a importância desta problemática no nosso país.Tal
como se verificou em países como a China5, turquia6ou Venezuela7, as
intoxicações por pesticidas em Portugal são responsáveis por uma porção
significativa das intoxicações. A incidência populacional anual, entre 4,0 e
4,5/100000 habitantes, foi muito superior à encontrada em um estudo
desenvolvido nos Estados unidos da América17. Este estudo comprova, assim, o
que outros estudos em Portugal já apontavam: a intoxicação por pesticidas
mantém-se uma causa importante de internamento10e morte9.
Tal como se observou em outros estudos nacionais9,10,12,18e noutros
países5,6,7,17, verifica-se um predomínio das intoxicações no sexo masculino.
Este predomínio consistentemente observado, poderá ser explicado pelo contacto
mais frequente dos homens com os pesticidas, no decorrer da actividade
agrícola9,17.
A intoxicação intencional contribuiu para 85,5% dos casos, predomínio observado
em toda a literatura revista. O uso destes agentes nas tentativas de suicídio
poderá estar relacionada com a facilidade de acesso e pronta disponibilidade
para uso em actos impulsivos9. Foi proposto que as mulheres, pela menor
inexperiência em lidar com pesticidas, estejam mais expostas a intoxicações
acidentais11, contudo, quando analisada a relação entre a causa externa e o
sexo, não se observou associação estatisticamente significativa.
Esforços governamentais, nomeadamente a erradicação dos pesticidas mais
nocivos, têm sido desenvolvidos19e o uso destas substâncias parece ser cada vez
mais seguro, o que vai de encontro à baixa frequência de acidentes encontrada
(4,7%).
Metade das intoxicações por pesticidas ocorreram entre os 38 e os 68 anos, com
as medidas de tendência central a apontar para os 50 anos. Outros estudos de
casuística em Portugal apontam para a mesma tendência9,10,12, reflectindo os
indivíduos que se mantêm em actividade laboral9. Este padrão é mais notório nas
intoxicações intencionais, como se observa na Figura_1. Nas intoxicações
acidentais, observa-se um pico na idade pediátrica, o que provavelmente
reflecte despreocupação das populações com o armazenamento dos
fitofarmacêuticos, que os mantêm em locais pouco seguros e de fácil acesso às
crianças17.
O tempo de internamento médio das intoxicações intencionais foi superior ao dos
acidentes, o que não se verifica num estudo norte-americano17. A explicação
pode dever-se à maior quantidade de agente absorvido nas tentativas de
suicídio, condicionando um estado clínico mais grave10. No entanto, este estudo
refere-se a internamentos por intoxicações com pesticidas e não a admissões no
Serviço de urgência. Assim, não foram contabilizados os casos mais ligeiros,
com alta hospitalar sem internamento ou casos de falecimento precoce.
Está descrita uma tendência de diminuição dos casos de intoxicação por
pesticidas nos meses mais frios, reflectindo a diminuição do seu uso na
agricultura17,no entanto, neste estudo, não foi encontrada associação entre as
intoxicações e uma época sazonal específica.
As intoxicações nos hospitais em estudo foram essencialmente por
organofosforados e carbamatos ou outros pesticidas. Esta classificação não
faz a necessária distinção dos diversos pesticidas, pois o grupo diagnóstico
outros pesticidas é demasiadamente vasto, agrupando substâncias pouco nocivas
com outras tóxicas e fatais, como o paraquato. A nível nacional, segundo os
dados da ACSS, a intoxicação por paraquato representou metade das intoxicações
por pesticidas, pelo que mereceria, pela sua letalidade e frequência, uma
classificação isolada.
Conclui-se assim que a intoxicação por paraquato representa, no nosso país, um
problema grave. Em 37 casos estudados num hospital central de Portugal,
observou-se uma mortalidade de 51,4%12.
Perante os dados recolhidos nos hospitais, foi possível demonstrar o predomínio
das intoxicações por pesticidas em meio rural. Os internamentos foram
proporcionalmente mais frequentes nos hospitais classificados como de
predomínio rural e a incidência populacional nestas áreas foi o dobro das zonas
de predomínio urbano. A proporção de internamentos aponta no mesmo sentido, com
a percentagem de internamentos na Medicina Interna,a atingir quase o triplo nos
hospitais de predomínio rural.
Perante os resultados deste estudo, traça-se um perfil das intoxicações por
pesticidas, com uma maior frequência nos homens de meia idade, em meios rurais
e intoxicação intencional.