Anafilaxia à semente de girassol
INTRODUÇÃO
A alergia alimentar devida a sementes e frutos secos assume, também na nossa
população, uma relevância crescente em termos de prevalência e gravidade. A
semente de girassol (Helianthus annuus), apesar do consumo frequente em forma
de óleo, margarina, produtos de panificação e sementes, como aperitivo ou em
saladas, raramente é reportada como causa de reacções anafi lácticas1-5. A
sensibilização pode ocorrer a proteínas de reserva (albuminas 2S) e a proteínas
de transferência de lípidos (Lipid Transfer Proteins' LTPs). Foi identificada
na semente de girassol uma LTP (Hel a 3) com um peso molecular de ∼9 kDa5.
Existem 8 albuminas diferentes na fracção 2S da semente de girassol que foram
também identifi cadas com potencial alergénico em semente de sésamo, noz,
amendoim e mostarda6.
CASO CLÍNICO
Doente de 32 anos do sexo feminino, com rinoconjuntivite alérgica persistente
moderada-grave desde os 20 anos, sensibilizada a pólenes de artemísia,
gramíneas, oliveira, parietária, plantago, quenopódio, salsola e a epitélio de
gato. Recorre à consulta de Imunoalergologia em 2010 devido à ocorrência, desde
2007, de três reacções anafilácticas imediatamente (5 a 10 minutos) após
ingestão de semente de girassol. Estes episódios caracterizaram-se por
angioedema peri-orbitário, prurido orofaríngeo, rinite, tosse, estridor e
pieira, que regrediram após administração de anti-histamínico e corticosteróide
por via oral. Os primeiros episódios ocorreram após ingestão de sementes secas,
vulgarmente designadas de pipas, e o último após ingestão de batatas fritas
confeccionadas em óleo de girassol. A doente referia ainda prurido orofaríngeo
após ingestão de pistácio. Ingeria batata sem reacção adversa e negava queixas
com outros frutos secos, semente de sésamo e amendoim; recusava a ingestão de
mostarda por não lhe ser aprazível o paladar.
Na consulta de Imunoalergologia foram efectuados testes cutâneos por picada
(extractos Bial-Aristegui®, Bilbau, Espanha) que se revelaram positivos para
semente de girassol (9x7 mm), mostarda (5x4 mm), pistácio (4x3 mm) e pinhão
(5x3 mm), sendo negativos para outros frutos secos, semente de sésamo e
amendoim. O doseamento sérico de imunoglobulina E (IgE) total foi de 158 UI/mL
e de IgE específica para semente de girassol foi de 79 kU/L (Phadia ' Thermo
Fisher Scientific®, Uppsala, Suécia). Foi efectuado ImmunoCAP ISAC® (Immuno
Soli -phase Allergen Chip) que revelou um perfil de sensibilização
preponderante a LTPs (nPru p 3, nArt v 3 e rPar j 2) conforme ilustrado no
Quadro 1.
Quadro 1.Resultados positivos nos testes cutâneos por picada, no doseamento
sérico de IgE específicas e no ImmunoCAP ISAC®
Face aos resultados obtidos, realizou -se estudo de inibição ISAC® com extracto
de semente de girassol. Foi preparado um extracto hidrossolúvel a partir de
semente de girassol, que se misturou na proporção de 1:1 com o soro da doente.
Após centrifugação, o sobrenadante obtido foi incubado com o microarrayde
alergénios ISAC®.
Como controlo utilizou-se soro de um doente alérgico a Der p 1, tratado da
mesma forma. Observou-se que o extracto de semente de girassol produziu uma
inibição de 60% (Figura 1) da ligação de IgE a LTPs (nPru p 3 e nArt v 3); não
se verificou inibição para os restantes alergénios identificados no ImmunoCAP
ISAC® (nCyn d 1, rPhl p 1, nPhl p 4, nOle 1, nArt v 1, nSal k 1, rPar j 2 e
rFel d 1). De igual forma, não se verificou inibição no soro controlo.
Figura 1.Resultado do estudo de inibição ISAC6.5pt; font-family:
"Verdana","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; mso-bidi-
font-family:GillSansMT;color:windowtext;mso-ansi-language:PT; mso-fareast-
language:PT;mso-bidi-language:AR-SA'>®com extracto de semente de girassol com o
soro da doente: inibição do nPru p 3 de 3,2 para 1,28 ISU (60% de inibição) e
inibição do nArt v 3 de 0,8 para 0,3 ISU (62,5% de inibição)
A doente encontra-se actualmente em evicção rigorosa de semente de girassol,
incluindo de alimentos confeccionados em óleo de girassol, e de frutos secos,
sendo portadora de dispositivo para auto-administração de adrenalina 0,3mg por
via intramuscular.
DISCUSSÃO
A ocorrência de alergia a semente de girassol tem sido reportada em indivíduos
que possuem aves alimentadas com sementes de girassol3,7, mas casos clínicos
como o
que descrevemos, de alergia alimentar grave mediada por IgE, são raros. Este
caso destaca-se também pela particularidade da doente apresentar anafilaxia ao
óleo de girassol.
A alergia ao óleo de girassol já foi descrita8,9, mas é considerada um evento
muito incomum pois a maioria dos doentes com alergia a esta semente tolera a
pequena quantidade de proteína alergénica contida no óleo de girassol2,4.
Tal facto poderá ser explicado pela sensibilização a LTPs.
As LTPs representam uma classe de alergénios ubiquitários específicos para
alimentos de origem vegetal, como frutos frescos e cereais10. A sensibilização
a LTPs é clinicamente relevante, dado que são panalergénios estáveis,
resistentes ao calor e à digestão péptica, e apresentam domínios bem
conservados que condicionam um elevado grau de reactividade cruzada entre
alimentos botanicamente não relacionados10. Tais características justificam que
a sensibilização a estas proteínas possa estar na origem da ocorrência de
anafilaxia após ingestão de óleo de girassol cozinhado a altas temperaturas,
como sucedeu no caso clínico que reportamos. Os sintomas de rinite alérgica com
a exposição a pólenes iniciaram-se previamente à alergia alimentar, o que está
de acordo com a hipótese levantada de se tratar de um caso de polinose com
reactividade cruzada a LTPs, que se confirmou posteriormente através dos
estudos de inibição ISAC®realizados. Apesar de o rPar j 2 ser também uma LTP,
não se verificou inibição com este alergénio, o que se deve ao facto de esta
proteína pertencer a outra subfamília de LTPs não relacionadas com as LTPs que
estão associadas a rosáceas.
Por outro lado, a família das albuminas 2S constitui uma importante classe de
proteínas alergénicas comuns em sementes. A sua presença em quase todas as
sementes comestíveis deve ser tida em consideração não só devido à alta
incidência de reacções clínicas em pessoas sensibilizadas mas também devido à
possibilidade real de reactividade cruzada entre diferentes proteínas da mesma
classe10.
Nomeadamente, também foram identificadas com potencial alergénico em semente de
sésamo, noz, amendoim e mostarda6. No caso clínico que descrevemos é notória
esta reactividade cruzada, pela sensibilização observada a pistácio, pinhão e
mostarda, com repercussão clínica no caso do pistácio. Por este motivo,
justifica -se a opção de recomendar a evicção de frutos secos.
A ocorrência de reacção anafiláctica devido a LTP da semente de girassol foi
recentemente descrita na literatura5.
O crescente consumo de sementes de girassol secas como aperitivos e a sua
elevada utilização em snacks, saladas e produtos de panificação, bem como o
facto de a alergia à semente de girassol poder estar associada a sensibilização
a aeroalergénios comuns na Europa, como o pólen de artemísia5, explicam o
recente aumento na prevalência de casos reportados.
Por outro lado, a gravidade da reacção clínica que reportamos, assim como a
elevada probabilidade de ingestão da semente de girassol como alergénio oculto
em snacks ou alimentos confeccionados em óleo de girassol, justificam a
publicação deste caso clínico, para que esta possibilidade seja tida em
consideração na investigação de situações de alergia de causa alimentar não
esclarecida. O diagnóstico assertivo e célere permite recomendar atempadamente
a evicção rigorosa não só da semente de girassol e dos alimentos confeccionados
em óleo de girassol, como dos alimentos com reactividade cruzada, minimizando
desta forma a possibilidade de recorrência de reacção anafiláctica grave.