Urticária papular: Revisão da literatura
INTRODUÇÃO
Urticária papular corresponde a um termo utilizado há mais de 100 anos para
descrever lesões cutâneas que se suspeitavam estar relacionadas com picadas de
insectos1. Outros termos podem ser utilizados para descrever a mesma entidade,
incluindo prurigo estrófulo, lichen urticária2 e prurigo simplex, pretendendo o
último traduzir a relativa benignidade desta afecção cutânea3. Mais
recentemente, foi sugerido que se utilizasse a terminologia hipersensibilidade
induzida por picadas de insecto como o termo mais correcto para designar esta
patologia4.
A urticária papular define‑se como uma dermatose crónica e recidivante,
caracterizada pela presença de lesões papulares e vesículas muito
pruriginosas2, resultantes de uma reacção de hipersensibilidade a picadas de
insectos3. Geralmente, as lesões evoluem sem complicações para a cura em cerca
de uma semana, mas ocasionalmente impetiginizam5.
Embora a sua prevalência exacta seja desconhecida6, é uma dermatose frequente
(estimando‑se em cerca de 10 % da população) e característica das crianças,
surgindo principalmente a partir dos 2 anos de idade7, com desaparecimento
espontâneo, na maioria dos casos, até aos 7‑10 anos5. No entanto, também pode
afectar adolescentes e adultos.
Neste artigo, os autores fazem uma revisão da etiologia, histopatologia/
fisiopatologia, manifestações clínicas, diagnóstico, diagnóstico diferencial e
tratamento da urticária papular.
ETIOLOGIA
A urticária papular foi durante muito tempo atribuída a infecções, ansiedade
psicológica, alergia alimentar e/ou medicamentosa, sabendo‑se actualmente que
se trata de uma reacção cutânea de hipersensibilidade à saliva de artrópodes,
inoculada por estes insectos8.
Os artrópodes (Arthropoda) são um filo de animais invertebrados que engloba
aproximadamente 80 % de todas as espécies de animais conhecidas pelo Homem, com
mais de 1,5 milhões de espécies descritas, de entre as quais várias têm sido
relacionadas com a urticária papular, nomeadamente mosquitos, percevejos e
pulgas9 (Figura_1). Estes insectos picam outros animais com o objectivo de se
alimentarem através do sangue que sugam. A sua saliva possui diversas proteínas
com diferentes funções (antiplaquetária, anticoagulante ou vasodilatadora)10,
podendo provocar reacções alérgicas locais, urticária papular ou, em raríssimos
casos, reacções sistémicas3,11.
A resposta normal a uma picada de insecto corresponde a uma reacção no local da
picada que se caracteriza pelo aparecimento, minutos após a picada, de prurido,
eritema e edema local, que geralmente resolvem em algumas horas11.
Embora sejam raras, podem ocorrer também reações sistémicas, incluindo
anafilaxia, após picadas de insetos, que têm sido encontradas principalmente em
associação com mordeduras por percevejos do género Triatoma3,11.
Doentes com mastocitose ou indivíduos com triptase elevada, mesmo na ausência
de mastocitose sistémica, apresentam risco mais elevado de desenvolver reacções
sistémicas11.
No que respeita à urticária papular, a nível mundial, as pulgas são uma causa
frequente da sua ocorrência, podendo ser parasitas tanto de animais como de
humanos12.
As três espécies que mais frequentemente afectam os humanos são a
Ctenocephalides felis(pulga do gato), Ctenocephalides canis(pulga do cão) e
Pulex irritans(pulga humana)13. Também as picadas por mosquitos se associam com
frequência a esta patologia, destacando‑se as espécies Aedes, Culex e
Anophelescomo as principais responsáveis por picadas em humanos11.
Relativamente aos percevejos (Cimex lectularius), estes são insectos que se
alimentam igualmente do sangue de humanos ou animais e podem ser encontrados
nas camas (entre as costuras dos colchões, estrados, cabeceiras), tapetes,
cortinados ou mesmo em móveis. Um dos sinais que aponta para a sua presença é a
existência de manchas escuras, avermelhadas ou castanhas nos colchões ou
lençóis e que são decorrentes dos depósitos das suas fezes.
A crença comum de que a urticária papular estaria relacionada com mecanismos
alérgicos a alimentos necessita de ser desmistificada6,14.
Desde longa data que a possibilidade de um terreno atópico associado a
urticária papular tem sido sugerida.
Num estudo de 45 doentes com urticária papular12, apenas 30 % apresentavam
história pessoal de atopia e noutro relativo a 100 doentes com prurigo
estrófulo apenas 2% eram atópicos14. Ambos os resultados sugerem que a
urticária papular não está relacionada com a presença de atopia12. Por outro
lado, Graif et al,numa análise de 10021 crianças, verificaram uma associação
estatisticamente significativa entre a presença de doença atópica (asma, rinite
alérgica e/ou eczema atópico) e o desenvolvimento de reacção alérgica às
picadas de insectos16. Contudo, actualmente, este tema mantem‑se controverso.
Nos doentes com urticária papular podem ser encontrados valores elevados de IgE
total e eosinofilia, mesmo na ausência de atopia6.
HISTOPATOLOGIA/ FISIOPATOLOGIA
Os estádios imunológicos de resposta cutânea à picada de insectos dividem‑se em
cinco graus12,3,10 (Figura_2).
Quando um indivíduo é picado por um inseto, sem exposição prévia, não
desenvolve reacção (Grau I)10. Algumas semanas após a exposição inicial, ao
acontecerem novas picadas, verifica‑se a ocorrência de reacções cutâneas
retardadas (Grau II), com aparecimento de lesões cutâneas papulares e/ou
vesiculares entre 18 a 24 horas após a picada e que persistem durante 10 a 14
dias12. Se a exposição se mantiver, surgirão tanto reacções imediatas como
retardadas (Grau III)10. Cerca de 15 a 30 minutos após a picada verifica‑se o
aparecimento de lesões maculares que tendem a desaparecer até 4‑5 horas
(resposta imediata), sendo seguidas por pápulas no local de picada (resposta
tardia)12. Com a exposição repetida aos insectos, a resposta retardada tende a
diminuir, mantendo‑se apenas uma reacção imediata (Grau IV) que também acaba
por desaparecer, quando se adquire tolerância e novamente não há reação
significativa após picada do insecto (Grau V).
Este modelo de sensibilização e posterior dessensibilização, com evolução por
estádios, foi reproduzido prospectivamente por Peng and Simons17 ao estudarem
um indivíduo saudável que foi sujeito a 100 picadas de insectos em cada duas
semanas, durante um período de 10 meses. Nos casos de exposição natural às
picadas de insectos, o estádio de tolerância (Grau V) pode demorar entre 2 a 20
anos até ser alcançado, dado que os doentes limitam a sua exposição às picadas,
por receio dos efeitos indesejados das mesmas18.
No que respeita às alterações histopatológicas presentes na urticária papular,
tem‑se verificado que estas variam de acordo com o agente patogénico em causa e
com a duração de evolução das lesões2. As alterações histológicas da urticária
papular podem ser classificadas em quatro variantes: linfocítica, eosinofílica,
neutrofílica e celular mista6. Contudo, há características comuns encontradas
em vários estudos, como a predominância de linfócitos T e macrófagos no
infiltrado inflamatório, bem como a presença de elevada quantidade de
eosinófilos2,12,19,20, sugerindo um papel importante destes na patogénese desta
patologia12.
Todavia, actualmente a patogénese e os mecanismos imunológicos exactos
relacionados com a urticária papular permanecem incertos9. A evidência
existente indica que as manifestações clínicas desta entidade envolvem uma
resposta imunológica complexa, sendo mediada por mais do que um mecanismo
imunológico12, envolvendo tanto reacções de hipersensibilidade do tipo I, com
formação de anticorpos IgE contra antigénios constituintes da saliva dos
insectos, bem como reacções de hipersensibilidade do tipo IV2,12.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
As manifestações cutâneas da urticária papular incluem, numa fase inicial, a
formação de pápulas eritematosas, algumas dolorosas, por vezes agrupadas com
mais frequência nas regiões de pele expostas2, particularmente nas superfícies
extensoras dos membros e regiões de constrição pela roupa9 (Figura_3).
As lesões cutâneas podem ter início em poucos minutos ou horas após a picada3 e
apresentam uma evolução variável, com duração habitual de dias, mas algumas,
particularmente as escoriadas ou as de aparecimento mais tardio, podem
persistir semanas ou até meses, se não tratadas.
O prurido é um sintoma que frequentemente acompanha as lesões, podendo resultar
(devido ao acto de coçar) em escoriações, infecção secundária e lesões
residuais acrómicas ou hiperpigmentadas, particularmente em doentes de raça
negra4,7.
Tipicamente a distribuição das lesões é simétrica e em certos casos podem
evoluir para a formação de vesículas ou bolhas (estrófulo bolhoso), por vezes
com conteúdo hemorrágico3 e necrose (em casos raros). A gravidade das
manifestações parece relacionar‑se com o tipo de insecto envolvido, sendo as
lesões causadas por insectos em meio selvagem mais extensas e graves
relativamente às causadas por insectos domésticos6.
Tipicamente, as lesões por picada de pulgas localizam‑se na cintura e em zonas
onde a roupa apertada constitui uma barreira à progressão das pulgas. As
picadas por mosquitos ou percevejos ocorrem nos vários sítios não cobertos por
roupa2. Regiões como a área genital, perianal, axilar e face são geralmente
poupadas. Também o tamanho das pápulas varia consoante o insecto envolvido,
sendo de dimensões mais reduzidas no caso de picadas por mosquitos ou pulgas do
que em picadas por percevejos, onde as lesões são geralmente maiores, com
diâmetro igual ou superior a 5‑10 mm2.
É comum observarmos num mesmo doente a presença de um elevado número de lesões,
principalmente nos membros e tronco/abdómen, que não é de todo provável que
correspondam a igual número de picadas, pelo que, nestes casos, várias destas
lesões constituem atingimento à distância do local da picada, ou seja, reacções
alérgicas sistémicas, embora ligeiras3.
Exacerbações da sintomatologia são frequentes, tendo sido especulado que estas
poderão ocorrer de forma sazonal, sendo mais comuns na Primavera e Verão quando
se atinge o pico da população de insectos e consequentemente há reexposição às
suas picadas9. Em vários casos tem‑se verificado exacerbações peranuais e em
determinados estudos4 foi até observada uma maior incidência de urticária
papular nos meses de Outono e Inverno.
DIAGNÓSTICO
A história clínica e as características das lesões cutâneas são suficientes
para o diagnóstico da urticária papular2, sendo possível, em alguns casos, a
identificação do insecto causal21‑22.
Na colheita da história clínica são importantes questões relativas a
actividades praticadas no exterior, como campismo, bem como averiguar a
existência de contacto com animais ou estadias recentes em hotéis, dado o risco
associado de exposição a mosquitos ou percevejos4.
O diagnóstico clínico deve ser realizado atendendo à mnemónica SCRATCH4,6
sugerida por Hernandez e Cohen23e que se encontra descrita no Quadro_1.
Podem também ser realizados exames complementares de diagnóstico para
documentar a hipersensibilidade aos mosquitos; contudo, todos os exames que se
encontram actualmente disponíveis apresentam limitada sensibilidade e
especificidade10. Foram aprovados pela US Food and Drug Administrationextractos
de corpo de mosquitos de dois géneros (Culexe Aedes) para realização de testes
cutâneos3,10. Todavia, esses extractos não são padronizados e contém múltiplas
proteínas não salivares e, por isso, poucos ou nenhuns alergénios da saliva dos
mosquitos10, pelo que não se usam na prática clínica.
Dispoe‑se, ainda, da possibilidade do doseamento laboratorial de IgE
específicas para mosquito comum (Aedescommunis) e mosca de cavalo
(Tabanusspp.), que podem ser um complemento aos testes cutâneos3,23. Para
aumentar a acuidade diagnóstica dos exames complementares disponíveis é
necessário melhorar laboratorialmente a pureza dos extratos das glândulas
salivares ou da saliva dos mosquitos a utilizar24‑25,o que é uma tarefa
demorada e de difícil realização10. Como alternativa, têm sido desenvolvidos
vários alergénios recombinantes análogos das proteínas salivares nativas da
espécie de mosquitos Aedes aegyypti,ainda não estão disponíveis
comercialmente26‑27. Até à data apenas foram desenvolvidos quatro alergénios
recombinantes, designados por rAed a1, rAed a2, rAed a3 e rAed a428,
verificando‑se que os dois primeiros têm sido os mais estudados10, com
resultados favoráveis. Ambos mostraram possuir reactividade cruzada com a
proteína nativa correspondente em várias espécies de mosquitos10. Apesar dos
estudos terem revelado que estes alergénios poderão ser úteis no diagnóstico da
hipersensibilidade aos mosquitos28, 29, é necessária mais investigação nesta
área10, pelo que também não está actualmente recomendado a sua realização para
confirmação do diagnóstico.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial da urticária papular inclui várias patologias com
atingimento cutâneo (Quadro_2).
Destaca‑se, pela sua frequente ocorrência na idade pediátrica, a varicela, a
escabiose e a dermatite atópica, manifestando‑se com lesões papulares
pruriginosas que se podem assemelhar às de urticária papular2. Também as lesões
por picadas de abelhas e vespa podem ser de difícil diferenciação30.
Nos casos em que há infecção secundária das lesões de prurigo, o diagnóstico
diferencial inclui infeções piogénicas2.
TRATAMENTO
O tratamento da urticária papular é dirigido aos seguintes aspectos: alívio
sintomático, controlo da reacção de hipersensibilidade e erradicação/profilaxia
da picada pelos agentes causais.
É fundamental atenuar ou eliminar o prurido, visto ser o acto de coçar um dos
factores, não só de aumento da duração das lesões mas também o responsável por
eventuais infecções secundárias e pela hiperpigmentação residual3. Estudos
controlados por placebo demonstraram que a toma profiláctica de
anti‑histaminicos orais (cetirizina, ebastina) está associada à diminuição em
50 % das máculas causadas pela reacção imediata após a picada por mosquitos e a
um decréscimo em 70 % do prurido acompanhante das picadas31. No que respeita à
eficácia dos anti‑histaminicos orais nas reacções retardadas às picadas de
insetos, os estudos existentes têm revelado resultados controversos10. A
utilização de emolientes/hidratantes com acção anti‑pruriginosa e cicatrizante
adicional pode também ser útil em alguns doentes3. O uso de anti‑histaminicos
tópicos não é recomendado32.
A base da terapêutica é diminuir a inflamação causada pela reacção à saliva do
insecto. Este objectivo consegue‑se, logo após a picada, pela aplicação local
de gelo e, nas fases seguintes, com a aplicação de corticosteróides tópicos
cutâneos3. A corticoterapia tópica de potência intermédia pode ser útil em
lesões ligeiras de urticária papular33, mas nas lesões crónicas, especialmente
em adultos, pode ser necessário o uso de um corticóide de elevada potência. Nas
situações com maior gravidade com vesículas bolhosas pode ser necessário um
período curto de 3‑5 dias de corticóide oral 1mg/kg/dia.
É de referir que a terapêutica com anti‑histaminicos orais não sedativos e com
corticoides tópicos deve ser iniciada o mais precocemente possível (e mantida
durante pelo menos 3 a 5 dias), pois só assim se poderá prevenir a evolução
arrastada.
São necessários mais estudos randomizados, com dupla ocultação e controlados
por placebo, para se conseguir definir o papel de terapêuticas adicionais, como
os inibidores dos leucotrienos10.
O uso de antibióticos apenas é necessário quando há infecção secundária10, a
qual pode ser tratada com antibióticos tópicos ou, em caso de infecções
extensas, com recurso a antibioterapia sistémica3.
Vários estudos têm demonstrado benefício da imunoterapia específica com
extractos de corpo total de mosquito em doentes com hipersensibilidade
demonstrada10.
Contudo, a maioria destes estudos não são randomizados nem apresentam grupo de
controlo34‑36, pelo que actualmente não é uma terapêutica recomendada3,10.
Existem várias medidas profilácticas que podem ainda ser úteis, principalmente
quando o agente causal é identificado2.
Para erradicação das populações locais de mosquitos pode ser importante a
eliminação de áreas com água parada ou o uso de insecticidas e redes
mosquiteiras.
Quando se prevê a possibilidade de picada por mosquitos, o uso de repelentes
contendo DEET (N,N‑dimetil‑meta‑toluamida/ N,N‑dimetil‑3‑metilbenzamida) pode
diminuir significativamente o número de picadas10. O DEET é o repelente mais
eficaz com possibilidade de aplicação directa na pele ou nas roupas, estando o
seu uso indicado a partir dos 2 meses de idade em concentrações entre 10‑30%10.
Concentrações mais elevadas são mais susceptíveis de originar efeitos tóxicos
sistémicos, dermatite ou reacções cutâneas bolhosas10.
Quando o agente causal suspeito são as pulgas derivadas de um animal doméstico,
torna‑se importante aconselhamento com um veterinário11. No caso dos
percevejos, é necessário, para conseguir a sua erradicação, o tratamento com
químicos específicos2.
Para além da tentativa de eliminação dos insectos e utilização de repelente,
outras medidas preventivas devem ser tomadas, como a utilização de
mosquiteiros, insecticidas em casa, manter janelas e portas fechadas
(utilização de telas), janelas dos carros encerradas, evitar roupas muito
coloridas, utilizar manga comprida e calças em locais com muito insectos
(sobretudo quando há viagens a países tropicais) e ter cuidado com
acondicionamento da comida em actividades ao ar livre (atrai mosquitos).
CONCLUSÃO
A urticária papular constitui uma dermatose que surge com frequência na idade
pediátrica e que pode causar considerável impacto na qualidade de vida dos
doentes afectados. O seu diagnóstico implica uma elevada suspeição clínica e é
realizado com base na história clínica e identificação das lesões cutâneas
características. Relativamente ao seu tratamento, este baseia‑se principalmente
no alívio sintomático, no controlo da reacção de hipersensibilidade e em
medidas de erradicação/ profilaxia das picadas pelos agentes causais, quando os
mesmos são identificados. Neste contexto, os anti‑histaminicos e corticoides
tópicos assumem um papel determinante, como os principais fármacos a utilizar.