Alergia ocupacional ao Tetranychus urticae em trabalhadores agrícolas do Norte
de Portugal
ARTIGO ORIGINAL
INTRODUÇÃO
O Tetranychus urticae, também conhecido como aranhico‑amarelo, red spider
mite ou two‑spotted spider mite, é um ácaro fitófago macroscópico, da
subclasse Acarie subordem Prostigmata1, que se encontra nas folhas de numerosas
plantas.
Por ser polífago, isto é, alimentar‑se de várias espécies de plantas, e
resistente à maioria dos pesticidas químicos, constitui uma importante praga
agrícola em culturas como vinha, pomares de macieira e pessegueiro, culturas
hortícolas de ar livre e de estufa e plantas ornamentais2‑4.
Tem sido demonstrada uma elevada sensibilização a este ácaro, quer em exposição
ocupacional5 quer como não ocupacional6,7, tendo sido associado a alergia
clinicamente significativa, com sintomas de rinite, asma, dermatite de contacto
e urticária, predominantemente no verão e no outono7‑9.
Em Portugal, particularmente no Norte do país, a viticultura, a fruticultura, a
horticultura e a floricultura são atividades económicas importantes10.
Previamente, foi demonstrada sensibilização em 46% dos doentes atópicos, sem
exposição ocupacional agrícola, seguidos em consulta de Imunoalergologia num
hospital terciário do Porto6, tendo 9 de 12 doentes sensibilizados tido prova
de provocação conjuntival com T. urticae positiva11. No entanto, a alergia a
este ácaro não foi previamente avaliada em Portugal em contexto ocupacional. Os
objetivos primários deste trabalho foram determinar as frequência de
sensibilização e de alergia ao T. urticae em diferentes contextos de produção
agrícola. Como objetivo secundário pretendeu-se descrever as características
clínicas dos doentes alérgicos ao T. urticae.
MÉTODOS
Desenho do estudo e participantes Estudo prospetivo. Foram incluídos
trabalhadores de idade = 18 anos, de locais de produção agrícola da região
Norte de Portugal, incluindo estufas, vinhos verdes e vinhos do Douro, de 9
empresas que aceitaram participar no estudo. O estudo consistiu na realização
de testes cutâneos por picada (TCP) com aeroalergénios, incluindo T. urticae,
prova de provocação conjuntival (PPC) com T. urticae e questionário de
exposição ocupacional e sintomas alérgicos. Foram excluídos os trabalhadores
com critérios de exclusão para realização de TCP ou de PPC, nomeadamente
gravidez ou amamentação, infeção ocular ou patologia ocular aguda, exacerbação
de doença alérgica, uso de lentes de contacto no dia do estudo, toma de anti-
histaminico ou corticoide tópico nasal na semana anterior e instilação de
soluções tópicas oftálmicas nas duas semanas anteriores.
O estudo decorreu de maio a julho de 2013. Os procedimentos foram realizados no
local de trabalho dos participantes, cumprindo as recomendações de higiene e
segurança.
O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar de
São João, EPE, e todos os participantes assinaram consentimento informado.
Testes cutâneos por picada (TCP) Foram realizados TCP com extratos (Leti®) de
ácaros do pó doméstico (Dermatophagoides pteronyssinus e Dermatophagoides
farinae), ácaros de armazenamento (Lepidoglyphus destructor), epitélio de gato
e de cão, pólenes (Platanus acerifola, Olea europea, Parietaria judaica,
mistura de gramíneas e mistura de ervas) e fungos (Aspergillus fumigatus), bem
como com extrato de corpo de T. urticae, histamina 10mg/mL como controlo
positivo e solução salina como controlo negativo. O procedimento foi realizado
pelos médicos imunoalergologistas investigadores do presente estudo. Os
extratos foram aplicados na face anterior do antebraço e picados com uma
lanceta específica para TCP (Heinz Herenz Medizinalbedarf GmbH©), segundo as
recomendações internacionais12.
Os doentes foram considerados sensibilizados para um alergénio caso uma pápula
com diâmetro médio = 3 mm fosse observada após 15 minutos. Foram considerados
atópicos os doentes com pelo menos uma positividade para os alergénios
testados.
Prova de provocação conjuntival (PPC) Realizada com extrato de T. urticae
(Leti®) de acordo com o protocolo do serviço de imunoalergologia13. Foram
preparadas quatro concentrações de T. urticae a partir do extrato original de 2
mg/mL liofilizado (0,002 ' 0,02 ' 0,2 ' 2 mg/mL), de acordo com as
recomendações do fabricante e utilizadas nas 24 horas seguintes à sua
preparação.
O procedimento consistiu na aplicação de uma gota de concentração crescente do
extrato no saco lacrimal de um olho e de uma gota do controlo negativo
(diluente) no olho contralateral. Nos trabalhadores com TCP negativo para o T.
urticae a PPC foi realizada apenas com a concentração máxima, de forma a
excluir entopia e tendo em conta que não foram observados falsos negativos em
estudo anterior11. Os olhos eram avaliados 10 minutos após cada instilação.
A PPC foi considerada positiva na presença de sinais objetivos de hiperemia
conjuntival, edema palpebral ou lacrimejo no olho testado. Nos participantes
com PPC positiva a prova foi terminada e foi aplicado anti‑histaminico tópico
(opatanol 1 mg/mL), tendo sido mantida vigilância até resolução dos sinais e
sintomas de alergia. A PPC foi considerada negativa na ausência de reação nos
10 minutos após aplicação da última concentração. Os participantes foram
instruídos a informar da ocorrência de reação tardia nas 24 horas subsequentes.
Questionário
Cada participante preencheu um questionário contendo dados demográficos (sexo,
idade), enquadramento laboral (funções desempenhadas, tempo em anos e semanal
global, tempo semanal médio de contacto com culturas agrícolas) e enquadramento
clínico (presença de sintomas alérgicos, evolução, sazonalidade, fatores
desencadeantes e relação com a exposição ocupacional).
Foi ainda pedido ao responsável de cada empresa incluída o preenchimento de um
questionário relativo ao tipo de culturas, existência de pragas por ácaros e
utilização de pesticidas.
Análise estatística
Estatística descritiva dos dados demográficos, clínicos e de exposição:
frequências absolutas e relativas para variáveis qualitativas; média com
desvio‑padrão (DP) para variáveis quantitativas de distribuição normal e
mediana (minimo‑máximo) para variáveis não normalmente distribuídas. Análise
estatística realizada com SPSS® versão 22.0 para Mac (IBM SPSS, Chicago, IL,
USA).
RESULTADOS
O estudo incluiu 41 trabalhadores, 27 (66%) do sexo masculino, com idade média
(DP) de 45 (12,3) anos, dos quais 12 agricultores de seis empresas familiares
de produção em estufa, 6 trabalhadores de uma empresa de produção de vinho
verde e 23 trabalhadores de duas empresas de produção de vinho do Douro.
A mediana (mínimo - máximo) de anos de trabalho na respetiva empresa ou em
funções similares era de 10 (1 - 50) anos, sendo que 36 (88%) trabalhavam 40
horas semanais (40 a 60 horas) na empresa e 32 (78%) trabalhavam em média 40
horas por semana nos campos de cultivo (20 a 60 horas).
Em todas as estufas foi reportada a ocorrência de pragas por ácaros e de
tratamento com pesticidas, enquanto na empresa de produção de vinho verde e
numa das empresas de vinho do Douro foram reportadas pragas mas em número não
significativo para justificar tratamento.
Dos 41 agricultores, 16 (39%) referiram clínica alérgica: urticária (n=5),
rinite (n=4), urticária e rinite (n=3), conjuntivite (n=2) e asma (n=2).
Destes, 12 (75%) notaram relação com a exposição e/ou afastamento das áreas de
cultivo, particularmente urticária com a cultura de feijão (n=4) e rinite na
vinha (n=2), sendo os sintomas predominantemente na primavera e/ou verão.
Foi constatada atopia em 9 (22%) dos trabalhadores (Quadro_1); 78% dos atópicos
estavam sensibilizados para o T. urticae, 3 destes sem cossensibilização a
ácaros.
O tamanho mediano da pápula para o T. urticaefoi de 4 (3 - 4) mm.
Três trabalhadores (43% dos sensibilizados a T. urticae) tiveram PPC positiva,
com a concentração máxima de 2mg/mL, todos cossensibilizados exclusivamente a
ácaros do pó doméstico. Dois agricultores não atópicos não realizaram PPC por
patologia ocular e por utilização de lentes de contacto, respetivamente. Não
foram observados falsos negativos (TCP negativo e PPC positiva para T. urticae
).
Os agricultores com TCP e PPC positivas para o T. urticaecorrespondiam a 2
trabalhadores de estufa cuja manifestação alérgica correspondia a urticária de
contacto com a cultura de feijão na primavera/verão e 1 agricultor de vinhas do
Douro com rinoconjuntivite ocupacional na primavera. Todos trabalhavam nestas
funções há pelo menos 10 anos. Não foi objetivada sensibilização ao T.
urticaeentre os agricultores de vinho verde (Quadro_2).
Dos 4 sensibilizados a T. urticaecom PPC negativa, 2 eram assintomáticos e 2
tinham rinite sazonal na primavera (1 sensibilizado a pólenes de árvores e
outro sem outras sensibilizações demonstradas). Exceto este último, estes
trabalhadores exerciam a sua atividade laboral há menos de 5 anos.
DISCUSSÃO
Este é o primeiro trabalho a avaliar a sensibilização e alergia ao ácaro de
exterior, Tetranychus urticae, em agricultores portugueses.
Verificámos que o T. urticaefoi o alergénio para o qual foi observada a maior
frequência de sensibilização, correspondendo a 17% dos trabalhadores testados e
a 78% dos atópicos.
Esta frequência de sensibilização está de acordo com outros estudos referentes
a agricultores: 15% dos trabalhadores atópicos de agricultura em campo aberto8,
17% dos cultivadores de maçãs14, 22% dos viticultores15, 25% dos trabalhadores
em estufa em Espanha5, 55% dos trabalhadores em estufa com atopia em Itália9 e
66% dos produtores de cravos em estufa com sintomas de alergia16.
No entanto, é claramente superior à de uma população sem exposição ocupacional
residente no Norte de Portugal, onde 46% dos atópicos estavam sensibilizados ao
T. urticaee a sensibilização predominante era aos ácaros domésticos6.
Relativamente a alergia clinicamente significativa ao T. urticae, identificámos
3 agricultores (7% dos trabalhadores testados e 43% dos sensibilizados a T.
urticae) com sintomas de alergia ocupacional e prova de provocação conjuntival
positiva para T. urticae. A alergia ao T. urticae foi identificada em
agricultores com pelo menos 10 anos de exposição ocupacional e foi mais
frequente em trabalhadores de estufa, predominantemente com sintomas de
urticária de contacto.
Este é o primeiro estudo em contexto ocupacional em que a prova de provocação
conjuntival foi utilizada para objetivação de alergia ao T. urticae. Este
método foi escolhido pela facilidade e segurança do procedimento, permitindo a
sua realização no local de trabalho, bem como pela experiência prévia na sua
realização11.
Astarita e colaboradores9 realizaram um teste de exposição em ocultação simples
numa estufa de floricultura sem pesticidas, com monitorização de sintomas e do
débito expiratório máximo instantâneo, positivo em todos os 28 agricultores
sensibilizados a T. urticae e com sintomas ocupacionais, induzindo os sintomas
respiratórios e/ou cutâneos referidos em até 1 hora após a exposição. Em
relação a sintomas de asma, Delgado e colaboradores16 e Jee e colaboradores17
realizaram prova de provocação brônquica específica, positiva em 12 de 13
trabalhadores de estufa de produção de cravos e em 10 de 16 asmáticos
residentes próximo de pomares de peras, respetivamente.
No nosso estudo, contrariamente aos supracitados, mais de 50% dos agricultores
com teste cutâneo por picada positivo para o T. urticaetiveram prova de
provocação conjuntival negativa, sendo dois deles assintomáticos e tendo os
restantes dois sintomas de rinite sazonal. Não se podendo excluir a
possibilidade de provocação alergénica positiva utilizando outro órgão alvo,
como por exemplo através de provocação nasal ou em teste de exposição em
estufa, pelo menos 2 trabalhadores apresentam sensibilização assintomática. O
significado clínico da sensibilização em trabalhadores assintomáticos é
desconhecido, mas pode identificar um grupo com maior risco de desenvolver
sintomas de alergia no futuro15, especialmente tendo em conta o menor tempo de
contacto ocupacional destes agricultores em comparação com os que tiveram prova
de provocação conjuntival positiva.
Astarita e colaboradores estudaram ainda 10 agricultores com sintomas de
dermatite e/ou urticária de contacto ocupacional, tendo identificado alergia ao
T. urticae em 7 destes, por meio de teste epicutâneo e/ou teste de contacto
aberto8. De notar que destes apenas 4 tinham IgE específica positiva para T.
urticae, o que nos indica que não pode ser excluída alergia não IgE‑mediada ao
T. urticaenos 2 trabalhadores de estufa do nosso estudo que referiram queixas
de urticária/dermatite de contacto, mas sem sensibilização demonstrada para o
T. urticae.
Tal como encontrado no presente estudo, a frequência de sensibilização e
alergia parece ser superior nos agricultores que trabalham em estufa. Dado que,
com temperaturas superiores, aumenta a velocidade do desenvolvimento e a
fertilidade do T. urticae18,19, será expectável haver uma maior população de T.
urticaenas estufas e durante um maior período anual, o que está de acordo com a
informação fornecida pelos agricultores do presente estudo relativamente à
existência de pragas de T. urticaecom necessidade de tratamento nas estufas.
Em conclusão, verificámos uma elevada frequência de sensibilização e alergia ao
T. urticae, com queixas cutâneas e nasais predominantemente na primavera/verão
e com uma possível relação com a exposição, quer em termos de carga alergénica
no local de trabalho (maior em estufas) quer em relação com número de anos de
exposição ocupacional, os quais carecem de confirmação através de medidas mais
objetivas de exposição.