Parece que é Cancro!
Parece que é Cancro!
Armando Pinto1
1 Oncologista Pediátrico do IPO do Porto
Os médicos pediatras ' ou melhor, os profissionais de saúde em geral ' têm uma
ocupação que os confronta diariamente com inquietações transversais a todos os
humanos, como sejam a morte, a dor, a doença, o medo, mas também com condições
de sinal contrário, como são a alegria após o nascimento de um bebé, o prazer
de ver as crianças doentes curarem-se, crescer e brincar, o jubilo após vencer
uma doença.
Contudo o que é mais difícil na Oncologia Pediátrica é a carga emocional e
mesmo física que decorre da patologia, dos tratamentos intensivos e
continuados, da prolongada proximidade com os doentes e suas famílias, do
prognóstico e obviamente do facto de serem crianças.
Quando lidamos com cancro sabemos que o risco da perda é maior e temos que nos
preparar para as várias hipóteses de desfecho, todas elas plausíveis . Os
profissionais de Oncologia Pediátrica sofrem amargamente com as perdas, porém
são treinados para lidar com elas como fazendo parte do seu trabalho.
As crianças com cancro são um exemplo do valor da vida. Trabalhar com estes
doentes é um privilégio, é a oportunidade de darmos ao mundo uma genuína e
vantajosa prestação, de cumprirmos verdadeiramente o sonho de sermos médicos ou
enfermeiros. Somos beneficiários dessa vivência, tornamo-nos melhores pessoas,
somos actores, produtores e realizadores de cenas e de cenários, somos heróis e
protagonistas mas somos igualmente malvados, falhados, inaptos, negligentes,
desmazelados e tudo que pode intensamente ser experimentado na luta contra a
doença e a morte.
As crianças com doença oncológica vivem a dificuldade de forma diversa! Ainda
há pouco tempo estávamos na fila para o café do bar do IPO quando o Fábio, um
rapaz de 7 anos, sobrevivente de uma leucemia de alto risco que impusera
tratamentos intensivos e prolongados, com internamentos sem fim, dadas as
complicações incontáveis que surgiram, esse mesmo menino, estando de visita
programada ao hospital, irrompeu pelo bar dentro ao avistar um enfermeiro que o
acompanhara em muitos episódios, chamando, «Enfermeiro Pedro, enfermeiro
Pedro!». Seguidamente, agarrou-lhe o casaco branco da farda, puxando-o para
baixo, descompondo o senhor, sem deixar hipóteses de recusa de reparo por parte
do enfermeiro, «Diz Fábio, o que queres, o que aconteceu?», o enfermeiro, sendo
um jovem alto e magro, teve que se curvar impelido pelo puxão do rapaz, ficando
meio desequilibrado, estático, quase, «Tenho um tio meu internado aqui no piso
8», respondeu prontamente o menino, satisfeito por ter obtido a atenção do
enfermeiro, «No piso 8? Na Enfermaria? E o que é que tem esse teu tio?», então
o rapaz rejubilando por poder dizer o que realmente o impelira a conversar com
o Enfermeiro Pedro, respondeu com toda a intensidade dramática, «Parece que é
cancro!», enquanto fazia um enorme esgar que atingiu toda uma face, levantando
energicamente o canto do lábio e inclinando a cabeça para cima, para ser bem
visível pelo enfermeiro o gesto de nojo e de repelência, numa atitude de quem
não tem, não teve, nem quer ter nada a ver com aquela doença, o cancro.