Um caso clínico de pseudohipoparatiroidismo
INTRODUÇÃO
Uma concentração constante de cálcio ionizado extracelular é essencial para a
função celular, sendo mantida por um sistema homeostático. A etiologia da
hipocalcemia pode estar relacionada com um dos componentes deste sistema, tal
como alterações da hormona paratiroideia (PTH) ou da vitamina D, ou um defeito
do receptor sensível ao cálcio. A PTH leva ao aumento do cálcio sérico através
de três mecanismos: 1) aumento da reabsorção renal de cálcio; 2) aumento da
reabsorção óssea; e 3) estimulação da 1-alfa-hidroxilase no rim, que converte a
25-hidroxivitamina D a 1,25-dihidroxivitamina D (a forma activa da vitamina D),
a qual por sua vez aumenta a reabsorção renal e intestinal de cálcio. Para além
da manutenção dos níveis plasmáticos de cálcio, a PTH promove o aumento da
excreção urinária de fósforo e bicarbonato. (1-3)
O pseudohipoparatiroidismo (PHP) engloba um grupo heterogéneo de doenças que se
caracterizam por resistência dos órgãos alvo à acção da PTH, traduzindo-se por
hipocalcemia, hiperfosfatemia, e concentrações plasmáticas elevadas de PTH. (2-
6) Pode ser classificado em 4 tipos (Ia, Ib, Ic, II) de acordo com os achados
fenotípicos, alterações bioquímicas e mecanismo genético (Quadro I).
Quadro I' Tipos de Pseudohipoparatiroidismo
O hipoparatiroidismo, o pseudo-pseudohipoparatiroidismo (PPHP) e a deficiência
em vitamina D, devem ser considerados no diagnóstico diferencial do PHP (Quadro
II).
Quadro_II
' Diagnóstico diferencial de Pseudohipoparatiroidismo
Na descrição deste caso pretende-se alertar para os aspectos clínicos do
pseudohipoparatiroidismo, e reforçar a importância da sua suspeição na
abordagem das convulsões em idade pediátrica.
CASO CLÍNICO
Criança de nove anos, sexo masculino, natural de São Tomé e Príncipe. Sem
antecedentes familiares patológicos de relevo. Sem informação da vigilância
anterior no país de origem. Inicia aos quatro anos convulsões tonico-clónicas
generalizadas, e aos seis anos câimbras nos membros superiores e inferiores.
Aos oito anos são diagnosticadas cataratas bilaterais. Para esclarecimento do
quadro clínico é transferido para internamento em Portugal, aos nove anos. Ao
exame objectivo constatou-se a presença de face redonda e achatada, raiz nasal
deprimida, cataratas bilaterais, atraso na erupção das peças dentárias,
hipertonia muscular no tronco e membros superiores, sinais de Chvostek e
Trousseau presentes, atraso do desenvolvimento psico-motor, baixa estatura
(percentil 3) e estadio pubertário I de Tanner. Analiticamente destacava-se
diminuição dos níveis séricos de cálcio total e de cálcio ionizado, aumento do
fósforo, da fosfatase alcalina, e dos níveis de PTH (Quadro III). O cariotipo
era normal. O electrocardiograma mostrou um prolongamento do intervalo QT. Na
radiografia do esqueleto tinha redução da densidade óssea, sem outras
alterações, sendo a idade óssea compatível com a idade cronológica. A
tomografia cranio-encefálica (Figura 1) mostrou calcificações
intraparenquimatosas dos núcleos lenticulares e caudados, tálamos, e substância
branca fronto-parietal.
Quadro III' Avaliação laboratorial na admissão
Figura 1' Tomografia axial computorizada cranio-encefálica: calcificações
intraparenquimatosas
Foi feita correcção da hipocalcemia com gluconato de cálcio endovenoso (e.v.),
tendo mantido terapêutica em ambulatório com calcitriol e cálcio elementar.
Manteve seguimento em consulta de Endocrinologia Pediátrica. A estatura evoluiu
para o percentil 10 a 25. Foi submetido a cirurgia oftalmológica com correcção
das cataratas aos onze anos. O cumprimento da terapêutica foi irregular, com
controlo metabólico difícil e com vários internamentos por convulsões. Nas
avaliações laboratoriais efectuadas regularmente manteve hipocalcemia,
hiperfosfatemia e níveis elevados de PTH, com calciúria e 1,25-
dihidroxivitamina D normais. A hormona estimuladora da tiróide (TSH) manteve
valores normais ficando a tiroxina (T4) total diminuída. As gonadotrofinas
mantiveram-se em níveis pré-puberes. Abandonou o seguimento em consulta ao fim
de três anos.
DISCUSSÃO
Os primeiros casos de resistência à PTH foram descritos por Albright em 1942.
Os doentes tinham hipocalcemia e hiperfosfatemia, e várias características
fenotípicas, actualmente designadas de osteodistrofia hereditária de Albright
(OHA).(3-5) Estas características incluem baixa estatura, face redonda,
obesidade, hipoplasia do esmalte dentário, deformações das articulações (genu
valgum, coxa vara, cubitus valgus), e alterações das mãos e pés,
particularmente encurtamento dos ossos metacarpos e metatarsos do 4º e 5º
dedos.(3-5,7,8) Entre 50 a 75% dos doentes têm atraso do desenvolvimento
psicomotor ligeiro a moderado. A OHA normalmente não é reconhecida durante o
primeiro ano de vida, tornando-se mais evidente aos 4-6 anos.(4) Nem todos os
doentes com PHP têm o fenótipo OHA e por outro lado, o fenótipo de OHA está
também presente em doentes com PPHP (Quadro_II). O termo OHA é actualmente
usado para descrever as características físicas, independentemente dos achados
bioquímicos.(4,7)
O tipo mais comum de PHP é o Ia, uma doença autossómica dominante que tem
características da OHA. Nestes casos a resistência à PTH resulta de uma mutação
no gene GNAS1, o qual codifica a subunidade alfa da proteína G, acoplada ao
receptor da PTH e necessária para a transdução de sinal nos tecidos alvo
endócrinos.(2,4) A proteína G é assim incapaz de activar a adenilciclase para a
produção de adenosina monofosfato cíclico (AMPc), necessária para a produção da
resposta à PTH e manutenção da homeostase fosfo-cálcica.(2,3)
No caso descrito, a presença de hipocalcemia, hiperfosfatemia e aumento da PTH
permitiu estabelecer o diagnóstico de pseudohipoparatiroidismo. Por estar
associado a um fenótipo característico de OHA trata-se provavelmente do tipo
Ia, pela sua maior frequência. No entanto para a sua confirmação teria sido
necessário identificar a mutação no gene GNAS1.(2,6)
Muitos doentes com PHP Ia têm resistência a outras hormonas além da PTH, como a
hormona libertadora da hormona de crescimento, glicagina, hormona
adrenocorticotrófica, e mais frequentemente a TSH e as gonadotrofinas.(2,4,5-9)
A resistência à TSH, clinicamente indistinguível do hipotiroidismo primário,
pode tornar-se aparente antes que a hipocalcemia se desenvolva e,
ocasionalmente, é diagnosticada através do rastreio metabólico neonatal.(9) O
nível ligeiramente reduzido de T4 total (com TSH e T4 livre normais) neste
doente, pode indiciar o desenvolvimento de hipotiroidismo. O hipogonadismo é
mais comum nas raparigas e pode manifestar-se por atraso pubertário, alterações
do ciclo menstrual, e infertilidade. Quando o defeito do gene GNAS1 é
transmitido pela mãe, a resistência hormonal é expressa juntamente com o
fenótipo OHA; se o defeito tem origem paterna, o fenótipo OHA ocorre
isoladamente, já que o alelo materno normal resulta na manutenção da resposta à
PTH.(2,4)
Por razões ainda desconhecidas, a maioria dos doentes que têm PHP tipo Ia tem
concentrações normais de cálcio durante muitos anos, raramente demonstrando
valores baixos de cálcio sérico antes dos três anos. Embora a tetania e o mal
convulsivo sejam apresentações comuns da hipocalcemia em crianças em idade pré-
escolar com PHP Ia, alguns doentes permanecem assintomáticos até à idade
adulta. Radiologicamente pode haver evidência de calcificação progressiva dos
gânglios cerebrais basais,(4,5) tal como ocorreu neste caso. Outra manifestação
clínica do PHP tipo Ia são os nódulos subcutâneos.
O diagnóstico clínico pode ser confirmado pela demonstração de uma resposta
diminuída no fósforo e AMPc urinários, após administração exógena de PTH. O
diagnóstico definitivo é estabelecido pela identificação da mutação na proteína
G.(2,6)
Os sintomas e sinais de hipocalcemia relacionam-se com a concentração de cálcio
ionizado no soro.(2) A tetania, edema da papila, convulsões, prolongamento do
intervalo QT no electrocardiograma, hipotensão e insuficiência cardíaca,
ocorrem mais frequentemente em doentes que desenvolvem hipocalcemia agudamente.
(3,7,10) Os achados clássicos que traduzem irritabilidade neuromuscular devido
a tetania latente são os sinais de Chvostek e Trousseau.(3,10)
No entanto, as convulsões podem ser a única forma de apresentação. A presença
de convulsões sem tetania, pode justificar-se pelo facto de que um nível baixo
de cálcio ionizado no líquido cefalo-raquidiano poder ter um efeito convulsivo,
mas não um efeito tetânico directo.(10) Pode-se assim explicar porque a
apresentação inicial da hipocalcemia no nosso doente foram as convulsões.
A hipocalcemia crónica, entre outras características, traduz-se por alterações
dentárias e da ectoderme, cataratas, calcificação dos gânglios basais, e baixa
estatura, o que também se verificou neste caso clínico.(3,10)
Os doentes com hipocalcemia sintomática devem receber cálcio.(4,7) Os níveis
séricos de fósforo normalizam frequentemente com a suplementação de cálcio e
calcitriol, pelo que os quelantes do fósforo raramente são necessários. O
seguimento regular é essencial para ajustar a terapêutica e optimizar o
metabolismo fosfo-cálcico.(8)
CONCLUSÕES
O PHP é uma doença complexa com variabilidade individual. O diagnóstico é
muitas vezes tardio, levando a uma abordagem e terapêutica iniciais
inapropriadas.(8) É muito importante realizar uma investigação bioquímica
completa do metabolismo fosfo-cálcico em todas as crianças que apresentem um
quadro clínico sugestivo de hipocalcemia. O diagnóstico do PHP é habitualmente
baseado em achados bioquímicos e fenotípicos. A caracterização molecular
permite diferenciar os vários tipos de PHP; contudo não é imprescindível para o
diagnóstico, nem para a adequada terapêutica e seguimento dos doentes.
O objectivo do tratamento é manter os níveis de cálcio ionizado dentro do
intervalo normal, evitar a hipercalciúria, e normalizar os níveis de PTH.(3) Se
a terapêutica for cumprida, podem prevenir-se as complicações agudas e crónicas
da hipocalcemia e assim, reduzir a morbilidade.