Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTCVHe0872-07542011000400013

EuPTCVHe0872-07542011000400013

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0872-0754
Year2011
Issue0004
Article number00013

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Caso electroencefalográfico

Apresenta-se o caso de lactente do sexo feminino, primeira filha de pais saudáveis não consanguíneos, parto eutócico às 36 semanas, Índice de Apgar 8/9/ 10, sem necessidade de ma­nobras de reanimação e somatometria adequada. Sem história familiar de doença neurológica.

No segundo dia de vida apresentava hipotonia e letargia e iniciou convulsões associadas a episódios de apneia. No quinto dia de vida, por agravamento progressivo, necessitou de suporte ventilatório, com transferência para uma Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos. À entrada apresentava crises mioclóni­cas e clónicas multifocais, hipotonia com flutuações do tónus, letargia, face inexpressiva e ausência de contacto visual. Reali­zou vídeo-EEG, que mostrava actividade epileptiforme multifocal com padrão de surto-supressão (Figuras 1 e 2). Os períodos de supressão eram assíncronos e com duração até 10 segundos ou mais. Registaram-se crises clínicas, clónicas, e crises eléctricas focais com localização variável. Este padrão persistiu para além do período neonatal (Figuras 3 e 4).

Figura 1' Actividade paroxística multifocal (idade corrigida: 38 semanas 4 dias).

Figura 2' Padrão de surto-supressão (idade corrigida: 38 semanas 4 dias).

Figura 3 ' Actividade epileptiforme multifocal e registo de crises clónicas focais (idade: 4 meses).

Figura 4 ' Persistência de actividade paroxística multifocal com trechos de supressão (4 meses de idade).

Fez ressonância magnética cerebral com um mês de vida, normal; repetiu aos cinco meses (atrofia difusa). Não foi realiza­da espectroscopia.

Manteve crises epilépticas refractárias à múltipla terapêuti­ca: fenobarbital, fenitoína, valproato de sódio, topiramato e piro­dixina. Necessitou de indução de coma com tiopental, mantendo ventilação mecânica com traqueostomia ao mês e meio de vida. Faleceu aos cinco meses de vida.

Qual o diagnóstico clínico-electroencefalográfico? Qual a investigação complementar?

DIAGNÓSTICO Epilepsia neonatal grave com padrão de surto-supressão (epilepsia mioclónica precoce) Perante este diagnóstico é essencial excluir erros inatos do metabolismo, sendo uma das causas metabólicas mais frequentes a hiperglicinemia não cetótica (HGNC) ou encefalopatia glicínica.

Nesta doente a relação glicina no líquido cefalorraquidiano (LCR) / plasma com um mês de vida foi normal (0,03), assim como o estudo dos restantes aminoácidos no plasma e LCR. A segunda amostra, colhida aos três meses de idade, mostrou uma relação aumentada (0,11, com valor de referência <0,02).

No tecido hepático post-morten foi detectado défice no sis­tema de clivagem da glicina (6,6 μkat/ kg - normal 45,0 -195,0) e o estudo molecular com presença de uma mutação no gene GLDC, o que confirmou o diagnóstico de hiperglicinemia não cetótica (HGNC) de apresentação neonatal.

DISCUSSÃO O padrão electroencefalográfico de surto-supressão, carac­terizado por uma sucessão de surtos de actividade paroxística intercalados por episódios de traçado de muito baixa amplitude ou plano é relativamente comum no período neonatal e frequen­temente associado a convulsões. Ocorre em casos de lesões anoxico-isquémicas, mas nestas é geralmente transitório, ao contrário do que acontece quando associado a malformações cerebrais ou doenças metabólicas.(1) O síndrome de Ohtahara, também conhecido por encefa­lopatia epiléptica infantil precoce, é uma entidade rara, quase sempre associada a lesões estruturais graves. As crises miocló­nicas são raras, sendo frequentes os espasmos tónicos e crises focais. Na maioria dos casos o prognóstico é mau, com epilepsia refractária.(1) A epilepsia mioclónica precoce, como no caso apresentado, manifesta-se com mioclonias erráticas e crises focais motoras. casos criptogénicos e até familiares, mas importa reter que se associa muitas vezes a doenças neurometabólicas ' mais fre­quentemente HGNC, mas também a acidúrias orgânicas (D-gli­cérica, metilmalónica, isovalérica e propiónica). (1,4) Na forma neonatal de HGNC, além do padrão de crises epilépticas, são característicos a hipotonia, letargia e apneia de causa central. (2-4) A hiperglicinemia não cetótica é uma doença de transmissão autossómica recessiva em que ocorre um defeito no sistema de clivagem da glicina (SCG) que leva à sua acumulação nos te­cidos corporais, nomeadamente no cérebro, sendo responsável pela maioria dos sintomas, principalmente no período neonatal. (2- 4) O SCG é um complexo de quatro proteínas (P,H,T,L), localiza­do no interior da membrana mitocondrial do fígado, rim, cérebro e placenta. A maioria das mutações ocorrem no gene da descarbo­xilase da glicina GLDC (locus 9p22, codifica a P-proteína, 70-75% dos casos). Estão descritas também mutações no gene AMT (lo­cus 3p21.2-p21.1, codifica a T-proteína, cerca de 20%) e GCSH (locus 16q23.2, codifica a H-proteína, em menos de 1%).(2) O diagnóstico faz-se pelo aumento de glicina na urina, plas­ma e líquor, na ausência de uma acidúria orgânica, com aumen­to da relação glicina líquor/ plasma (3,4) (diagnóstico se >0,08; se >0,04 requer pesquisa do défice enzimático do SCG (biópsia de fígado ou em linfoblastos) ou estudo molecular.

Este, se bem que muitas vezes não necessário para o diagnóstico, interessa sobretudo para aconselhamento genético. (4) Existem outras duas formas desta doença; uma rara, tran­sitória, com o mesmo fenótipo inicial da neonatal e uma forma tardia.(4) As alternativas terapêuticas disponíveis são de eficácia li­mitada: a dieta hipoproteica; o benzoato de sódio, que promove a diminuição da glicina através da eliminação renal, principal­mente a nível plasmático; antagonistas do receptor do NMDA, como o dextrometorfano (actualmente não comercializado), que inibe o efeito excitotóxico da glicina no cérebro, sendo um poten­te antiepiléptico em alguns casos, e a quetamina que parece me­lhorar de forma parcial os sintomas neurológicos e a necessida­de de suporte ventilatório. As benzodiazepinas (diazepam) são consideradas mais eficazes que outros antiepilépticos, devido ao efeito competidor dos receptores de glicina. (3,4)Os outros antie­pilépticos são ineficazes; em particular, o valproato está contra- indicado na HGNC, por aumentar a concentração de glicina no líquor e, assim, as complicações neurológicas. (2) O prognóstico destes doentes é, excepto nas formas transi­tórias, muito reservado, com mortalidade significativa no primeiro ano de vida e sequelas neurológicas importantes nos sobreviventes.(4)

CONCLUSÃO O padrão electroclínico da epilepsia mioclónica precoce leva a suspeitar de doença metabólica, sendo a hiperglicinemia não cetótica uma das mais comuns. A investigação deve ser exaustiva nestes casos, de forma permitir o tratamento adequa­do precoce e o aconselhamento genético.


Download text