Infecção por H1N1 num Serviço de Pediatria
INTRODUÇÃO
A infecção por vírus influenza A, subtipo H1N1 constituiu a primeira pandemia
do século XXI. Teve início no México em Abril de 2009 e propagou-se rapidamente
(1,2), o que foi facilitado pela elevada mudança antigénica, com consequente
baixa imunidade das populações, e pela elevada mobilidade das mesmas.
O pico de incidência no hemisfério Norte ocorreu em Outubro de 2009(3), tendo-
se verificado mais tarde em Portugal, entre 16 e 29 de Novembro(4). Foi mais
precoce que o da gripe sazonal, que geralmente ocorre em Janeiro.
Posteriormente a incidência diminuiu, o que se poderá dever parte à evolução
natural, parte à vacinação que se iniciou em finais de Outubro. A infecção por
H1N1 teve uma elevada incidência, principalmente crianças e adultos jovens (15-
30 anos nos EUA(3), 0-10 anos em Portugal)(4), tendo a maioria dos casos
correspondido a doença ligeira. Não obstante, verificou-se uma maior taxa de
hospitalizações (0,7% dos casos, em Portugal)(4), sobretudo de crianças com
menos de 4 anos(3). A mortalidade foi baixa (1,04/100000 habitantes, 0,38/100
000 em idade pediátrica)(4), envolvendo essencialmente indivíduos com factores
de risco(2,3,4).
O quadro clínico de síndrome gripal é inespecífico, comum a muitas doenças, o
que dificulta o diagnóstico(2,5). A suspeita é confirmada através da
identificação do vírus por RT-PCR (transcriptase reversa seguida de polimerase
chain reaction) em zaragatoa da naso e orofaringe.
O vírus H1N1 pandémico é sensível aos inibidores da neuraminidase, sendo o
oseltamivir por via oral o tratamento padrão. Este parece diminuir o risco de
complicações da doença, além da duração da sintomatologia e do tempo de
contágio(1,3,6,7). A sua administração foi preconizada como terapêutica e como
quimioprofilaxia em doentes de risco. Foi descrita resistência ao oseltamivir,
num pequeno número de casos, por todo o mundo, maioritariamente em indivíduos
com terapêutica/quimioprofilaxia prévias ou imunodeficientes(3,8,9).
Em todas as fases da epidemia houve preocupação em diminuir a sua propagação,
entre a população e aos profissionais de saúde, pelo que foram enfatizadas as
medidas de protecção individual e o atendimento e internamento dos doentes em
áreas específicas, com isolamento de contacto e gotícula. Por motivos de gestão
de espaço e indisponibilidade de um teste rápido fiável, foi realizado
isolamento de corte juntando os casos suspeitos e os confirmados, na maioria
das instituições.
MATERIAL E MÉTODOS
Objectivo principal: Avaliar a importância de uma área de isolamento destinada
a crianças com suspeita de infecção por H1N1, activada no Serviço de Pediatria
do Hospital de Santo António (HSA) ' Centro Hospitalar do Porto (CHP) entre 20
de Novembro de 2009 e 9 de Janeiro de 2010.
Objectivo secundário: Caracterizar a infecção por H1N1 nos doentes internados
no referido Serviço, de acordo com os parâmetros definidos pela Direcção Geral
de Saúde (DGS)(5).
Foi realizada revisão dos processos clínicos dos doentes internados com
infecção por H1N1, suspeita ou confirmada, no Serviço de Pediatria do HSA-CHP
no ano epidemiológico de 2009/2010.
Os dados foram obtidos através da consulta do processo clínico dos doentes e
tratados em Microsoft Excel 2007.
A importância da área de isolamento foi determinada através das taxas de
ocupação e de contágio. A taxa de ocupação foi calculada considerando o número
de camas (8), e dividindo o número total de dias de internamento pelos dias de
internamento disponíveis. A taxa de contágio foi calculada pela razão entre o
número de casos de infeção nosocomial e o número total de casos.
As variáveis consideradas para a caracterização da infecção por H1N1 foram as
seguintes: idade, sexo, etnia, semana de internamento, apresentação clínica
inicial [definição de caso segundo orientação técnica (OT) 1 da DGS ' Quadro
I], factores de risco (OT 1 ' Quadro II), motivo de internamento, indicação
para investigação laboratorial (OT 2 ' Quadro III), resultados analíticos,
terapêutica (OT 7 ' Quadro IV), co-infecções e complicações (OT 1 ' Quadro V)
(5).
Quadro_I
Definição de caso suspeito de infecção por influenza A H1N1 (OT1) (5)
Quadro IIFactores de risco para infecção por influenza A H1N1 (OT 1) (5)
Quadro III- Critérios para investigação etiológica laboratorial num caso de
suspeita de infecção por influenza A H1N1 (OT 2) (5)
Quadro_IV
Critérios para instituição de terapêutica antiviral nos casos de infecção por
influenza A H1N1 suspeita ou confirmada (OT 7) (5)
Quadro VComplicações da infecção por vírus influenza A H1N1 (OT 1) (5)
RESULTADOS
No período de 20 de Novembro de 2009 a 9 de Janeiro de 2010, no Serviço de
Pediatria do HSA-CHP, foi activada uma área de isolamento de contacto e
gotícula (uso de viseira, máscara, luvas e avental), com lotação de 8 camas,
adequadas para as diferentes faixas etárias.
Foram internados 28 doentes, o que correspondeu a uma taxa de ocupação de 36%.
A infecção por H1N1 foi confirmada em 15 casos (54%). Cinco doentes (18%) não
tinham indicação para efectuar investigação laboratorial, de acordo com as
orientações da DGS, embora o teste tenha sido positivo num deles. Entre os 23
doentes com indicação para investigação, a infecção foi confirmada em 14 (61%).
Durante o mesmo período, foi efectuada pesquisa do vírus H1N1 a 25 doentes
internados no referido Serviço, mas fora da área de isolamento, tendo a
infecção sido confirmada em três dos casos (12%). Cinco doentes (20%) não
apresentavam indicação para a colheita, embora o teste tenha sido positivo num
deles.
Todos os casos de infecção por H1N1 foram adquiridos na comunidade, tendo a
taxa de contágio na enfermaria sido nula.
Fazendo uma análise conjunta dos doentes internados no Serviço de Pediatria do
HSA-CHP com infecção por H1N1, no ano epidemiológico de 2009/10, obtém-se um
total de 23 casos, 5 dos quais antes da área de isolamento ter sido activada
(Gráfico 1). A duração de internamento variou entre dois e 78 dias, com média e
mediana de oito e cinco dias, respectivamente.
Gráfico 1 'Distribuição temporal da infecção por influenza A H1N1 no Serviço de
Pediatria
A idade dos doentes internados com infecção por H1N1 variou entre as seis
semanas e os 16 anos (mediana de um ano): nove lactentes (< 12 meses), seis
crianças com 1-5 anos, seis crianças com 5-10 anos e dois adolescentes com 11 e
16 anos, todos de etnia caucasiana e 65% do sexo masculino.
Relativamente à forma de apresentação clínica, depois da febre, presente na
totalidade dos casos, a tosse (74%), a rinorreia (52%) e os vómitos (43%) foram
os sintomas mais frequentes. A tríade febre, rinorreia e tosse, associada ou
não a outros sintomas, verificou-se em 10 casos (43%). A odinofagia (um caso),
a diarreia (um caso) e as mialgias (dois casos) foram sintomas menos comuns.
Dezoito doentes (78%) apresentavam factores de risco, nomeadamente idade
inferior a cinco anos (14), imunossupressão e obesidade mórbida (1), doença
pulmonar crónica ' asma sob corticoterapia inalada (1) e epilepsia (2).
Três doentes (13%) não tinham indicação para investigação laboratorial,
atendendo a que, segundo as orientações da DGS (Quadro_I), não preenchiam os
critérios para definição de caso suspeito de infecção por H1N1: lactente de
nove meses de idade com febre e rinorreia, criança de um ano com febre e tosse,
criança de sete anos com febre e vómitos.
Os principais motivos de internamento foram: febre em pequeno lactente (30,4%),
pneumonia e intolerância oral (17,4%), vómitos incoercíveis (8,7%) e hipoxemia
(8,7%).
Além da pesquisa do vírus H1N1 por RT-PCR em zaragatoa da naso e orofaringe, os
exames complementares de diagnóstico realizados foram: hemograma (91,3%),
proteína C reactiva (87%) e bioquímica sérica com transaminases (21,7%) (Quadro
VI).
Quadro VIResultados de exames complementares de diagnóstico
Quinze doentes (65%) efectuaram telerradiografia torácica, tendo revelado
alterações em 9 casos: hipotransparência sugestiva de condensação (5) e
infiltrado intersticial (4).
A terapêutica antiviral não foi instituída em 10 casos (44%), o que não está de
acordo com as orientações da DGS (Quadro_IV). Não se registaram intolerâncias
ou efeitos adversos associados ao tratamento, embora tenha sido documentado um
caso de resistência ao oseltamivir, confirmado no Instituto Ricardo Jorge.
Entre os 23 doentes internados com infecção por H1N1, verificou-se uma co-
infecção: meningite por enterovírus. Quanto à evolução, sete doentes (30%)
apresentaram complicações: pneumonia de provável etiologia bacteriana (5),
convulsões febris (1) e abcessos esplénicos (1), mas nenhum necessitou de
admissão em unidade de cuidados intensivos. Não se registaram sequelas nem
óbitos.
DISCUSSÃO
A DGS estima que a infecção por vírus influenza A H1N1 pandémico teve uma
incidência de 10% em Portugal(4). Houve uma incidência elevada em crianças e
jovens, com maior taxa de internamentos de lactentes e crianças em idade pré-
escolar. Assim, uma análise dos internamentos associados a esta doença num
Serviço de Pediatria parece ser pertinente.
A DGS determinou a activação da área de isolamento do serviço de Pediatria do
HSA-CHP, um hospital central, aquando do pico de incidência da doença, vários
meses após o início da pandemia. Porém, a taxa de ocupação desta área de
isolamento foi baixa (36%), pelo que poderá ter sido sobredimensionada.
Dos doentes com infecção por H1N1 confirmada, a maioria (65%) esteve internada
na área de isolamento criada para o efeito, juntamente com outros doentes com
síndrome gripal, sem identificação desse agente. Contudo, não houve registo de
contágio no internamento e todos os casos confirmados foram adquiridos na
comunidade, pelo que esta área cumpriu o seu objectivo.
Relativamente à distribuição temporal dos casos de infecção por H1N1, a maioria
ocorreu na segunda quinzena de Novembro e na primeira semana de Dezembro,
sobreponível ao descrito pela DGS(4), segundo a qual o pico de incidência em
Portugal ocorreu na segunda quinzena de Novembro, com um decréscimo posterior,
mais acentuado a partir das últimas duas semanas do ano civil.
A distribuição etária também está de acordo com o descrito pelas instituições
oficiais, com um predomínio das faixas etárias mais baixas, compreensível dado
que se trata de um estudo realizado em doentes internados num Serviço de
Pediatria. Não temos registo de casos em recém-nascidos, cujo internamento terá
ocorrido prioritariamente em unidades de cuidados intensivos e/ou intermédios
especializadas.
Neste estudo, a maioria dos casos correspondeu a doentes do sexo masculino, com
um valor superior ao descrito pela DGS. Nas descrições publicadas, a proporção
tem sido variável(4,11,12).
A apresentação clínica foi compatível com o descrito, com predominância da
associação de febre, tosse e rinorreia(2,5,11,12). Porém, a infecção por H1N1
foi confirmada em pouco mais de metade dos casos suspeitos internados, o que
pode ser justificado por se tratar de um quadro clínico inespecífico, provocado
por diversos agentes virais.
No grupo estudado, 13% dos casos de infecção por H1N1 não apresentavam
critérios clínicos para definição de caso suspeito, podendo denotar uma baixa
sensibilidade dos critérios da DGS(2,5). Contudo, a definição de síndrome
gripal inclui queixas subjectivas, nomeadamente mialgias/artralgias ou
cefaleias, que em lactentes e crianças pequenas não são expressas.
Grande parte das crianças internadas apresentava factores de risco, sendo o
mais prevalente a idade <5 anos. Houve um número reduzido de doentes com
patologia crónica, o que pode dever-se a um maior cuidado com a prevenção
nessas crianças, relativamente a medidas gerais e vacinação.
O principal motivo de internamento foi febre em pequeno lactente, o que é
explicado por uma atitude mais proactiva perante quadros febris em lactentes e
crianças pequenas. Os outros motivos estão relacionados com a presença e/ou
suspeita de infecções graves como complicações ou diagnóstico diferencial, e
com intolerância oral.
A variabilidade dos resultados analíticos pode ser explicada pelas
características da própria infecção por vírus influenza H1N1. Alguns casos (5)
com suspeita de sobreinfecção nomeadamente pneumonia bacteriana apresentaram
valores mais elevados dos marcadores inflamatórios. Apesar de, na literatura, a
linfopenia ser referida como possível marcador precoce de diagnóstico (9),
neste estudo isso não foi confirmado.
De acordo com as orientações da DGS, todos os doentes internados com síndrome
gripal tinham indicação para terapêutica com oseltamivir. Neste estudo,
verificámos que esta não foi instituída em quase metade dos casos confirmados o
que poderá ser explicado pela demora na confirmação etiológica e/ou melhoria
clínica na ausência de terapêutica. No entanto, os estudos confirmam a eficácia
do oseltamivir na redução das complicações e do contágio(3,6,7), pelo que se
considera que a terapêutica antiviral deveria ter sido instituída.
Neste estudo, foi documentado um caso de resistência ao oseltamivir, numa
criança com uma imunodeficiência (síndrome de DiGeorge e síndrome de Evans
corticodependente) e obesidade mórbida, que havia tido o diagnóstico de gripe A
e realizado a terapêutica antiviral adequada em ambulatório, antes de ser
internada. O défice imunitário e a terapêutica prévia com oseltamivir são dois
factores associados à maioria dos casos de resistência descritos(8,9).
Segundo a OMS, apesar de uma elevada taxa de incidência e de hospitalização na
idade pediátrica, as complicações graves são mais frequentes nos adultos jovens
(2,3,4). Neste estudo, considerou-se ocorrência de complicações em 30% dos
casos, inlcuindo as admitidas pela DGS: pneumonia e convulsões febris. A
criança com infecção resistente ao antiviral teve um internamento prolongado
(78 dias) e complicado por abcessos esplénicos. Apesar de não estar
documentada, não pode ser excluída a associação desta complicação à infecção
por H1N1.
No período em que decorreu este estudo, já estava em curso o programa de
vacinação, que para os doentes com patologia crónica teve início a 2 de
Novembro e para as crianças até aos dois anos a 16 de Novembro(5). Apesar das
indicações, nenhum dos doentes envolvidos neste estudo tinha registo desta
vacinação.
CONCLUSÃO
Os dados disponíveis sobre a epidemia pelo vírus H1N1, no ano epidemiológico
2009/2010, foram fornecidos pelas organizações governamentais, dispondo-se de
escassas casuísticas locais(11,12,13).
O impacto parece ter sido muito inferior ao previsto, em termos de incidência,
morbilidade e mortalidade, o que pode dever-se às características da própria
doença, ou ser uma consequência da instituição precoce e efectiva das medidas
de contenção(3,7).
No entanto, devemos registar e aprender com os casos que evoluem de forma menos
favorável, confrontar resultados, e rever estratégias que possam ser adoptadas
numa futura epidemia.